Audiências 2005-2013 6067

6 de Junho de 2007: São Cipriano

6067
Queridos irmãos e irmãs!

Na série das nossas catequeses sobre as grandes personalidades da Igreja antiga, chegamos hoje a um excelente Bispo africano do século III, São Cipriano, que "foi o primeiro bispo que na África conseguiu a coroa do martírio". Em primeiro lugar a sua fama como afirma o diácono Pôncio, o primeiro que escreveu a sua vida está relacionada com a produção literária e com a actividade pastoral dos treze anos que decorrem entre a sua conversão e o martírio (cf. Vida 19, 1; 1, 1).

Nascido em Cartagena numa família pagã rica, depois de uma juventude dissipada Cipriano converte-se ao cristianismo com 35 anos. Ele mesmo narra o seu percurso espiritual: "Quando ainda jazia como que numa noite escura", escreve alguns meses depois do baptismo,"parecia-me extremamente difícil e cansativo realizar o que a misericórdia de Deus me propunha... Estava ligado a muitíssimos erros da minha vida passada, e não pensava que me podia libertar, porque cedia aos vícios e favorecia os meus maus desejos... Mas depois, com a ajuda da água regeneradora, foi lavada a miséria da minha vida precedente; uma luz soberana difundiu-se no meu coração; um segundo nascimento restaurou-me num ser totalmente novo. De modo maravilhoso começou então a dissipar-se qualquer dúvida... Compreendia claramente que era terreno o que antes vivia em mim, na escravidão dos vícios da carne, e era ao contrário divino e celeste o que o Espírito Santo já tinha gerado em mim" (A Donato, 3-4).

Logo depois da conversão, Cipriano não sem invejas nem resistências é eleito para o cargo sacerdotal e para a dignidade de Bispo. No breve período do seu episcopado enfrenta as primeiras duas perseguições sancionadas por um edito imperial, o de Décio (250) e o de Valeriano (257-258). Depois da perseguição particularmente cruel de Décio, o Bispo teve que se comprometer corajosamente para reconduzir a comunidade cristã à disciplina. De facto, muitos fiéis tinham abjurado, ou contudo não tinham tido um comportamento correcto diante da prova. Eram os chamados lapsi isto é "que caíram" que desejavam ardentemente reentrar na comunidade. O debate sobre a sua readmissão chegou a dividir os cristãos de Cartagena em laxistas e rigorosos. A estas dificuldades é necessário acrescentar uma grave peste que assolou a África e colocou interrogações teológicas angustiantes quer no interior da comunidade quer em relação aos pagãos.

Por fim, é necessário recordar a controvérsia entre Cipriano e o Bispo de Roma, Estêvão, sobre a validez do baptismo administrado aos pagãos por cristãos hereges.

Nestas circunstâncias realmente difíceis Cipriano revelou dotes eleitos de governo: foi severo, mas não inflexível com os lapsi, concedendo-lhes a possibilidade de perdão depois de uma penitência exemplar; perante Roma foi firme na defesa das tradições sadias da Igreja africana; foi muito humano e repleto do mais autêntico espírito evangélico ao exortar os cristãos a ajudar fraternalmente os pagãos durante a peste; soube manter a medida justa ao recordar aos fiéis demasiado receosos de perder a vida e os bens terrenos que para eles a verdadeira vida e os verdadeiros bens não são deste mundo; foi irremovível ao combater os costumes corruptos e os pecados que devastavam a vida moral, sobretudo a avareza. "Passava assim os seus dias", narra a este ponto o diácono Pôncio, "quando eis que por ordem do pró-cônsul chegou improvisamente à sua cidade o chefe da polícia" (Vida, 15, 1). Naquele dia o santo bispo foi preso, e depois de um breve interrogatório enfrentou corajosamente o martírio no meio do seu povo.

Cipriano compôs numerosos tratados e cartas, sempre ligados ao seu ministério pastoral. Pouco inclinado para a especulação teológica, escrevia sobretudo para a edificação da comunidade e para o bom comportamento dos fiéis.

De facto, a Igreja é o tema que lhe é mais querido. Distingue entre Igreja visível, hierarquia, e Igreja invisível, mística, mas afirma com vigor que a Igreja é uma só, fundada sobre Pedro. Não se cansa de repetir que "quem abandona a cátedra de Pedro, sobre a qual está fundada a Igreja, ilude-se de permanecer na Igreja" (A unidade da Igreja católica, 4). Cipriano sabe bem, e formulou-o com palavras fortes, que "fora da Igreja não há salvação" (Epístola 4, 4 e 73, 21), e que "não pode ter Deus como pai quem não tem a Igreja como mãe" (A unidade da Igreja católica, 4).

Característica irrenunciável da Igreja é a unidade, simbolizada pela túnica de Cristo sem costuras (ibid., 7): unidade da qual diz que encontra o seu fundamento em Pedro (ibid., 4) e a sua realização perfeita na Eucaristia (Epístola 63, 13). "Há um só Deus, um só Cristo", admoesta Cipriano, "uma só é a Igreja, uma só a fé, um só povo cristão, estreitado em firme unidade pelo cimento da concórdia: e não se pode separar o que é uno por natureza" (A unidade da Igreja católica, 23).

Falámos do seu pensamento em relação à Igreja, mas não se deve descuidar, por fim, o ensinamento de Cipriano sobre a oração. Eu amo particularmente o seu livro sobre "o Pai Nosso", que muito me ajudou a compreender melhor e a recitar melhor a "oração do Senhor": Cipriano ensina como precisamente no "Pai Nosso" é proporcionado ao cristão o modo correcto de rezar; e ressalta que esta oração está no plural, "para que quem reza não reze unicamente para si. A nossa oração escreve é pública e comunitária e, quando nós rezamos, não rezamos por um só, mas por todo o povo, porque com todo o povo somos uma coisa só" (A adoração do Senhor 8). Assim oração pessoal e litúrgica mostram-se robustamente ligadas entre si. A sua unidade provém do facto que elas respondem à mesma Palavra de Deus. O cristão não diz "meu Pai", mas "Pai nosso", até no segredo do quarto fechado, porque sabe que em cada lugar, em cada circunstância, ele é membro de um mesmo Corpo.

"Portanto, rezemos irmãos amadíssimos", escreve o Bispo de Cartagena, "como Deus, o Mestre, nos ensinou. É oração confidencial e íntima rezar a Deus com o que é seu, elevar aos seus ouvidos a oração de Cristo. Reconheça o Pai as palavras de seu Filho, quando dizemos uma oração: aquele que habita interiormente no ânimo esteja presente também na voz... Quando se reza, além disso, adopte-se um modo de falar e de rezar que, com disciplina, mantenha a calma e a discrição. Consideremos que estamos diante do olhar de Deus. É preciso ser agradáveis aos olhos divinos tanto com a atitude do corpo como com a tonalidade da voz... E quando nos reunimos juntamente com os irmãos e celebramos os sacrifícios divinos com o sacerdote de Deus, devemos recordar-nos do temor reverencial e da disciplina, não dispersar as nossas orações com vozes descompostas, nem fazer com tumultuosa verbosidade um pedido que deve ser recomendado a Deus com moderação, porque Deus ouve não a voz, mas o coração (non vocis sed cordis auditor est)" (3-4). Trata-se de palavras que permanecem válidas também hoje e nos ajudam a celebrar bem a Santa Liturgia.

Em conclusão, Cipriano coloca-se nas origens daquela fecunda tradição teológico-espiritual que vê no "coração" o lugar privilegiado da oração. Segundo a Bíblia e os Padres, de facto, o coração é o íntimo do homem, o lugar onde habita Deus. Nele se realiza aquele encontro no qual Deus fala ao homem, e o homem escuta Deus; o homem fala a Deus, e Deus ouve o homem: tudo isto através da única Palavra divina. Precisamente neste sentido fazendo eco a Cipriano Smaragdo, abade de São Miguel em Mosa nos primeiros anos do século IX, afirma que a oração "é obra do coração, dos lábios, porque Deus não vê as palavras, mas o coração do orante"(O Diadema dos monges, 1).

Caríssimos, façamos nosso este "coração em escuta", do qual nos falam a Bíblia (cf.
1R 3,9) e os Padres: temos disso tanta necessidade! Só assim poderemos experimentar em plenitude que Deus é o nosso Pai, e que a Igreja, a santa Esposa de Cristo, é verdadeiramente a nossa Mãe.
* * *


Saudações

Uma saudação especial aos peregrinos vindos de Portugal, especialmente o grupo de jovens do Arciprestado de Carrazeda de Ansiães, e do Brasil um grupo de visitantes. Que a visita à cidade onde foram martirizados os Apóstolos São Pedro e São Paulo reavive a vossa fé em Cristo Jesus, que por amor nos redimiu e nos chamou a ser filhos de Deus e a viver como irmãos na justiça e na paz. A todos, de coração, dou a minha Bênção, que faço extensiva aos vossos familiares e amigos.

Apelo aos Chefes de Estado e de Governo do "G-8"

Teve início hoje em Heiligendamm, Alemanha, sob a presidência da República Federal da Alemanha, a Cimeira Anual dos Chefes de Estado e de Governo do G-8 isto é, os sete Países mais industrializados do mundo e a Federação Russa. No passado dia 16 de Dezembro tive a ocasião de escrever à Chanceler Angela Merkel agradecendo-lhe, em nome da Igreja católica, a decisão de conservar na ordem do dia do G-8 o tema da pobreza no mundo, com particular atenção à África. A Dr.ª Merkel respondeu-me gentilmente a 2 de Fevereiro passado, garantindo-me o compromisso do G-8 na consecução dos objectivos do milénio. Agora gostaria de dirigir um novo apelo aos Chefes reunidos em Heiligendamm, para que não fracassem as promessas de aumentar substancialmente a ajuda ao desenvolvimento, em favor das populações mais necessitadas, sobretudo das do Continente Africano.

Neste sentido, merece especial atenção o segundo grande objectivo do milénio: "a consecução da educação primária para todos; a certeza de que todos os jovens completem o curso da escola primária até 2015". Este objectivo é parte integral da consecução de todos os outros objectivos do milénio; é garantia da consolidação dos objectivos alcançados; é ponto de partida dos processos autónomos e sustentáveis de desenvolvimento.

Não se deve esquecer que a Igreja católica sempre esteve na primeira linha no campo da educação, chegando, particularmente aos países mais pobres, aonde as estruturas estatais muitas vezes não conseguem chegar. Outras Igrejas cristãs, grupos religiosos e organizações da sociedade civil partilham este compromisso educativo. É uma realidade que, em aplicação do princípio de subsidiariedade, os Governos e as Organizações internacionais estão chamados a reconhecer, a valorizar e a apoiar, também mediante a distribuição de contribuições financeiras adequadas. Esperemos que se trabalhe seriamente para a consecução destes objectivos.



13 de Junho de 2007: Eusébio, Bispo de Cesareia

13067
Queridos irmãos e irmãs!

Na história do cristianismo antigo é fundamental a distinção entre os primeiros três séculos e os sucessivos ao Concílio de Niceia de 325, o primeiro ecuménico. Quase como "ponto de união" entre os dois períodos encontram-se a "mudança constantinopolitana" e a paz da Igreja, assim como a figura de Eusébio, Bispo de Cesareia na Palestina. Ele foi o representante mais qualificado da cultura cristã do seu tempo em contextos muito variados, da teologia à exegese, da história à erudição. Eusébio é conhecido sobretudo como o primeiro historiador do cristianismo, mas foi também o maior filólogo da Igreja antiga.

Em Cesareia, onde provavelmente se deve situar por volta de 260 o nascimento de Eusébio, Orígenes tinha-se refugiado provindo de Alexandria, e ali fundara uma escola e uma grandiosa biblioteca. Precisamente nestes livros se formara, alguns decénios mais tarde, o jovem Eusébio. Em 325, como Bispo de Cesareia, participou com um papel de protagonista no Concílio de Niceia.

Subscreveu o Credo e a afirmação da plena divindade do Filho de Deus, por isso definido "da mesma substância" do Pai (homooúsios tõ Patrí). É praticamente o mesmo Credo que nós recitamos todos os domingos na Santa Liturgia. Sincero admirador de Constantino, que tinha dado a paz à Igreja, Eusébio por sua vez o estimou e considerou. Celebrou o imperador, não só nas suas obras, mas também com discursos oficiais, pronunciados no vigésimo e trigésimo aniversário da sua ascensão ao trono, e depois da morte, que se verificou em 337. Dois ou três anos mais tarde faleceu também Eusébio.

Estudioso incansável, nos seus numerosos escritos Eusébio propõe-se reflectir e analisar três séculos de cristianismo, três séculos vividos sob a perseguição, haurindo amplamente das fontes cristãs e pagãs conservadas sobretudo na grande biblioteca de Cesareia. Assim, não obstante a importância objectiva das suas obras apologéticas, exegéticas e doutrinais, a fama imperecível de Eusébio permanece ligada em primeiro lugar aos dez livros da sua História Eclesiástica. Foi o primeiro que escreveu uma história da Igreja, que permanece fundamental graças às fontes colocadas por Eusébio à nossa disposição para sempre. Com esta História ele conseguiu salvar de esquecimento certo numerosos acontecimentos, personagens e obras literárias da Igreja antiga. Portanto, trata-se de uma fonte primária para o conhecimento dos primeiros séculos do cristianismo.

Podemos perguntar como estruturou ele e com que intenções redigiu esta nova obra. No início do primeiro livro o historiador elenca pontualmente os temas que deseja tratar na sua obra: "Propus-me pôr por escrito as sucessões dos santos apóstolos e os tempos transcorridos, a partir dos do nosso Salvador até nós; todas as coisas grandiosas que se diz que foram realizadas durante a história da Igreja; todos os que dirigiram e orientaram excelentemente as dioceses mais ilustres; os que, em cada geração foram mensageiros da Palavra divina com a palavra ou com os escritos; e quais foram, quantos e em que período de tempo os que por desejo de novidade, depois de terem caído ao máximo no erro, se tornaram intérpretes e promotores de uma falsa doutrina, e como lobos cruéis devastaram ferozmente o rebanho de Cristo; ...e com quantos e quais meios e em que tempos foi combatida por parte dos pagãos a Palavra divina; e os homens grandes que, para a defender, passaram através de duras provas de sangue e de torturas; e finalmente os testemunhos do nosso tempo, e a misericórdia e a benevolência do nosso Salvador para com todos nós" (1, 1, 1-2). Desta forma Eusébio abraça diversos sectores: a sucessão dos Apóstolos como coluna da Igreja, a difusão da mensagem, os erros, depois as perseguições por parte dos pagãos e os grandes testemunhos que são a luz desta História. Em tudo isto transparecem para ele a misericórdia e a benevolência do Salvador. Eusébio inaugura assim a historiografia eclesiástica, levando a sua narração até 324, ano em que Constantino, depois da derrota de Licínio, foi aclamado único imperador de Roma. Estamos no ano anterior ao grande Concílio de Niceia que depois oferece a "suma" de quanto a Igreja doutrinal, moral e também juridicamente tinha aprendido nestes trezentos anos.

A citação que extraímos do primeiro livro da História Eclesiástica contém uma repetição certamente intencional. Três vezes no espaço de poucas linhas se repete o título cristológico de Salvador, e se faz referência explícita à "sua misericórdia" e à "sua benevolência". Podemos recolher assim a perspectiva fundamental da historiografia eusebiana: a sua é uma história "cristocêntrica", na qual se revela progressivamente o mistério do amor de Deus pelos homens.

Com genuíno enlevo, Eusébio reconhece "que junto de todos os homens do mundo inteiro só Jesus é professado, confessado, reconhecido Cristo [isto é Messias e Salvador do mundo], que é recordado com este nome quer pelos gregos quer pelos bárbaros, e ainda hoje é honrado pelos seus discípulos espalhados por todo o mundo como um rei, admirado mais que um profeta, glorificado como verdadeiro e único sacerdote de Deus; e mais que tudo isto, como Logos de Deus preexistente e gerado antes de todos os tempos, ele recebeu do Pai honra digna de veneração, e é adorado como Deus. O mais extraordinário é que todos os que lhe estamos consagrados o celebrem não só com as vozes e o som das palavras, mas com todas as disposições do coração, de modo que ponhamos diante da nossa própria vida o testemunho a ele prestado" (1, 3, 19-20). Sobressai assim em primeiro plano outra característica, que permanecerá constante na antiga historiografia eclesiástica: é "a intenção moral" que preside à narração. A análise histórica nunca é fim em si mesma; não é feita só para conhecer o passado; antes, ela tem por finalidade decididamente a conversão, e um autêntico testemunho de vida cristã por parte dos fiéis. É uma guia para nós próprios.

Desta forma Eusébio interpela vivazmente os crentes de todos os tempos em relação ao seu modo de abordar as vicissitudes da história, e da Igreja em particular. Ele interpela também a nós: qual é a nossa atitude em relação às vicissitudes da Igreja? É a atitude de quem se interessa por uma simples curiosidade, talvez procurando o que é sensacional e escandaloso a qualquer preço? Ou é a atitude cheia de amor, e aberta ao mistério, de quem sabe por fé que pode encontrar na história da Igreja os sinais do amor de Deus e as grandes obras da salvação por ele realizadas? Se for esta a nossa atitude, não podemos deixar de nos sentir estimulados a dar uma resposta mais coerente e generosa, a um testemunho mais cristão de vida, para deixar os sinais do amor de Deus também às gerações futuras.

"Há um mistério", não se cansava de repetir aquele eminente estudioso dos Padres que foi o Cardeal Jean Daniélou: "Há um conteúdo escondido na história... O mistério é o das obras de Deus, que constituem no tempo a realidade autêntica, escondida por detrás das aparências... Mas esta história que Deus realiza para o homem, não a realiza sem ele. Deter-se na contemplação das "grandes coisas" de Deus significaria ver só um aspecto das coisas. Perante elas está a resposta dos homens" (Ensaio sobre o mistério da história, ed. it., Brescia 1963, p. 182). A tantos séculos de distância, também hoje Eusébio de Cesareia convida os crentes, convida a nós, a admirar-nos, a contemplar na história as grandes obras de Deus para a salvação dos homens. E com igual energia ele nos convida à conversão da vida. De facto, face a um Deus que nos amou deste modo, não podemos permanecer inertes. A solicitação própria do amor é que toda a vida seja orientada para a imitação do Amado. Portanto, façamos o possível para deixar na nossa vida um vestígio transparente do amor de Deus.
* * *


Saudação

Amados peregrinos de língua portuguesa, uma saudação afectuosa a todos os presentes, nomeadamente ao grupo vindo de Lisboa cidade-berço de Santo António, cuja festa hoje celebramos. A vossa vinda a Roma vos confirme na fé santa e segura, que nele ardia e iluminava, fazendo aparecer a Igreja aos olhos dos vossos familiares e amigos como veículo da salvação de Cristo. Por Ele e n'Ele, a todos abençoo.


20 de Junho de 2007: Santo Atanásio

20067
Queridos irmãos e irmãs!

Continuando a nossa retrospectiva dos grandes Mestres da Igreja antiga, queremos dirigir hoje a nossa atenção a Santo Atanásio de Alexandria. Este autêntico protagonista da tradição cristã, poucos anos depois da sua morte, foi celebrado como "a coluna da Igreja" pelo grande teólogo e Bispo de Constantinopla Gregório Nazianzeno (Discursos 21, 26), e foi sempre considerado como um modelo de ortodoxia, tanto no Oriente como no Ocidente. Portanto, não foi por acaso que Gian Lorenzo Bernini colocou uma sua estátua entre a dos quatro santos Doutores da Igreja oriental e ocidental juntamente com Ambrósio, João Crisóstomo e Agostinho que na maravilhosa abside da Basílica vaticana circundam a Cátedra de São Pedro.

Atanásio foi sem dúvida um dos Padres da Igreja antiga mais importantes e venerados. Mas sobretudo este grande santo é o apaixonado teólogo da encarnação do Logos, o Verbo de Deus, que como diz o prólogo do quarto Evangelho "se fez carne e veio habitar entre nós" (
Jn 1,14).

Precisamente por este motivo Atanásio foi também o mais importante e tenaz adversário da heresia ariana, que então ameaçava a fé em Cristo, reduzido a uma criatura "intermediária" entre Deus e o homem, segundo uma tendência recorrente na história e que vemos concretizada de diversas formas também hoje. Nascido provavelmente em Alexandria, no Egipto, por volta do ano 300, Atanásio recebeu uma boa educação antes de se tornar diácono e secretário do Bispo da metrópole egípcia, Alexandre. Estreito colaborador do seu Bispo, o jovem eclesiástico participou com ele no Concílio de Niceia, o primeiro de carácter ecuménico, convocado pelo imperador Constantino em Maio de 325 para garantir a unidade da Igreja. Os Padres nicenos puderam assim enfrentar várias questões, e principalmente o grave problema causado alguns anos antes pela pregação do presbítero alexandrino Ário.

Ele, com a sua teoria, ameaçava a fé autêntica em Cristo, declarando que o Logos não era verdadeiro Deus, mas um Deus criado, um ser "intermediário" entre Deus e o homem e assim o verdadeiro Deus permanecia sempre inacessível para nós. Os Bispos reunidos em Niceia responderam preparando e fixando o "Símbolo de fé" que, completado mais tarde pelo primeiro Concílio de Constantinopla, permaneceu na tradição das diversas confissões cristãs e na liturgia como o Credo niceno-constantinopolitano. Neste texto fundamental que expressa a fé da Igreja indivisa, e que recitamos também hoje, todos os domingos, na Celebração eucarística encontra-se a palavra grega homooúsios, em latim consubstantialis: ele pretende indicar que o Filho, o logos, é "da mesma substância do Pai, é Deus de Deus, é a sua substância, e assim é posta em realce a plena divindade do Filho, que tinha sido negada pelos arianos.

Tendo falecido o Bispo Alexandre, Atanásio tornou-se, em 328, seu sucessor como Bispo de Alexandria, e logo depois demonstrou-se decidido a recusar qualquer compromisso em relação às teorias arianas condenadas pelo Concílio niceno. A sua intransigência, tenaz e por vezes muito dura, mesmo se necessária, contra quantos se tinham oposto à sua eleição episcopal e sobretudo contra os adversários do Símbolo niceno, atraiu a implacável hostilidade dos arianos e dos filo-arianos. Apesar do inequívoco êxito do Concílio, que tinha afirmado com clareza que o Filho é da mesma substância do Pai, pouco depois destas ideias erradas voltaram a prevalecer nesta situação até Ário foi reabilitado e foram defendidas por motivos políticos pelo próprio imperador Constantino e depois pelo seu filho Constâncio II. Ele, aliás, que não se interessava tanto pela verdade teológica como pela unidade do Império e dos seus problemas políticos, pretendia politizar a fé, tornando-a mais acessível segundo a sua opinião a todos os seus súbditos no Império.

A crise ariana, que se pensava estar resolvida em Niceia, continuou por decénios, com vicissitudes difíceis e divisões dolorosas na Igreja. E por cinco vezes durante um trinténio, entre 336 e 366 Atanásio foi obrigado a abandonar a sua cidade, transcorrendo 17 anos no exílio e sofrendo pela fé. Mas durante as suas forçadas ausências de Alexandria, o Bispo teve a oportunidade de defender e difundir no Ocidente, primeiro em Trier e depois em Roma, a fé nicena e também os ideais do monaquismo, abraçados no Egipto pelo grande eremita Antão com uma opção de vida à qual Atanásio sempre esteve próximo. Santo Antão, com a sua força espiritual, era a pessoa mais importante na defesa da fé de Santo Atanásio. Insediado de novo e definitivamente na sua sede, o Bispo de Alexandria pôde dedicar-se à pacificação religiosa e à reorganização das comunidades cristãs. Faleceu a 2 de Maio de 373, dia em que celebramos a sua memória litúrgica.

A obra doutrinal mais famosa do santo Bispo alexandrino é o tratado Sobre a encarnação do Verbo, o Logos divino que se fez carne tornando-se como nós para a nossa salvação. Atanásio diz nesta obra, com uma afirmação que se tornou justamente célebre, que o Verbo de Deus "se fez homem para que nos tornássemos Deus; ele fez-se visível no corpo para que tivéssemos uma ideia do Pai invisível, e ele próprio suportou a violência dos homens para que nós herdássemos a incorruptibilidade" (54, 3). De facto, com a sua ressurreição o Senhor fez desaparecer a morte como se fosse "palha no fogo" (8, 4). A ideia fundamental de toda a luta teológica de Santo Atanásio era precisamente a de que Deus é acessível. Não é um Deus secundário, é o Deus verdadeiro, e através da nossa comunhão com Cristo podemos unir-nos realmente a Deus. Ele tornou-se realmente "Deus connosco".

Entre as obras deste grande Padre da Igreja que em boa parte permanecem ligadas às vicissitudes da crise ariana recordamos depois as quatro cartas que ele enviou ao amigo Serapião, Bispo de Thmuis, sobre a divindade do Espírito Santo, que foi afirmada com determinação, e cerca de trinta cartas "festivas", dirigidas no início de cada ano às Igrejas e aos mosteiros do Egipto para indicar a data da festa de Páscoa, mas sobretudo para garantir os vínculos entre os fiéis, fortalecendo a sua fé e preparando-os para essa grande solenidade.

Por fim Atanásio é também autor de textos meditativos sobre os Salmos, depois muito difundidos e sobretudo de uma obra que constitui o best seller da antiga literatura cristã: a Vida de Antão, isto é, a biografia do abade Santo Antão, escrita pouco depois da morte deste santo, precisamente enquanto o Bispo de Alexandria, exilado, vivia com os monges do deserto egípcio. Atanásio foi amigo do grande eremita, a ponto que recebeu uma das duas peles de ovelha deixadas por Antão como sua herança, juntamente com a capa que o próprio Bispo de Alexandria lhe tinha oferecido. Tendo-se tornado depressa muito popular, traduzida quase imediatamente em latim por duas vezes e depois em diversas línguas orientais, a biografia exemplar desta figura querida à tradição contribuiu muito para a difusão do monaquismo, no Oriente e no Ocidente.

Não por acaso a literatura deste texto, em Trier, está no centro de uma emocionante narração da conversão de dois funcionários imperiais, que Agostinho coloca nas Confissões (VIII, 6, 15) como premissa da sua própria conversão. De resto, o próprio Atanásio mostra ter uma consciência clara da influência que a figura exemplar de Antão podia ter sobre o povo cristão. De facto escreve na conclusão desta obra: "Que fosse conhecido em toda a parte, por todos admirado e desejado, até por quantos não o tinham visto, é um sinal da sua virtude e da sua alma amiga de Deus. De facto, Antão não é conhecido pelos escritos nem por uma sabedoria profana nem por qualquer capacidade, mas só pela sua piedade em relação a Deus. E ninguém poderia negar que isto é um dom de Deus. De facto, como se teria ouvido falar na Espanha e na Gália, em Roma e em África deste homem, que vivia retirado entre os montes, se o não tivesse dado a conhecer em toda a parte o próprio Deus, como ele faz com quantos lhe pertencem, e como tinha anunciado a Antão desde o princípio? E também se estes agem no segredo e desejam permanecer escondidos, o Senhor mostra-os a todos como um lampadário, para que quantos ouvem falar deles saibam que é possível seguir os mandamentos e se sintam encorajados a percorrer o caminhoda virtude" (Vida de Antão 93, 5-6).

Sim, irmãos e irmãs! Temos tantos motivos de gratidão para com Santo Atanásio. A sua vida, como a de Antão e de muitos outros santos, mostra-nos que "quem caminha para Deus não se afasta dos homens, antes, pelo contrário, torna-se-lhes verdadeiramente vizinhos" (Deus caritas est ).

Saudações

Caríssimos amigos de língua portuguesa!

Saúdo e desejo a todos felicidades, paz e graça no Senhor! De modo particular saúdo os peregrinos vindos de Portugal e do Brasil: sede bem-vindos! Que a luz de Cristo anime sempre vossa fé, esperança e caridade, numa vida digna, cristã e repleta de alegrias. E dou-vos de coração, extensiva aos vossos familiares e pessoas amigas, a minha Bênção.

Apelo

Celebra-se hoje o Dia Mundial dos Refugiados, promovido pelas Nações Unidas para que não falte na opinião pública a atenção a quantos foram obrigados a fugir dos seus Países após reais perigos de vida. Acolher os refugiados e dar-lhes hospitalidade é para todos um gesto obrigatório de solidariedade humana, para que eles não se sintam isolados por causa da intolerância e do desinteresse. Além disso, para os cristãos é uma forma concreta de manifestar o amor evangélico. Desejo de coração que a estes nossos irmãos e irmãs duramente provados pelo sofrimento sejam garantidos o asilo e o reconhecimento dos seus direitos, e convido os responsáveis das nações a oferecer protecção a quantos se encontram em situações tão delicadas de necessidade.


27 de Junho de 2007: São Cirilo de Jerusalém

27067
Estimados irmãos e irmãs!

A nossa atenção concentra-se hoje sobre São Cirilo de Jerusalém. A sua vida representa o enlace de duas dimensões: por um lado, a solicitude pastoral e, por outro, o envolvimento contra a sua vontade nas animadas controvérsias que atormentavam então a Igreja do Oriente. Tendo nascido por volta de 315 em Jerusalém ou arredores, Cirilo recebeu uma óptima formação literária; foi esta a base da sua cultura eclesiástica, centrada no estudo da Bíblia. Ordenado Presbítero pelo Bispo Máximo, quando este faleceu ou foi deposto, em 348 foi ordenado Bispo por Acácio, influente metropolita de Cesareia da Palestina, filoariano, convencido de ter nele um aliado. Por isso, foi suspeitado de ter obtido a nomeação episcopal mediante concessões ao arianismo.

Na realidade, muito cedo Cirilo se confrontou com Acácio não só a nível doutrinal, mas também a nível jurisdicional, porque Cirilo reivindicava a autonomia da própria sede em relação àquela metropolitana de Cesareia. No espaço de cerca de vinte anos, Cirilo conheceu três exílios: o primeiro em 357, com prévia disposição por parte de um Sínodo de Jerusalém, seguido em 360 por um segundo exílio por obra de Acácio, e por fim um terceiro, o mais longo durou onze anos em 367 por iniciativa do imperador filoariano Valente. Só em 378, depois da morte do imperador, Cirilo pôde retomar posse definitiva da sua sede, instaurando entre os fiéis a unidade e a paz.

Em favor da sua ortodoxia, posta em questão por algumas fontes da época, militam outras fontes igualmente antigas. Entre elas a mais autorizada é a carta sinodal de 382, depois do segundo Concílio ecuménico de Constantinopla (381), no qual Cirilo tinha participado com um papel qualificado. Nessa carta, enviada ao Pontífice romano, os Bispos orientais reconhecem oficialmente a mais absoluta ortodoxia de Cirilo, a legitimidade da sua ordenação episcopal e os méritos do seu serviço pastoral, que a morte concluirá em 387.

Dele conservamos vinte e quatro célebres catequeses, que ele expôs como Bispo por volta de 350. Introduzidas por uma Procatechesi de acolhimento, as primeiras dezoito delas são dirigidas aos catecúmenos ou iluminandos (photizomenoi); foram feitas na Basílica do Santo Sepulcro. As primeiras (1-5) falam cada uma delas, respectivamente, das disposições prévias ao Baptismo, da conversão dos costumes pagãos, do sacramento do Baptismo, das dez verdades dogmáticas contidas no Credo ou Símbolo da fé. As sucessivas (6-18) constituem uma "catequese contínua" sobre o Símbolo de Jerusalém, em chave antiariana. Das últimas cinco (19-23), chamadas "mistagógicas", as primeiras duas desenvolvem um comentário aos ritos do Baptismo, as últimas três falam da crisma, sobre o Corpo e Sangue de Cristo e sobre a liturgia eucarística. Nela está incluída a explicação do Pai-Nosso (Oratio dominica): ela funda um caminho de iniciação à oração, que se desenvolve paralelamente com a iniciação nos três sacramentos do Baptismo, da Crisma e da Eucaristia.

A base da instrução sobre a fé cristã desenvolvia-se também em função polémica contra pagãos, judeus-cristãos e maniqueístas. A argumentação era fundada na actuação das promessas do Antigo Testamento, numa linguagem rica de imagens. A catequese era um momento importante, inserido no amplo contexto de toda a vida, em particular a litúrgica, da comunidade cristã, em cujo seio materno acontecia a gestação do futuro fiel, acompanhada pela oração e pelo testemunho dos irmãos. No seu conjunto, as homilias de Cirilo constituem uma catequese sistemática sobre o renascimento do cristianismo através do Baptismo. Ao catecúmeno ele diz: "Caíste na rede da Igreja (cf.
Mt 13,47). Deixa-te, portanto, apanhar vivo; não fujas, porque é Jesus que te prende no seu anzol, para te dar não a morte mas a ressurreição depois da morte. De facto, deves morrer e ressurgir (cf. Rm 6,11 Rm 6,14)... Morres para o pecado, e vives para a justiça a partir de hoje" (Procatechesi 5).

Sob o ponto de vista doutrinal, Cirilo comenta o Símbolo de Jerusalém com o recurso à tipologia das Escrituras, numa relação "sinfónica" entre os dois Testamentos, chegando a Cristo, centro do universo. A tipologia será incisivamente descrita por Agostinho de Hipona: "O Antigo Testamento é o véu do Novo Testamento, e no Novo Testamento manifesta-se o Antigo" (De catechizandis rudibus 4, 8). No que diz respeito à catequese moral, ela está ancorada em profunda unidade com a catequese doutrinal: o dogma desce progressivamente nas almas, as quais são assim solicitadas a transformar os comportamentos pagãos com base na nova vida em Cristo, dom do Baptismo. A catequese "mistagógica", por fim, marcava o vértice da instrução que Cirilo dava já não aos catecúmenos, mas aos neobaptizados ou neófitos durante a semana pascal. Ela introduzia-os na descoberta, sob os ritos baptismais da Vigília pascal, dos mistérios nele contidos e ainda não revelados. Iluminados pela luz de uma fé mais profunda em virtude do Baptismo, os neófitos estavam finalmente em condições de os compreender melhor, tendo já celebrado os seus ritos.

Em particular, com os neófitos de origem grega Cirilo contava com a faculdade visual, que lhe era congenial. Tratava-se da passagem do rito ao mistério, que valorizava o efeito psicológico da surpresa e a experiência vivida na noite pascal. Eis um texto que explica o mistério do Baptismo: "Por três vezes fostes imersos na água e para cada uma das três fostes imersos, para simbolizar os três dias da sepultura de Cristo, isto é, imitando com este rito o nosso Salvador, que passou três dias e três noites no seio da terra (cf. Mt 12,40). Com a primeira emersão da água celebrastes a recordação do primeiro dia passado por Cristo no sepulcro, como com a primeira imersão confessastes a sua primeira noite passada no sepulcro, assim como quem está na noite não vê, e quem está no dia goza da luz, assim também vós. Enquanto antes estáveis imersos na noite e nada víeis, ao contrário, reemergindo encontrastes-vos em pleno dia. Mistério da morte e do nascimento, esta água de salvação foi para vós túmulo e mãe... Para vós... o tempo para morrer coincidiu com o tempo para nascer: um só e mesmo tempo realizou ambos os acontecimentos" (Segunda Catequese Mistagógica 4).

O mistério que se deve desvendar é o desígnio de Deus, que se realiza através das acções salvíficas de Cristo na Igreja. Por sua vez, a dimensão mistagógica está acompanhada pela dos símbolos, que expressam a vivência espiritual que eles fazem "explodir". Assim a catequese de Cirilo, com base nas três componentes descritas doutrinal, moral e, por fim, mistagógica , resulta uma catequese global no Espírito. A dimensão mistagógica actua a síntese das duas primeiras, orientando-as para a celebração sacramental, na qual se realiza a salvação do homem todo.

Trata-se, em definitiva, de uma catequese integral, que envolvendo corpo, alma e espírito permanece emblemática também para a formação catequética dos cristãos de hoje.
* * *


Saudações

Amados peregrinos de língua portuguesa, uma cordial saudação de boas-vindas para todos, nomeadamente para o grupo de estudantes de Coimbra. Viestes a Roma para revigorar a vossa fé cristã e os vínculos de amor e obediência à Igreja, que Jesus quis fundar sobre Pedro. Que as vossas vidas, fortes na fé, sempre possam irradiar o amor de Deus, e as suas bênçãos desçam abundantes sobre vós e vossas famílias!



Audiências 2005-2013 6067