Audiências 2005-2013 2129

2 de Dezembro de 2009: Guilherme de Saint-Thierry

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Amados irmãos e irmãs!

Numa catequese precedente apresentei a figura de Bernardo de Claraval, o "Doutor da doçura", grande protagonista do século XII. O seu biógrafo – amigo e apreciador – foi Guilherme de Saint-Thierry, sobre o qual me detenho na reflexão desta manhã.

Guilherme nasceu em Liège entre 1075 e 1080. De família nobre, dotado de uma inteligência viva e de um amor inato pelo estudo, frequentou escolas famosas da época, como as da sua cidade natal e de Reims, na França. Entrou em contacto pessoal também com Abelardo, o mestre que aplicava a filosofia à teologia de modo tão original que suscitou muitas perplexidades e oposições. Também Guilherme expressou as suas dúvidas, solicitando o seu amigo Bernardo a tomar uma posição em relação a Abelardo. Respondendo àquele misterioso e irresistível apelo de Deus, que é a vocação à vida consagrada, Guilherme entrou no mosteiro beneditino de Saint-Nicaise de Reims em 1113, e alguns anos mais tarde tornou-se abade do mosteiro de Saint-Thierry, na diocese de Reims. Naquele período era muito difundida a exigência de purificar e renovar a vida monástica, para a tornar autenticamente evangélica. Guilherme trabalhou neste sentido no interior do próprio mosteiro, e em geral na Ordem beneditina. Contudo, encontrou muitas resistências face às suas tentativas de reforma, e assim, não obstante o parecer contrário do amigo Bernardo, em 1135 deixou a abadia beneditina, abandonou o hábito escuro e vestiu o branco, para se unir aos cistercienses de Signy. A partir daquele momento até à morte, no ano de 1148, dedicou-se à contemplação orante dos mistérios de Deus, desde sempre objecto dos seus mais profundos desejos, e à composição de escritos de literatura espiritual, importantes na história da teologia monástica.

Uma das suas primeiras obras intitula-se De natura et dignitate amoris (A natureza e a dignidade do amor). Nela está expressa uma das ideias fundamentais de Guilherme, válida também para nós. A energia principal que move o ânimo humano – diz ele – é o amor. A natureza humana, na sua essência mais profunda, consiste em amar. Enfim, a cada ser humano é confiada uma só tarefa: aprender a querer bem, a amar, sincera, autêntica e gratuitamente. Mas esta tarefa é desempenhada só na escola de Deus e o homem pode alcançar o fim para o qual foi criado. De facto, escreve Guilherme: "A arte das artes é a do amor... O amor é suscitado pelo Criador da natureza. O amor é uma força da alma, que a conduz como por um peso natural ao lugar e ao fim que lhe é próprio" (A natureza e a dignidade do amor, 1, PL 184, 379). Aprender a amar exige um caminho longo e empenhativo, que é subdividido por Guilherme em quatro etapas, correspondentes às idades do homem: a infância, a juventude, a maturidade e a velhice. Neste percurso a pessoa deve impor-se uma ascese eficaz, um forte domínio de si para eliminar qualquer afecto desordenado, qualquer cedência ao egoísmo, e unificar a própria vida em Deus, fonte, meta e força do amor, até alcançar o vértice da vida espiritual, que Guilherme define como "sabedoria". Na conclusão deste percurso ascético, experimenta-se uma grande serenidade e doçura. Todas as faculdades do homem – inteligência, vontade, afectos – repousam em Deus, conhecido e amado em Cristo.

Também noutras obras, Guilherme fala desta vocação radical ao amor a Deus, que constitui o segredo de uma vida bem sucedida e feliz, e que ele descreve como um desejo incessante e crescente, inspirado pelo próprio Deus no coração do homem. Numa meditação ele diz que o objecto deste amor é Amor com a "A" maiúscula, isto é, Deus. É Ele quem se derrama no coração de quem ama e o torna apto para o receber. Doa-se abundantemente e de tal modo que nunca falta o desejo desta saciedade. Este impulso de amor é o cumprimento do homem" (De contemplando Deo 6, passim, SC 61bis,
PP 79-83). Faz admirar o facto de que Guilherme, ao falar do amor a Deus, atribui uma importância notável à dimensão afectiva. No fundo, queridos amigos, o nosso coração é feito de carne, e quando amamos Deus, que é o próprio Amor, como não expressar nesta relação com o Senhor também os nossos sentimentos humaníssimos, como a ternura, a sensibilidade, a delicadeza? O próprio Senhor, fazendo-se homem, quis amar-nos com um coração de carne!

Depois, segundo Guilherme, o amor tem outra característica importante: ilumina a inteligência e permite conhecer melhor e mais profundamente Deus e, em Deus, as pessoas e os acontecimentos. O conhecimento que procede dos sentidos e da inteligência reduz, mas não elimina, a distância entre o sujeito e o objecto, entre o eu e o tu. Ao contrário, o amor produz atracção e comunhão, chegando a alcançar uma transformação e uma assimilação entre o sujeito que ama e o objecto amado. Esta reciprocidade de afecto e de simpatia permite então um conhecimento muito mais profundo do que é realizado pela razão. Explica-se assim uma célebre expressão de Guilherme: "Amor ipse intellectus est – já em si mesmo o amor é princípio de conhecimento". Queridos amigos, perguntemo-nos: não é precisamente assim na nossa vida? Porventura não é verdade que conhecemos realmente só quem e aquilo que amamos? Sem uma certa simpatia não se conhece ninguém nem nada! E isto é válido sobretudo no conhecimento de Deus e dos seus mistérios, que superam a capacidade de compreensão da nossa inteligência: só conhecemos Deus se o amamos!

Uma síntese do pensamento de Guilherme Saint-Thierry é contida numa longa carta dirigida aos Cartuxos de Mont-Dieu, junto dos quais ele se tinha deslocado em visita e aos quais quis encorajar e confortar. O douto beneditino Jean Mabillon jé em 1690 deu a esta carta um título significativo: Epistola aurea (Carta de ouro). Com efeito, os ensinamentos sobre a vida espiritual nela contidos são preciosos para todos os que desejam crescer na comunhão com Deus, na santidade. Neste tratado Guilherme propõe um itinerário em três etapas. É preciso diz ele passar do homem "animal" ao "racional", para alcançar o "espiritual". O que pretende dizer o nosso autor com estas três expressões? No início uma pessoa aceita a visão da vida inspirada pela fé com um acto de obediência e de confiança. Depois com um processo de interiorização, no qual a razão e a vontade desempenham um grande papel, a fé em Cristo é acolhida com profunda convicção e experimenta-se uma correspondência harmoniosa entre aquilo em que se crê e se espera e as aspirações mais secretas da alma, a nossa razão, os nossos afectos. Chega-se assim à perfeição da vida espiritual, quando as realidades da fé são fonte de alegria íntima e de comunhão real e satisfatória com Deus.

Vive-se só no amor e por amor. Guilherme funda este itinerário numa visão sólida do homem, inspirada nos antigos Padres gregos, sobretudo em Orígenes, os quais, com uma linguagem audaciosa, tinham ensinado que a vocação do homem é tornar-se como Deus, que o criou à sua imagem e semelhança. A imagem de Deus presente no homem estimula-o à semelhança, isto é, a uma identidade cada vez mais plena entre a própria vontade e a divina. A esta perfeição, que Guilherme chama "unidade de espírito", não se chega com o esforço pessoal, mesmo se sincero e generoso, porque é necessária outra coisa. Esta perfeição alcança-se pela acção do Espírito Santo, que habita na alma e purifica, absorve e transforma em caridade qualquer impulso e desejo de amor presente no homem. "Há depois outra semelhança com Deus", lemos na Epistola aurea, "que já não é chamada semelhança, mas unidade de espírito, quando o homem se torna um com Deus, um espírito, não só para a unidade de um querer idêntico, mas por não ser capaz de desejar outra coisa. Deste modo o homem merece tornar-se não Deus, mas aquilo que Deus é: o homem torna-se por graça aquilo que Deus é por natureza" (Epistola aurea 262-263, SC 223, pp. 353-355).

Queridos irmãos e irmãs, este autor, que poderíamos definir o "Cantor do amor, da caridade", ensina-nos a fazer na nossa vida a opção fundamental, que dá sentido e valor a todas as outras opções: amar a Deus e, por amor a Ele, amar o nosso próximo; só assim poderemos encontrar a verdadeira alegria, antecipação da bem-aventurança eterna. Ponhamo-nos portanto na escola dos Santos para aprender a amar de modo autêntico e total, para entrar neste percurso do nosso ser. Com uma jovem santa, Doutora da Igreja, Teresa do Menino Jesus, digamos também nós ao Senhor que desejamos viver de amor. E concluo precisamente com uma oração desta Santa: "Eu amo-te, e Tu o sabes, Jesus divino! O Espírito de amor incendeia-me com o seu fogo. Amando-te a Ti atraio o Pai, que o meu coração frágil conserva, sem trégua. Ó Trindade! És prisioneira do meu amor. Viver de amor, aqui na terra, é um doar-se desmedido, sem pedir recompensa... quando se ama não se fazem cálculos. Eu dei tudo ao Coração divino, que transborda de ternura! E corro ligeiramente. Nada mais tenho, e a minha única riqueza é viver de amor".

Queridos irmãos e irmãs!

Amados peregrinos de língua portuguesa, uma cordial saudação de boas-vindas para todos. Que a prática do amor a Deus e ao próximo seja o propósito onde encontrais o sentido e o valor para todas as escolhas das vossas vidas. Que Deus abençoe a cada um de vós e vossas famílias! Ide em paz!





9 de Dezembro de 2009: Ruperto de Deutz

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Queridos irmãos e irmãs!

Hoje vamos conhecer outro monge beneditino do século XII. O seu nome é Rupert de Deutz, uma cidade situada perto de Colónia, sede de um famoso mosteiro. O próprio Rupert fala da própria vida numa das suas obras mais importantes, intitulada A glória e a honra do Filho do homem, que é um comentário parcial ao Evangelho de Mateus. Ainda criança, ele foi acolhido como "oblato" no mosteiro beneditino de São Lourenço em Liège, segundo o costume da época de confiar um dos filhos à educação dos monges, pretendendo fazer dele um dom a Deus. Rupert amou sempre a vida monástica. Aprendeu muito depressa a língua latina para estudar a Bíblia e para beneficiar das celebrações litúrgicas. Distinguiu-se pela integérrima rectidão moral e pela forte afeição à Sé de São Pedro.

Os seus tempos eram marcados por contrastes entre o Papado e o Império, devidos à chamada "luta das investiduras", com a qual – como mencionei noutras Catequeses – o Papado queria impedir que a nomeação dos Bispos e a prática da sua jurisdição dependessem das autoridades civis, que eram guiadas sobretudo por motivações políticas e económicas, certamente não pastorais. O Bispo de Liège, Otberto, resistia às directrizes do Papa e mandou para o exílio Berengário, abade do mosteiro de São Lourenço, precisamente devido à sua fidelidade ao Pontífice. Neste mosteiro vivia Rupert, o qual não hesitou em seguir o seu Abade no exílio e só quando o Bispo Otberto voltou à comunhão com o Papa regressou a Liège e aceitou tornar-se sacerdote. Até àquele momento, de facto, tinha evitado receber a ordenação sacerdotal de um Bispo em dissenso com o Papa. Rupert ensina-nos que quando surgem controvérsias na Igreja, a referência ao ministério petrino garante fidelidade à sã doutrina e confere serenidade e liberdade interior. Depois da disputa com Otberto, ele teve que abandonar o seu mosteiro mais duas vezes. Não obstante tenha sido absolvido de todas as acusações, Rupert preferiu passar um pouco de tempo em Siegburg, mas dado que as polémicas ainda não tinham cessado quando regressou ao mosteiro de Liège, decidiu estabelecer-se definitivamente na Alemanha. Nomeado abade de Deutz em 1120, ali permaneceu até 1129, ano da sua morte. Deixou o mosteiro só para uma peregrinação a Roma, em 1124.

Escritor fecundo, Rupert deixou numerosíssimas obras, ainda hoje de grande interesse, também porque foi activo em vários e importantes debates teológicos da época. Por exemplo, interveio com determinação na controvérsia eucarística, que em 1077 levara à condenação de Berengário de Tours. Ele tinha feito uma interpretação redutiva da presença de Cristo no Sacramento da Eucaristia, definindo-a apenas simbólica. Na linguagem da Igreja ainda não tinha entrado o termo "transubstanciação", mas Rupert, empregando por vezes expressões audaciosas, fez-se decidido defensor do realismo eucarístico e, sobretudo numa obra intitulada De divinis officcis (Os ofícios divinos), afirmou com determinação a continuidade entre o Corpo do Verbo encarnado de Cristo e o presente nas Espécies eucarísticas do pão e do vinho. Queridos irmãos e irmãs, parece-me que a este ponto devemos pensar inclusive no nosso tempo; existe também hoje o perigo de reduzir o realismo eucarístico, isto é, de considerar a Eucaristia quase como apenas um rito de comunhão, de socialização, esquecendo com muita facilidade que na Eucaristia está realmente presente Cristo ressuscitado – com o seu corpo ressuscitado – o qual se entrega às nossas mãos para nos tirar de nós mesmos, incorporando-nos no seu corpo imortal e para nos guiar assim para a vida nova. Este grande mistério que o Senhor está presente em toda a sua realidade nas Espécies eucarísticas é um mistério que se deve adorar e amar sempre de novo! Gostaria de citar aqui as palavras do Catecismo da Igreja Católica que têm em si o fruto da meditação da fé e da reflexão teológica de dois mil anos: "O modo da presença de Cristo sob as Espécies eucarísticas é único... No santíssimo sacramento da Eucaristia estão contidos verdadeira, real e substancialmente, o Corpo e o Sangue, conjuntamente com a alma e a divindade de nosso Senhor Jesus Cristo e, por conseguinte, o Cristo total: Deus e homem" (n.
CEC 1374). Também Rupert contribuiu, com as suas reflexões, para esta precisa formulação.

Outra controvérsia, na qual o abade de Deutz foi envolvido, refere-se ao problema da conciliação da bondade e da omnipotência de Deus com a existência do mal. Se Deus é omnipotente e bom, como se explica a realidade do mal? De facto, Rupert reagiu à posição tomada pelos mestres da escola teológica de Laon, que com uma série de raciocínios filosóficos distinguiam na vontade de Deus a "aprovação" e a "permissão", concluindo que Deus permite o mal sem o aprovar e, portanto, sem o querer. Rupert, ao contrário, renuncia ao uso da filosofia, que considera simplesmente fiel à narração bíblica. Ele parte da bondade de Deus, da verdade que Deus é sumamente bom e não pode deixar de querer o bem. Assim, indica a origem do mal no próprio homem e no uso errado da liberdade humana. Quando Rupert enfrenta este tema, escreve páginas cheias de inspiração religiosa para louvar a misericórdia infinita do Pai, a paciência e a benevolência de Deus para com o pecador.

Como outros teólogos da Idade Média, também Rupert se perguntava: por que o Verbo de Deus, o Filho de Deus, se fez homem? Alguns, muitos, respondiam explicando a encarnação do Verbo com a urgência de reparar os pecados do homem. Ao contrário, Rupert, com uma visão cristocêntrica da história da salvação, alarga a perspectiva, e numa sua obra intitulada A glorificação da Trindade defende a posição que a Encarnação, acontecimento central de toda a história, tinha sido prevista desde a eternidade, também independentemente do pecado do homem, para que toda a criação pudesse louvar a Deus Pai e amá-lo como uma única família reunida em volta de Cristo, Filho de Deus. Então ele vê na mulher grávida do Apocalipse toda a história da humanidade, que está orientada para Cristo, assim como a concepção visa o parto, uma perspectiva que será desenvolvida por outros pensadores e valorizada também pela teologia contemporânea, a qual afirma que toda a história do mundo e da humanidade é concepção orientada para o parto de Cristo. Cristo está sempre no centro das explicações exegéticas fornecidas por Rupert nos seus comentários aos Livros da Bíblia, aos quais se dedicou com grande diligência e paixão. Ele reencontra assim a unidade admirável em todos os acontecimentos da história da salvação, da criação à consumação final dos tempos: "Toda a Escritura", afirma ele, "é um só livro, que tende para a mesma finalidade [o Verbo divino]; que vem de um só Deus e foi escrito por um só Espírito" (De glorificatione Trinitatis et processione Sancti Spiritus I, V PL 169, 18).

Na interpretação da Bíblia, Rupert não se limita a repetir o ensinamento dos Padres, mas mostra uma sua originalidade. Ele, por exemplo, é o primeiro escritor que identificou a esposa do Cântico dos Cânticos com Maria santíssima. Assim o seu comentário a este livro da Escritura revela-se uma espécie de summa mariológica, na qual estão presentes os privilégios e as excelentes virtudes de Maria. Num dos trechos mais inspirados do seu comentário Rupert escreve: "Ó dilectíssima entre as dilectas, Virgem das virgens, o que louva em ti o teu Filho dilecto, que todo o coro dos anjos exalta? São louvados a simplicidade, a pureza, a inocência, a doutrina, o pudor, a humildade, a integridade da mente e da carne, ou seja, a virgindade incorrupta" (In Canticum Canticorum 4, 1-6, ccl 26, pp. 69-70). A interpretação mariana do Cântico de Rupert é um óptimo exemplo da sintonia entre liturgia e teologia. De facto, vários trechos deste Livro bíblico já eram usados nas celebrações litúrgicas das festas marianas.

Além disso, Rupert ocupou-se da inserção da sua doutrina mariológica na eclesiológica. Por outras palavras, ele vê em Maria Santíssima a parte mais santa da Igreja inteira. Eis por que o meu venerado predecessor, Papa Paulo VI, no discurso de encerramento da terceira sessão do Concílio Vaticano II, ao proclamar solenemente Maria Mãe da Igreja, citou precisamente uma proposição tirada das obras de Rupert, que define Maria portio maxima, portio optima a parte mais excelsa, a melhor parte da Igreja (cf. In Apocalypsem 1.7, PL 169, 1043).

Queridos amigos, destas rápidas menções apercebemo-nos de que Rupert foi um teólogo fervoroso, dotado de grande profundidade. Como todos os representantes da teologia monástica, ele soube conjugar o estudo racional dos mistérios da fé com a oração e com a contemplação, considerada o vértice de qualquer conhecimento de Deus. Ele mesmo fala algumas vezes das suas experiências místicas, como quando confia a alegria inefável de ter sentido a presença do Senhor: "Naquele breve momento – afirma ele – experimentei quanto é verdadeiro o que Ele mesmo diz: Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração" (De gloria et honore Filii hominis. Super Matthaeum 12, PL 168, 1601). Também nós podemos, cada um a seu modo, encontrar o Senhor Jesus, que incessantemente acompanha o nosso caminho, se torna presente no Pão eucarístico e na sua Palavra para a nossa salvação.



Saudação

Amados peregrinos de língua portuguesa, desejo a todos um tempo santo de Advento fixando o olhar na Virgem Mãe, a parte melhor e mais excelsa da Igreja. Como Maria, preparemos o coração, a família, os amigos para acolher e oferecer Jesus no Natal. São os meus votos e também a minha Bênção!



16 de Dezembro de 2009: João de Salisbury

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Caros irmãos e irmãs

Hoje vamos conhecer a figura de João de Salisbury, que pertencia a uma das escolas filosóficas e teológicas mais importantes da Idade Média, a da Catedral de Chartres, na França. Também ele, como os teólogos de que falei nas semanas passadas, nos ajuda a compreender como a fé, em harmonia com as justas aspirações da razão, impele o pensamento para a verdade revelada, na qual se encontra o verdadeiro bem do homem.

João nasceu em Salisbury, na Inglaterra, entre 1100 e 1120. Lendo as suas obras e sobretudo o seu rico epistolário, tomamos conhecimento dos factos mais importantes da sua vida. Durante cerca de doze anos, de 1136 a 1148, ele dedicou-se aos estudos, frequentando as escolas mais qualificadas da época, nas quais ouviu as lições de mestres famosos. Foi a Paris e depois a Chartres, o ambiente que marcou em maior medida a sua formação e do qual assimilou a grande abertura cultural, o interesse pelos problemas especulativos e o apreço pela literatura. Como muitas vezes acontecia nessa época, os estudantes mais brilhantes eram convidados por prelados e soberanos, para ser seus estreitos colaboradores. Isto aconteceu também com João de Salisbury, que por um seu grande amigo, Bernardo de Claraval, foi apresentado a Teobaldo, Arcebispo de Canterbury – sede primacial da Inglaterra – que de bom grado o acolheu no seu clero. Por onze anos, de 1150 a 1161, João foi secretário e capelão do idoso Arcebispo. Com zelo incansável, enquanto continuava a dedicar-se ao estudo, ele desempenhou uma actividade diplomática intensa, visitando dez vezes a Itália, com a finalidade de manter as relações do Reino e da Igreja da Inglaterra com o Romano Pontífice. Além disso, naqueles anos o Papa era Adriano IV, um inglês que teve uma forte amizade com João de Salisbury. Nos anos seguintes à morte de Adriano IV, ocorrida em 1159, na Inglaterra criou-se uma situação de grave tensão entre a Igreja e o Reino. Com efeito, o rei Henrique ii tencionava afirmar a sua autoridade sobre a vida interna da Igrea, limitando a sua liberdade. Esta tomada de posição suscitou as reacções de João de Salisbury, e principalmente a resistência corajosa do sucessor de Teobaldo na cátedra episcopal de Canterbury, S. Tomás Becket, que por este motivo foi para o exílio, na França. João de Salisbury acompanhou-o e permaneceu ao seu serviço, trabalhando sempre por uma reconciliação. Em 1170, quando quer João quer Tomás Becket já tinham voltado para a Inglaterra, este último foi atacado e assassinado no interior da sua catedral. Morreu como mártir e como tal foi imediatamente venerado pelo povo. João continuou a servir fielmente também o sucessor de Tomás, até ser eleito Bispo de Chartres, onde permaneceu de 1176 a 1180, ano da sua morte.

Das obras de João de Salisbury gostaria de indicar duas, que são consideradas as suas obras-primas, designadas elegantemente com os títulos gregos de Metaloghicón (Em defesa da lógica) e Polycráticus (O homem de Governo). Na primeira obra ele – não sem a requintada ironia que caracterizava muitos homens cultos – rejeitou a posição daqueles que tinham uma concepção redutiva da cultura, considerada como eloquência vazia, palavras inúteis. João, por sua vez, elogia a cultura, a filosofia autêntica, ou seja o encontro entre pensamento forte e comunicação, palavra eficaz. Ele escreve: "De facto, como não é só temerária, mas também eloquência cega não iluminada pela razão, assim a sabedoria que não beneficia do uso da palavra é não só frágil, mas de certo modo incompleta: com efeito, embora por vezes uma sabedoria sem palavra possa ser benéfica no confronto da própria consciência, raramente e pouco beneficia a sociedade" (Metaloghicón 1, I, PL 199, 327). Um ensinamento muito actual. Hoje, aquela que João definia "eloquência", ou seja a possibilidade de comunicar com instrumentos cada vez mais elaborados e difundidos, multiplicou-se enormemente. Todavia, é ainda mais urgente a necessidade de transmitir mensagens dotadas de "sabedoria", ou seja inspiradas na verdade, na bondade e na beleza. Trata-se de uma grande responsabilidade, que interpela em particular as pessoas que trabalham no âmbito multiforme e complexo da cultura, da comunicação, dos mass media. E este é um âmbito em que se pode anunciar o Evangelho com vigor missionário.

No Metaloghicón, João enfrenta os problemas da lógica, na sua época objecto de grande interesse, e formula-se uma interrogação fundamental: o que pode conhecer a razão humana? Até que ponto ela pode corresponder àquela aspiração que existe em cada homem, ou seja a busca da verdade? João de Salisbury adopta uma posição moderada, baseada no ensinamento de alguns tratados de Aristóteles e de Cícero. Na sua opinião, em geral a razão humana alcança conhecimentos que não são inquestionáveis, mas prováveis e opináveis. O conhecimento humano – esta é a sua conclusão – é imperfeito, porque está sujeito à finitude, ao limite do homem. Porém, ela cresce e aperfeiçoa-se graças à experiência e à elaboração de raciocínios correctos e coerentes, capazes de estabelecer relações entre os conceitos e a realidade, graças ao debate, ao confronto e ao saber que se enriquece de geração em geração. Somente em Deus existe uma ciência perfeita, que é comunicada ao homem, pelo menos parcialmente, por meio da Revelação acolhida na fé, pelo que a ciência da fé, a teologia, alarga as potencialidades da razão e faz progredir com humildade no conhecimento dos mistérios de Deus.

O crente e o teólogo, que aprofundam o tesouro da fé, abrem-se também a um saber prático, que guia as acções quotidianas, ou seja, para as leis morais e o exercício das virtudes. João de Salisbury escreve: "A clemência de Deus concedeu-nos a sua lei, que estabelece as coisas que nos é útil conhecer, e que indica quanto é lícito saber de Deus e quanto é justo indagar... Com efeito, nesta lei explicita-se e torna-se evidente a vontade de Deus, a fim de que cada um de nós saiba o que para ele é necessário fazer" (Metaloghicón 4, 41, PL 199, 944-945). Segundo João de Salisbury, existe também uma verdade objectiva e imutável, cuja origem está em Deus, acessível à razão humana e que diz respeito ao agir prático e social. Trata-se de um direito natural, no qual as leis humanas e as autoridades políticas e religiosas devem inspirar-se, a fim de poder promover o bem comum. Esta lei natural é caracterizada por uma propriedade à qual João chama "equidade", ou seja a atribuição dos seus direitos a cada pessoa. Dela derivam preceitos que são legítimos em todos os povos, e que em qualquer caso não podem ser ab-rogados. Esta é a lei central do Polycráticus, o tratado de filosofia e de teologia política, em que João de Salisbury, reflecte sobre as condições que tornam a acção dos governantes justa e permitida.

Enquanto outros argumentos enfrentados nesta obra estão ligados às circunstâncias históricas em que ela foi composta, o tema da relação entre lei natural e ordenamento jurídico-positivo, mediado pela equidade, é ainda hoje de grande importância. Com efeito, no nosso tempo, sobretudo em alguns países, assistimos a uma separação preocupante entre a razão, que tem a tarefa de descobrir os valores éticos ligados à dignidade da pessoa humana, e a liberdade, que tem a responsabilidade de os acolher e promover. Talvez João de Salisbury nos recorde hoje que são conformes com a realidade somente as leis que tutelam a sacralidade da vida humana e rejeitam a liceidade do aborto, da eutanásia e das experiências genéticas desenvoltas, aquelas leis que respeitam a dignidade do matrimónio entre um homem e uma mulher, que se inspiram numa laicidade correcta do Estado – laicidade que contudo comporta sempre a salvaguarda da liberdade religiosa – e que perseguem a subsidiaridade e a solidariedade nos planos nacional e internacional. Caso contrário, acabaria por se instaurar aquela que João de Salisbury define a "tirania do príncipe" ou, nós diríamos, "a ditadura do relativismo": um relativismo que, como eu recordava há alguns anos, "nada reconhece como definitivo e deixa como última medida só o próprio eu e os seus desejos" (Missa pro eligendo Romano Pontifice, Homilia, ed. port. de "L'Osservatore Romano" de 23 de Abril de 2005).

Na minha Encíclica mais recente, Caritas in veritate, dirigindo-me aos homens de boa vontade, que se comprometem a fim de que a acção social e política nunca seja separada da verdade objectiva sobre o homem e sobre a sua dignidade, escrevi: "A verdade e o amor que a mesma desvenda não se podem produzir, mas apenas acolher. A sua fonte última não é – nem pode ser – o homem, mas Deus, ou seja, Aquele que é Verdade e Amor. Este princípio é muito importante para a sociedade e para o desenvolvimento, enquanto nem uma nem outro podem ser apenas produtos humanos; a própria vocação ao desenvolvimento das pessoas e dos povos não se funda sobre a simples deliberação humana, mas está inscrita num plano que nos precede e constitui para todos nós um dever que há-de ser livremente assumido" (). Temos que procurar e acolher este plano que nos precede, esta verdade do ser, para que nasça a justiça, mas só podemos encontrá-lo e acolhê-lo com um coração, uma vontade, uma razão purificados na luz de Deus.

Saudação

Saúdo, com afecto, a todos vós, amados peregrinos de língua portuguesa, desejando que vos deixeis guiar pela voz de Deus que vos chama, através da consciência, a uma vida santa e rica de boas obras. Confiando à Virgem Mãe esta vossa peregrinação que vos prepara para o Natal, invoco, com a minha Bênção sobre os vossos passos e a vossa família, a abundância das graças do divino Salvador.



Quarta-feira, 23 de Dezembro de 2009

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Queridos irmãos e irmãs!

Com a Novena de Natal, que estamos a celebrar nestes dias, a Igreja convida-nos a viver de modo intenso e profundo a preparação para o Nascimento do Salvador, já iminente. O desejo, que todos trazemos no coração, é que a próxima festa do Natal nos dê, no meio da actividade frenética dos nossos dias, serena e profunda alegria para nos fazer tocar com mão a bondade do nosso Deus e nos infunda renovada coragem.

Para compreender melhor o significado do Natal do Senhor, gostaria de fazer uma breve menção à origem histórica desta solenidade. De facto, o Ano litúrgico da Igreja não se desenvolveu inicialmente partindo do nascimento de Cristo, mas da fé na sua ressurreição. Por isso, a festa mais antiga da cristandade não é o Natal, mas a Páscoa; a ressurreição de Cristo funda a fé cristã, está na base do anúncio do Evangelho e faz nascer a Igreja. Por conseguinte, ser cristãos significa viver de modo pascal, fazendo-nos envolver no dinamismo que é originado pelo Baptismo e leva a morrer para o pecado para viver com Deus (cf.
Rm 6,4).

O primeiro que afirmou com clareza que Jesus nasceu a 25 de Dezembro foi Hipólito de Roma, no seu comentário ao Livro do profeta Daniel, escrito por volta de 204. Depois, alguns exegetas observam que naquele dia se celebrava a festa da Dedicação do Templo de Jerusalém, instituída por Judas Macabeu em 164 a.C. A coincidência de datas significaria então que com Jesus, que apareceu como luz de Deus na noite, se realiza deveras a consagração do templo, o Advento de Deus nesta terra.

Na cristandade a festa do Natal assumiu uma forma definitiva no século IV, quando substituiu a festa romana do "Sol invictus", o sol invencível. Assim foi evidenciado que o nascimento de Cristo é a vitória da verdadeira luz sobre as trevas do mal e do pecado. Contudo, a particular e intensa atmosfera espiritual que circunda o Natal desenvolveu-se na Idade Média, graças a São Francisco de Assis, que estava profundamente apaixonado pelo homem Jesus, pelo Deus-connosco. O seu primeiro biógrafo, Tomás de Celano, na Vida segunda narra que São Francisco "acima de todas as outras solenidades celebrava com inefável solicitude o Natal do Menino Jesus, e chamava festa das festas ao dia no qual Deus, feito pequeno infante, se tinha amamentado num seio humano" (Fontes Franciscanas, n. 199, p. 492). Desta particular devoção ao mistério da Encarnação teve origem a famosa celebração do Natal em Greccio. Ela, provavelmente, foi inspirada em São Francisco pela sua peregrinação à Terra Santa e pelo presépio de Santa Maria Maior em Roma. O que animava o Pobrezinho de Assis era o desejo de experimentar de modo concreto, vivo e actual a humilde grandeza do acontecimento do nascimento do Menino Jesus e de comunicar a sua alegria a todos.

Na primeira biografia, Tomás de Celano fala da noite do presépio de Greccio de modo vivo e comovedor, oferecendo uma contribuição decisiva para a difusão da tradição natalícia mais bonita, a do presépio. De facto, a noite de Greccio voltou a dar à cristandade a intensidade e a beleza da festa do Natal, e educou o Povo de Deus para compreender a sua mensagem mais autêntica, o calor particular, e a amar e adorar a humanidade de Cristo. Esta particular aproximação ao Natal ofereceu à fé cristã uma nova dimensão. A Páscoa tinha concentrado a atenção sobre o poder de Deus que vence a morte, inaugura a vida nova e ensina a esperar no mundo que há-de vir. Com São Francisco e com o seu presépio eram postos em evidência o amor inerme de Deus, a sua humildade e a sua benignidade, que na Encarnação do Verbo se manifesta aos homens para ensinar um novo modo de viver e de amar.

Celano narra que, naquela noite de Natal, foi concedida a Francisco a graça de uma visão maravilhosa. Viu jazer imóvel na manjedoura um pequeno menino, que foi despertado do sono precisamente pela proximidade de Francisco. E acrescenta: "Nem esta visão discordava dos factos porque, por obra da sua graça que agia por meio do seu santo servo Francisco, o Menino Jesus foi ressuscitado no coração de muitos, que o tinham esquecido, e foi impresso profundamente na sua memória amorosa" (Vida primeira, op. cit., n. 86, p. 307). Este quadro descreve com muita clareza quanto a fé viva e o amor de Francisco pela humanidade de Cristo transmitiram à festa cristã do Natal: a descoberta que Deus se manifesta nos membros frágeis do Menino Jesus. Graças a São Francisco, o povo cristão pôde compreender que no Natal Deus se tornou deveras o "Emanuel", o Deus-connosco, do qual não nos separa barreira nem distância alguma. Naquele Menino, Deus tornou-se tão próximo de cada um de nós, tão próximo, que podemos chamá-lo por tu e manter com ele uma relação confidencial de afecto profundo, assim como fazemos com um recém-nascido.

De facto, naquele Menino manifesta-se Deus-Amor: Deus vem sem armas, sem a força, porque não pretende conquistar, por assim dizer, de fora, ao contrário, deseja ser acolhido pelo homem em liberdade; Deus faz-se Menino inerme para vencer a soberba, a violência e a ambição de posse do homem. Em Jesus, Deus assumiu esta condição pobre e desarmante para nos vencer com o amor e nos guiar à nossa verdadeira identidade. Não devemos esquecer que o título maior de Jesus Cristo é precisamente o de "Filho", Filho de Deus; a dignidade divina é indicada com uma palavra, que prolonga a referência à humilde condição da manjedoura de Belém, mesmo correspondendo de modo único à sua divindade, que é a divindade do "Filho".

A sua condição de Menino indica-nos, além disso, como podemos encontrar Deus e gozar da Sua presença. É à luz do Natal que podemos compreender as palavras de Jesus: "Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no reino dos céus" (Mt 18,3). Quem não compreendeu o mistério do Natal, não entendeu o elemento decisivo da existência cristã. Quem não acolhe Jesus com coração de criança, não pode entrar no reino dos céus: foi isto que Francisco quis recordar à cristandade do seu tempo e de todos os tempos, até hoje. Rezemos ao Pai para que conceda ao nosso coração aquela simplicidade que reconhece no Menino o Senhor, precisamente como fez Francisco em Greccio. Então, poderia acontecer também a nós quanto Tomás de Celano – referindo-se à experiência dos pastores na Noite Santa (cf. Lc 2,20) – narra a propósito de quantos estiveram presentes no acontecimento de Greccio: "Cada um regressou à própria casa repleto de alegria inefável" (Vida primeira, op. cit., n. 86, p. 479).

São estes os votos que formulo com afecto a todos vós, às vossas famílias e a quantos vos são queridos. Bom Natal a todos vós!



Saudação

Amados peregrinos de língua portuguesa, a todos desejo um Santo Natal, portador das consolações e graças do Deus Menino, a quem vos encomendo ao dar-vos a minha Bênção.






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