Audiências 2005-2013 7112

14 de Novembro de 2012: O ano da fé. Os caminhos para chegar ao conhecimento de Deus

Queridos irmãos e irmãs!

Na quarta-feira passada reflectimos sobre o desejo de Deus que o ser humano leva no profundo de si mesmo. Hoje gostaria de continuar a aprofundar este aspecto, meditando brevemente convosco sobre alguns caminhos para chegar ao conhecimento de Deus. Contudo, gostaria de recordar que a iniciativa de Deus precede sempre todas as iniciativas do homem e, também no caminho rumo a Ele, é Ele em primeiro lugar quem nos ilumina, orienta e guia, respeitando sempre a nossa liberdade. E é sempre Ele quem nos faz entrar na sua intimidade, revelando-se e doando-nos a graça para poder acolher esta revelação na fé. Nunca esqueçamos a experiência de santo Agostinho: não somos nós que possuímos a Verdade depois de a termos procurado, mas é a Verdade que nos procura e nos possui.

Todavia, há caminhos que podem abrir o coração do homem ao conhecimento de Deus, sinais que conduzem para Deus. Certamente, com frequência corremos o risco de sermos ofuscados pelo cintilar da vida mundana, que nos torna menos capazes de percorrer tais caminhos ou de ler tais sinais. Contudo, Deus não se cansa de nos procurar, é fiel ao homem que criou e salvou, permanece próximo da nossa vida, porque nos ama. Esta é uma certeza que nos deve acompanhar todos os dias, mesmo se determinadas mentalidades difundidas dificultam que a Igreja e o cristão comuniquem a alegria do Evangelho a cada criatura e levem todos ao encontro com Jesus, único Salvador do mundo. Todavia, esta é a nossa missão, é a missão da Igreja e todos os crentes devem vivê-la jubilosamente, sentindo-a como própria, através de uma existência animada verdadeiramente pela fé, marcada pela caridade, pelo serviço a Deus e aos outros, e capaz de irradiar esperança. Esta missão resplandece sobretudo na santidade para a qual todos somos chamados.

Hoje — sabemo-lo — não faltam dificuldades e provações para a fé, frequentemente pouco compreendida, contestada e rejeitada. São Pedro dizia aos seus cristãos: «Estai sempre prontos a responder, para a vossa defesa, com doçura e respeito, a todo aquele que vos perguntar a razão da vossa esperança» (1P 3,15). No passado, no Ocidente, numa sociedade considerada cristã, a fé era o âmbito no qual ela se movia; a referência e a adesão a Deus eram, para a maioria das pessoas, parte da vida quotidiana. Ao contrário, era quem não acreditava que devia justificar a própria incredulidade. No nosso mundo a situação mudou e cada vez mais o crente deve ser capaz de dizer a razão da sua fé. O beato João Paulo II, na Encíclica Fides et ratio, realçava o modo como a fé é posta à prova também na época contemporânea, atravessada por formas súbtis e capciosas de ateísmo teórico e prático (cf. FR 46-47). A partir do Iluminismo, a crítica à religião intensificou-se; a história foi marcada também pela presença de sistemas ateus, nos quais Deus era considerado uma mera projecção do ânimo humano, uma ilusão e o produto de uma sociedade já alterada por tantas alienações. Depois, o século passado conheceu um forte processo de secularismo, sob a bandeira da autonomia absoluta do homem, considerado como medida e artífice da realidade, mas empobrecido do seu ser criatura «à imagem e semelhança de Deus». No nosso tempo verificou-se um fenómeno particularmente perigoso para a fé: de facto, existe uma forma de ateísmo que definimos «prático», no qual não se negam as verdades da fé ou os ritos religiosos, mas simplesmente se consideram irrelevantes para a existência quotidiana, destacadas da vida, inúteis. Então, com frequência, cremos em Deus de modo superficial, e vivemos «como se Deus não existisse» (etsi Deus non daretur). Mas, no final este modo de viver resulta ainda mais destrutivo, porque leva à indiferença à fé e à questão de Deus.

Na realidade, o homem separado de Deus reduz-se a uma só dimensão, a horizontal, e precisamente este reducionismo é uma das causas fundamentais dos totalitarismos que tiveram consequências trágicas no século passado, assim como a crise de valores que vemos na realidade actual. Obscurecendo a referência a Deus obscureceu-se também o horizonte ético, abrindo espaço ao relativismo e confirmando-se uma concepção ambígua da liberdade que em vez de ser liberatória acaba por ligar o homem a ídolos. As tentações que Jesus enfrentou no deserto antes da sua missão pública, representam bem aqueles «ídolos» que fascinam o homem, quando não vai além de si mesmo. Se Deus perder a centralidade, o homem perde o seu justo lugar, e não encontra a sua colocação na criação, nas relações com os outros. Não se extinguiu o que a sabedoria antiga evoca com o mito de Prometeu: o homem pensa que pode tornar-se ele mesmo «deus», dono da vida e da morte.

Diante deste quadro, a Igreja, fiel ao mandato de Cristo, nunca cessa de afirmar a verdade sobre o homem e sobre o seu destino. O Concílio Vaticano II afirma sinteticamente que: «O aspecto mais sublime da dignidade humana encontra-se na vocação do homem à união com Deus. Começa com a existência o convite que Deus dirige ao homem para dialogar com Ele: se o homem existe é porque Deus o criou por amor e, por amor, não cessa de o conservar na existência; e o homem não vive plenamente segundo a verdade, se não reconhecer livremente este amor e não se entregar inteiramente ao seu criador» (Const. Gaudium et spes GS 19).

Então, que respostas está a fé chamada a dar, com «doçura e respeito», ao ateísmo, ao cepticismo, à indiferença pela dimensão vertical, para que o homem do nosso tempo possa continuar a interrogar-se sobre a existência de Deus e a percorrer os caminhos que levam a Ele? Gostaria de mencionar alguns caminhos, que derivam tanto da reflexão natural, como da própria força da fé. Gostaria de os resumir muito sinteticamente em três palavras: o mundo, o homem e a fé.

A primeira: o mundo. Santo Agostinho, que na sua vida procurou a Verdade por muito tempo e foi arrebatado pela Verdade, escreveu uma página lindíssima e célebre, na qual disse: «Perscruta a beleza da terra, do mar, do ar rarefeito e onde quer que se expanda; perscruta a beleza do céu... e todas as realidades. Todas te responderão: olha para nós e vê como somos bonitas. A sua beleza é como um hino de louvor. Ora, estas criaturas tão bonitas, mas também mutáveis, quem as fez se não aquele que é a beleza inalterável? (Sermo 241, 2: PL 38, 1134). Penso que devemos recuperar e fazer recuperar ao homem de hoje a capacidade de contemplar a criação, a sua beleza, a sua estrutura. O mundo não é um magma amorfo, mas quanto mais o conhecemos e descobrimos os seus mecanismos maravilhosos, tanto mais vemos um desígnio, vemos que existe uma inteligência criadora. Albert Einstein disse que nas leis da natureza «se revela uma razão tão superior que toda a racionalidade do pensamento e dos ordenamentos humanos em comparação é um reflexo absolutamente insignificante» (O Mundo como eu o vejo). Portanto, um primeiro caminho que leva à descoberta de Deus é a contemplação da criação com um olhar atento.

A segunda palavra: o homem. É sempre de santo Agostinho a frase célebre com a qual diz que Deus é mais íntimo de mim de quanto eu o seja de mim mesmo (cf. Confissões III, 6, 11). A partir disto ele formulou o convite: «Não saias de ti mesmo, entra em ti mesmo: a verdade habita no homem interior» (De vera religione, 39, 72). Este é outro aspecto que corremos o risco de perder no mundo ruidoso e dispersivo no qual vivemos: a capacidade de reflectir, de meditar em profundidade e de detectar aquela sede de infinito que trazemos no íntimo, que nos impele a ir além e nos remete para Alguém que a possa satisfazer. O Catecismo da Igreja Católica afirma: «Com a sua abertura à verdade e à beleza, com o seu sentido do bem moral, com a sua liberdade e a voz da sua consciência, com a sua ânsia de infinito e de felicidade, o homem interroga-se sobre a existência de Deus» (CEC 33).

A terceira palavra: a fé. Sobretudo na realidade do nosso tempo, não devemos esquecer que um caminho que leva ao conhecimento e ao encontro com Deus é a vida da fé. Quem crê está unido a Deus, está aberto à sua graça e à força da caridade. Assim a sua existência torna-se testemunho não de si mesmo, mas do Ressuscitado, e a sua fé não teme mostrar-se na vida quotidiana, está aberta ao diálogo que expressa profunda amizade pelo caminho de cada homem, e sabe dar esperança a necessidade de resgate, de felicidade e de futuro. De facto, a fé é encontro com Deus que fala e age na história e que converte a nossa vida diária, transformando a nossa mentalidade, juízos de valor, escolhas e acções concretas. Não é ilusão, fuga da realidade, refúgio cómodo, sentimentalismo, mas é participação de toda a vida e é anúncio do Evangelho, Boa Nova capaz de libertar o homem todo. Um cristão e uma comunidade que sejam activos e fiéis ao projecto de Deus que nos amou em primeiro lugar, constituem um caminho privilegiado para quantos vivem na indiferença e na dúvida acerca da sua existência e acção. Contudo, isto exige que o testemunho de fé de cada um se torne cada vez mais transparente, purificando a própria vida para que esteja em conformidade com Cristo. Hoje muitos têm uma concepção limitada da fé cristã porque a identificam com um mero sistema de crença e de valores e não com a verdade de um Deus que se revelou na história, desejoso de comunicar intimamente com o homem, numa relação de amor com ele. Na realidade, como fundamento de toda a doutrina e valor está o evento do encontro do homem com Deus em Jesus Cristo. O Cristianismo, antes de uma moral ou de uma ética, é o acontecimento do amor, é o acolhimento da pessoa de Jesus. Por isso o cristão e as comunidades cristãs antes de mais devem olhar e fazer olhar para Cristo, o verdadeiro Caminho que leva a Deus.

Saudação

Queridos peregrinos vindos de diversas cidades do Brasil e todos os presentes de língua portuguesa: sede bem-vindos! Neste Ano da fé, procurai conhecer mais a Cristo, único caminho verdadeiro que conduz a Deus, para poder depois transmitir aos demais a alegria desse encontro transformador. Possa Ele iluminar e abençoar as vossas vidas! Obrigado pela visita!


Sala Paulo VI

21 de Novembro de 2012: Ano da Fé. O bom senso da fé em Deus

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Estimados irmãos e irmãs

Caminhemos em frente neste Ano da fé,levando no nosso coração a esperança de redescobrir quanta alegria existe em crer e em reencontrar o entusiasmo de comunicar a todos as verdades da fé. Estas verdades não constituem uma simples mensagem acerca de Deus, uma informação particular sobre Ele. Ao contrário, exprimem o acontecimento do encontro de Deus com os homens, encontro salvífico e libertador, que realiza as aspirações mais profundas do homem, os seus anseios de paz, de fraternidade e de amor. A fé leva a descobrir que o encontro com Deus valoriza, aperfeiçoa e eleva aquilo que existe de verdadeiro, de bom e de belo no homem. Assim acontece que, enquanto Deus se revela e se deixa conhecer, o homem descobre quem é Deus e, conhecendo-o, descobre-se a si mesmo, a própria origem, o seu destino, a grandeza e a dignidade da vida humana.

A fé permite um saber autêntico sobre Deus, que abrange toda a pessoa humana: é um “saber”, ou seja de um conhecer que confere sabor à vida, um novo gosto de existir, um modo jubiloso de estar no mundo. A fé manifesta-se no dom de si pelos outros, na fraternidade que torna o homem solidário, capaz de amar, vencendo a solidão que o torna triste. Por isso, este conhecimento de Deus através da fé não é unicamente intelectual, mas vital. É o conhecimento de Deus-Amor, graças ao seu próprio amor. Além disso, o amor de Deus faz ver, abre os olhos, permite conhecer toda a realidade, para além das perspectivas limitadas do individualismo e do subjectivismo que desorientam as consciências. Por isso, o conhecimento de Deus é experiência de fé e implica, ao mesmo tempo, um caminho intelectual e moral: tocados profundamente pela presença do Espírito de Jesus em nós, ultrapassamos os horizontes dos nossos egoísmos e abrimo-nos aos verdadeiros valores da existência.

Hoje, nesta catequese, gostaria de meditar sobre o bom senso da fé em Deus. Desde os primórdios, a tradição católica rejeitou o chamado fideísmo, que é a vontade de crer contra a razão. Credo quia absurdum (creio, porque é absurdo) não é uma fórmula que interpreta a fé católica. Com efeito, Deus não é absurdo, eventualmente é mistério. O mistério por sua vez não é irracional, mas superabundância de sentido, de significado, de verdade. Se, olhando para o mistério, a razão vê obscuridade, não é porque no mistério não haja luz, mas sobretudo porque há demasiada. Assim como quando o olhar do homem se volta directamente para o sol, só vê trevas; mas quem diria que o sol não é luminoso, aliás, a fonte da luz? A fé permite olhar para o «sol», Deus, porque é acolhimento da sua revelação na história e, por assim dizer, recebe verdadeiramente toda a luminosidade do mistério de Deus, reconhecendo o grande milagre: Deus aproximou-se do homem, ofereceu-se ao seu conhecimento, condescendendo com o limite criatural da sua razão (cf. Concílio Ecuménico Vaticano II, Costituição dogmática Dei Verbum
DV 13). Ao mesmo tempo Deus, com a sua graça, ilumina a razão, abre-lhe horizontes novos, incomensuráveis e infinitos. Por isso, a fé constitui um estímulo a procurar sempre, a nunca parar nem se contentar com a descoberta inesgotável da verdade e da realidade. É falso o preconceito de certos pensadores modernos, segundo os quais a razão humana seria como que bloqueada pelos dogmas da fé. É verdade precisamente o contrário, como os grandes mestres da tradição católica demonstraram. Antes da sua conversão, santo Agostinho procura a verdade com grande inquietação, através de todas as filosofias disponíveis, julgando-as todas insatisfatórias. A cansativa busca racional é para ele uma pedagogia significativa para o encontro com a Verdade de Cristo. Quando diz: «compreende para crer, e crê para compreender» (Discurso 43, 9: PL 38, 258), é como se narrasse a própria experiência de vida. Diante da Revelação divina, intelecto e fé não são alheios nem antagonistas, mas ambos são condições para compreender o sentido da mesma, para acolher a sua mensagem autêntica, aproximando-se do limiar do mistério. Juntamente com muitos outros autores cristãos, santo Agostinho é testemunha de uma fé que se exerce com a razão, que pensa e convida a pensar. Neste sulco, santo Anselmo dirá no seu Proslogion que a fé católica é fides quaerens intellectum, onde o procurar a inteligência é um acto interior do crer. Será principalmente são Tomás de Aquino — fortalecido por esta tradição — que se confrontará com a razão dos filósofos, mostrando quanta vitalidade racional nova e fecunda deriva para o pensamento humano da inserção dos princípios e das verdades da fé cristã.

Portanto, a fé católica é razoável e nutre confiança também na razão humana. Na Constituição dogmática Dei Filius, o Concílio Vaticano I afirmou que a razão é capaz de conhecer com certeza a existência de Deus através do caminho da criação, enquanto à fé pertence só a possibilidade de conhecer «facilmente, com certeza absoluta e sem erro» (DS 3005) as verdades que dizem respeito a Deus, à luz da graça. Além disso, o conhecimento da fé não é contrário à recta razão. Com efeito, na Encíclica Fides et ratio, o Beato Papa João Paulo II resume assim: «A razão do homem não é anulada nem humilhada, quando presta assentimento aos conteúdos de fé; é que estes são alcançados por decisão livre e consciente» (FR 43). No desejo irresistível de verdade, somente uma relação harmoniosa entre fé e razão é o caminho recto que conduz a Deus e ao pleno cumprimento de si mesmo.

Esta doutrina é facilmente reconhecível em todo o Novo Testamento. Como ouvimos, escrevendo aos cristãos de Corinto, são Paulo afirma: «Os judeus pedem milagres, os gregos reclamam a sabedoria; mas nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos» (1Co 1,22-23). Com efeito, Deus salvou o mundo não com um gesto de poder, mas mediante a humilhação do seu Filho unigénito: segundo os parâmetros humanos, a modalidade insólita actuada por Deus não condiz com as exigências da sabedoria grega. E no entanto, a Cruz de Cristo tem uma sua razão, que são Paulo chama: ho lógos tou staurou, “a palavra da cruz” (1Co 1,18). Aqui, o termo lógos indica tanto a palavra como a razão e, se alude à palavra, é porque expressa verbalmente o que a razão elabora. Portanto, Paulo vê na Cruz não um acontecimento irracional, mas um acontecimento salvífico que possui um seu bom senso reconhecível à luz da fé. Ao mesmo tempo, ele tem tanta confiança na razão humana, a ponto de se admirar pelo facto de que muitos, mesmo vendo as obras realizadas por Deus, se obstinam a não acreditar n’Ele. Na Carta aos Romanos diz: «Com efeito, as... perfeições invisíveis [de Deus], o seu poder e divindade sempiternos, tornam-se visíveis à inteligência, através das suas obras» (Rm 1,20). Assim, também são Pedro exorta os cristãos da diáspora a adorar «Cristo Senhor nos vossos corações. Estai sempre prontos a responder, para a vossa defesa, a todo aquele que vos perguntar a razão da vossa esperança» (1P 3,15). Num clima de perseguição e de forte exigência de testemunhar a fé, aos fiéis pede-se que justifiquem com motivações fundadas a sua adesão à palavra do Evangelho, que expliquemos a razão da nossa esperança.

É nestas premissas acerca do nexo fecundo entre compreender e crer que se funda inclusive a relação virtuosa entre ciência e fé. Como vemos, a pesquisa científica leva ao conhecimento de verdades sempre novas sobre o homem e o cosmos. O verdadeiro bem da humanidade, acessível na fé, abre o horizonte no qual se deve mover o seu caminho de descoberta. Portanto devem ser encorajadas, por exemplo, as investigações postas ao serviço da vida, que visam debelar as enfermidades. São importantes também as pesquisas destinadas a descobrir os segredos do nosso planeta e do universo, na consciência de que o homem está no ápice da criação não para a explorar insensatamente, mas para a preservar e tornar habitável. Assim a fé, vivida realmente, não entra em conflito com a ciência, aliás, coopera com ela, oferecendo critérios basilares a fim de que promova o bem de todos, pedindo-lhe que renuncie apenas àquelas tentativas que — opondo-se ao desígnio originário de Deus — podem produzir efeitos que se voltam contra o próprio homem. Também por isso é razoável acreditar: se a ciência é uma aliada preciosa da fé para a compreensão do desígnio de Deus no universo, a fé permite que o progresso científico se realize sempre para o bem e para a verdade do homem, permanecendo fiel a este mesmo desígnio.

Eis por que motivo é decisivo para o homem abrir-se à fé e conhecer Deus e o seu desígnio de salvação em Jesus Cristo. No Evangelho é inaugurado um novo humanismo, uma autêntica «gramática» do homem e de toda a realidade. O Catecismo da Igreja Católica afirma: «A verdade de Deus é a sua sabedoria, que comanda toda a ordem da criação e governo do mundo. Só Deus que, sozinho, “criou o céu e a terra” (Ps 115,15), pode dar o conhecimento verdadeiro de todas as coisas criadas na sua relação com Ele» (CEC 216).

Então, confiamos que o nosso compromisso na evangelização ajuda a dar uma renovada centralidade ao Evangelho na vida de muitos homens e mulheres do nosso tempo. E oremos a fim de que todos voltem a encontrar em Cristo o sentido da existência e o fundamento da verdadeira liberdade: com efeito, sem Deus o homem perde-se a si próprio. Os testemunhos de quantos nos precederam e dedicaram a sua vida ao Evangelho confirmam-no para sempre. Crer é razoável, está em jogo a nossa existência. Vale a pena despender-se por Cristo, o único que sacia os desejos de verdade e de bem arraigados na alma de cada homem: agora, no tempo que passa, e no dia sem ocaso da Eternidade bem-aventurada.



Saudação

De coração, saúdo todos os peregrinos de língua portuguesa, com destaque para os grupos de Aracruz, Aparecida de Goiânia e Palmas, confiando as suas famílias e comunidades à Virgem Maria e pedindo-Lhe que nelas se mantenha viva a luz de Deus. Sobre vós e os vossos entes queridos, desça a minha Bênção.


Sala Paulo VI

28 de Novembro de 2012: O Ano da Fé. Como falar de Deus?

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Queridos irmãos e irmãs,

A interrogação central que hoje levantamos é a seguinte: como falar de Deus no nosso tempo? Como comunicar o Evangelho, para abrir caminhos à sua verdade salvífica nos corações muitas vezes fechados dos nossos contemporâneos e nas suas mentes por vezes distraídas pelas numerosas luzes da sociedade? O próprio Jesus, dizem-nos os evangelistas, ao anunciar o Reino de Deus, interrogou-se acerca disto: «A quem compararemos o Reino de Deus? Ou com que parábola o representaremos?» (
Mc 4,30). Como falar de Deus hoje? A primeira resposta é que nós podemos falar de Deus, porque Ele falou connosco. Portanto, a primeira condição para falar de Deus é a escuta daquilo que o próprio Deus disse. Deus falou connosco! Por conseguinte, Deus não é uma hipótese distante sobre a origem do mundo; não é uma inteligência matemática muito distante de nós. Deus interessa-se por nós, ama-nos, entrou pessoalmente na realidade da nossa história e comunicou-se a si mesmo a ponto de se encarnar. Portanto, Deus é uma realidade da nossa vida, é tão grande que tem tempo também para nós, preocupa-se connosco. Em Jesus de Nazaré nós encontramos o rosto de Deus, que desceu do seu Céu para se imergir no mundo dos homens, no nosso mundo, e para ensinar a «arte de viver», o caminho da felicidade; para nos libertar do pecado e para nos tornar filhos de Deus (cf. Ep 1,5 Rm 8,14). Jesus veio para nos salvar e para nos mostrar a vida boa do Evangelho.

Falar de Deus quer dizer, antes de tudo, ter bem claro o que devemos levar aos homens e às mulheres do nosso tempo: não um Deus abstracto, uma hipótese, mas um Deus concreto, um Deus que existe, que entrou na história e está presente na história; o Deus de Jesus Cristo como resposta à pergunta fundamental do porquê e do como viver. Por isso, falar de Deus exige uma familiaridade com Jesus e com o seu Evangelho, supõe um nosso conhecimento pessoal e real de Deus, e uma forte paixão pelo seu desígnio de salvação, sem ceder à tentação do sucesso, mas seguindo o método do próprio Deus. O método de Deus é o da humildade — Deus faz-se um de nós — é o método realizado na Encarnação na simples casa de Nazaré e na gruta de Belém, o da parábola do pequeno grão de mostarda. É preciso não temer a humildade dos pequenos passos e confiar no fermento que se mistura com a massa e que, lentamente, a faz crescer (cf. Mt 13,33). Ao falar de Deus, na obra de evangelização, sob a guia do Espírito Santo, é necessária uma recuperação de simplicidade, um retorno ao essencial do anúncio: a Boa Notícia de um Deus que é real e concreto, um Deus que se interessa por nós, um Deus-Amor que se faz próximo de nós em Jesus Cristo até à Cruz, e que na Ressurreição nos doa a esperança e nos abre para uma vida que não tem fim, a vida eterna, a vida verdadeira. Aquele comunicador extraordinário que foi o apóstolo Paulo oferece-nos uma lição que vai precisamente ao cerne da fé, do problema de «como falar de Deus» com grande simplicidade. Na Primeira Carta aos Coríntios, ele escreve: «Também eu, quando fui ter convosco, irmãos, não fui com o prestígio da eloquência nem da sabedoria, anunciar-vos o testemunho de Deus. Julguei não dever saber coisa alguma entre vós, senão Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado» (1Co 2,1-2). Portanto, a primeira realidade é que Paulo não fala de uma filosofia por ele desenvolvida, não fala de ideias que encontrou alhures ou que inventou, mas fala de uma realidade da sua vida, fala do Deus que entrou na sua vida, fala de um Deus real que vive, falou com Ele e falará connosco, fala do Cristo crucificado e ressuscitado. A segunda realidade é que Paulo não se procura a si mesmo, não quer criar para si um grupo de admiradores, não quer entrar na história como chefe de uma escola de grandes conhecimentos, não se procura a si mesmo, mas são Paulo anuncia Cristo e deseja conquistar as pessoas para o Deus verdadeiro e real. Paulo fala só com o desejo de anunciar aquilo que entrou na sua vida, e que é a vida autêntica, que o arrebatou no caminho de Damasco. Portanto, falar de Deus quer dizer reservar espaço Àquele que no-lo faz conhecer, que nos revela o seu rosto de amor; quer dizer expropriar o próprio eu, oferecendo-o a Cristo, na consciência de que não somos nós que podemos conquistar os outros para Deus, mas devemos esperá-los do próprio Deus, invocá-los dele. Portanto, falar de Deus nascer da escuta, do nosso conhecimento de Deus que se realiza na familiaridade com Ele, na vida da oração e segundo os Mandamentos.

Comunicar a fé, para são Paulo, não significa anunciar-se a si mesmo, mas dizer aberta e publicamente aquilo que viu e sentiu no encontro com Cristo, quanto experimentou na sua existência já transformada por aquele encontro: é anunciar aquele Jesus que sente presente em si e que se tornou a verdadeira orientação da sua vida, para levar todos a compreender que Ele é necessário para o mundo e é decisivo para a liberdade de cada homem. O apóstolo não se contenta com proclamar palavras, mas envolve toda a sua existência na grande obra da fé. Para falar de Deus, é necessário reservar-lhe espaço, na confiança de que é Ele quem age na nossa debilidade: reservar-lhe espaço sem medo, com simplicidade e alegria, na convicção profunda de que quanto mais O pusermos no centro, Ele e não nós, tanto mais a nossa comunicação será frutuosa. E isto é válido também para as comunidades cristãs: elas são chamadas a mostrar a acção transformadora da graça de Deus, superando individualismos, fechamentos, egoísmos, indiferenças e vivendo o amor Deus nos relacionamentos quotidianos. Perguntemo-nos se as nossas comunidades são verdadeiramente assim. Temos que agir, para nos tornarmos sempre e realmente assim, anunciadores de Cristo e não de nós mesmos.

Nesta altura, temos que nos interrogar como o próprio Jesus comunicava. Na sua unicidade, Jesus fala do seu Pai — Abbá — e do Reino de Deus, com o olhar cheio de compaixão pelas necessidades e dificuldades da existência humana. Fala com grande realismo e, diria, o essencial do anúncio de Jesus é que torna transparente o mundo e a nossa vida tem valor para Deus. Jesus demonstra que no mundo e na criação transparece o rosto de Deus e mostra-nos que Deus está presente nas histórias quotidianas da nossa vida. Quer nas parábolas da natureza, o grão de mostarda, o campo com diversas sementes, quer na nossa vida, pensamos na parábola do filho pródigo, de Lázaro e noutras parábolas de Jesus. Dos Evangelhos nós vemos como Jesus se interessa por cada situação humana que Ele encontra, se imerge na realidade dos homens e das mulheres do seu tempo, com uma confiança plena na ajuda do Pai. E que realmente nesta história, de modo escondido, Deus está presente e, se prestarmos atenção, podemos encontrá-lo. E os discípulos que vivem com Jesus, as multidões que O encontram, vêem a sua reacção aos problemas mais diversos, vêem como Ele fala, como se comporta; vêem nele a obra do Espírito Santo, a acção de Deus. Nele anúncio e vida entrelaçam-se: Jesus age e ensina, começando sempre a partir de uma relação íntima com Deus Pai. Este estilo torna-se uma indicação essencial para nós, cristãos: o nosso modo de viver na fé e na caridade torna-se um falar de Deus no presente, porque mostra com uma existência vivida em Cristo a credibilidade, o realismo daquilo que dizemos com palavras, que não são apenas palavras, mas demonstram a realidade, a realidade verdadeira. E nisto devemos estar atentos a captar os sinais dos tempos na nossa época, ou seja, a identificar as potencialidades, os desejos, os obstáculos que se encontram na cultura actual, de modo particular o desejo de autenticidade, o anseio pela transcendência, a sensibilidade pela salvaguarda da criação, e comunicar sem temor a resposta oferecida pela fé em Deus. O Ano da fé é ocasião para descobrir, com a fantasia animada pelo Espírito Santo, novos percursos a níveis pessoal e comunitário, a fim de que em cada lugar a força do Evangelho seja sabedoria de vida e orientação da existência.

Também no nosso tempo, um lugar privilegiado para falar de Deus é a família, a primeira escola para comunicar a fé às novas gerações. O Concílio Vaticano II fala dos pais como dos primeiros mensageiros de Deus (cf. Constituição dogmática Lumen gentium LG 11 Decreto Apostolicam actuositatem AA 11), chamados a redescobrir esta sua missão, assumindo a responsabilidade de educar, de abrir as consciências dos pequeninos ao amor de Deus, como um serviço fundamental à sua vida, de ser os primeiros catequistas e mestres da fé para os seus filhos. E nesta tarefa é importante antes de tudo a vigilância, que significa saber aproveitar as ocasiões favoráveis para introduzir na família o discurso de fé e para fazer amadurecer uma reflexão crítica em relação aos numerosos condicionamentos aos quais os filhos estão submetidos. Esta atenção dos pais é também sensibilidade de entender as possíveis interrogações religiosas presentes no espírito dos filhos, às vezes evidentes, outras, escondidas. Depois, a alegria: a comunicação da fé deve ter sempre uma tonalidade de alegria. É a alegria pascal, que não se cala, nem oculta a realidade da dor, do sofrimento, do cansaço, da dificuldade, da incompreensão e da própria morte, mas sabe oferecer os critérios para interpretar tudo na perspectiva da esperança cristã. A vida boa do Evangelho é precisamente este novo olhar, esta capacidade de ver cada situação com os olhos do próprio Deus. É importante ajudar todos os membros da família a compreender que a fé não é um peso, mas uma fonte de júbilo profundo, é entender a obra de Deus, reconhecer a presença do bem, que não faz ruído; e oferece orientações preciosas para viver bem a própria existência. Enfim, a capacidade de escuta e de diálogo: a família deve ser um ambiente em que as pessoas aprendem a estar juntas, a recompor os contrastes no diálogo recíproco, que é feito de escuta e de palavra, a compreender-se e a amar-se, para ser um sinal mútuo do amor misericordioso de Deus.

Portanto, falar de Deus quer dizer fazer compreender com a palavra e com a vida que Deus não é o concorrente da nossa existência, mas sobretudo o seu verdadeiro garante, o protector da grandeza da pessoa humana. Assim voltamos ao início: falar de Deus é comunicar, com força e simplicidade, com a palavra e a vida, aquilo que é essencial: o Deus de Jesus Cristo, aquele Deus que nos mostrou um amor tão grande, a ponto de se encarnar, morrer e ressuscitar por nós; aquele Deus que pede para O seguir e para se deixar transformar pelo seu amor imenso, para renovar a nossa vida e os nossos relacionamentos; aquele Deus que nos concedeu a Igreja, para caminharmos juntos e, através da Palavra e dos Sacramentos, renovarmos toda a Cidade dos homens, a fim de que ela possa tornar-se Cidade de Deus.

Saudação

Uma saudação cordial a todos os peregrinos de língua portuguesa, com votos de serem por todo o lado zelosos mensageiros e testemunhas da fé que vieram afirmar e consolidar neste encontro com o Sucessor de Pedro. Que Deus vos abençoe. Obrigado!


Sala Paulo VI

5 de Dezembro de 2012: O Ano da Fé. Deus revela o seu "desígnio de benevolência"

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Queridos irmãos e irmãs,

No início da sua Carta aos cristãos de Éfeso (cf.
Ep 1,3-14), o apóstolo Paulo eleva uma prece de bênção a Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos introduz na vivência do tempo de Advento, no contexto do Ano da fé. O tema deste hino de louvor é o projecto de Deus a respeito do homem, definido com termos repletos de alegria, de enlevo e de acção de graças, como um «desígnio de benevolência» (Ep 1,9), de misericórdia e de amor.

Por que motivo o Apóstolo eleva a Deus, do profundo do seu coração, esta bênção? Porque vê o seu agir na história da salvação, culminado na encarnação, morte e ressurreição de Jesus, e contempla como o Pai celeste nos escolheu ainda antes da criação do mundo, para sermos seus filhos adoptivos. No seu Filho Unigénito, Jesus Cristo (cf. Rm 8,14s.; Ga 4,4 s.). Nós existimos desde a eternidade na mente de Deus, num grande desígnio que Deus conservou em si mesmo e que decidiu pôr em prática e revelar «na plenitude dos tempos» (cf. Ep 1,10). Por conseguinte, são Paulo faz-nos compreender como toda a criação e, de modo particular, o homem e a mulher, não são fruto do acaso, mas correspondem a um desígnio de benevolência da razão eterna de Deus que, com o poder criador e redentor da sua Palavra, dá origem ao mundo. Esta primeira afirmação recorda-nos que a nossa vocação não consiste simplesmente em existir no mundo, em sermos inseridos numa história, e nem sequer apenas em sermos criaturas de Deus; é algo ainda maior: é o facto de termos sido escolhidos por Deus, ainda antes da criação do mundo, no seu Filho Jesus Cristo. Portanto nele nós existimos — por assim dizer — desde sempre. Deus contempla-nos em Cristo, como filhos adoptivos. O «desígnio de benevolência» de Deus, que é qualificado pelo Apóstolo como «desígnio de amor» (Ep 1,5), é definido «o mistério» da vontade divina (cf. Ep 1,9), escondido e agora manifestado na Pessoa e na obra de Jesus Cristo. A iniciativa divina precede toda a resposta humana: trata-se de um dom gratuito do seu amor, que nos envolve e nos transforma.

Mas qual é a finalidade derradeira deste desígnio misterioso? Qual é o centro da vontade de Deus? É aquele — diz-nos são Paulo — de «reconduzir a Cristo, única Cabeça, todas as coisas» (Ep 1,10). Nesta expressão nós encontramos uma das formulações fulcrais do Novo Testamento, que nos fazem compreender o desígnio de Deus, o seu projecto de amor pela humanidade inteira, uma formulação que, no século ii, santo Ireneu de Lião inseriu como núcleo da sua cristologia: «recapitular» toda a realidade em Cristo. Talvez alguns de vós se recordem da fórmula utilizada pelo Papa São Pio x, para a consagração do mundo ao Sagrado Coração de Jesus: «Instaurare omnia in Christo», fórmula que se inspira nesta expressão paulina e que era também o lema daquele santo Pontífice. No entanto, o Apóstolo fala mais precisamente de recapitulação do universo em Cristo, e isto significa que no grande desígnio da criação e da história, Jesus Cristo eleva-se como centro de todo o caminho do mundo, eixo principal de tudo, que atrai a si toda a realidade, para superar a dispersão e o limite, e reconduzir tudo à plenitude desejada por Deus (cf. Ep 1,23).

Este «desígnio de benevolência» não permaneceu, por assim dizer, no silêncio de Deus, na altura do seu Céu, mas fê-lo conhecer entrando em relação com o homem, ao qual não revelou apenas algo, mas revelou-se a si mesmo. Ele não comunicou simplesmente um conjunto de verdades, mas comunicou-se a si mesmo, a ponto de se fazer um de nós, até se encarnar. O Concílio Ecuménico Vaticano ii na Constituição dogmática Dei Verbum diz: «Aprouve a Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar-se a si mesmo [não apenas a algum aspecto de si, mas a Ele próprio] e dar a conhecer o mistério da sua vontade (cf. Ep 1,9), segundo o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e tornam-se participantes da natureza divina» (DV 2). Deus não só diz algo, mas comunica-se a si mesmo, atrai-nos na natureza divina, de tal modo que nós somos envolvidos nela, que somos divinizados. Deus revela o seu grande desígnio de amor, entrando em relação com o homem, aproximando-se dele a ponto de se fazer Ele mesmo homem. O Concílio acrescenta: «Deus invisível... na riqueza do seu amor fala aos homens como a amigos (cf. Ex 33,11 Jn 15,14-15) e convive com eles (cf. Ba 3,38) para os convidar e admitir à comunhão com Ele» (Ibidem DV 2). Unicamente com a sua inteligência e com as suas capacidades, o homem não teria podido alcançar esta revelação tão luminosa do amor de Deus; foi Deus que abriu o seu Céu e se humilhou para orientar o homem rumo ao abismo do seu amor.

São Paulo escreve ainda aos cristãos de Corinto: «Coisas que os olhos não viram, nem os ouvidos ouviram, nem o coração humano imaginou... tais são os bens que Deus tem preparado para aqueles que O amam. Todavia, Deus no-las revelou pelo seu Espírito, porque o Espírito penetra tudo, mesmo as profundezas de Deus» (1Co 2,9-10). E são João Crisóstomo, numa célebre página de comentário do início da Carta aos Efésios, convida a saborear toda a beleza deste «desígnio de benevolência» de Deus revelado em Cristo, com as seguintes palavras: «O que te falta? Tornaste-te imortal, tornaste-te livre, tornaste-te filho, tornaste-te justo, tornaste-te irmão, tornaste-te co-herdeiro; reinas com Cristo e com Cristo és glorificado. Tudo nos foi doado e — como está escrito — «como não nos dará também com Ele todas as coisas?» (Rm 8,32). As tuas primícias (cf. 1Co 15,20 1Co 15,23) são adoradas pelos anjos [...]: o que é que te falta?» ().

Esta comunhão em Cristo, por obra do Espírito Santo, oferecida por Deus a todos os homens com a luz da Revelação, não é algo que vem a sobrepor-se acima da nossa humanidade, mas constitui o cumprimento das aspirações mais profundas, daquele desejo de infinito e de plenitude que se abriga no íntimo do ser humano, abrindo-o a uma felicidade não momentânea nem limitada, mas eterna. São Boaventura de Bagnoregio, referindo-se a Deus que se revela e nos fala através das Sagradas Escrituras para nos conduzir a Ele, faz a seguinte afirmação: «A Sagrada Escritura é [...] o livro no qual estão escritas palavras de vida eterna para que não apenas acreditemos, mas também possuamos a vida eterna, na qual veremos, amaremos e serão realizados todos os nossos desejos» (Breviloquium, Prol.; Opera Omnia vv. 201 s.). Finalmente, o Beato Papa João Paulo ii recordava que «a Revelação coloca dentro da história um ponto de referência de que o homem não pode prescindir, se quiser chegar a compreender o mistério da sua existência; mas, por outro lado, este conhecimento apela constantemente para o mistério de Deus que a mente não consegue abarcar, mas apenas receber e acolher na fé» (Encíclica Fides et ratio FR 14).

Nesta perspectiva, o que é portanto o acto da fé? É a resposta do homem à Revelação de Deus, que se faz conhecer, que manifesta o seu desígnio de benevolência; é, para utilizar uma expressão agostiniana, deixar-se conquistar pela Verdade que é Deus, uma Verdade que é Amor. Por isso, são Paulo ressalta que é a Deus, que revelou o seu mistério, que se deve «a obediência da fé» (Rm 16,26 cf. Rm 1,5 2Co 10,5-6), a atitude mediante a qual «o homem se entrega total e livremente a Deus, oferecendo a Deus revelador o obséquio pleno da inteligência e da vontade... e prestando voluntário assentimento à sua revelação» (Constituição dogmática Dei Verbum DV 5). Tudo isto leva a uma mudança fundamental no modo de se relacionar com toda a realidade; tudo aparece numa luz nova; por conseguinte, trata-se de uma verdadeira «conversão», pois a fé consiste numa «mudança de mentalidade», porque o Deus que se revelou em Jesus Cristo e faz conhecer o seu desígnio de amor, conquista-nos, atrai-nos e torna-se o sentido que sustém a vida, a rocha sobre a qual ela pode encontrar estabilidade. No Antigo Testamento encontramos uma densa expressão sobre a fé, que Deus confia ao profeta Isaías a fim de que a comunique ao rei de Judá, Acaz. Deus afirma: «Se não acreditardes — ou seja, se não permanecerdes fiéis a Deus — não conseguireis subsistir» (Is 7,9b). Portanto, existe um vínculo entre o estar e o compreender, que expressa bem o modo como a fé é um acolher na própria vida a visão de Deus sobre a realidade, deixar que seja Deus a orientar-nos com a sua Palavra e os seus Sacramentos para compreendermos o que devemos realizar, qual é o caminho que devemos percorrer, como havemos de viver. Mas ao mesmo tempo, é precisamente o compreender em conformidade com Deus, o ver com os seus olhos, que torna a nossa vida estável, que nos permite «permanecer de pé» e não cair.

Estimados amigos, o Advento, o tempo litúrgico ao qual há pouco demos início e que nos prepara para o Santo Natal, coloca-nos diante do mistério luminoso da vinda do Filho de Deus, do grandioso «desígnio de benevolência» com o qual Ele deseja atrair-nos a si, para nos fazer viver em plena comunhão de alegria e de paz com Ele. O Advento convida-nos mais uma vez, no meio de tantas dificuldades, a renovar a certeza de que Deus está presente: Ele entrou no mundo, fazendo-se um de nós, para levar à plenitude o seu plano de amor. E Deus pede-nos que, também nós, nos tornemos um sinal da sua obra no mundo. Através da nossa fé, da nossa esperança e da nossa caridade, Ele quer entrar no mundo sempre de novo e, sempre de novo, deseja fazer resplandecer a sua luz na nossa noite.



Saudação

Amados peregrinos de língua portuguesa, cordiais saudações para todos vós, de modo especial para os fiéis cristãos de Goiânia, invocando sobre os vossos passos a graça do encontro com Deus: Jesus Cristo é a Tenda divina no meio de nós. Ide até Ele, vivei na sua graça e tereis a vida eterna. Sobre vós e vossas famílias desça a minha Bênção.


Sala Paulo VI

12 de Dezembro de 2012: O Ano da Fé. As etapas da Revelação


Audiências 2005-2013 7112