Audiências 2005-2013 14027

Raban Maur

da sensibilidade humana que levam o homem a fruir da verdade com a totalidade do seu ser, "espírito, alma e corpo". Isto é importante: a fé não é só pensamento, mas refere-se a todo o nosso ser. Dado que Deus se fez homem em carne e osso, entrando no mundo sensível, nós em todas as dimensões do nosso ser temos que procurar e encontrar Deus. Assim a realidade de Deus, mediante a fé, penetra no nosso ser transformando-o. Por isso Rabano Mauro concentrou a sua atenção sobretudo na Liturgia, como síntese de todas as dimensões da nossa percepção da realidade. Esta intuição de Rabano Mauro torna-o extraordinariamente actual. Dele permaneceram inclusive os famosos "Carmina", propostos para ser utilizados principalmente nas celebrações litúrgicas. Com efeito, dado que Rabano era acima de tudo um monge, era totalmente evidente o seu interesse pela celebração litúrgica. Porém, ele não se dedicava à arte poética como fim em si mesma, mas subordinava a arte e qualquer outro tipo de saber ao aprofundamento da Palavra de Deus. Por isso, com compromisso e rigor extremos, procurou introduzir os seus contemporâneos, mas em primeiro lugar os ministros (bispos, presbíteros e diáconos), na compreensão do significado profundamente teológico e espiritual de todos os elementos da celebração litúrgica.

Assim, tentou compreender e propor aos outros os significados teológicos escondidos nos ritos, inspirando-se na Bíblia e na tradição dos Padres. Não hesitava em declarar, por honestidade mas também para dar maior importância às suas explicações, as fontes patrísticas às quais devia o seu saber. Todavia, servia-se das mesmas com liberdade e discernimento atento, dando continuidade ao desenvolvimento do pensamento patrístico. Por exemplo, no final da "Epistola prima", dirigida a um "corepiscopo" da diocese de Mainz, depois de ter respondido aos pedidos de esclarecimento a respeito do comportamento que se devia ter no exercício da responsabilidade pastoral, prossegue: "Escrevemos-te tudo isto do modo como o deduzimos das Sagradas Escrituras e dos cânones dos Padres. Tu porém, santíssimo homem, toma as tuas decisões como melhor te parecer, caso por caso, procurando moderar a tua avaliação de forma a garantir em tudo a discrição, porque esta é a mãe de todas as virtudes" (Epistulae, I, PL 112, ). Assim, vê-se a continuidade da fé cristã, que tem os seus primórdios na Palavra de Deus; porém, ela é sempre viva, desenvolve-se e exprime-se de modos novos, sempre em coerência com todaa construção, com todo o edifício da fé.

Dado que uma parte integrante da celebração litúrgica é a Palavra de Deus, a ela se dedicou Rabano Mauro com o máximo empenhamento durante toda a sua existência. Ofereceu explicações exegéticas apropriadas praticamente para todos os livros bíblicos do Antigo e do Novo Testamento com uma intenção claramente pastoral, que justificava com palavras como estas: "Escrevi estas coisas... resumindo explicações e propostas de muitos outros para oferecer um serviço ao leitor pobre que não pode ter à disposição muitos livros, mas também para ajudar aqueles que em muitas coisas não conseguem entrar em profundidade na compreensão dos significados descobertos pelos Padres" (Commentariorum in Matthaeum praefatio, PL 107, ). Com efeito, quando comentava os textos bíblicos, hauria a mãos-cheias dos Padres antigos, com especial predilecção por Jerónimo, Ambrósio, Agostinho e Gregório Magno.

Depois, a acentuada sensibilidade pastoral levou-o a enfrentar sobretudo um dos problemas mais sentidos pelos fiéis e pelos ministros sagrados do seu tempo: o da Penitência. Efectivamente, foi compilador de "Penintenciários" — assim eram chamados nos quais, segundo a sensibilidade dessa época, eram enumerados pecados e penas correspondentes, utilizando na medida do possível motivações tiradas da Bíblia, das decisões dos Concílios e das Decretais dos Papas. De tais textos serviram-se inclusive os "Carolíngios" na sua tentativa de reforma da Igreja e da sociedade. A esta mesma intenção pastoral correspondiam obras como "De disciplina ecclesiastica" e "De institutione clericorum", nos quais, inspirando-se principalmente em Agostinho, Rabano explicava aos simples e ao clero da sua diocese os rudimentos fundamentais da fé cristã: tratava-se de uma espécie de pequenos catecismos.

Gostaria de concluir a apresentação deste grande "homem de Igreja", citando algumas das suas palavras em que se reflectem a sua convicção de base: "Quem é negligente na contemplação ("qui vacare Deo negligit"), priva-se sozinho da visão da luz de Deus; além disso, quem se deixa surpreender de modo indiscreto pelas preocupações e permite que os seus pensamentos sejam alterados pelo tumulto das coisas do mundo, condena-se à absoluta impossibilidade de penetrar os segredos do Deus invisível" (Lib. I, PL 112, Col 1263). Penso que Rabano Mauro dirige estas palavras também a nós, hoje: nas horas de trabalho, com os seus ritmos frenéticos, e nos períodos de férias, temos que reservar momentos para Deus, abrir-lhe a nossa vida, dirigindo-lhe um pensamento, uma reflexão, uma breve oração e principalmente não podemos esquecer que o domingo é o dia do Senhor, o dia da liturgia, para vislumbrar na beleza das nossas igrejas, da música sacra e da Palavra de Deus, a própria beleza de Deus, deixando-O entrar no nosso ser. Somente assim a nossa vida se tornará grande, verdadeira.

Saudação

Com amizade saúdo os diversos grupos do Brasil e demais peregrinos de língua portuguesa, com votos de que alcanceis aquilo que aqui vos trouxe de tão longe: parar junto das memórias dos Apóstolos e dos Mártires, meditando sobre o fim glorioso do seu combate por Cristo e receber a investidura do mesmo Espírito para idênticas batalhas em prol do triunfo do Evangelho no seio da família e da sociedade. Sobre cada um de vós e seus familiares, desça a minha Bênção.




7 de Março 2007: São Clemente Romano

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Saudação aos fiéis e Bispos das Dioceses do Piemonte
e Vale de Aosta antes da Audiência

Queridos irmãos e irmãs!

Sinto-me feliz por vos receber e dirijo a cada um de vós as minhas cordiais boas-vindas. Saúdo antes de tudo os peregrinos provenientes das Dioceses da Região Eclesiástica Piemontesa, que acompanham os seus Bispos na visita ad Limina. Queridos amigos, a fé cristã confronta-se, também no Piemonte e no Vale de Aosta, com muitos desafios devidos, no actual contexto sócio-cultural, às tendências agnósticas presentes em âmbito doutrinal, assim como às pretensões de plena autonomia ética e moral. Certamente não é fácil anunciar e testemunhar hoje o Evangelho.

Contudo e pude verificar isto em todos os meus diálogos e encontros permanece no povo um sólido substracto espiritual, que se manifesta entre outros, na atenção dedicada aos organismos da vida cristã, na necessidade íntima de Deus, na redescoberta do valor da oração, na estima pelo sacerdote zeloso e pelo seu ministério. Além disso, sente-se por parte dos fiéis leigos e de grupos de compromisso apostólico, uma exigência mais sentida de tensão para a santidade, medida alta da vida cristã. Dirijo-me também a vós, queridos Irmãos no Episcopado: face às dificuldades que por vezes encontram as comunidades eclesiais confiadas aos vossos cuidados, exorto-vos a prosseguir com coragem a ajudá-las a seguir fielmente o Senhor, valorizando as suas capacidades espirituais e os carismas de cada um. Recordai-lhes que nenhuma dificuldade nos pode separar do amor de Cristo, como já afirmava São Paulo (cf.
Rm 8,35-39). Por isso, unindo as forças, vós Pastores juntamente com os sacerdotes, com as pessoas consagradas e com os fiéis leigos testemunhai com fervor a vossa, a nossa comum adesão a Cristo e edificai a Igreja na caridade e na verdade. A Mãe Celeste, que o povo piemontês invoca desde sempre com sentida devoção, vos assista, vos ilumine e vos conforte.

Saúdo agora os jovens aqui presentes, em particular os alunos da Escola "Don Carlo Costamagna" de Busto Arsizio e os da Escola "Don Giovanni Bosco" de Cannonica d'Adda. Queridos amigos, o tempo de Quaresma, que estamos a viver, seja para vós ocasião propícia para redescobrir o dom do seguimento de Cristo e aprender a aderir sempre, com a sua ajuda, à vontade do Pai.

E assim entramos no caminho justo, o caminho que nos leva ao futuro.
* * *




Queridos irmãos e irmãs!

Meditámos nos meses passados sobre as figuras de cada um dos Apóstolos e sobre as primeiras testemunhas da fé cristã, que os textos neotestamentários mencionam. Agora dedicamos a nossa atenção aos Padres apostólicos, isto é, à primeira e à segunda geração na Igreja depois dos Apóstolos. E assim podemos ver o início do caminho da Igreja na história.

São Clemente, Bispo de Roma nos últimos anos do primeiro século, é o terceiro sucessor de Pedro, depois de Lino e Anacleto. Em relação à sua vida, o testemunho mais importante é o de Santo Ireneu, Bispo de Lião, até 202. Ele afirma que Clemente "tinha visto os Apóstolos", "tinha-se encontrado com eles", e "ainda tinha nos ouvidos a sua pregação e diante dos olhos a sua tradição" (Adv. haer. 3, 3, 3). Testemunhos tardios, entre o quarto e o sexto século, atribuem a Clemente o título de mártir.

A autoridade e o prestígio deste Bispo de Roma eram tais, que lhe foram atribuídos diversos textos, mas a sua única obra certa é a Carta aos Coríntios. Eusébio de Cesareia, o grande "arquivista" das origens cristãs, apresenta-a nestes termos: "É transmitida uma carta de Clemente reconhecida autêntica, grande e admirável. Foi escrita por ele, por parte da Igreja de Roma, à Igreja de Corinto... Sabemos que desde há muito tempo, e ainda nos nossos dias, ela é lida publicamente durante a reunião dos fiéis" (Hist. Eccl. 3, 16). A esta carta era atribuído um carácter quase canónico. No início deste texto escrito em grego Clemente lamenta que "as improvisas adversidades, que aconteceram uma após outra" (1, 1), lhe tenham impedido uma intervenção imediata. Estas "adversidades" devem identificar-se com a perseguição de Domiziano: por isso a data de composição da carta deve remontar a um tempo imediatamente sucessivo à morte do imperador e ao final da perseguição, isto é, logo depois do ano 96.

A intervenção de Clemente ainda estamos no século I era solicitada pelos graves problemas em que se encontrava a Igreja de Corinto: de facto, os presbíteros da comunidade tinham sido depostos por alguns jovens contestadores. A lamentável vicissitude é recordada, mais uma vez, por santo Ireneu, que escreve: "Sob Clemente, tendo surgido um contraste não pequeno entre os irmãos de Corinto, a Igreja de Roma enviou aos Coríntios uma carta importantíssima para os reconciliar na paz, renovar a sua fé e anunciar a tradição, que há pouco tempo tinha recebido dos Apóstolos" (Adv. haer. 3, 3, 3). Portanto, poderíamos dizer que esta carta constitui o primeiro exercício do Primado romano depois da morte de São Pedro. A carta de Clemente retoma temas queridos a São Paulo, que escrevera duas grandes cartas aos Coríntios, em particular a dialéctica teológica, perenemente actual, entre indicativo da salvação e imperativo do compromisso moral.

Antes de tudo há o feliz anúncio da graça que salva. O Senhor previne-nos e dá-nos o perdão, o seu amor, a graça de sermos cristãos, seus irmãos e irmãs. É um anúncio que enche de alegria a nossa vida e dá segurança ao nosso agir: o Senhor previne-nos sempre com a sua bondade e a bondade do Senhor é sempre maior do que todos os nossos pecados. Mas é necessário que nos comprometamos de modo coerente com o dom recebido e correspondamos ao anúncio da salvação com um caminho generoso e corajoso de conversão. Em relação ao modelo paulino, a novidade é que Clemente faz seguir à parte doutrinal e à parte prática, que eram contempladas em todas as cartas paulinas, uma "grande oração" que praticamente conclui a carta.

A ocasião imediata da carta oferece ao Bispo de Roma a possibilidade para uma ampla intervenção sobre a identidade da Igreja e sobre a sua missão. Se em Corinto se verificaram abusos, observa Clemente, o motivo deve ser procurado no enfraquecimento da caridade e de outras virtudes cristãs indispensáveis. Por isso ele convoca os fiéis à humildade e ao amor fraterno, duas virtudes verdadeiramente constitutivas do ser na Igreja: "Somos uma porção santa", admoesta, "realizemos portanto tudo o que a santidade exige" (30, 1). Em particular, o Bispo de Roma recorda que o próprio Senhor "estabeleceu onde e de quem quer que os serviços litúrgicos sejam realizados, para que tudo, feito santamente e com o seu consentimento, seja aprovado pela sua vontade... De facto, foram confiadas ao sumo sacerdote as funções litúrgicas que lhe são próprias, aos sacerdotes foi pré-ordenado o lugar que lhes é próprio, aos levitas competem serviços próprios. O leigo está vinculado aos ordenamentos leigos" (40, 1-5: observe-se que, nesta carta do final do século I, pela primeira vez na literatura cristã, aparece a palavra grega "laikós", que significa "membro do laos", isto é, "do povo de Deus").

Deste modo, referindo-se à liturgia do antigo Israel, Clemente revela o seu ideal de Igreja. Ela é reunida pelo "único Espírito de graça derramado sobre nós", que sopra nos diversos membros do Corpo de Cristo, no qual todos, unidos sem separação alguma, são "membros uns dos outros" (46, 6-7). A clara distinção entre o "leigo" e a hierarquia não significa absolutamente uma contraposição, mas apenas esta ligação orgânica de um corpo, de um organismo, com as diversas funções. De facto, a Igreja não é lugar de confusão e de anarquia, onde cada qual pode fazer como lhe apetece em qualquer momento: cada um neste organismo, com uma estrutura articulada, exerce o seu ministério segundo a vocação recebida. Em relação aos chefes das comunidades, Clemente explicita claramente a doutrina da sucessão apostólica. As normas que a regulam derivam definitivamente do próprio Deus. O Pai enviou Jesus Cristo, o qual por sua vez enviou os Apóstolos. Depois, eles enviaram os primeiros chefes das comunidades, e estabeleceram que lhe sucedessem outros homens dignos. Portanto, tudo se realiza "ordenadamente pela vontade de Deus" (42). Com estas palavras, com estas frases, São Clemente ressalta que a Igreja tem uma estrutura sacramental e não uma estrutura política. O agir de Deus que vem ao nosso encontro na liturgia precede as nossas decisões e as nossas ideias. A Igreja é sobretudo dom de Deus e não nossa criatura, e por isso esta estrutura sacramental não garante apenas o comum ordenamento, mas também esta precedência do dom de Deus, do qual todos necessitamos.

Finalmente, a "grande oração" confere um alcance cósmico às argumentações precedentes. Clemento louva e agradece a Deus pela sua maravilhosa providência de amor, que criou o mundo e continua a salvá-lo e a santificá-lo. Assume um realce particular a invocação pelos governantes. Depois dos textos do Novo Testamento, ela representa a mais antiga oração pelas instituições políticas. Assim, após as perseguições os cristãos, sabendo bem que elas iriam continuar, rezam incessantemente por aquelas mesmas autoridades que os tinham condenado injustamente. O motivo é antes de tudo de ordem cristológica: é preciso rezar pelos perseguidores, como fez Jesus na cruz.

Mas esta oração contém também um ensinamento que guia, ao longo dos séculos, a atitude dos cristãos em relação à política e ao Estado. Rezando pelas autoridades, Clemente reconhece a legitimidade das instituições políticas na ordem estabelecida por Deus; ao mesmo tempo, ele manifesta a preocupação por que as autoridades sejam dóceis a Deus e "exerçam o poder que Deus lhes concedeu na paz e na mansidão com piedade" (61, 2). César não é tudo. Sobressai outra soberania, cuja origem e essência não são deste mundo, mas "lá de cima": é a da verdade, que se orgulha também em relação ao Estado pelo direito de ser ouvida.

Assim a carta de Clemente trata numerosos temas de actualidade perene. Ela é muito significativa porque representa, desde o primeiro século, a solicitude da Igreja de Roma, que preside na caridade a todas as outras Igrejas. Com o mesmo Espírito façamos nossas as invocações da "grande oração", onde o Bispo de Roma se faz voz do mundo inteiro: "Sim, Senhor, faz resplandecer sobre nós a tua face no bem da paz; proteje-nos com a tua mão poderosa... Nós te damos graças, através do sumo Sacerdote e guia das nossas almas, Jesus Cristo, por meio do qual te glorificamos e louvamos, agora, e de geração em geração, e por todos os séculos. Amém" (60-61).

Saudação

Amados peregrinos de língua portuguesa, uma cordial saudação para todos, nomeadamente para o grupo referido de Portugal. Possa cada um de vós viver estes dias de peregrinação, em plena Quaresma, como um generoso caminho de conversão à santidade que vos pede e quer dar o Deus Santo! As suas bênçãos desçam abundantes sobre vós e vossas famílias!




14 de Março 2007: Santo Inácio de Antioquia

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Queridos irmãos e irmãs!

Como já fizemos na quarta-feira passada, falamos das personalidades da Igreja nascente. Na semana passada falámos do Papa Clemente I, terceiro Sucessor de São Pedro. Hoje falamos de Santo Inácio, que foi o terceiro Bispo de Antioquia, entre os anos 70 e 107, data do seu martírio.

Naquele tempo Roma, Alexandria e Antioquia eram as três grandes metrópoles do império romano. O Concílio de Niceia fala de três "primados": o de Roma, mas também Alexandria e Antioquia participam, num certo sentido, a um "primado". Santo Inácio era Bispo de Antioquia, que hoje se encontra na Turquia. Aqui, em Antioquia, como sabemos dos Actos dos Apóstolos, surgiu uma comunidade cristã florescente: primeiro Bispo foi o apóstolo Pedro assim nos diz a tradição e ali "pela primeira vez, os discípulos começaram a ser tratados pelo nome de "cristãos"" (
Ac 11,26). Eusébio de Cesareia, um historiador do IV século, dedica um capítulo inteiro da sua História Eclesiástica à vida e à obra literária de Inácio (3, 36). "Da Síria", ele escreve, "Inácio foi enviado a Roma para ser lançado às feras, por causa do testemunho por ele dado a Cristo. Realizando a sua viagem através da Ásia, sob a vigilância severa dos guardas" (que ele chamava "dez leopardos" na sua Carta aos RM 5,1), "nas várias cidades por onde passava, com pregações e admoestações, ia consolidando as Igrejas; sobretudo exortava, muito fervorosamente, a evitar as heresias, que na época começavam a pulular, e recomendava que não se separassem da tradição apostólica". A primeira etapa da viagem de Inácio rumo ao martírio foi a cidade de Esmirna, onde era Bispo São Policarpo, discípulo de São João. Ali Inácio escreveu quatro cartas, respectivamente às Igrejas de Éfeso, de Magnésia, de Tralli e de Roma. "Tendo partido de Esmirna", prossegue Eusébio, "Inácio chega a Tróade, e de lá enviou novas cartas": duas às Igrejas de Filadélfia e de Esmirna, e uma ao Bispo Policarpo. Eusébio completa assim o elenco das cartas, que chegaram até nós da Igreja do primeiro século como um precioso tesouro. Lendo estes textos sente-se o vigor da fé da geração que ainda tinha conhecido os Apóstolos. Sente-se também nestas cartas o amor fervoroso de um santo. Finalmente de Tróade o mártir chegou a Roma, onde, no Anfiteatro Flávio, foi lançado às feras.

Nenhum padre da Igreja expressou com a intensidade de Inácio o anseio pela união com Cristo e pela vida n'Ele. Por isso lemos o trecho do Evangelho sobre a vinha, que segundo o evangelho de João é Jesus. Na realidade, afluem em Inácio duas "correntes" espirituais: a de Paulo, que tende totalmente para a união com Cristo, e a de João, concentrada na vida n'Ele. Por sua vez, estas duas correntes desembocam na imitação de Cristo, várias vezes proclamado por Inácio como "o meu" e "o nosso Deus". Assim Inácio suplica os cristãos de Roma para que não impeçam o seu martírio, porque está impaciente por "unir-se a Jesus Cristo". E explica: "É bom para mim morrer indo para (eis) Jesus Cristo, em vez de reinar até aos confins da terra. Procuro a Ele, que morreu por mim, quero a Ele, que ressuscitou por nós... Deixai que eu seja imitador da Paixão do meu Deus!" (Aos Rm 5-6). Pode-se captar nestas expressões fervorosas de amor o elevado "realismo" cristológico típico da Igreja de Antioquia, como nunca atento à encarnação do Filho de Deus e à sua humanidade verdadeira e concreta: Jesus Cristo, escreve Inácio aos Esmirnenses, "pertence realmente à estirpe de David", realmente nasceu de uma virgem", "realmente foi crucificado por nós" (1, 1).

A propensão irresistível de Inácio para a união com Cristo funda uma verdadeira "mística da unidade". Ele próprio define-se "um homem ao qual foi confiada a tarefa da unidade" (Aos Filadelfenses 8, 1). Para Inácio a unidade é antes de tudo uma prerrogativa de Deus, que existindo em três Pessoas é Uno em absoluta unidade. Ele repete muitas vezes que Deus é unidade, e que só em Deus ela se encontra no estado puro e originário. A unidade a ser realizada nesta terra pelos cristãos é unicamente uma imitação, o mais possível conforme com o arquétipo divino. Desta forma Inácio chega a elaborar uma visão da Igreja, que recorda de perto algumas expressões da Carta aos Coríntios de Clemente Romano. "É bom para vós", escreve por exemplo aos cristãos de Éfeso, "proceder juntos de acordo com o pensamento do bispo, o que já fazeis. De facto, o vosso colégio dos presbíteros, justamente famoso, digno de Deus, está assim harmoniosamente unido ao bispo como as cordas à cítara. Por isso, na vossa concórdia, e no vosso amor sinfónico Jesus Cristo é cantado. E assim vós, um por um, tornais-vos coro, para que na sinfonia da concórdia, depois de ter tomado o trono de Deus na unidade, canteis a uma só voz" (4, 1-2). E depois de ter recomendado aos Esmirnenses que "nada empreendessem do que diz respeito à Igreja sem o bispo" (8, 1), diz a Policarpo: "Eu ofereço a minha vida por aqueles que são submetidos ao bispo, aos presbíteros e aos diáconos. Que eu possa com eles ter parte em Deus. Trabalhai juntos uns para os outros, lutai juntos, correi juntos, sofrei juntos, dormi e vigiai juntos como administradores de Deus, seus assessores e servos. Procurai agradar Àquele pelo qual militais e do qual recebeis os favores. Que nenhum de vós seja desertor. O vosso baptismo permaneça como um escudo, a fé como um elmo, a caridade como uma lança, a paciência como uma armadura" (6, 1-2).

Complexivamente podemos ver nas Cartas de Inácio uma espécie de dialéctica constante e fecunda entre dois aspectos característicos da vida cristã: por um lado a estrutura hierárquica da comunidade eclesial, e por outro a unidade fundamental que liga entre si todos os fiéis em Cristo. Portanto, os papeis não se podem contrapor. Ao contrário, a insistência sobre a comunhão dos crentes entre si e com os próprios pastores é continuamente reformulada através de eloquentes imagens e analogias: a cítara, as cordas, a afinação, o concerto, a sinfonia. É evidente a responsabilidade peculiar dos bispos, dos presbíteros e dos diáconos na edificação da comunidade. Para eles é válido antes de tudo o convite ao amor e à unidade. "Sede um só", escreve Inácio aos Magnésios, retomando a oração de Jesus na Última Ceia: "Uma só súplica, uma única mente, uma só esperança no amor... Acorrei todos a Jesus Cristo como ao único templo de Deus, como ao único altar: ele é um, e procedendo do único Pai, permaneceu unido a Ele, e a Ele voltou na unidade" (7, 1-2). Inácio, o primeiro na literatura cristã, atribui à Igreja o adjectivo "católica", isto é "universal": "Onde estiver Jesus Cristo", afirma ele, "ali está a Igreja" (Aos Esmirnenses 8, 2). E precisamente no serviço de unidade à Igreja católica, a comunidade cristã de Roma exerce uma espécie de primado no amor: "Em Roma ela preside digna de Deus, venerável, digna de ser chamada beata... Preside à caridade, que tem a lei de Cristo e o nome de Pai" (Aos Romanos, Prólogo).

Como se vê, Inácio é verdadeiramente o "doutor da unidade": unidade de Deus e unidade de Cristo (não obstante as várias heresias que começavam a circular e dividiam o homem e Deus em Cristo), unidade da Igreja, unidade dos fiéis "na fé e na caridade, das quais nada há de mais excelente" (Aos Esmirnenses 6, 1). Para concluir, o "realismo" de Inácio convida os fiéis de ontem e de hoje, convida todos nós a uma síntese progressiva entre configuração com Cristo (união com Ele, vida n'Ele) e dedicação à sua Igreja (unidade com o Bispo, serviço generoso à comunidade e ao mundo). Em resumo, é necessário alcançar uma síntese entre comunhão da Igreja no seu interior e missão proclamação do Evangelho para os outros, até quando, através de uma dimensão se manifeste a outra, e os crentes "possuam" cada vez mais "aquele espírito indiviso, que é o próprio Jesus Cristo" (Aos Magnésios 15). Implorando do Senhor esta "graça de unidade", e na convicção de presidir à caridade de toda a Igreja (cf. Aos Romanos, Prólogo), dirijo a vós os mesmos votos que concluem a carta de Inácio aos cristãos de Trali: "Amai-vos uns aos outros com um coração indiviso. O meu espírito oferece-se em sacrifício por vós, não só agora, mas também quando tiver alcançado Deus... Que possais ser encontrados em Cristo sem mancha" (13). E rezemos para que o Senhor nos ajude a alcançar esta unidade e a sermos encontrados finalmente sem mancha, porque é o amor que purifica as almas.

Saudações

Amados peregrinos de língua portuguesa!

Os comentários feitos há pouco sobre Santo Inácio de Antioquia, ajudam-nos a seguir os passos de um santo mártir que lutou pela unidade com Deus e com a Igreja. Isto mesmo é o que hoje desejo para todos, ao encorajar-vos a ser testemunhas da fé, em união com o Sucessor de Pedro.

Ao dar-vos as boas-vindas, saúdo todos os presentes, de modo particular os grupos de portugueses e de brasileiros, neles incluindo a comunidade "Shalom" de Fortaleza, com os votos de que leveis avivada a consciência de serdes Igreja missionária, desejosa de contribuir para a unidade de todos os homens na verdade e no amor! Com a minha Bênção, extensiva aos vossos familiares e comunidades eclesiais.

Saudação aos fiéis das Dioceses da Puglia com os seus Bispos em visita "ad limina Apostolorum" :

Dirijo cordiais boas-vindas aos peregrinos de língua italiana. Dirijo uma saudação particular aos fiéis das Dioceses da Puglia, que vieram com os seus Bispos por ocasião da Visita ad Limina Apostolorum.

Queridos amigos, encorajo-vos a sentir-vos cada vez mais comprometidos na missão da Igreja para ir ao encontro dos numerosos desafios sociais e religiosos da época actual com renovado impulso apostólico. E vós, queridos Irmãos no Episcopado, não vos canseis de solicitar quantos estão confiados aos vossos cuidados pastorais a encontrar pessoalmente Cristo vivo no meio de nós, aderindo integralmente ao seu Evangelho e às exigências morais que dele brotam.



21 de Março 2007:São Justino, filósofo e mártir

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Amados irmãos e irmãs!

Estamos a reflectir, nestas catequeses, sobre as grandes figuras da Igreja nascente. Hoje falamos de São Justino, filósofo e mártir, o mais importante dos Padres apologistas do segundo século. A palavra "apologistas" designa aqueles escritores cristãos antigos que se propunham defender a nova religião das pesadas acusações dos pagãos e dos judeus, e difundir a doutrina cristã em termos adequados à cultura do próprio tempo. Assim nos apologistas está presente uma dupla solicitude: a mais propriamente apologética, de defender o cristianismo nascente (apologhía em grego significa precisamente "defesa") e a "missionária", que expõe os conteúdos da fé numa linguagem e com categorias de pensamento compreensíveis aos contemporâneos.

Justino nasceu por volta do ano 100 na antiga Siquém, em Samaria, na Terra Santa; ele procurou por muito tempo a verdade, peregrinando nas várias escolas da tradição filosófica grega. Finalmente como ele mesmo narra nos primeiros capítulos do seu Diálogo com Trifão uma personagem misteriosa, um idoso encontrado à beira-mar, inicialmente pô-lo em dificuldade, demonstrando-lhe a incapacidade do homem de satisfazer unicamente com as suas forças a aspiração pelo divino. Depois indicou-lhe nos antigos profetas as pessoas às quais se dirigir para encontrar o caminho de Deus e a "verdadeira filosofia". Ao despedir-se dele, o idoso exortou-o à oração, para que lhe fossem abertas as portas da luz. A narração vela o episódio crucial da vida de Justino: no final de um longo itinerário filosófico de busca da verdade, ele alcançou a fé cristã.

Fundou uma escola em Roma, onde gratuitamente iniciava os alunos na nova relagião, considerada como a verdadeira filosofia. De facto, nela tinha encontrado a verdade e portanto a arte de viver de modo recto. Por este motivo foi denunciado e foi decapitado por volta do ano de 165, sob o reinado de Marco Aurélio, o imperador filósofo ao qual o próprio Justino tinha dirigido a sua Apologia.

São estas as duas Apologias e o Diálogo com o Judeu Trifão as únicas obras que nos restam dele. Nelas Justino pretende ilustrar antes de tudo o projecto divino da criação e da salvação que se realiza em Jesus Cristo, o Logos, isto é o Verbo eterno, a Razão eterna, a Razão criadora. Cada homem, como criatura racional, é partícipe do Logos, leva em si uma "semente", e pode colher os indícios da verdade. Assim o mesmo Logos, que se revelou como figura profética aos Judeus na Lei antiga, manifestou-se parcialmente, como que em "sementes de verdade", também na filosofia grega. Mas, conclui Justino, dado que o cristianismo é a manifestação histórica e pessoal do Logos na sua totalidade, origina-se que "tudo o que foi expresso de positivo por quem quer que seja, pertence a nós cristãos" (2 Apol. 13, 4). Deste modo Justino, mesmo contestando à filosofia grega as suas contradições, orienta decididamente para o Logos toda a verdade filosófica, motivando do ponto de vista racional a singular "pretensão" de verdade e de universalidade da religião cristã. Se o Antigo Testamento tende para Cristo como a figura orienta para a realidade significada, a filosofia grega tem também por objectivo Cristo e o Evangelho, como a parte tende a unir-se ao todo. E diz que estas duas realidades, o Antigo Testamento e a filosofia grega, são como os dois caminhos que guiam para Cristo, para o Logos. Eis por que a filosofia grega não se pode opor à verdade evangélica, e os cristãos podem inspirar-se nela com confiança, como num bem próprio. Por isso, o meu venerado Predecessor, o Papa João Paulo II, definiu Justino "pioneiro de um encontro positivo com o pensamento filosófico, mesmo se no sinal de um cauto discernimento": porque Justino, "mesmo conservando depois da conversão grande estima pela filosofia grega, afirmava com vigor e clareza que tinha encontrado no cristianismo "a única filosofia segura e proveitosa" (Dial. 8, 1)" (Fides et ratio,
FR 38).

Na sua totalidade, a figura e a obra de Justino marcam a opção decidida da Igreja antiga pela filosofia, mais pela razão do que pela religião dos pagãos. Com a religião pagã, de facto, os primeiros cristãos rejeitaram corajosamente qualquer compromisso. Consideravam-na idolatria, à custa de serem acusados por isso de "impiedade" e de "ateísmo". Em particular Justino, especialmente na sua primeira Apologia, fez uma crítia implacável em relação à religião pagã e aos seus mitos, por ele considerados diabólicas "despistagens" no caminho da verdade. A filosofia representou ao contrário a área privilegiada do encontro entre paganismo, judaísmo e cristianismo precisamente no plano da crítica à religião pagã e aos seus falsos mitos. "A nossa filosofia...": assim, do modo mais explícito, definiu a nova religião outro apologista contemporâneo de Justino, o Bispo Melitão de Sardes (ap. Hist. Eccl. 4, 26, 7).

De facto, a religião pagã não percorria os caminhos do Logos, mas obstinava-se pelas do mito, até a filosofia grega o considerava privado de consistência na verdade. Por isso o ocaso da religião pagã era inevitável: fluía como consequência lógica do afastamento da religião reduzida a um conjunto artificial de cerimónias, convenções e hábitos da verdade do ser. Justino, e com ele os outros apologistas, selaram a tomada de posição clara da fé cristã pelo Deus dos filósofos contra os falsos deuses da religião pagã. Era a opção pela verdade do ser contra o mito do costume.

Alguns decénios após Justino, Tertuliano definiu a mesma opção dos cristãos com uma sentença lapidária e sempre válida: "Dominus noster Christus veritatem se, non consuetudinem, cognominavit Cristo afirmou ser a verdade, não o costume" (De virgin. vel. 1, 1). A este propósito observe-se que a palavra consuetudo, aqui empregada por Tertuliano referindo-se à religião pagã, pode ser traduzida nas línguas modernas com as expressões "moda cultural", "moda do tempo".

Numa época como a nossa, marcada pelo relativismo no debate sobre os valores e sobre a religião assim como no diálogo inter-religioso esta é uma lição que não se deve esquecer. Para esta finalidade proponho-vos e assim concluo as últimas palavras do idoso misterioso, que o filósofo Justino encontrou à beira-mar: "Tu reza antes de tudo para que as portas da luz te sejam abertas, porque ninguém pode ver e compreender, se Deus e o seu Cristo não lhe concedem discernir" (Dial. 7, 3).

Saudações

Queridos peregrinos vindos do Brasil e demais países de língua portuguesa, a minha saudação amiga para todos vós, com votos de um frutuoso empenho na caminhada quaresmal que vos transforme na luz radiosa da Páscoa. Rezai, para que a todos sejam abertas as portas da Luz! Sobre vós e vossas famílias, desça a minha Bênção Apostólica.

Dou cordiais boas-vindas aos peregrinos de língua italiana.

Em particular saúdo os fiéis das Dioceses da Sardenha, reunidos com os seus Bispos, que nestes dias realizam a Visita "ad limina Apostolorum". Queridos amigos, na recente Exortação Apostólica recordei o valor da Eucaristia para a vida da Igreja e de cada cristão. Encorajo também a vós a haurir desta admirável fonte a força espiritual necessária para vos manterdes fiéis ao Evangelho e testemunhar sempre e em toda a parte o amor de Deus. E vós, queridos Irmãos no Episcopado, "fazendo-vos modelos para o rebanho" (1P 5,3) não vos canseis de conduzir os fiéis confiados aos vossos cuidados pastorais a uma adesão pessoal e comunitária a Cristo cada vez mais generosa.

Apelo

No próximo dia 24 de Março celebra-se o Dia Mundial pela luta contra a Tuberculose. Que essa ocasião favoreça uma crescente responsabilidade na cura dessa doença e uma solidariedade cada vez mais intensa em relação a quantos são por ela atingidos. Sobre eles e suas famílias invoco o conforto do Senhor, enquanto encorajo as numerosas iniciativas de assistência que a Igreja promove neste âmbito.



Audiências 2005-2013 14027