Job (BAV) 16

Resposta de Jó

16 1 Jó respondeu então nestes termos:
2
Já ouvi muitas vezes discursos semelhantes, sois todos uns consoladores importunos.
3
Quando terão fim essas palavras atiradas ao ar? Que é que te excitava a falar?
4
Eu também podia falar como vós, se estivésseis em meu lugar. Arranjaria discursos a vosso respeito, e sacudiria a cabeça acerca de vós;
5
eu vos encorajaria verbalmente, e moveria os meus lábios sem nenhuma avareza.
6
Se falo, nem por isso se aplaca a minha dor; se calo, estará ela consolada?
7
Mas Deus me extenuou; estou aniquilado; toda a sua tropa me pegou.
8
Minha magreza tornou-se testemunho contra mim, ela depõe contra mim.
9
Sua cólera me fere e me persegue, ele range os dentes contra mim. Meus inimigos dardejam os olhos sobre mim.
10
Abrem a boca para me devorar; batem-me na face para me ultrajar, rebelam-se todos contra mim.
11
Deus me entrega aos perversos, joga-me nas mãos dos malvados.
12
Eu estava em paz, ele ma tirou, segurou-me pela nuca e me pôs em pedaços. Tomou-me como alvo.
13
Suas setas voam em volta de mim. Ele rasga meus rins sem piedade, espalha meu fel por terra.
14
Abre em mim brecha sobre brecha, ataca-me como um guerreiro.
15
Cosi um saco sobre minha pele, rolei minha fronte no pó.
16
Meu rosto está vermelho de lágrimas, a sombra da morte estende-se sobre minhas pálpebras.
17
Entretanto, não há violência em minhas mãos e minha oração é pura.
18
Ó terra, não cubras o meu sangue, e que seu grito não seja sufocado pela tumba.
19
Tenho desde já uma testemunha no céu, um defensor na alturas.
20
Minha oração subiu até Deus, meus olhos choram diante dele.
21
Que ele mesmo julgue entre o homem e Deus, entre o homem e seu semelhante!
22
Pois meus anos contados se esgotam, entro numa vereda por onde não passarei de novo.


17 1 O sopro de minha vida vai-se consumindo, os meus dias se apagam, só me resta o sepulcro.
2
Estou cercado por zombadores, meu olho vela por causa de seus ultrajes.
3
Sê tu mesmo a minha caução junto de ti, e quem ousará bater em minha mão?
4
Pois fechaste o seu coração à inteligência, por isto não os deixarás triunfar.
5
Há quem convide seus amigos à partilha, quando desfalecem os olhos de seus filhos.
6
Ele me reduziu a ser a fábula dos povos, e me cospem no rosto.
7
Meus olhos estão atingidos pela tristeza, todo o meu corpo não é mais que uma sombra.
8
As pessoas retas estão estupefactas, e o inocente se irrita contra o ímpio;
9
o justo, entretanto, persiste no seu caminho, o homem de mãos puras redobra de coragem.
10
Mas vós todos voltai, vinde, pois não acharei entre vós nenhum sábio?
11
Meus dias se esgotam, meus projetos estão aniquilados, frustraram-se os projetos do meu coração.
12
Fazem da noite, dia, a luz da manhã é para mim como trevas.
l3 Deverei esperar? A região dos mortos é a minha morada, preparo meu leito no local tenebroso.
l4 Disse ao sepulcro: És meu pai, e aos vermes: Vós sois minha mãe e minha irmã.
l5 Onde está, pois, minha esperança? E minha felicidade, quem a entrevê?
l6 Descerão elas comigo à região dos mortos, e nos afundaremos juntos na terra?

Segunda discurso de Bildad

18 1 Bildad de Chua falou então nestes termos:
2
Quando acabarás de falar, e terás a sabedoria de nos deixar dizer?
3
Por que nos consideras como animais, e por que passamos por estúpidos a teus olhos?
4
Tu que te rasgas em teu furor, é preciso que por tua causa a terra seja abandonada, e que os rochedos mudem de lugar?
5
Sim, a luz do mau se apagará, e a flama de seu fogo cessará de alumiar.
6
A luz obscurece em sua tenda, e sua lâmpada sobre ele se apagará;
7
seus passos firmes serão cortados, seus próprios desígnios os farão tropeçar.
8
Seus pés se prendem numa rede, e ele anda sobre malhas.
9
A armadilha o segura pelo calcanhar, um laço o aperta.
10
Uma corda se esconde sob a terra para pegá-lo, uma armadilha, ao longo da vereda.
11
De todas as partes temores o amedrontam, e perseguem-no passo a passo.
12
A calamidade vem faminta sobre ele, a infelicidade está postada a seu lado.
13
A pele de seu corpo é devorada, o filho mais velho da morte devora-lhe os membros;
14
é arrancado da tenda, onde se sentia seguro, levam-no ao rei dos terrores.
15
Podes estabelecer-te em sua tenda: ele não existe mais; o enxofre é espalhado em seu domínio.
16
Por baixo suas raízes secam, e por cima seus ramos definham.
17
Sua memória apaga-se da terra, nada mais lembra o seu nome na região.
18
É arrojado da luz para as trevas, é desterrado do mundo.
19
Não tem descendente nem posteridade em sua tribo, nem sobrevivente algum em sua morada.
20
O Ocidente está estupefacto com sua sorte, o Oriente treme diante dela.
2
l Eis o que acontece com as tendas dos ímpios, os lugares habitados pelo homem que não conhece Deus.

Resposta de Jó

19 1 Jó respondeu então nestes termos:
2
Até quando afligireis a minha alma e me atormentareis com vossos discursos?
3
Eis que já por dez vezes me ultrajastes, e não vos envergonhais de me insultar.
4
Mesmo que eu tivesse verdadeiramente pecado, minha culpa só diria respeito a mim mesmo.
5
Se vos quiserdes levantar contra mim, e convencer-me de ignomínia,
6
sabei que foi Deus quem me afligiu e me cercou com suas redes.
7
Clamo contra a violência, e ninguém me responde; levanto minha voz, e não há quem me faça justiça.
8
Fechou meu caminho para que eu não possa passar, e espalha trevas pelo meu caminho;
9
despojou-me de minha glória, e tirou-me a coroa da cabeça.
10
Demoliu-me por inteiro, e pereço, desenraizou minha esperança como uma árvore,
11
acendeu a sua cólera contra mim, tratou-me como um inimigo.
12
Suas milícias se concentraram, construíram aterros para me assaltarem, acamparam em volta de minha tenda.
13
Meus irmãos foram para longe de mim, meus amigos de mim se afastaram.
14
Meus parentes e meus íntimos desapareceram, os hóspedes de minha casa esqueceram-se de mim.
15
Minhas servas olham-me como um estranho, sou um desconhecido para elas.
16
Chamo meu escravo, ele não responde, preciso suplicar-lhe com a boca.
17
Minha mulher tem horror de meu hálito, sou pesado aos meus próprios filhos.
18
Até as crianças caçoam de mim; quando me levanto, troçam de mim.
19
Meus íntimos me abominam, aqueles que eu amava voltam-se contra mim.
20
Meus ossos estão colados à minha pele, à minha carne, e fujo com a pele de meus dentes.


21 Compadecei-vos de mim, compadecei-vos de mim, ao menos vós, que sois meus amigos, pois a mão de Deus me feriu.
22
Por que me perseguis como Deus, e vos mostrais insaciáveis de minha carne?


23 Oh!, se minhas palavras pudessem ser escritas, consignadas num livro,
24
gravadas por estilete de ferro em chumbo, esculpidas para sempre numa rocha!
25
Eu o sei: meu vingador está vivo, e aparecerá, finalmente, sobre a terra.
26
Por detrás de minha pele, que envolverá isso, na minha própria carne, verei Deus.
27
Eu mesmo o contemplarei, meus olhos o verão, e não os olhos de outro; meus rins se consomem dentro de mim.


28 Pois, se dizes: Por que o perseguimos, e como encontraremos nele uma razão para condená-lo?
29
Temei o gume da espada, pois a cólera de Deus persegue os maus, e sabereis que há uma justiça.

Segundo discurso de Sofar

20 1 Sofar de Naama falou nestes termos:
2
É por isso que meus pensamentos me sugerem uma resposta, e estou impaciente por falar.
3
Ouvi queixas injuriosas, foram palavras vãs que responderam a meu espírito.
4
Não sabes bem que, em todos os tempos, desde que o homem foi posto na terra,
5
o triunfo dos maus é breve, e a alegria do ímpio só dura um instante?
6
Ainda mesmo que sua estatura chegasse até o céu e sua cabeça tocasse a nuvem,
7
como o seu próprio esterco, ele perece para sempre, e aqueles que o viam, indagam onde ele está.
8
Como um sonho, ele voa, ninguém mais o encontra, desaparece como uma visão noturna.
9
O olho que o viu, já não mais o vê, nem o verá mais a sua morada.
10
Seus filhos aplacarão os pobres, suas mãos restituirão suas riquezas.
11
Seus ossos estavam cheios de vigor juvenil, sua mocidade deita-se com ele no pó.
12
Se o mal lhe foi doce na boca, se o ocultou debaixo da língua,
13
se o reteve e não o abandonou, se o saboreou com seu paladar,
14
esse alimento se transformará em suas entranhas, e se converterá interiormente em fel de áspides.
15
Vomitará as riquezas que engoliu; Deus as fará sair-lhe do ventre.
16
Sugava o veneno de áspides, a língua da víbora o matará.
17
Não verá correr os riachos de óleo, as torrentes de mel e de leite.
18
Vomitará seu ganho, sem poder engoli-lo, não gozará o fruto de seu tráfico.
19
Porque maltratou, desamparou os pobres, roubou uma casa que não tinha construído,
20
porque sua avidez é insaciável, não salvará o que lhe era mais caro.
21
Nada escapava à sua voracidade: é por isso que sua felicidade não há de durar.
22
Em plena abundância, sentirá escassez; todos os golpes da infelicidade caem sobre ele.
23
Para encher-lhe o ventre (Deus) desencadeia o fogo de sua cólera, e fará chover a dor sobre ele.
24
Se foge diante da arma de ferro, o arco de bronze o traspassa,
25
um dardo sai-lhe das costas, um aço fulgurante sai-lhe do fígado. O terror desaba sobre ele,
26
e ser-lhe-ão reservadas as trevas. Um fogo, que o homem não acendeu, o devora e consome o que sobra em sua tenda.
27
Os céus revelam seu crime, a terra levanta-se contra ele,
28
uma torrente joga-se contra sua casa, que é levada no dia da cólera divina.
29
Tal é a sorte que Deus reserva ao mau, e a herança que Deus lhe destina.

Resposta de Jó

21 1 Jó tomou então a palavra nestes termos:
2
Ouvi, ouvi minhas palavras, que eu tenha pelo menos esse consolo de vossa parte.
3
Permiti que eu fale; quando tiver falado, zombai à vontade.
4
É de um homem que me queixo? E como não hei de perder a paciência?
5
Olhai para mim; ireis ficar estupefactos, e poreis a mão sobre a boca.
6
Quando penso nisso, fico estarrecido, e todo o meu corpo treme.
7
Como é que os maus vivem, envelhecem, e cresce o seu vigor?
8
Sua posteridade prospera diante deles, e seus descendentes sob seus olhos;
9
sua casa é tranqüila, sem alarmes, a vara de Deus não os atinge.
10
Seu touro é cada vez mais fecundo, sua vaca dá cria sem nunca abortar.
11
Deixam os filhos correr como carneiros, e os seus pequenos saltam e brincam.
12
Cantam ao som do pandeiro e da cítara, divertem-se ao som da flauta.
13
Passam os dias na alegria, e descem tranqüilamente à região dos mortos.
14
Ora, dizem a Deus: Afasta-te de nós, não queremos conhecer os teus caminhos;
15
quem é o Todo-poderoso para que o sirvamos? Que vantagem temos em lhe fazer orações?
16
A felicidade não está em suas mãos? Contudo, longe de mim esteja o modo de pensar dos ímpios!
17
Quantas vezes vemos apagar-se a lâmpada dos ímpios, e a ruína desabar sobre eles?
18
São eles como a palha ao sopro do vento, como a cinza tragada pelo turbilhão?
19
Deus (assim dizem), reserva para os filhos o castigo do pai. Que ele mesmo o puna, para que o sinta!
20
Que veja com os próprios olhos a sua ruína, e ele mesmo beba da cólera do Todo-poderoso!
21
Que se lhe dá do que será feito de sua casa depois dele, se o número de seus meses já está contado?
22
É a Deus, que se irá ensinar a sabedoria, a ele, que julga os seres superiores?
23
Um morre no seio da prosperidade, plenamente feliz e tranqüilo,
24
os flancos cobertos de gordura, e a medula dos ossos cheia de seiva;
25
o outro morre com a amargura na alma, sem ter gozado a felicidade;
26
juntos se deitam na terra, e os vermes recobrem a ambos.
27
Ah! conheço vossos pensamentos, os julgamentos iníquos que fazeis de mim.
28
Dizeis: Onde está a casa do tirano, onde está a tenda em que habitavam os ímpios?
29
Não interrogastes os viajantes? Contestaríeis seus testemunhos?
30
No dia da infelicidade o ímpio é poupado, no dia da cólera ele escapa.
31
Quem reprova diante dele o seu proceder, e lhe pede contas de seus atos?
32
Levam-no ao sepulcro, ficarão de vigília em sua câmara funerária.
33
Os torrões do vale são-lhe leves; todos os homens irão em sua companhia, e foram inumeráveis seus predecessores.
34
Que significam, pois, essas vãs consolações? Todas as vossas respostas são apenas perfídia.

Terceiro discurso de Elifaz

22 1 Elifaz de Temã tomou a palavra nestes termos:
2
Pode o homem ser útil a Deus? O sábio só é útil a si mesmo.
3
De que serve ao Todo-poderoso que tu sejas justo? Tem ele interesse que teu proceder seja íntegro?
4
É por causa de tua piedade que ele te pune, e entra contigo em juízo?
5
Não é enorme a tua malícia, e não são inumeráveis as tuas iniqüidades?
6
Sem causa tomaste penhores a teus irmãos, despojaste de suas vestes os miseráveis;
7
não davas água ao sedento, recusavas o pão ao esfomeado.
8
A terra era do mais forte, e o protegido é que nela se estabelecia.
9
Despedias as viúvas com as mãos vazias, quebravas os braços dos órfãos.
10
Eis por que estás cercado de laços, e os terrores súbitos te amedrontam.
11
A luz obscureceu-se; já não vês nada; e o dilúvio águas te engole.
12
Não está Deus nas alturas dos céus? Vê a cabeça das estrelas como está alta!
13
E dizes: Que sabe Deus? Pode ele julgar através da nuvem opaca?
14
As nuvens formam um véu que o impede de ver; ele passeia pela abóbada do céu.
15
Segues, pois, rotas antigas por onde andavam os homens iníquos
16
que foram arrebatados antes do tempo, e cujos fundamentos foram arrastados com as águas,
17
e que diziam a Deus: Retira-te de nós, que poderia fazer-nos o Todo-poderoso?
18
Foi ele, entretanto, que lhes cumulou de bens as casas; - longe de mim os conselhos dos maus! -
19
Vendo-os, os justos se alegram, e o inocente zomba deles:
20
Nossos inimigos estão aniquilados, e o fogo devorou-lhes as riquezas!
21
Reconcilia-te, pois, com (Deus) e faz as pazes com ele, é assim que te será de novo dada a felicidade;
22
aceita a instrução de sua boca, e põe suas palavras em teu coração.
23
Se te voltares humildemente para o Todo-poderoso, se afastares a iniqüidade de tua tenda,
24
se atirares as barras de ouro ao pó, e o ouro de Ofir entre os pedregulhos da torrente,
25
o Todo-poderoso será teu ouro e um monte de prata para ti.
26
Então farás do Todo-poderoso as tuas delícias, e levantarás teu rosto a Deus.
27
Tu lhe rogarás, e ele te ouvirá, e cumprirás os teus votos:
28
formarás os teus projetos, que terão feliz êxito, e a luz brilhará em tuas veredas.
29
Pois Deus abaixa o altivo e o orgulhoso, mas socorre aquele que abaixa os olhos.
30
Salva o inocente, o qual é libertado pela pureza de suas mãos.

Resposta de Jó

23 1 Jó tomou a palavra nestes termos:
2
Sim, hoje minha queixa é uma revolta; sua mão pesa sobre meus suspiros.
3
Ah! se pudesse encontrá-lo, e chegar até seu trono!
4
Exporia diante dele minha causa, encheria minha boca de argumentos,
5
saberia o que ele iria responder-me, e veria o que ele teria para me dizer.
6
Oporia ele contra mim a sua onipotência? Bastaria que lançasse os olhos em mim;
7
seria então um justo a discutir com ele, e eu iria embora definitivamente absolvido pelo meu juiz.
8
Mas se eu for ao oriente, lá ele não está; ao ocidente, não o encontrarei;
9
se o procuro ao norte, não o vejo; se me volto para o sul, não o descubro.
10
Mas ele conhece o meu caminho; e se me põe à prova, dela sairei puro como o ouro.
11
Meu pé seguiu os seus traços, guardei o seu caminho sem me desviar.
12
Não me afastei dos preceitos de seus lábios, guardei no meu íntimo as palavras de sua boca.
13
Mas ele decidiu alguma coisa; quem o fará voltar atrás? Ele faz o que bem lhe agrada.
14
Realizará seu desígnio a meu respeito, e tem muitos projetos iguais a este.
15
Eis por que sua presença me atemoriza: basta o seu pensamento para me fazer tremer.
16
Deus fundiu o meu coração, o Todo-poderoso me enche de terror.
17
Sucumbo diante das trevas, as trevas cobriram-me o rosto.


24 1 Por que não reserva tempos para si o Todo-poderoso? E por que ignoram seus dias os que lhe são fiéis?
2
Os maus mudam as divisas das terras, e fazem pastar o rebanho que roubaram.
3
Empurram diante de si o jumento do órfão, e tomam em penhor o boi da viúva.
4
Afastam os pobres do caminho, todos os miseráveis da região precisam esconder-se.
5
Como os asnos no deserto, saem para o trabalho, à procura do que comer, à procura do pão para seus filhos.
6
Ceifam a forragem num campo, vindimam a vinha do ímpio.
7
Passam a noite nus, sem roupa, sem cobertor contra o frio.
8
São banhados pelas chuvas da montanha; sem abrigo, abraçam-se com as rochas.
9
Arrancam o órfão do seio materno, tomam em penhor as crianças do pobre.
10
Andam nus, despidos, esfomeados, carregam feixes.
11
Espremem o óleo nos celeiros, pisam os lagares, morrendo de sede.
12
Sobe da cidade o estertor dos moribundos, a alma dos feridos grita: Deus não ouve suas súplicas.
13
Outros são rebeldes à luz, não conhecem seus caminhos, não habitam em suas veredas.
14
O homicida levanta-se quando cai o dia, para matar o pobre e o indigente; o ladrão vagueia durante a noite.
15
O adúltero espreita o crepúsculo: Ninguém me verá, diz ele, e põe um véu no rosto.
16
Nas trevas, forçam as casas; escondem-se durante o dia; não conhecem a luz.
17
Para eles, com efeito, a manhã é uma sombra espessa, pois estão acostumados aos terrores da noite.
18
Correm rapidamente à superfície das águas, sua herança é maldita na terra; já não tomarão o caminho das vinhas.
19
Como a seca e o calor absorvem a água das neves, assim a região dos mortos engole os pecadores.
20
O ventre que o gerou, esquece-o, os vermes fazem dele as suas delícias; ninguém mais se lembra dele.
21
A iniqüidade é quebrada como uma árvore. Maltratava a mulher estéril e sem filhos, não fazia o bem à viúva;
22
punha sua força a serviço dos poderosos. Levanta-se e já não pode mais contar com a vida.
23
Ele lhes dá segurança e apoio, mas seus olhos vigiam seus caminhos.
24
Levantam-se, subitamente já não existem; caem; como os outros, são arrebatados, são ceifados como cabeças de espigas.
25
Se assim não é, quem me desmentirá, quem reduzirá a nada as minhas palavras?

Terceiro discurso de Bildad

25 1 Bildad de Chua tomou então a palavra nestes termos:
2
A ele, o poder e a majestade, em sua alta morada faz reinar a paz.
3
Podem ser contadas as suas legiões? Sobre quem não se levanta a sua luz?
4
Como seria justo o homem diante de Deus, como seria puro o filho da mulher?
5
Até mesmo a luz não brilha, e as estrelas não são puras a seus olhos;
6
quanto menos o homem, esse verme, e o filho do homem, esse vermezinho.

Resposta de Jó

26 1 Jó tomou então a palavra nestes termos:
2
Como sabes sustentar bem o fraco, e socorrer um braço sem vigor!
3
Como sabes aconselhar o ignorante, e dar mostras de abundante sabedoria!
4
A quem diriges este discurso? Sob a inspiração de quem falas tu?
5
As sombras agitam-se embaixo (da terra), as águas e seus habitantes (estão temerosos).
6
A região dos mortos está aberta diante dele, os infernos não têm véu.
7
Estende o setentrião sobre o vácuo, suspende a terra acima do nada.
8
Prende as águas em suas nuvens, e as nuvens não se rasgam sob seu peso.
9
Vela a face da lua, estendendo sobre ela uma nuvem.
10
Traçou um círculo à superfície das águas, onde a luz confina com as trevas.
11
As colunas do céu estremecem e assustam-se com a sua ameaça.
12
Com seu poder levanta o mar, com sua sabedoria destruiu Raab.
13
Seu sopro varreu os céus, e sua mão feriu a serpente fugitiva.
14
Eis que tudo isso não é mais que o contorno de suas obras, e se apenas percebemos um fraco eco dessas obras, quem compreenderá o trovão de seu poder?


27 1 Jó continuou seu discurso nestes termos:
2
Pela vida de Deus que me recusa justiça, pela vida do Todo-poderoso que enche minha alma de amargura,
3
enquanto em mim houver alento, e o sopro de Deus passar por minhas narinas,
4
meus lábios nada pronunciarão de perverso e minha língua não proferirá mentira.
5
Longe de mim vos dar razão! Até o último suspiro defenderei minha inocência,
6
mantenho minha justiça, não a abandonarei; minha consciência não acusa nenhum de meus dias.
7
Que meu inimigo seja tratado como culpado, e meu adversário como um mentiroso!
8
Que pode esperar o ímpio de sua oração, quando eleva para Deus a sua alma?
9
Deus escutará seu clamor quando a angústia cair sobre ele?
10
Encontra ele suas delícias no Todo-poderoso, invoca ele Deus em todo o tempo?
11
Eu vos ensinarei o proceder de Deus, não vos ocultarei os desígnios do Todo-poderoso.
12
Mas todos vós já o sabeis; e por que proferis palavras vãs?
13
Eis a sorte que Deus reserva aos maus, e a parte reservada ao violento pelo Todo-poderoso.
14
Se seus filhos se multiplicam, é para a espada, e seus descendentes não terão o que comer.
15
Seus sobreviventes serão sepultados na morte, e suas viúvas não os chorarão.
16
Se amontoa prata como poeira, se ajunta vestimentas como argila,
17
ele amontoa, mas é o justo quem os veste, é um homem honesto quem herda a prata.
18
Constrói sua casa como a casa da aranha, como a choupana que o vigia constrói.
19
Deita-se rico: é pela última vez. Quando abre os olhos, já deixou de sê-lo.
20
O terror o invade como um dilúvio, um redemoinho o arrebata durante a noite.
21
O vento de leste o levanta e o faz desaparecer: varre-o violentamente de seu lugar.
22
Precipitam-se sobre ele sem poupá-lo, é arrastado numa fuga desvairada.
23
Sua ruína é aplaudida; de sua própria casa assobiarão sobre ele.

Origem da sabedoria

28 1 Há lugares de onde se tira a prata, lugares onde o ouro é apurado;
2
o ferro é extraído do solo, o cobre é extraído de uma pedra fundida.
3
Foi posto um fim às trevas, escavaram-se as últimas profundidades da rocha obscura e sombria.
4
Longe dos lugares habitados (o mineiro) abre galerias que são ignoradas pelos pés dos transeuntes; suspenso, vacila longe dos humanos.
5
A terra, que produz o pão, é sacudida em suas entranhas como se fosse pelo fogo.
6
As rochas encerram a safira, assim como o pó do ouro.
7
A águia não conhece a vereda, o olho do abutre não a viu;
8
os altivos animais não a pisaram, o leão não passou por ela.
9
O homem põe a mão no sílex, derruba as montanhas pela base;
10
fura galerias nos rochedos, o olho pode ver nelas todos os tesouros.
11
Explora as nascentes dos rios, e põe a descoberto o que estava escondido.
12
Mas a sabedoria, de onde sai ela? Onde está o jazigo da inteligência?
13
O homem ignora o caminho dela, ninguém a encontra na terra dos vivos.
14
O abismo diz: Ela não está em mim. Não está comigo, diz o mar.
15
Não pode ser adquirida com ouro maciço, não pode ser comprada a peso de prata.
16
Não pode ser posta em balança com o ouro de Ofir, com o ônix precioso ou a safira.
17
Não pode ser comparada nem ao ouro nem ao vidro, ninguém a troca por vaso de ouro fino.
18
Quanto ao coral e ao cristal, nem se fala, a sabedoria vale mais do que as pérolas.
19
Não pode ser igualada ao topázio da Etiópia, não pode ser equiparada ao mais puro ouro.
20
De onde vem, pois, a sabedoria? Onde está o jazigo da inteligência?
21
Um véu a oculta de todos os viventes, até das aves do céu ela se esconde.
22
Dizem o inferno e a morte: Apenas ouvimos falar dela.
23
Deus conhece o caminho para encontrá-la, é ele quem sabe o seu lugar,
24
porque ele vê até os confins da terra, e enxerga tudo o que há debaixo do céu.
25
Quando ele se ocupava em pesar os ventos, e em regular a medida das águas,
26
quando fixava as leis da chuva, e traçava uma rota aos relâmpagos,
27
então a viu e a descreveu, penetrou-a e escrutou-a.
28
Depois disse ao homem: O temor do Senhor, eis a sabedoria; fugir do mal, eis a inteligência.


29 1 Jó continuou seu discurso nestes termos:
2
Quem me tornará tal como antes, nos dias em que Deus me protegia,
3
quando a sua lâmpada luzia sobre a minha cabeça, e a sua luz me guiava nas trevas?
4
Tal como eu era nos dias de meu outono, quando Deus velava como um amigo sobre minha tenda,
5
quando o Todo-poderoso estava ainda comigo, e meus filhos em volta de mim;
6
quando os meus pés se banhavam no creme, e o rochedo em mim derramava ondas de óleo;
7
quando eu saía para ir à porta da cidade, e me assentava na praça pública?
8
Viam-me os jovens e se escondiam, os velhos levantavam-se e ficavam de pé;
9
os chefes interrompiam suas conversas, e punham a mão sobre a boca;
10
calava-se a voz dos príncipes, a língua colava-se-lhes no céu da boca.
11
Quem me ouvia felicitava-me, quem me via dava testemunho de mim.
12
Livrava o pobre que pedia socorro, e o órfão que não tinha apoio.
13
A bênção do que estava a perecer vinha sobre mim, e eu dava alegria ao coração da viúva.
14
Revestia-me de justiça, e a eqüidade era para mim como uma roupa e um turbante.
15
Era os olhos do cego e os pés daquele que manca;
16
era um pai para os pobres, examinava a fundo a causa dos desconhecidos.
17
Quebrava o queixo do perverso, e arrancava-lhe a presa de entre os dentes.
18
Eu dizia: Morrerei em meu ninho, meus dias serão tão numerosos quanto os da fênix.
19
Minha raiz atinge as águas, o orvalho ficará durante a noite sobre meus ramos.
20
Minha glória será sempre jovem, e meu arco sempre forte em minha mão.
21
Escutavam-me, esperavam, recolhiam em silêncio meu conselho;
22
quando acabava de falar, não acrescentavam nada, minhas palavras eram recebidas como orvalho.
23
Esperavam-me como a chuva e abriam a boca como se fosse para as águas da primavera.
24
Sorria para aqueles que perdiam coragem; ante o meu ar benevolente, deixavam de estar abatidos.
25
Quando eu ia ter com eles, tinha o primeiro lugar, era importante como um rei no meio de suas tropas, como o consolador dos aflitos.


30 1 Agora zombam de mim os mais jovens do que eu, aqueles cujos pais eu desdenharia de colocar com os cães de meu rebanho.
2
Que faria eu com o vigor de seus braços? Não atingirão a idade madura.
3
Reduzidos a nada pela miséria e a fome, roem um solo árido e desolado.
4
Colhem ervas e cascas dos arbustos, por pão têm somente a raiz das giestas.


5 São postos para fora do povo, gritam com eles como se fossem ladrões,
6
moram em barrancos medonhos, em buracos de terra e de rochedos.
7
Ouvem-se seus gritos entre os arbustos, amontoam-se debaixo das urtigas,
8
filhos de infames e de gente sem nome que são expulsos da terra!
9
Agora sou o assunto de suas canções, o tema de seus escárnios;


10 afastam-se de mim com horror, não receiam cuspir-me no rosto.
11
Desamarraram a corda para humilhar-me, sacudiram de si todo o freio diante de mim.
12
À minha direita levanta-se a raça deles, tentam atrapalhar meus pés, abrem diante de mim o caminho da sua desgraça.
13
Cortam minha vereda para me perder, trabalham para minha ruína.
14
Penetram como por uma grande brecha, irrompem entre escombros.
15
O pavor me invade. Minha esperança é varrida como se fosse pelo vento, minha felicidade passa como uma nuvem.
16
Agora minha alma se dissolve, os dias de aflição me dominaram.
17
A noite traspassa meus ossos, consome-os; os males que me roem não dormem.
18
Com violência segura a minha veste, aperta-me como o colarinho de minha túnica.
19
Deus jogou-me no lodo, tenho o aspecto da poeira e da cinza.
20
Clamo a ti, e não me respondes; ponho-me diante de ti, e não olhas para mim.
21
Tornaste-te cruel para comigo, atacas-me com toda a força de tua mão.
22
Arrebatas-me, fazes-me cavalgar o tufão, aniquilas-me na tempestade.
23
Eu bem sei, levas-me à morte, ao lugar onde se encontram todos os viventes.
24
Mas poderá aquele que cai não estender a mão, poderá não pedir socorro aquele que perece?
25
Não chorei com os oprimidos? Não teve minha alma piedade dos pobres?
26
Esperava a felicidade e veio a desgraça, esperava a luz e vieram as trevas.
27
Minhas entranhas abrasam-se sem nenhum descanso, assaltaram-me os dias de aflição.
28
Caminho no luto, sem sol; levanto-me numa multidão de gritos,
29
tornei-me irmão dos chacais e companheiro dos avestruzes.
30
Minha pele enegrece-se e cai, e meus ossos são consumidos pela febre.
31
Minha cítara só dá acordes lúgubres, e minha flauta sons queixosos.


31 1 Eu havia feito um pacto com meus olhos: não desejaria olhar nunca para uma virgem.
2
Que parte me daria Deus lá do alto, que sorte o Todo-poderoso me enviaria dos céus?
3
A infelicidade não está reservada ao injusto, e o infortúnio ao iníquo?
4
Não conhece Deus os meus caminhos, e não conta todos os meus passos?
5
Se caminhei com a mentira, se meu pé correu atrás da fraude,
6
que Deus me pese em justas balanças e reconhecerá minha integridade.
7
Se meus passos se desviaram do caminho, se meu coração seguiu meus olhos, se às minhas mãos se apegou qualquer mácula,
8
semeie eu e outro o coma, e que minhas plantações sejam desenraizadas!
9
Se meu coração foi seduzido por uma mulher, se fiquei à espreita à porta de meu vizinho,


10 que minha mulher gire a mó para outro e que estranhos a possuam!
11
Pois isso teria sido um crime, um delito dependente da justiça,
12
um fogo que devoraria até o abismo, e que teria arruinado todos os meus bens.
13
Nunca violei o direito de meus escravos, ou de minha serva, em suas discussões comigo.


14 Que farei eu quando Deus se levantar? Quando me interrogar, que lhe responderei?
15
Aquele que me criou no ventre, não o criou também a ele? Um mesmo criador não nos formou no seio da nossa mãe?


16 Não recusei aos pobres aquilo que desejavam, não fiz desfalecer os olhos da viúva,
17
não comi sozinho meu pedaço de pão, sem que o órfão tivesse a sua parte;
18
desde minha infância cuidei deste como um pai, desde o ventre de minha mãe fui o guia da viúva.


19 Se vi perecer um homem por falta de roupas, e o pobre que não tinha com que cobrir-se,
20
sem que seus rins me tenham abençoado, aquecido como estava com a lã de minhas ovelhas;


21 se levantei a mão contra o órfão, quando me via apoiado pelos juízes,
22
que meu ombro caia de minhas costas, que meu braço seja arrancado de seu cotovelo!
23
Pois o temor de Deus me invadiu, e diante de sua majestade não posso subsistir.


24 Nunca pus no ouro minha segurança, nem jamais disse ao ouro puro: És minha esperança.
25
Nunca me rejubilei por ser grande a minha riqueza, nem pelo fato de minha mão ter ajuntado muito.


26 Quando eu via o sol brilhar, e a lua levantar-se em seu esplendor,
27
jamais meu coração deixou-se seduzir em segredo, e minha mão não foi levada à boca para um beijo.
28
Isto seria um crime digno de castigo, pois eu teria renegado o Deus do alto.
29
Nunca me alegrei com a ruína de meu inimigo, e nem exultei quando a infelicidade o feriu.


30 Não permiti que minha língua pecasse, reclamando sua morte por uma imprecação.


31 Jamais as pessoas de minha tenda me disseram: Há alguém que não saiu satisfeito.


32 O estrangeiro não passava a noite fora, eu abria a minha porta ao viajante.


33 Nunca dissimulei minha culpa aos homens, escondendo em meu peito minha iniqüidade,
34
como se temesse a multidão e receasse o desprezo das famílias, a ponto de me manter quieto sem pôr o pé fora da porta.
35
Oh, se eu tivesse alguém para me ouvir! Eis a minha assinatura: que o Todo-poderoso me responda! Que o meu adversário escreva também um memorial.
36
Será que eu não o poria sobre meus ombros, e não cingiria minha fronte com ele como de uma coroa?
37
Dar-lhe-ia conta de todos os meus passos, e me apresentaria diante dele altivo como um príncipe.
38
Se minha terra clamou contra mim, e seus sulcos derramaram lágrimas,
39
se comi seus frutos sem pagar, se afligi a alma de seu possuidor,
40
que em vez de trigo produza espinhos, e joio em vez de cevada! Aqui terminam os discursos de Jó.


Job (BAV) 16