Job (BAV) 1





Livro de Jó



Piedade de Jó

1 1 Havia, na terra de Hus, um homem chamado Jó, íntegro, reto, que temia a Deus e fugia do mal.
2
Nasceram-lhe sete filhos e três filhas.
3
Possuía sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois, quinhentas jumentas e uma grande quantidade de escravos. Este homem era o mais considerado entre todos os homens do Oriente.
4
Seus filhos tinham o costume de ir à casa uns dos outros, alternadamente, para se banquetearem e convidavam suas três irmãs para comerem e beberem com eles.
5
Quando acabava a série dos dias de banquetes, Jó mandava chamar seus filhos para purificá-los e, na manhã do dia seguinte, oferecia um holocausto por intenção de cada um deles: porque, dizia ele, talvez meus filhos tenham pecado e amaldiçoado Deus nos seus corações. Assim fazia Jó cada vez.

Suas provações

6 Um dia em que os filhos de Deus se apresentaram diante do Senhor, veio também Satanás entre eles.
7
O Senhor disse-lhe: De onde vens tu? Andei dando volta pelo mundo, disse Satanás, e passeando por ele.
8
O Senhor disse-lhe: Notaste o meu servo Jó? Não há ninguém igual a ele na terra: íntegro, reto, temente a Deus, afastado do mal.
9
Mas Satanás respondeu ao Senhor: É a troco de nada que Jó teme a Deus?
10
Não cercaste como de uma muralha a sua pessoa, a sua casa e todos os seus bens? Abençoas tudo quanto ele faz e seus rebanhos cobrem toda a região.
11
Mas estende a tua mão e toca em tudo o que ele possui; juro-te que te amaldiçoará na tua face.
12
Pois bem!, respondeu o Senhor. Tudo o que ele tem está em teu poder; mas não estendas a tua mão contra a sua pessoa. E Satanás saiu da presença do Senhor.
13
Ora, um dia em que os filhos e filhas de Jó estavam à mesa e bebiam vinho em casa do seu irmão mais velho,
14
um mensageiro veio dizer a Jó: Os bois lavravam e as jumentas pastavam perto deles.
15
De repente, apareceram os sabeus e levaram tudo; e passaram à espada os escravos. Só eu consegui escapar para te trazer a notícia.
16
Estando ele ainda a falar, veio outro e disse: O fogo de Deus caiu do céu; queimou, consumiu as ovelhas e os escravos. Só eu consegui escapar para te trazer a notícia.
17
Ainda este falava, e eis que chegou outro e disse: Os caldeus, divididos em três bandos, lançaram-se sobre os camelos e os levaram. Passaram a fio de espada os escravos. Só eu consegui escapar para te trazer a notícia!
18
Ainda este estava falando e eis que entrou outro, e disse: Teus filhos e filhas estavam comendo e bebendo vinho em casa do irmão mais velho,
19
quando um furacão se levantou de repente do deserto, abalou os quatro cantos da casa e esta desabou sobre os jovens. Morreram todos. Só eu consegui escapar para te trazer a notícia.
20
Jó então se levantou, rasgou o manto e rapou a cabeça. Depois, caindo prosternado por terra,
21
disse: Nu saí do ventre de minha mãe, nu voltarei. O Senhor deu, o Senhor tirou: bendito seja o nome do Senhor!
22
Em tudo isso, Jó não cometeu pecado algum, nem proferiu contra Deus blasfêmia alguma.


2 1 Ora, um dia em que os filhos de Deus se apresentaram diante do Senhor, Satanás apareceu também no meio deles na presença do Senhor.
2
O Senhor disse-lhe: De onde vens tu? Andei dando volta pelo mundo, respondeu Satanás, e passeando por ele.
3
O Senhor disse-lhe: Notaste o meu servo Jó? Não há ninguém igual a ele na terra, íntegro, reto, temente a Deus e afastado do mal. Persevera sempre em sua integridade; foi em vão que me incitaste a perdê-lo.
4
Pele por pele!, respondeu Satanás. O homem dá tudo o que tem para salvar a própria vida.
5
Mas estende a tua mão, toca-lhe nos ossos, na carne; juro que te renegará em tua face.
6
O Senhor disse a Satanás: Pois bem, ele está em teu poder, poupa-lhe apenas a vida.
7
Satanás retirou-se da presença do Senhor e feriu Jó com uma lepra maligna, desde a planta dos pés até o alto da cabeça.
8
E Jó tomou um caco de telha para se coçar, e assentou-se sobre a cinza.
9
Sua mulher disse-lhe: Persistes ainda em tua integridade? Amaldiçoa a Deus, e morre!
10
Falas, respondeu-lhe ele, como uma insensata. Aceitamos a felicidade da mão de Deus; não devemos também aceitar a infelicidade? Em tudo isso, Jó não pecou por palavras.

Os três amigos de Jó

11 Três amigos de Jó, Elifaz de Temã, Bildad de Chua e Sofar de Naama, tendo ouvido todo o mal que lhe tinha sucedido, vieram cada um de sua terra e combinaram ir juntos exprimir sua simpatia e suas consolações.
12
Tendo de longe levantado os olhos, não o reconheceram; e puseram-se então a chorar, rasgaram as vestes, e lançaram para o céu poeira, que recaía sobre suas cabeças.
13
Ficaram sentados no chão ao lado dele sete dias e sete noites, sem que nenhum lhe dirigisse a palavra, tão grande era a dor em que o viam mergulhado.

Queixas de Jó

3 1 Então Jó abriu a boca e amaldiçoou o dia de seu nascimento.
2
Jó falou nestes termos:
3
Pereça o dia em que nasci e a noite em que foi dito: uma criança masculina foi concebida!


4 Que esse dia se mude em trevas! Que Deus, lá do alto, não se incomode com ele; que a luz não brilhe sobre ele!
5
Que trevas e obscuridade se apoderem dele, que nuvens o envolvam, que eclipses o apavorem,
6
que a sombra o domine; esse dia, que não seja contado entre os dias do ano, nem seja computado entre os meses!
7
Que seja estéril essa noite, que nenhum grito de alegria se faça ouvir nela.
8
Amaldiçoem-na aqueles que amaldiçoaram os dias, aqueles que são hábeis para evocar Leviatã!
9
Que as estrelas de sua madrugada se obscureçam, e em vão espere a luz, e não veja abrirem-se as pálpebras da aurora,
10
já que não fechou o ventre que me carregou para me poupar a vista do mal!


11 Por que não morri no seio materno, por que não pereci saindo de suas entranhas?
12
Por que dois joelhos para me acolherem, por que dois seios para me amamentarem?
13
Estaria agora deitado e em paz, dormiria e teria o repouso
14
com os reis, árbitros da terra, que constroem para si mausoléus;
15
com os príncipes que possuíam o ouro, e enchiam de dinheiro as suas casas.
16
Ou então, como o aborto escondido, eu não teria existido, como as crianças que não viram o dia.
17
Ali, os maus cessam os seus furores, ali, repousam os exaustos de forças,


18 ali, os prisioneiros estão tranqüilos, já não mais ouvem a voz do exator.
19
Ali, juntos, os pequenos e os grandes se encontram, o escravo ali está livre do jugo do seu senhor.


20 Por que conceder a luz aos infelizes, e a vida àqueles cuja alma está desconsolada,
21
que esperam a morte, sem que ela venha, e a procuram mais ardentemente do que um tesouro,
22
que são felizes até ficarem transportados de alegria, quando encontrarem o sepulcro?
23
Ao homem cujo caminho é escondido e que Deus cerca de todos os lados?


24 Em lugar do pão tenho meus suspiros, e os meus gemidos se espalham como a água.
25
Todos os meus temores se realizam, e aquilo que me dá medo vem atingir-me.
26
Não tenho paz, nem descanso, nem repouso; só tenho agitação.

Primeiro discurso de Elifaz

4 1 Elifaz de Temã tomou a palavra nestes termos:
2
Se arriscarmos uma palavra, talvez ficarás aflito, mas quem poderá impedir-me de falar?
3
Eis: exortaste muita gente, deste força a mãos débeis,
4
tuas palavras levantavam aqueles que caíam, fortificaste os joelhos vacilantes.
5
Agora que é a tua vez, enfraqueces; quando és atingido, te perturbas.
6
Não é tua piedade a tua esperança, e a integridade de tua vida, a tua segurança?
7
Lembra-te: qual o inocente que pereceu? Ou quando foram destruídos os justos?
8
Tanto quanto eu saiba, os que praticam a iniqüidades e os que semeiam sofrimento, também os colhem.
9
Ao sopro de Deus eles perecem, e são aniquilados pelo vento de seu furor.
10
Urra o leão, e seu rugido é abafado; os dentes dos leõezinhos são quebrados.
11
A fera morreu porque não tinha presa, e os filhotes da leoa são dispersados.
12
Uma palavra chegou a mim furtivamente, meu ouvido percebeu o murmúrio,
13
na confusão das visões da noite, na hora em que o sono se apodera dos humanos.
14
Assaltaram-me o medo e o terror, e sacudiram todos os meus ossos;
15
um sopro perpassou pelo meu rosto, e fez arrepiar o pêlo de minha pele.
16
Lá estava um ser - não lhe vi o rosto - como um espectro sob meus olhos.
17
Ouvi uma débil voz: Pode um homem ser justo na presença de Deus, pode um mortal ser puro diante de seu Criador?
18
Ele não confia nem em seus próprios servos; até mesmo em seus anjos encontra defeitos,
19
quanto mais em seus hóspedes das casas de argila que têm o pó por fundamento! São esmagados como uma traça;
20
entre a noite e a manhã são aniquilados; sem que neles se preste atenção, morrem para sempre.
21
Não foi arrancada a estaca da tenda deles? Morrem por não terem conhecido a sabedoria.


5 1 Chama para ver se te respondem; a qual dos santos te dirigirás?
2
O arrebatamento mata o insensato, a inveja leva o tolo à morte.
3
Vi o insensato deitar raiz, e de repente sua morada apodreceu.
4
Seus filhos são privados de qualquer socorro, são pisados à porta, ninguém os defende.
5
O faminto come sua colheita e a leva embora, por detrás da cerca de espinhos, e os sequiosos engolem seus bens.
6
Pois o mal não sai do pó, e o sofrimento não brota da terra:
7
é o homem quem causa o sofrimento como as faíscas voam no ar.
8
Por isso, eu rogarei a Deus, apresentarei minha súplica ao Senhor.
9
Ele faz coisas grandes e insondáveis, maravilhas incalculáveis;
10
espalha a chuva sobre a terra, e derrama as águas sobre os campos;
11
exalta os humildes, e dá nova alegria aos que estão de luto;
12
frustra os projetos dos maus, cujas mãos não podem executar os planos;
13
apanha os jeitosos em suas próprias manhas, e os projetos dos astutos se tornam prematuros;
14
em pleno dia encontram as trevas, e andam às apalpadelas ao meio-dia como se fosse noite.
15
Salva o fraco da espada da língua deles, e o pobre da mão do poderoso;
16
volta a esperança ao infeliz, e é fechada a boca da iniqüidade.
17
Bem-aventurado o homem a quem Deus corrige! Não desprezes a lição do Todo-poderoso,
18
pois ele fere e cuida; se golpeia, sua mão cura.
19
Seis vezes te salvará da angústia, e, na sétima, o mal não te atingirá.
20
No tempo de fome, te preservará da morte, e, no combate, do gume da espada;
21
estarás a coberto do açoite da língua, não terás medo quando vires a ruína;
22
rirás das calamidades e da fome, não temerás as feras selvagens.
23
Farás um pacto com as pedras do chão, e os animais dos campos estarão em paz contigo.
24
Dentro de tua tenda conhecerás a paz, visitarás tuas terras, onde nada faltará;
25
verás tua posteridade multiplicar-se, e teus descendentes crescerem como a erva dos campos.
26
Entrarás maduro no sepulcro, como um feixe de trigo que se recolhe a seu tempo.
27
Eis o que observamos; é assim; eis o que aprendemos; tira proveito disso.

Resposta de Jó

6 1 Jó tomou a palavra nestes termos:
2
Ah! se pudessem pesar minha aflição, e pôr na balança com ela meu infortúnio!
3
esta aqui apareceria mais pesada do que a areia dos mares: eis por que minhas palavras são desvairadas.
4
As setas do Todo-poderoso estão cravadas em mim, e meu espírito bebe o veneno delas; os terrores de Deus me assediam
5
Porventura orneja o asno montês, quando tem erva? Muge o touro junto de sua forragem?
6
Come-se uma coisa insípida sem sal? Pode alguém saborear aquilo que não tem gosto algum?
7
Minha alma recusa-se a tocar nisso, meu coração está desgostoso.
8
Quem me dera que meu voto se cumpra, e que Deus realize minha esperança!
9
Que Deus consinta em esmagar-me, que deixe suas mãos cortarem meus dias!
10
Teria pelo menos um consolo, e exultaria em seu impiedoso tormento, por não ter renegado as palavras do Santo.
11
Pois, que é minha força para que eu espere, qual é meu fim, para me portar com paciência?
12
Será que tenho a fortaleza das pedras, e será de bronze minha carne?
13
Não encontro socorro algum, qualquer esperança de salvação me foi tirada.
14
Recusar a piedade a um amigo é abandonar o temor ao Todo-poderoso.
15
Meus irmãos são traiçoeiros como a torrente, como as águas das torrentes que somem.
16
Rolam agitadas pelo gelo, empoçam-se com a neve derretida.
17
No tempo da seca, elas se esgotam, e ao vir o calor, seu leito seca.
18
as caravanas se desviam das veredas, penetram no deserto e perecem;
19
As caravanas de Tema espreitavam, os comboios de Sabá contavam com elas;
20
ficaram transtornados nas suas suposições: ao chegarem ao lugar, ficaram confusos.
21
É assim que falhais em cumprir o que de vós se esperava nesta hora; a vista de meu infortúnio vos aterroriza.
22
Porventura, disse-vos eu: Dai-me qualquer coisa de vossos bens, dai-me presentes,
23
livrai-me da mão do inimigo, e tirai-me do poder dos violentos?
24
Ensinai-me e eu me calarei, mostrai-me em que falhei.
25
Como são eficazes as expressões conforme a eqüidade! Mas em que podereis surpreender-me?
26
Pretendeis censurar palavras? Palavras desesperadas, leva-as o vento.
27
Seríeis capazes de pôr em leilão até mesmo um órfão, de traficar o vosso amigo!
28
Vamos, peço-vos, olhai para mim face a face, não mentirei.
29
Vinde de novo; não sejais injustos; vinde: estou inocente nessa questão.
30
Haverá iniqüidade em minha língua? Meu paladar não sabe discernir o mal?


7 1 A vida do homem sobre a terra é uma luta, seus dias são como os dias de um mercenário.
2
Como um escravo que suspira pela sombra, e o assalariado que espera seu soldo,
3
assim também eu tive por sorte meses de sofrimento, e noites de dor me couberam por partilha.
4
Apenas me deito, digo: Quando chegará o dia? Logo que me levanto: Quando chegará a noite? E até a noite me farto de angústias.


5 Minha carne se cobre de podridão e de imundície, minha pele racha e supura.


6 Meus dias passam mais depressa do que a lançadeira, e se desvanecem sem deixar esperança.
7
Lembra-te de que minha vida nada mais é do que um sopro, de que meus olhos não mais verão a felicidade;


8 o olho que me via não mais me verá, o teu me procurará, e já não existirei.
9
A nuvem se dissipa e passa: assim, quem desce à região dos mortos não subirá de novo;
10
não voltará mais à sua casa, sua morada não mais o reconhecerá.
11
E por isso não reprimirei minha língua, falarei na angústia do meu espírito, queixar-me-ei na tristeza de minha alma:


12 Porventura, sou eu o mar ou um monstro marinho, para me teres posto um guarda contra mim?
13
Se eu disser: Consolar-me-á o meu leito, e a minha cama me aliviará,
14
tu me aterrarás com sonhos, e me horrorizarás com visões.
15
Preferiria ser estrangulado; antes a morte do que meus tormentos!
16
Sucumbo, deixo de viver para sempre; deixa-me; pois meus dias são apenas um sopro.
17
O que é um homem para fazeres tanto caso dele, para te dignares ocupar-te dele,
18
para visitá-lo todas as manhãs, e prová-lo a cada instante?
19
Quando cessarás de olhar para mim, e deixarás que eu engula minha saliva?
20
Se pequei, que mal te fiz, ó guarda dos homens? Por que me tomas por alvo, e me tornei pesado a ti?
21
Por que não toleras meu pecado e não apagas minha culpa? Eis que vou logo me deitar por terra; tu me procurarás, e já não existirei.

Discurso de Bildad

8 1 Bildad de Chua tomou a palavra e disse:
2
Até quando dirás semelhantes coisas, e tuas palavras serão como um furacão?
3
Porventura Deus fará curvar o que é reto, e o Todo-poderoso subverterá a justiça?
4
Se teus filhos o ofenderam, ele os entregou às conseqüências de suas culpas.
5
Se recorreres a Deus, e implorares ao Todo-poderoso,
6
se fores puro e reto, ele atenderá a tua oração e restaurará a morada de tua justiça;
7
teu começo parecerá pouca coisa diante da grandeza do que se seguirá.
8
Interroga as gerações passadas, e examina com cuidado a experiência dos antepassados;
9
- porque somos uns ignorantes das (coisas) de ontem, nossos dias sobre a terra passam como a sombra -:
10
elas podem instruir-te, falar-te e de seu coração tirar este discurso:
11
Pode o papiro crescer fora do brejo, o junco germinar sem água?
12
Verde ainda, sem ser cortado, ele seca antes que as outras ervas;
13
assim acabam todos os que esquecem Deus, assim perece a esperança do ímpio;
14
sua confiança é como filandras, sua segurança, uma teia de aranha.
15
Ele se apóia sobre uma casa que não se sustenta, atém-se a uma morada que não se mantém de pé.
16
Cheio de vigor, ao sol, faz brotar suas hastes em seu jardim;
17
suas raízes se entrelaçam sobre a pedra, apóiam-se entre rochas;
18
mas se é arrancado de seu lugar, este o renega: nunca te vi.
19
Eis onde termina seu destino, e outros germinarão do solo.
20
Não; Deus não rejeita o homem íntegro, nem dá a mão aos malvados.
21
Ele porá de novo o riso em tua boca, e em teus lábios, gritos de alegria;
22
teus inimigos serão cobertos de vergonha, a tenda dos maus desaparecerá.

Resposta de Jó

9 1 Jó tomou a palavra nestes termos:
2
Sim; bem sei que é assim; como poderia o homem ter razão contra Deus?
3
Se quisesse disputar com ele, não lhe responderia uma vez entre mil.
4
Deus é sábio em seu coração e poderoso, quem pode afrontá-lo impunemente?
5
Ele transporta os montes sem que estes percebam, ele os desmorona em sua cólera.
6
Sacode a terra em sua base, e suas colunas são abaladas.
7
Dá uma ordem ao sol que não se levante, põe um selo nas estrelas.
8
Ele sozinho formou a extensão dos céus, e caminha sobre as alturas do mar.
9
Ele criou a Grande Ursa, Órion, as Plêiades, e as câmaras austrais.
10
Fez maravilhas insondáveis, prodígios incalculáveis.
11
Ele passa despercebido perto de mim, toca levemente em mim sem que eu tenha percebido.
12
Quem poderá impedi-lo de arrebatar uma presa? Quem lhe dirá: Por que fazes isso?


13 De sua cólera Deus não volta atrás; diante dele jazem prosternados os auxiliares de Raab.


14 Quem sou eu para replicar-lhe, para escolher argumentos contra ele?
15
Ainda que eu tivesse razão, não responderia; pediria clemência a meu juiz.
16
Se eu o chamasse, e ele não me respondesse, não acreditaria que tivesse ouvido a minha voz;


17 ele, que me desfaz como um redemoinho, que multiplica minhas feridas sem manifestar o motivo,
18
que não me deixa tomar fôlego, mas me enche de amarguras.
19
Se se busca fortaleza, é ele o forte; se se busca o direito, quem o determinará?
20
Se eu pretendesse ser justo, minha boca me condenaria; se fosse inocente, ela me declararia perverso.
21
Inocente! Sim, eu o sou; pouco me importa a vida, desprezo a existência.
22
Pouco importa; é por isso que eu disse que ele faz perecer o inocente como o ímpio.
23
Se um flagelo causa de repente a morte, ele ri-se do desespero dos inocentes.
24
A terra está entregue nas mãos dos maus, e ele cobre com um véu os olhos de seus juízes; se não é ele, quem é pois (que faz isso)?
25
Os dias de minha vida são mais rápidos do que um corcel, fogem sem ter visto a felicidade
26
passam como as barcas de junco, como a águia que se precipita sobre a presa
27
Se decido esquecer minha queixa, abandonar meu ar triste e voltar a ser alegre,
28
temo por todos os meus tormentos, sabendo que não me absolverás.
29
Tenho certeza de ser condenado: o que me adianta cansar-me em vão?
30
Por mais que me lavasse na neve, que limpasse minhas mãos na lixívia,
31
tu me atirarias na imundície, e as minhas próprias vestes teriam horror de mim.
32
(Deus) não é um homem como eu a quem possa responder, com quem eu possa comparecer na justiça,
33
pois que não há entre nós árbitro que ponha sua mão sobre nós dois.
34
Que (Deus) retire sua vara de cima de mim, para pôr um termo a seus medonhos terrores;
35
então lhe falarei sem medo; pois, estou só comigo mesmo.


10 1 A minha alma está desgostosa da vida, dou livre curso ao meu lamento; falarei na amargura de meu coração.
2
Em lugar de me condenar, direi a Deus: Mostra-me por que razão me tratas assim.
3
Encontras prazer em oprimir, em renegar a obra de tuas mãos, em favorecer os planos dos maus?
4
Terás olhos de carne, ou vês as coisas como as vêem os homens?
5
Serão os teus dias como os dias de um mortal, e teus anos, como os dos humanos,
6
para que procures a minha culpa e persigas o meu pecado,
7
quando sabes que não sou culpado e que ninguém me pode salvar de tuas mãos?
8
Tuas mãos formaram-me e fizeram-me; mudando de idéia, me destruirás!
9
Lembra-te de que me formaste como o barro; far-me-ás agora voltar à terra?
10
Não me ordenhaste como leite e coalhaste como queijo?
11
De pele e carne me revestiste, de ossos e nervos me teceste:
12
concedeste-me vida e misericórdia; tua providência conservou o meu espírito.
13
Mas eis o que escondias em teu coração, vejo bem o que meditavas.
14
Se peco, me observas, não perdoarás o meu pecado.
15
Se eu for culpado, ai de mim! Se for inocente, não ousarei levantar a cabeça, farto de vergonha e consciente de minha miséria.
16
Esgotado, me caças como um leão. Não cessas de desfraldar contra mim teu estranho poder;
17
redobras contra mim teus assaltos, teu furor cresce contra mim, e vigorosas tropas vêm-me cercar.
18
Por que me tiraste do ventre? Teria morrido; nenhum olho me teria visto.
19
Teria sido como se nunca tivesse existido: do ventre, me teriam levado ao túmulo.
20
Não são bem curtos os dias de minha vida? Que ele me deixe respirar um instante,
21
antes que eu parta, para não mais voltar, ao tenebroso país das sombras da morte,
22
opaca e sombria região, reino de sombra e de caos, onde a noite faz as vezes de claridade.

Discurso de Sofar

11 1 Então Sofar de Naama tomou a palavra nestes termos:
2
Ficará sem resposta o que fala muito, dar-se-á razão ao grande falador?
3
Tua loquacidade fará calar a gente; zombarás sem que ninguém te repreenda?
4
Dizes: Minha opinião é a verdadeira, sou puro a teus olhos.
5
Oh! Se Deus pudesse falar, e abrir seus lábios para te responder,
6
revelar-te os mistérios da sabedoria que são ambíguos para o espírito, saberias então que Deus esquece uma parte de tua iniqüidade.
7
Pretendes sondar as profundezas divinas, atingir a perfeição do Todo-poderoso?
8
Ela é mais alta do que o céu: que farás? É mais profunda que os infernos: como a conhecerás?
9
É mais longa que a terra, mais larga que o mar.
10
Se ele surge para aprisionar, se apela à justiça, quem o impedirá?
11
Pois ele conhece os malfeitores, descobre a iniqüidade, presta atenção.
12
Diante disso, uma cabeça oca poderia compreender, um asno tornar-se-ia razoável.
13
Se voltares teu coração para Deus, e para ele estenderes os braços;
14
se afastares de tuas mãos o mal, e não abrigares a iniqüidade debaixo de tua tenda,
15
então poderás erguer a fronte sem mancha; serás estável, sem mais nenhum temor.
16
Esquecerás daí por diante as tuas penas: como águas que passaram, serão apenas uma lembrança;
17
o futuro te será mais brilhante do que o meio-dia, as trevas se mudarão em aurora;
18
terás confiança e ficarás cheio de esperança: olhando em volta de ti, dormirás tranqüilo;
19
repousarás sem que ninguém te inquiete muitos acariciarão teu rosto,
20
mas os olhos dos maus serão consumidos; para eles, nenhum refúgio; não terão outra esperança senão em seu último suspiro.

Resposta de Jó

12 1 Jó tomou a palavra nestes termos:
2
Sois mesmo gente muito hábil, e convosco morrerá a sabedoria.
3
Tenho também o espírito como o vosso (não vos sou inferior): quem, pois, ignoraria o que sabeis?
4
Os amigos escarnecem daquele que invoca Deus para que ele lhe responda, e zombam do justo e do inocente.
5
Vergonha para a infelicidade! É o modo de pensar do infeliz; só há desprezo para aquele cujo pé fraqueja.
6
As tendas dos bandidos gozam de paz; segurança para aqueles que provocam Deus, que não têm outro Deus senão o próprio braço.
7
Pergunta, pois, aos animais e eles te ensinarão; às aves do céu e elas te instruirão.
8
Fala (aos répteis) da terra, e eles te responderão, e aos peixes do mar, e eles te darão lições.
9
Entre todos esses seres quem não sabe que a mão de Deus fez tudo isso,
10
ele que tem em mãos a alma de tudo o que vive, e o sopro de vida de todos os humanos?
11
Não discerne o ouvido as palavras como o paladar discerne o sabor das iguarias?
12
A sabedoria pertence aos cabelos brancos, a longa vida confere a inteligência.
13
Em (Deus) residem sabedoria e poder; ele possui o conselho e a inteligência.
14
O que ele destrói não será reconstruído; se aprisionar um homem, ninguém há que o solte.
15
Quando faz as águas pararem, há seca; se as soltar, submergirão a terra.
16
Nele há força e prudência; ele conhece o que engana e o enganado;
17
faz os árbitros andarem descalços, torna os juízes estúpidos;
18
desata a cinta dos reis e cinge-lhes os rins com uma corda;
19
faz os sacerdotes andarem descalços, e abate os poderosos;
20
tira a palavra aos mais seguros de si mesmos e retira a sabedoria dos velhos;
21
derrama o desprezo sobre os nobres, afrouxa a cinta dos fortes,
22
põe a claro os segredos das trevas, e traz à luz a sombra da morte.
23
Torna grandes as nações, e as destrói; multiplica os povos, depois os suprime.
24
Tira a razão dos chefes da terra e os deixa perdidos num deserto sem pista;
25
andam às apalpadelas nas trevas, sem luz; tropeçam como um embriagado.


13 1 Meus olhos viram todas essas coisas, meus ouvidos as ouviram e as guardaram;
2
aquilo que vós sabeis, eu também o sei, não vos sou inferior em nada.
3
Mas é com o Todo-poderoso que eu desejaria falar, é com Deus que eu desejaria discutir,
4
pois vós não sois mais que impostores, não sois senão médicos que não prestam para nada.
5
Se pudésseis guardar silêncio, tomar-vos-iam por sábios.
6
Escutai, pois, minha defesa, atendei aos quesitos que vou anunciar.
7
Para defender Deus, ireis dizer mentiras. Será preciso enganardes em seu favor?
8
Tereis, para com ele, juízos preconcebidos, e vos arvorais em ser seus advogados?
9
Seria, porventura, bom que ele vos examinasse? Iríeis enganá-lo como se engana um homem?
10
Ele não deixará de vos castigar, se tomardes seu partido ocultamente.
11
Sua majestade não vos atemorizará? Seus terrores não vos esmagarão?
12
Vossos argumentos são razões de poeira, vossas dilapidações são obras de barro.
13
Calai-vos! Deixai-me! Quero falar: aconteça depois o que acontecer!
14
Lacero a minha carne com os meus dentes, ponho minha vida em minha mão.
15
Se ele me mata, nada mais tenho a esperar, e assim mesmo defenderei minha causa diante dele.
16
Isso já será minha salvação, que o ímpio não seja admitido em sua presença.
17
Escutai, pois, meu discurso, dai ouvido às minhas explicações;
18
estou pronto para defender minha causa, sei que sou eu quem tem razão.
19
Se alguém quiser demandar contra mim no mesmo instante desejarei calar e morrer.
20
Poupai-me apenas duas coisas! E não me esconderei de tua face:
21
afasta de sobre mim a tua mão, põe um termo ao medo de teus terrores.
22
Chama por mim, e eu te responderei; ou então, falarei eu, e tu terás a réplica.
23
Quantas faltas e pecados cometi eu? Dá-me a conhecer minhas faltas e minhas ofensas.
24
Por que escondes de mim a tua face, e por que me consideras como um inimigo?
25
Queres, então, assustar uma folha levada pelo vento, ou perseguir uma folha ressequida?
26
Pois queres ditar contra mim amargas sentenças, e queres que me sejam imputadas as faltas de minha mocidade,
27
queres enfiar os meus pés no cepo, espiar todos os meus passos, e contar os rastos de meus pés?
28
(E ele se gasta como um pau bichado, como um tecido devorado pela traça).


14 1 O homem nascido da mulher vive pouco tempo e é cheio de muitas misérias;
2
é como uma flor que germina e logo fenece, uma sombra que foge sem parar.
3
E é sobre ele que abres os olhos, e o chamas a juízo contigo.
4
Quem fará sair o puro do impuro? Ninguém.
5
Se seus dias estão contados, se em teu poder está o número dos seus meses, e fixado um limite que ele não ultrapassará,
6
afasta dele os teus olhos; deixa-o até que acabe o seu dia como um trabalhador.
7
Para uma árvore, há esperança; cortada, pode reverdecer, e os seus ramos brotam.
8
Quando sua raiz tiver envelhecido na terra, e seu tronco estiver morto no solo,
9
ao contato com a água, tornar-se-á verde de novo, e distenderá ramos como uma jovem planta.
10
Mas quando o homem morre, fica estendido; o mortal expira; onde está ele?
11
As águas correm do lago, o rio se esgota e seca;
12
assim o homem se deita para não mais levantar. Durante toda a duração dos céus, ele não despertará; jamais sairá de seu sono.
13
Se, pelo menos, me escondesses na região dos mortos, ao abrigo, até que tua cólera tivesse passado, se me fixasses um limite em que te lembrasses de mim!
14
Se um homem, uma vez morto, pudesse reviver! Todo o tempo de meu combate eu esperaria até que me viessem soerguer,
15
tu me chamarias e eu te responderia; estenderias a tua destra para a obra de tuas mãos.
16
Mas agora contas os meus passos, e observas todos os meus pecados;
17
tu selaste como num saco os meus crimes, puseste um sinal sobre minhas iniqüidades.
18
Mas a montanha acaba por cair, e o rochedo desmorona longe de seu lugar;
19
as águas escavam a pedra, o aluvião leva a terra móvel; assim aniquilas a esperança do homem.
20
Tu o pões por terra; ele se vai embora para sempre; tu o desfiguras e o mandas embora.
21
Estejam os seus filhos honrados, ele o ignora; sejam eles humilhados, não faz caso.
22
É somente por ele que sua carne sofre; sua alma só se lamenta por ele.

Segundo discurso de Elifaz

15 1 Elifaz de Temã tomou a palavra nestes termos:
2
Porventura, responde o sábio como se falasse ao vento e enche de ar o seu ventre?
3
Defende-se ele com fúteis argumentos, e com palavras que não servem para nada?
4
Acabarás destruindo a piedade, reduzes a nada o respeito devido a Deus;
5
pois é a iniqüidade que inspira teus discursos e adotas a linguagem dos impostores.
6
É a tua boca que te condena, e não eu; são teus lábios que dão testemunho contra ti mesmo.
7
És, porventura, o primeiro homem que nasceu, e foste tu gerado antes das colinas?
8
Assististe, porventura, ao conselho de Deus, monopolizaste a sabedoria?
9
Que sabes tu que nós ignoremos, que aprendeste que não nos seja familiar?
10
Há entre nós também velhos de cabelos brancos, muito mais avançados em dias do que teu pai.
11
Fazes pouco caso das consolações divinas, e das doces palavras que te são dirigidas?
12
Por que te deixas levar pelo impulso de teu coração, e o que significam esses maus olhares?
13
É contra Deus que ousas encolerizar-te, e que tua boca profere tais discursos!
14
Que é o homem para que seja puro e o filho da mulher, para que seja justo?
15
Nem mesmo de seus santos Deus se fia, e os céus não são puros a seus olhos;
16
quanto mais do ser abominável e corrompido, o homem, que bebe a iniqüidade como a água?
17
Ouve-me; vou instruir-te: eu te contarei o que vi,
18
aquilo que os sábios ensinam, aquilo que seus pais não lhes ocultaram,
19
(aos quais, somente, foi dada esta terra, e no meio dos quais não tinha penetrado estrangeiro algum).
20
Em todos os dias de sua vida o mau está angustiado, os anos do opressor são em número restrito,
21
ruídos terrificantes ressoam-lhe aos ouvidos, no seio da paz, lhe sobrevém o destruidor.
22
Ele não espera escapar das trevas, está destinado ao gume da espada.
23
Anda às tontas à procura de seu pão, sabe que o dia das trevas está a seu lado.
24
A tribulação e a angústia vêm sobre ele como um rei que vai para o combate,
25
porque levantou a mão contra Deus, e desafiou o Todo-poderoso,
26
correndo contra ele com a cabeça levantada, por detrás da grossura de seus escudos;
27
porque cobriu de gordura o seu rosto, e deixou a gordura ajuntar-se sobre seus rins,
28
habitando em cidades desoladas, em casas que foram abandonadas, destinadas a se tornarem montões de pedras;
29
não se enriquecerá, nem os seus bens resistirão, não mais estenderá sua sombra sobre a terra,
30
não escapará às trevas; o fogo queimará seus ramos, e sua flor será levada pelo vento.
31
(Que não se fie na mentira: ficará prisioneiro dela; a mentira será a sua recompensa).
32
Suas ramagens secarão antes da hora, seus sarmentos não ficarão verdes;
33
como a vinha, sacudirá seus frutos verdes, como a oliveira, deixará cair a flor.
34
Pois a raça dos ímpios é estéril, e o fogo devora as tendas do suborno.
35
Quem concebe o mal, gera a infelicidade: é o engano que amadurece em seu seio.


Job (BAV) 1