Audiências 2005-2013 4119

4 de Novembro de 2009: A controvérsia entre dois modelos teológicos: Bernardo de Claraval e Abelardo

4119
Queridos irmãos e irmãs!

Naúltimacatequeseapresentei as características principais da teologia monástica e da teologia escolástica do século XII, que poderíamos chamar, num certo sentido, respectivamente "teologia do coração" e "teologia da razão". Desenvolveu-se entre os representantes de uma e de outra corrente um debate amplo e por vezes animado, simbolicamente representado pela controvérsia entre São Bernardo de Claraval e Abelardo.

Para compreender este confronto entre os dois grandes mestres, convém recordar que a teologia é a busca de uma compreensão racional, na medida do possível, dos mistérios da Revelação cristã, acreditados por fé: fides quaerens intellectum – a fé procura a inteligibilidade – usando uma definição tradicional, concisa e eficaz. Mas enquanto Bernardo, típico representante da teologia monástica, realça a primeira parte da definição, ou seja, a fides – a fé, Abelardo, que é um escolástico, insiste sobre a segunda parte, isto é, sobre o intellectus, acerca da compreensão através da razão. Para Bernardo a própria fé é dotada de uma certeza profunda, fundada no testemunho da Escritura e no ensinamento dos Padres da Igreja. Além disso, a fé é fortalecida pelo testemunho dos santos e pela inspiração do Espírito Santo na alma de cada um dos crentes. Nos casos de dúvida e ambiguidade, a fé é protegida e iluminada pela prática do Magistério eclesial. Assim, Bernardo tem dificuldade em concordar com Abelardo, e mais em geral com quantos submetiam a verdade da fé ao exame crítico da razão; um exame que comportava, na sua opinião, um grave perigo, isto é, o intelectualismo, a relativização da verdade, o questionar as próprias verdades da fé. Neste modo de proceder Bernardo via uma audácia levada até à falta de escrúpulos, fruto do orgulho da inteligência humana, que pretende "capturar" o mistério de Deus. Numa sua carta, entristecido, assim escreve: "O engenho humano apodera-se de tudo, nada deixando à fé. Enfrenta o que está acima de si, perscruta o que lhe é superior, irrompe no mundo de Deus, altera os mistérios da fé, em vez de os iluminar; não abre o que está fechado e selado, mas desenraíza-o, e considera nada o que não considera percorrível para si, e rejeita acreditar nisso" (Epistola CLXXXVIII, 1: PL 182, 1, 353).

Para Bernardo a teologia tem uma única finalidade: a de promover a experiência viva e íntima de Deus. A teologia é então uma ajuda para amar cada vez mais e melhor o Senhor, como recita o título do tratado sobre o Dever de amar a Deus (De diligendo Deo). Neste caminho, há diversos graus, que Bernardo descreve aprofundadamente, até ao ápice quando a alma do crente se inebria nos vértices do amor. A alma humana pode alcançar já na terra esta união mística com o Verbo divino, união que o Doctor Mellifluus descreve como "núpcias espirituais". O Verbo divino visita-a, elimina as últimas resistências, ilumina-a, inflama-a e transforma-a. Nesta união mística, ela goza de grande serenidade e doçura, e canta ao seu Esposo um hino de júbilo. Como recordei na catequese dedicada à vida e à doutrina de São Bernardo, a teologia para ele só pode alimentar-se da oração contemplativa, noutras palavras, da união afectiva do coração e da mente com Deus.

Abelardo, que entre outras coisas, foi quem introduziu a palavra "teologia" no sentido no qual hoje a compreendemos, coloca-se ao contrário numa perspectiva diversa. Nascido na Bretanha, França, este famoso mestre do século XII era dotado de uma inteligência vivíssima, e a sua vocação era o estudo. Ocupou-se primeiro de filosofia e depois aplicou os resultados alcançados nesta disciplina à teologia, da qual foi mestre na cidade mais culta da época, Paris, e sucessivamente nos mosteiros em que viveu. Era um orador brilhante: as suas lições eram seguidas por verdadeiras multidões de estudantes. Espírito religioso, mas personalidade inquieta, a sua existência foi rica de lances teatrais: contestou os seus mestres, teve um filho de uma mulher culta e inteligente, Heloísa. Polemizou com frequência com os seus colegas teólogos, sofreu também condenações eclesiásticas, embora tenha morrido em plena comunhão com a Igreja, a cuja autoridade se submeteu com espírito de fé. Precisamente São Bernardo contribuiu para a condenação de algumas doutrinas de Abelardo no sínodo provincial de Sens de 1140, e solicitou também a intervenção do Papa Inocêncio II. O abade de Claraval contestava, como recordamos, o método demasiado intelectualista de Abelardo que, na sua opinião, reduzia a fé a uma simples opinião separada da verdade revelada. O receio de Bernardo não era infundado e, aliás, era partilhado também por outros grandes pensadores da época. Efectivamente, um uso excessivo da filosofia tornou perigosamente frágil a doutrina trinitária de Abelardo, e deste modo a sua ideia de Deus. No âmbito moral o seu ensinamento não estava privado de ambiguidades: ele insistia em considerar a intenção do sujeito como a única fonte para descrever a bondade ou a malícia dos actos morais, descuidando deste modo o significado objectivo e o valor moral da acções: um subjectivismo perigoso. Este é – como sabemos – um aspecto muito actual para a nossa época, na qual a cultura está com frequência marcada por uma crescente tendência ao relativismo ético: só o eu decide o que é bom para mim, neste momento. Contudo, não devemos esquecer também os grandes méritos de Abelardo, que teve muitos discípulos e contribuiu decididamente para o desenvolvimento da teologia escolástica, destinada a expressar-se de modo mais maduro e fecundo no século seguinte. Nem devem ser subestimadas algumas das suas intuições, como por exemplo, quando afirma que nas tradições religiosas não cristãs já existe uma preparação para o acolhimento de Cristo, Verbo Divino.

Que podemos nós hoje aprender do confronto, dos tons muitas vezes animados, entre Bernardo e Abelardo e, por fim, entre a teologia monástica e a escolástica? Antes de tudo penso que ele mostre a utilidade e a necessidade de um sadio debate teológico na Igreja, sobretudo quando as questões debatidas não foram definidas pelo Magistério, o qual permanece, contudo, um ponto de referência iniludível. São Bernardo, mas também o próprio Abelardo, reconheceram sempre sem hesitações a sua autoridade. Além disso, as condenações que este último sofreu recordam-nos que no campo teológico deve haver um equilíbrio entre os que podemos chamar os princípios arquitectónicos que nos foram dados pela Revelação e que por isso conservam a importância prioritária, e os interpretativos sugeridos pela filosofia, ou seja, pela razão, e que desempenham uma função importante mas só instrumental. Quando falta este equilíbrio entre a arquitectura e os instrumentos de interpretação, a reflexão teológica corre o risco de ser viciada por erros, e então compete ao Magistério o exercício daquele serviço necessário à verdade que lhe é próprio. Além disso, é preciso ressaltar que, entre as motivações que levaram Bernardo e "declarar-se" contra Abelardo e a solicitar a intervenção do Magistério, estava também a preocupação de salvaguardar os crentes simples e humildes, os quais devem ser defendidos quando correm o risco de serem confundidos ou desviados por opiniões demasiado pessoais e por argumentações teológicas sem escrúpulos, que poderiam pôr em perigo a sua fé.

Por fim, gostaria de recordar que o confronto teológico entre Bernardo e Abelardo se concluiu com uma plena reconciliação entre os dois, graças à mediação de um amigo comum, o abade de Cluny, Pedro o Venerável, sobre o qual já falei numa das catequeses precedentes. Abelardo mostrou humildade em reconhecer os seus erros, Bernardo foi muito benevolente. Em ambos prevaleceu o que deve ser verdadeiramente uma preocupação quando surge uma controvérsia teológica, isto é, salvaguardar a fé da Igreja e fazer triunfar a verdade na caridade. Que esta seja também hoje a atitude com a qual nos confrontamos na Igreja, tendo sempre como meta a busca da verdade.

Saudação

Queridos irmãos e irmãs,

Uma cordial saudação aos peregrinos vindos de Coimbra e de São Paulo, ao grupo de Focolarinos do Brasil, aos fiéis cristãos da Catedral Nossa Senhora da Conceição em Bragança Paulista com seu Bispo Dom José Maria Pinheiro, e à tripulação do Navio-Escola «Brasil» com o seu comandante, que aqui vieram movidos pelo desejo de afirmar e consolidar sua fé e adesão a Cristo, o Senhor dos Navegantes: Ele vos encha de alegria e o seu Espírito ilumine todas as decisões da vossa vida para realizardes fielmente o projeto de Deus a vosso respeito. Acompanha-vos a minha oração e Bênção.




11 de Novembro de 2009: A reforma cluniacense

11119
Queridos irmãos e irmãs!

Gostaria de vos falar esta manhã de um movimento monástico que teve grande importância nos séculos da Idade Média, que já mencionei em catequeses precedentes. Trata-se da Ordem de Cluny que, no início do século XII, momento da sua máxima expansão, contava quase 1200 mosteiros: um número deveras impressionante! Em Cluny, há precisamente 1100 anos, foi fundado um mosteiro colocado sob a guia do abade Bernon, em 910, após a doação de Guilherme o Piedoso, Duque de Aquitânia. Naquele momento, o monaquismo ocidental, que tinha florescido alguns séculos antes com São Bento, tinha decaído muito por várias causas: as condições políticas e sociais instáveis devido às contínuas invasões e devastações de povos não integrados no tecido europeu, a pobreza difundida e sobretudo a dependência das abadias dos senhores locais, que controlavam tudo o que pertencia aos territórios de sua competência. Neste contexto, Cluny representou a alma de uma renovação profunda da vida monástica, para a reconduzir à sua inspiração originária.

Em Cluny foi restabelecida a observância da Regra de São Bento com algumas adaptações já introduzidas por outros reformadores. Sobretudo quis-se garantir o papel central que a Liturgia deve ocupar na vida cristã. Os monges cluniacenses dedicavam-se com amor e grande cura à celebração das Horas litúrgicas, ao canto dos Salmos, a procissões tão devotas quão solenes e, sobretudo, à celebração da Santa Missa. Promoveram a música sacra; quiseram que a arquitectura e a arte contribuíssem para a beleza e a solenidade dos ritos; enriqueceram o calendário litúrgico de celebrações especiais como, por exemplo, no início de Novembro, a Comemoração dos fiéis defuntos, que também nós celebrámos há pouco; incrementaram o culto da Virgem Maria. Foi reservada muita importância à liturgia, porque os monges de Cluny estavam convictos de que ela fosse participação na liturgia do Céu. E os monges sentiam-se responsáveis por interceder junto do altar de Deus pelos vivos e pelos mortos, dado que muitíssimos fiéis lhes pediam com insistência para serem recordados na oração. De resto, precisamente com esta finalidade Guilherme o Piedoso quisera o nascimento da Abadia de Cluny. No antigo documento, que confirma a sua fundação, lemos: "Estabeleço com este dom que em Cluny seja construído um mosteiro de regulares em honra dos santos apóstolos Pedro e Paulo, e que aí se recolham monges que vivam segundo a Regra de São Bento (...) que ali um venerável refúgio de oração com votos e súplicas seja frequentado, e se procure e se brame com todos os desejos e ardor íntimo pela vida celeste, e assiduamente orações, invocações e súplicas sejam dirigidas ao Senhor". Para conservar e alimentar este clima de oração, a regra cluniacense acentuou a importância do silêncio, a cuja disciplina os monges se submetiam espontaneamente, convictos de que a pureza das virtudes, pela qual aspiravam, exigia um recolhimento íntimo e constante. Não admira que muito depressa o mosteiro de Cluny ganhasse fama de santidade, e que muitas outras comunidades monásticas decidissem seguir os seus costumes. Muitos príncipes e Papas pediram aos abades de Cluny para difundir a sua reforma, de modo que em pouco tempo se propagou uma densa rede de mosteiros ligados a Cluny ou com verdadeiros vínculos jurídicos ou com uma espécie de afiliação carismática. Ia-se assim delineando uma Europa do espírito nas várias regiões da França, em Itália, na Espanha, na Alemanha, na Hungria.

O sucesso de Cluny foi garantido antes de tudo pela espiritualidade elevada que lá se cultivava, mas também por algumas outras condições que favoreciam o seu desenvolvimento. Ao contrário de quanto tinha acontecido até então, o mosteiro de Cluny e as comunidades dele dependentes foram dispensadas da jurisdição dos Bispos locais e submetidos directamente à do Romano Pontífice. Isto levava a um vínculo especial com a Sé de Pedro e, graças precisamente à protecção e ao encorajamento dos Pontífices, os ideais de pureza e de fidelidade, que a reforma cluniacense pretendia perseguir, puderam difundir-se rapidamente. Além disso, os abades eram eleitos sem qualquer ingerência da parte das autoridades civis, diversamente do que acontecia noutros lugares. Pessoas deveras dignas se sucederam na guia de Cluny e das numerosas comunidades monásticas dependentes: o abade Odon de Cluny, do qual falei numa Catequese de há dois meses, e outras grandes personalidades, como Emardo, Májolo, Odilão e sobretudo Hugo o Grande, os quais desempenharam o seu serviço por longos períodos, garantindo estabilidade à reforma empreendida e à sua difusão. Além de Odon, são venerados como Santos Májolo, Odilão e Hugo.

A reforma cluniacense teve efeitos positivos não só na purificação e no despertar da vida monástica, mas também na vida da Igreja universal. Com efeito, a aspiração à perfeição evangélica representou um estímulo para combater dois graves males que afligiam a Igreja daquele período: a simonia, isto é, a aquisição de cargos pastorais com gratificações, e a imoralidade do clero secular. Os abades de Cluny com a sua respeitabilidade espiritual, os monges cluniacenses que se tornaram Bispos, alguns deles até Papas, foram protagonistas desta imponente acção de renovação espiritual. E os frutos não faltaram: o celibato dos sacerdotes voltou a ser estimado e vivido, e na posse dos cargos eclesiásticos foram introduzidos procedimentos mais transparentes.

Significativos foram também os benefícios dados à sociedade pelos mosteiros inspirados na reforma cluniacense. Numa época na qual só as instituições eclesiásticas se ocupavam dos indigentes foi praticada com empenho a caridade. Em todas as casas, o esmoler tinha o dever de hospedar os viandantes e os peregrinos necessitados, os sacerdotes e os religiosos em viagem, e sobretudo os pobres que pediam alimento e hospedagem por alguns dias. Não menos importantes foram outras duas instituições, típicas da civilização medieval, promovidas por Cluny: as chamadas "tréguas de Deus" e a "paz de Deus". Numa época muita marcada pela violência e pelo espírito de vingança, com as "tréguas de Deus" eram garantidas longas temporadas de não beligerância, por ocasião de determinadas festas religiosas e de alguns dias da semana. Com a "paz de Deus" pedia-se, sob a pena de uma censura canónica, para respeitar as pessoas inermes e os lugares sagrados.

Era incrementada assim na consciência dos povos da Europa aquele processo de longa gestação, que levou a reconhecer, de modo cada vez mais claro, dois elementos fundamentais para a construção da sociedade, isto é, o valor da pessoa humana e o bem primário da paz. Além disso, como acontecia para as outras fundações monásticas, os mosteiros cluniacenses dispunham de amplas propriedades que, postas diligentemente a frutificar, contribuíram para o desenvolvimento da economia. Paralelamente ao trabalho manual, não faltaram também típicas actividades culturais do monaquismo medieval como as escolas para as crianças, a preparação de bibliotecas, os scriptoria para a transcrição dos livros.

Desta forma, há mil anos, quando estava em pleno desenvolvimento o processo de formação da identidade europeia, a experiência cluniacense, difundida em vastas regiões do continente europeu, deu a sua importante e preciosa contribuição. Ressaltou a primazia dos bens do espírito; manteve desperta a propensão para as coisas de Deus; inspirou e favoreceu iniciativas e instituições para a promoção dos valores humanos; educou para um espírito de paz. Queridos irmãos e irmãs, rezemos para que todos os que se preocupam por um humanismo autêntico e pelo futuro da Europa saibam redescobrir, apreciar e defender o rico património cultural e religioso destes séculos.



Saudações

Saúdo os fiéis da paróquia do Imaculado Coração de Maria em Criciúma e demais grupos vindos do Brasil. Para vós e todos os peregrinos lusófonos presentes, vai a minha saudação cordial, com votos de boa viagem de regresso às vossas terras e famílias, que vos esperam transfigurados pela graça desta romaria penitencial aos túmulos dos Apóstolos São Pedro e São Paulo. Também eu vo-lo desejo, ao dar-vos, propiciadora de abundantes graças celestes, a Bênção Apostólica.

Apelo

Transcorreram cerca de seis meses depois do conflito que ensanguentou o Sri Lanka.Notam-se com satisfação os esforços daquelas Autoridades que, nas últimas semanas, estão a facilitar o regresso dos refugiados de guerra. Encorajo vivamente uma aceleração deste compromisso e peço a todos os cidadãos para se comprometerem por uma rápida pacificação, no pleno respeito dos direitos humanos, e por uma justa solução política dos desafios que o País ainda deve enfrentar. Por fim, faço votos por que a comunidade internacional se empenhe a favor das necessidades humanitárias e económicas do Sri Lanka, e elevo a minha oração à Virgem Santa de Madhu, para que continue a velar sobre essa amada Terra.



18 de Novembro de 2009: As catedrais, da arquitectura românica à gótica, o "background" teológico

18119
Queridos irmãos e irmãs

Nas catequeses das semanas passadas apresentei alguns aspectos da teologia medieval. Mas a fé cristã, profundamente arraigada nos homens e nas mulheres destes séculos, não deu origem somente a obras-primas da literatura teológica, do pensamento e da fé. Ela inspirou também uma das criações artísticas mais elevadas da civilização universal: as catedrais, verdadeira glória da Idade Média cristã. Com efeito, durante cerca de três séculos, a partir do início do século XI, assistiu-se na Europa a um ardor artístico extraordinário. Um antigo cronista descreve assim o entusiasmo e a laboriosidade daquela época: "Verificou-se que no mundo inteiro, mas especialmente na Itália e nas Gálias, se começou a reconstruir as igrejas, embora muitas, por estar ainda em boas condições, não tivessem necessidade de tal restauro. Era como uma competição entre um povo e outro; acreditava-se que o mundo, libertando-se dos velhos trapos, queria revestir-se em toda a parte com a veste branca de novas igrejas. Em síntese, quase todas as igrejas catedrais, um grande número de igrejas monásticas e até oratórios de aldeia, foram então restauradas pelos fiéis" (Rodolfo o Glabro, Historiarum 3, 4).

Vários factores contribuíram para este renascimento da arquitectura religiosa. Em primeiro lugar, condições históricas mais favoráveis, como uma maior segurança política, acompanhada por um aumento constante da população e pelo progressivo desenvolvimento das cidades, dos intercâmbios e da riqueza. Além disso, os arquitectos encontravam soluções técnicas cada vez mais elaboradas para aumentar as dimensões dos edifícios, garantindo ao mesmo tempo a sua solidez e majestosidade. Porém, foi principalmente graças ao ardor e ao zelo espiritual do monaquismo em plena expansão que foram construídas igrejas abaciais, onde a liturgia podia ser celebrada com dignidade e solenidade, e os fiéis podiam deter-se em oração, atraídos pela veneração das relíquias dos santos, meta de peregrinações incessantes. Nasceram assim as igrejas e as catedrais românicas, caracterizadas pelo desenvolvimento longitudinal, em comprimento, das naves para acolher numerosos fiéis; igrejas muito sólidas, com muros espessos, abóbadas em pedra e linhas simples e essenciais. Uma novidade é representada pela introdução das esculturas. Dado que as igrejas românicas eram lugar de oração monástica e de culto dos fiéis, os escultores, mais do que preocupar-se com a perfeição técnica, prestaram atenção sobretudo à finalidade educativa. Uma vez que era necessário suscitar nas almas impressões fortes, sentimentos que pudessem impelir a evitar o vício, o mal, e a praticar as virtudes, o bem, o tema recorrente era a representação de Cristo como Juiz universal, circundado pelas personagens do Apocalipse. Em geral, são os pórticos das igrejas românicas que oferecem esta representação, para sublinhar que Cristo é a Porta que conduz ao Céu. Os fiéis, cruzando o limiar do edifício sagrado, entram num tempo e num espaço diferentes dos da vida comum. Para além do pórtico da igreja, os crentes em Cristo, soberano, justo e misericordioso, na intenção dos artistas, podiam saborear uma antecipação da bem-aventurança eterna na celebração da liturgia e nos gestos de piedade no interior do edifício sagrado.

Nos séculos XII e XIII, a partir do norte da França, difundiu-se outro tipo de arquitectura na construção dos edifícios sagrados, a gótica, com duas características novas em relação ao românico, ou seja, o impulso vertical e a luminosidade. As catedrais góticas mostravam uma síntese de fé e de arte harmoniosamente expressa através da linguagem universal e fascinante da beleza, que ainda hoje suscita admiração. Graças à introdução das abóbadas em ogiva, que se apoiavam sobre pilares robustos, foi possível elevar notavelmente a sua altura. O impulso rumo ao alto queria convidar à oração e ele mesmo era uma prece. A catedral gótica tencionava traduzir assim, nas suas linhas arquitectónicas, a aspiração das almas por Deus. Além disso, com as novas soluções técnicas adoptadas, os muros perimetrais podiam ser perfurados e adornados com vitrais policromáticos. Em síntese, as janelas tornavam-se grandes imagens luminosas, muito aptas para instruir o povo na fé. Nelas – cena por cena – eram narrados a vida de um santo, uma parábola ou outros acontecimentos bíblicos. Dos vitrais pintados, uma cascata de luz derramava-se sobre os fiéis para lhes narrar a história da salvação e para os envolver nesta história.

Outra qualidade das catedrais góticas é constituída pelo facto de que na sua construção e decoração, de modo diferente mas coral, participava toda a comunidade cristã e civil; participavam os humildes e os poderosos, os analfabetas e os doutos, porque nesta casa comum todos os crentes eram instruídos na fé. A escultura gótica fez das catedrais uma "Bíblia de pedra", representando os episódios do Evangelho e explicando os conteúdos do ano litúrgico, da Natividade à Glorificação do Senhor. Além disso, nesses séculos difundia-se cada vez mais a percepção da humanidade do Senhor, e os padecimentos da sua Paixão eram representados de modo realista: Cristo sofredor (Christus patiens) tornou-se uma imagem amada por todos, e apta para inspirar piedade e arrependimento pelos pecados. Também não faltavam as personagens do Antigo Testamento, cuja história se tornou assim familiar para os fiéis que frequentavam as catedrais, como parte da única, comum história de salvação. Com os seus rostos cheios de beleza, de docilidade e de inteligência, a escultura gótica do século XIII revela uma piedade ditosa e tranquila, que se alegra por efundir uma devoção sentida e filial pela Mãe de Deus, vista às vezes como uma jovem mulher, risonha e materna, e principalmente representada como a soberana do céu e da terra, poderosa e misericordiosa. Os fiéis que apinhavam as catedrais góticas gostavam de encontrar aí também expressões artísticas que recordassem os santos, modelos de vida cristã e intercessores junto de Deus. E não faltavam manifestações "laicas" da existência; eis então que aparecem, aqui e ali, representações do trabalho dos campos, das ciências e das artes. Tudo era orientado e oferecido a Deus, no lugar onde se celebrava a liturgia. Podemos compreender melhor o sentido que era atribuído a uma catedral gótica, considerando o texto da inscrição gravada no pórtico central de Saint-Denis, em Paris: "Viandante, que queres louvar a beleza destes pórticos, não te deixes ofuscar pelo ouro, nem pela magnificência, mas sobretudo pelo trabalho cansativo. Aqui brilha uma obra famosa, mas queira o céu que esta obra famosa que brilha faça resplandecer os espíritos, a fim de que com as verdades luminosas se encaminhem para a verdadeira luz, onde Cristo é a verdadeira porta".

Caros irmãos e irmãs, apraz-me frisar agora dois elementos da arte românica e gótica, úteis também para nós. O primeiro: as obras-primas artísticas surgidas na Europa nos séculos passados são incompreensíveis, se não se tem em consideração a alma religiosa que as inspirou. Um artista que sempre deu testemunho do encontro entre estética e fé, Marc Chagall, escreveu que "os pintores durante séculos banharam o seu pincel naquele alfabeto colorido que era a Bíblia". Quando a fé, particularmente celebrada na liturgia, encontra a arte, cria-se uma profunda sintonia, porque ambas podem e querem falar de Deus, tornando visível o Invisível. Gostaria de compartilhar isto no encontro com os artistas, de 21 de Novembro, renovando-lhes aquela proposta de amizade entre a espiritualidade cristã e a arte, desejada pelos meus venerados Predecessores, em particular pelos Servos de Deus Paulo VI e João Paulo II. O segundo elemento: a força do estilo românico e o esplendor das catedrais góticas recordam-nos que a via pulchritudinis, o caminho da beleza, é um percurso privilegiado e fascinante para se aproximar do Mistério de Deus. O que é a beleza que escritores, poetas, músicos e artistas contemplam e traduzem na sua linguagem, a não ser o reflexo do esplendor do Verbo eterno que se fez carne? Santo Agostinho afirma: "Interroga a beleza da terra, interroga a beleza do mar, interroga a beleza do ar difundida e diluída. Interroga a beleza do céu, interroga a ordem das estrelas, interroga o sol, que com o seu esplendor ilumina o dia; interroga a lua, que com o seu clarão modera as trevas da noite. Interroga os animais que se movem na água, que caminham na terra, que voam pelos ares: almas que se escondem, corpos que se mostram; visível que se faz guiar, invisível que guia. Interroga-os! Todos te responderão: Olha-nos, somos belos! A sua beleza fá-los conhecer. Quem foi que criou esta beleza mutável, a não ser a Beleza Imutável?" (Sermo CCXLI, 2: pl 38, 1134).

Estimados irmãos e irmãs, que o Senhor nos ajude a redescobrir o caminho da beleza como um dos itinerários, talvez o mais atraente e fascinante, para conseguir encontrar e amar a Deus.

Saudação

A minha saudação a todos os peregrinos de língua portuguesa, com uma bênção particular para o grupo vindo do Brasil. Que Nossa Senhora vos acompanhe e ampare na caminhada da vida e no crescimento cristão, conservando a vós e a quantos vos são queridos na perene amizade de Deus.



25 de Novembro de 2009: Hugo e Ricardo de São Vítor

25119
Queridos irmãos e irmãs!

Nestas Audiências de quarta-feira estou a apresentar algumas figuras exemplares de crentes, que se comprometeram a mostrar a concórdia entre a razão e a fé e a testemunhar com a sua vida o anúncio do Evangelho. Hoje, pretendo falar-vos de Hugo e Ricardo de São Vítor. Ambos se situam entre aqueles filósofos e teólogos conhecidos com o nome de Vitorianos, porque viveram e ensinaram na abadia de São Vítor, em Paris, fundada no início do século XII por Guilherme de Chapeaux. O próprio Guilherme foi mestre renomado, que conseguiu dar à sua abadia uma sólida identidade cultural. Em São Vítor, de facto, foi inaugurada uma escola para a formação dos monges, aberta também a estudantes externos, na qual se realizou uma síntese feliz entre os dois modos de fazer teologia, da qual já falei em catequeses precedentes: isto é, a teologia monástica, orientada sobretudo para a contemplação dos mistérios da fé na Escritura, e a teologia escolástica, que utilizava a razão para procurar perscrutar estes mistérios com métodos inovadores, e criar um sistema teológico.

Temos poucas notícias da vida de Hugo de São Vítor. São incertos a data e o lugar do nascimento: talvez na Saxónia ou na Flandres. Sabe-se que, tendo chegado a Paris – a capital europeia da cultura desse tempo – transcorreu o resto dos seus anos na abadia de São Vítor, onde foi primeiro discípulo e depois professor. Já antes da morte, no ano de 1141, alcançou uma grande fama e estima, a ponto de ser chamado um "segundo Santo Agostinho": de facto, como Agostinho ele meditou muito sobre a relação entre fé e razão, entre ciências profanas e teologia. Segundo Hugo de São Vítor, todas as ciências, além de serem úteis para a compreensão das Escrituras, têm um valor em si mesmas e devem ser cultivadas para ampliar o saber do homem, assim como para corresponder ao seu anseio por conhecer a verdade. Esta sadia curiosidade intelectual levou-o a recomendar aos estudantes que jamais limitassem o desejo de aprender e no seu tratado de metodologia do saber e de pedagogia, intitulado significativamente Didascalicon (sobre o ensino), recomendava: "Aprende de bom grado de todos o que não sabes. Será mais sábio do que todos aquele que terá querido aprender algo de todos. Quem recebe algo de todos, acaba por se tornar mais rico do que todos" (Eruditiones Didascalicae, 3, 14: PL 176, 774).

A ciência da qual se ocupam os filósofos e os teólogos chamados Vitorianos é de modo particular a teologia, que exige antes de tudo o estudo amoroso da Sagrada Escritura. Com efeito, para conhecer Deus não se pode deixar de começar a partir do que o próprio Deus quis revelar de si mesmo através das Escrituras. Neste sentido, Hugo de São Vítor é um típico representante da teologia monástica, totalmente fundada na exegese bíblica. Para interpretar a Escritura, ele propõe a tradicional articulação patrístico-medieval, ou seja, em primeiro lugar o sentido histórico-literal, depois o alegórico e anagógico, e por fim o moral. Trata-se de quatro dimensões do sentido da Escritura, que também hoje se redescobrem, pelo qual se vê que no texto e na narração oferecida se esconde uma indicação mais profunda: o fio da fé, que nos conduz para o alto e nos guia nesta terra, ensinando-nos a viver. Contudo, mesmo respeitando estas quatro dimensões do sentido da Escritura, de modo original em relação aos seus contemporâneos, ele insiste – e este é um aspecto novo – sobre a importância do sentido histórico-literal. Por outras palavras, antes de descobrir o valor simbólico, as dimensões mais profundas do texto bíblico, é preciso conhecer e aprofundar o significado da história narrada na Escritura: caso contrário – adverte com uma comparação eficaz – corre-se o risco de ser como que um estudioso de gramática que ignora o alfabeto. Para quem conhece o sentido da história descrita na Bíblia, as vicissitudes humanas parecem marcadas pela Providência Divina, segundo um seu desígnio bem ordenado. Assim, para Hugo de São Vítor, a história não é o êxito de um destino cego ou de um caso absurdo, como poderia parecer. Ao contrário, na história humana age o Espírito Santo, que suscita um diálogo maravilhoso dos homens com Deus, seu amigo. Esta visão teológica da história põe em evidência a intervenção surpreendente e salvífica de Deus, que realmente entra e age na história, quase se faz parte da nossa história, mas salvaguardando e respeitando sempre a liberdade e a responsabilidade do homem.

Para o nosso autor, o estudo da Sagrada Escritura e do seu significado histórico-literal torna possível a teologia verdadeira, isto é, a ilustração sistemática das verdades, conhecer a sua estrutura, a explicação dos dogmas da fé, que ele apresenta numa síntese sólida no tratado De Sacramentis christianae fidei (Os sacramentos da fé cristã), onde se encontra, entre outras, uma definição de "sacramento" que, aperfeiçoada ulteriormente por outros teólogos, contém aspectos ainda hoje muito interessantes. "O sacramento", escreve ele, "é um elemento corpóreo ou material proposto de modo externo e sensível, que representa com a sua semelhança uma graça invisível e espiritual, a significa, porque para esta finalidade foi instituído, e a contém, porque é capaz de santificar" (9, 2; PL 176, 317). Por um lado a visibilidade no símbolo, a "corporeidade" do dom de Deus, no qual contudo, por outro lado, se esconde a graça divina que provém de uma história: o próprio Jesus Cristo criou símbolos fundamentais. São portanto três os elementos que concorrem para definir um sacramento, segundo Hugo de São Vítor: a instituição por parte de Cristo, a comunicação da graça e a analogia entre o elemento visível, o material e o elemento invisível, que são os dons divinos. Trata-se de uma visão muito próxima da sensibilidade contemporânea, porque os sacramentos são apresentados com uma linguagem rica de símbolos e imagens capazes de falar imediatamente ao coração dos homens. É importante também hoje que os animadores litúrgicos, e em particular os sacerdotes, valorizem com sabedoria pastoral os sinais próprios dos ritos sacramentais – esta visibilidade e tangibilidade da Graça – cuidando atentamente da sua catequese, para que cada celebração dos sacramentos seja vivida por todos os fiéis com devoção, intensidade e júbilo espiritual.

Um discípulo digno de Hugo de São Vítor é Ricardo, proveniente da Escócia. Ele foi prior da abadia de São Vítor de 1162 a 1173, ano da sua morte. Também Ricardo, naturalmente, atribui um papel fundamental ao estudo da Bíblia, mas, ao contrário do seu mestre, privilegia o sentido alegórico, o significado simbólico da Escritura com o qual, por exemplo, interpreta a figura veterotestamentária de Benjamim, filho de Jacob, como símbolo da contemplação e vértice da vida espiritual. Ricardo trata este tema em dois textos, Benjamim Menor e Benjamim Maior, nos quais propõe aos fiéis um caminho espiritual que convida antes de tudo a exercer as várias virtudes, aprendendo a disciplinar e a ordenar com a razão os sentimentos e os impulsos interiores afectivos e emotivos. Só quando o homem alcança equilíbrio e maturação humana neste campo, está pronto para aceder à contemplação, que Ricardo define como "um olhar profundo e puro da alma sobre as maravilhas da sabedoria, associado a um sentido estático de estupefacção e admiração" (Benjamim Maior, 1, 4; PL 196, 67).

Por conseguinte, a contemplação é o ponto de chegada, o resultado de um caminho difícil, que exige o diálogo entre a fé e a razão, ou seja – mais uma vez – um discurso teológico. A teologia começa a partir das verdades que são objecto da fé, mas procura aprofundar o conhecimento com o uso da razão, apropriando-se do dom da fé. Esta aplicação do raciocínio à compreensão da fé é praticada de modo convincente na obra-prima de Ricardo, um dos grandes livros da história, o De Trinitate (A Trindade). Nos seis livros que a compõem ele reflecte com perspicácia sobre o Mistério de Deus uno e trino. Segundo o nosso autor, dado que Deus é amor, a única substância divina exige comunicação, oblação e dilecção entre duas Pessoas, o Pai e o Filho, que se encontram entre si num intercâmbio eterno de amor. Mas a perfeição da felicidade e da bondade não admite exclusivismos nem fechamentos: exige antes a presença eterna de uma terceira Pessoa, o Espírito Santo. O amor trinitário é participativo, concorde e requer superabundância de dilecção, gozo de alegria incessante. Isto é, Ricardo supõe que Deus é amor, analisa a essência do amor, o que está implicado na realidade do amor, chegando assim à Trindade das Pessoas, que é realmente a expressão lógica do facto de que Deus é amor.

Contudo Ricardo está consciente de que o amor, mesmo se nos revela a essência de Deus, nos faz "compreender" o Mistério da Trindade, contudo é uma analogia para falar de um Mistério que supera a mente humana, e – sendo poeta e místico – serve-se também de outras imagens. Por exemplo, compara a divindade com um rio, com uma onda amorosa que brota do Pai, flui e reflui no Filho, para ser depois felizmente difundida no Espírito Santo.

Queridos amigos, autores como Hugo e Ricardo de São Vítor elevam o nosso ânimo à contemplação das realidades divinas. Ao mesmo tempo, a imensa alegria que nos suscitam o pensamento, a admiração e o louvor da Santíssima Trindade, funda e apoia o compromisso concreto de nos inspirarmos neste modelo perfeito de comunhão no amor para construir as nossas relações humanas de todos os dias. A Trindade é deveras comunhão perfeita! Como mudaria o mundo se nas famílias, nas paróquias e em qualquer outra comunidade as relações fossem vividas seguindo sempre o exemplo das três Pessoas divinas, em que cada um vive não só com o outro, mas para o outro e no outro! Recordei isto há alguns meses no Angelus: "Só o amor nos torna felizes, porque vivemos em relação, e vivemos para amar e para ser amados" (L'Oss. Rom. Junho ). É o amor que realiza este milagre incessante: como na vida da Santíssima Trindade, a pluralidade recompõe-se em unidade, onde tudo é complacência e júbilo. Com Santo Agostinho, tido em grande honra pelos Vitorianos, também nós podemos exclamar: Vides Trinitatem, si caritatem vides – contemplas a Trindade, se vês a caridade" (De Trinitate VIII, 8, 12).



Saudações

Saúdo o grupo de Alphaville e demais peregrinos de língua portuguesa, desejando que o exemplo das três Pessoas divinas – cada uma vive não só com a outra, mas para a outra e na outra – possa inspirar e animar as vossas relações humanas de todos os dias. Com estes votos, de bom grado a todos abençoo.




Audiências 2005-2013 4119