Audiências 2005-2013 23108

23 de Janeiro de 2008: Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos

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Queridos irmãos e irmãs

Estamos a celebrar a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, que se concluirá sexta-feira próxima, 25 de Janeiro, festa da Conversão do Apóstolo Paulo. Os cristãos das várias Igrejas e Comunidades eclesiais unem-se nestes dias numa invocação coral para pedir ao Senhor Jesus o restabelecimento da plena unidade entre todos os seus discípulos. Trata-se de uma imploração concorde, feita com uma só alma e com um só coração, respondendo ao próprio anseio do Redentor, que na última Ceia se dirigiu ao Pai com estas palavras: "Não rogo somente por eles, mas também por aqueles que hão-de crer em mim, por meio da sua palavra, para que todos sejam um só, como Tu ó Pai estás em mim e Eu em ti; para que assim eles estejam em Nós e o mundo creia que Tu me enviaste" (
Jn 17,20-21). Pedindo a graça da unidade, os cristãos unem-se à própria oração de Cristo e comprometem-se em agir activamente para que toda a humanidade O receba e reconheça como o único Pastor e Senhor, e assim possa experimentar a alegria do seu amor.

Este ano, a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos adquire um valor e um significado particulares, porque recorda os cem anos desde o seu início. Quando foi começada, tratou-se na realidade de uma intuição verdadeiramente fecunda. Aconteceu em 1908: um anglicano norte-americano, que depois entrou na comunhão da Igreja católica, fundador da "Society of the Atonement" (Comunidade dos frades e das religiosas do Atonement), Padre Paul Wattson, juntamente com outro episcopaliano, Padre Spencer Jones, lançou a ideia profética de um Oitavário de orações pela unidade dos cristãos. Esta ideia foi acolhida favoravelmente pelo Arcebispo de New York e pelo Núncio Apostólico. Depois, a convocação para rezar pela unidade foi ampliada, em 1916, a toda a Igreja católica graças à intervenção do meu venerado Predecessor, o Papa Bento XV, com o Breve Ad perpetuam rei memoriam. Esta iniciativa, que entretanto tinha suscitado não pouco interesse, começou a consolidar-se progressivamente em toda a parte e, com o tempo, definiu cada vez mais a sua estrutura, evoluindo no seu desenvolvimento também graças à contribuição do Abade Couturier (1936). Além disso, quando soprou o vento profético do Concílio Vaticano II, sentiu-se ainda mais a urgência da unidade. Após a Assembleia conciliar, continuou o caminho paciente da busca da plena comunhão entre todos os cristãos, caminho ecuménico que de ano em ano encontrou, nomeadamente na Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, um dos momentos mais qualificadores e profícuos. A cem anos da primeira convocação para rezar em conjunto pela unidade, esta Semana de Oração já se tornou uma tradição consolidada, conservando o espírito e as datas escolhidas no início pelo Padre Wattson. Com efeito, ele escolheu-as pela sua índole simbólica. O calendário do tempo previa para o dia 18 de Janeiro a festa da Cátedra de São Pedro, que é um sólido fundamento e uma segura garantia de unidade de todo o povo de Deus, enquanto no dia 25 de Janeiro, tanto outrora como hoje, a liturgia celebra a festa da Conversão de São Paulo. Enquanto damos graças ao Senhor por estes cem anos de oração e de compromisso conjunto entre numerosos discípulos de Cristo, recordemos com reconhecimento o autor desta providencial iniciativa espiritual, o Padre Wattson e, juntamente com ele, aqueles que a promoveram e enriqueceram com as suas contribuições, fazendo-a tornar-se património comum de todos os cristãos.

Acabei de recordar que o Concílio Vaticano II dedicou uma grande atenção ao tema da unidade dos cristãos, especialmente mediante o Decreto sobre o ecumenismo Unitatis redintegratio onde, entre outras coisas, são fortemente sublinhados o papel e a importância da oração pela unidade. O Concílio observa que a oração se encontra no próprio cerne de todo o caminho ecuménico. "Esta conversão do coração e esta santidade de vida, juntamente com as orações particulares e públicas pela unidade dos cristãos, devem considerar-se como a alma de todo o movimento ecuménico" (Unitatis redintegratio UR 8). Precisamente graças a este ecumenismo espiritual santidade da vida, conversão do coração, orações particulares e públicas a busca comum da unidade alcançou nestas décadas um grande desenvolvimento, que se diversificou em múltiplas iniciativas: do conhecimento recíproco ao contacto fraterno entre os membros de diversas Igrejas e Comunidade eclesiais, de diálogos cada vez mais amistosos e colaborações em vários campos, do colóquio teológico à busca de formas concretas de comunhão e de colaboração. O que vivificou e continua a animar este caminho para a plena comunhão entre todos os cristãos é, sobretudo, a oração. "Orai sem cessar" (1Th 5,17): este é o tema da Semana deste ano; ao mesmo tempo, é o convite que nunca cessa de ressoar nas nossas comunidades, para que a oração seja a luz, a força e a orientação dos nossos passos, em atitude de escuta humilde e dócil do nosso comum Senhor.

Em segundo lugar, o Concílio chama a atenção para a oração conjunta, que se eleva em comum por parte de católicos e de outros cristãos ao único Pai celeste. A este propósito, o Decreto sobre o ecumenismo afirma: "Estas orações em comum são, sem dúvida, um meio muito eficaz para pedir a graça da unidade" (UR 8). E isto porque, na oração em comum, as comunidades cristãs se apresentam em conjunto diante do Senhor e, tomando consciência das contradições geradas pela divisão, manifestam o desejo de obedecer à sua vontade recorrendo com confiança ao seu auxílio omnipotente. Em seguida, o Decreto acrescenta que tais preces "são uma genuína manifestação dos vínculos com que os católicos ainda estão unidos aos irmãos separados (seiuncti)" (Ibidem). Portanto, a oração não constitui um gesto voluntarista ou puramente sociológico, mas é a expressão da fé que une entre si todos os discípulos de Cristo. Ao longo dos anos instaurou-se uma fecunda colaboração neste campo e, a partir de 1968, o então Secretariado para a Unidade dos Cristãos, que depois se tornou Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, e o Conselho Ecuménico das Igrejas preparam em conjunto os subsídios da Semana de Oração pela Unidade, que sucessivamente são divulgados em conjunto a nível mundial, atingindo regiões que nunca se poderiam alcançar, se a acção fosse individual.

O Decreto conciliar sobre o ecumenismo faz referência à oração pela unidade quando, precisamente na conclusão, afirma que o Concílio está consciente de que "este propósito de reconciliar os cristãos na unidade da Igreja de Cristo, una e única, excede as forças e os dotes humanos. Por isso, deposita toda a sua esperança na oração de Jesus Cristo" (UR 24). É a consciência dos nossos limites humanos que nos impele ao abandono confiante nas mãos do Senhor. Analisando bem, o profundo sentido desta Semana de Oração consiste precisamente em assentar de maneira sólida na oração de Cristo, que na sua Igreja contínua a rezar a fim de que "todos sejam um só... para que o mundo creia" (Jn 17,21). Hoje sentimos vigorosamente o realismo destas palavras. O mundo sofre pela ausência de Deus, pela inacessibilidade de Deus e sente o desejo de conhecer o rosto de Deus. Contudo, como poderiam e podem, os homens de hoje, conhecer este rosto de Deus no rosto de Jesus Cristo, se nós cristãos estivermos divididos, se uns ensinam contra os outros, se uns falam contra os outros? Somente na unidade podemos mostrar realmente a este mundo que tem necessidade dele o rosto de Deus, o rosto de Cristo. Evidentemente, também não é com as nossas próprias estratégias, com o diálogo e com tudo aquilo que conseguirmos realizar e que, contudo, é muito necessário que poderemos alcançar esta unidade. Aquilo que podemos obter é a nossa disponibilidade e capacidade de acolher esta unidade, quando o Senhor no-la conceder. Eis o sentido da oração: abrir os nossos corações, criar em nós esta disponibilidade que abre o caminho para Cristo. Na liturgia da Igreja antiga, depois da homilia, o Bispo ou o Presidente da celebração, o celebrante principal, rezava: "Conversi ad Dominum". Em seguida, ele mesmo e todos se erguiam, voltando-se para o Oriente. Todos queriam contemplar Cristo. Somente se nos convertermos, só nesta conversão a Cristo, neste olhar conjunto rumo a Cristo, podemos encontrar o dom da unidade.

Podemos dizer que foi a oração pela unidade que animou e acompanhou as várias etapas do movimento ecuménico, especialmente a partir do Concílio Vaticano II. Neste período, a Igreja católica entrou em contacto com as várias Igrejas e Comunidades eclesiais do Oriente e do Ocidente com diversas formas de diálogo, enfrentando com cada uma delas aqueles problemas teológicos e históricos que surgiram no decurso dos séculos e que se estabeleceram como elementos de divisão. O Senhor fez com que estes relacionamentos amistosos tenham melhorado o conhecimento recíproco e intensificado a comunhão tornando, ao mesmo tempo, mais evidente a percepção dos problemas que permanecem insolúveis e que fomentam a divisão. Hoje, nesta Semana, damos graças a Deus que sustentou e iluminou o caminho até agora percorrido, o fecundo caminho que o Decreto conciliar sobre o ecumenismo descrevia como que surgido "por graça do Espírito Santo" e "cada vez mais amplo" (UR 1).

Estimados irmãos e irmãs, aceitemos o convite a "rezar sem nos cansarmos", que o Apóstolo Paulo dirigia aos primeiros cristãos de Tessalonica, comunidade que ele mesmo tinha fundado. E precisamente porque sabia que existiam algumas discórdias, quis recomendar que fossem pacientes para com todos e que evitassem pagar o mal com o mal, procurando ao contrário sempre o bem entre si e com todos, e permanecendo alegres em todas as circunstâncias, felizes porque o Senhor está próximo. Os conselhos que São Paulo dava aos Tessalonicenses podem inspirar também hoje o comportamento dos cristãos no âmbito das relações ecuménicas. Sobretudo, afirma: "Vivei em paz entre vós", e depois: "Orai sem cessar. Em tudo dai graças" (1Th 5,13-18). Acolhamos, também nós, esta urgente exortação do Apóstolo, tanto para dar graças ao Senhor pelos progressos alcançados no movimento ecuménico, como para impetrar a plena unidade. A Virgem Maria, Mãe da Igreja, obtenha para todos os discípulos do seu Filho divino a graça de poderem viver quanto antes em paz e na caridade recíproca, de maneira a darem um convincente testemunho de reconciliação diante do mundo inteiro, para tornar acessível o rosto de Deus no rosto de Cristo, que é o Deus connosco, o Deus da paz e da unidade.


Sala Paulo VI

30 de Janeiro de 2008: Santo Agostinho de Hipona (3)

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Queridos amigos

Depois da Semana de oração pela unidade dos cristãos voltamos hoje à grande figura de Santo Agostinho. O meu querido Predecessor João Paulo II dedicou em 1986, isto é, no décimo sexto centenário da sua conversão, um longo e denso documento, a Carta apostólica Augustinum Hipponensem. O próprio Papa quis definir este texto "um agradecimento a Deus pelo dom feito à Igreja, e através dela à humanidade inteira, com aquela admirável conversão". Sobre o tema da conversão gostaria de voltar a reflectir numa próxima Audiência. É um tema fundamental não só para a sua vida pessoal, mas também para a nossa. No Evangelho de domingo passado o próprio Senhor resumiu a sua pregação com a palavra: "Convertei-vos". Seguindo o caminho de Santo Agostinho, poderíamos meditar sobre o que foi esta conversão: uma coisa definitiva, decisiva, mas a decisão fundamental deve desenvolver-se, deve realizar-se em toda a nossa vida.

Hoje a catequese é dedicada, ao contrário, ao tema fé e razão, que é determinante, ou melhor, o tema determinante para a biografia de Santo Agostinho. Quando era criança tinha aprendido da sua mãe Mónica a fé católica. Mas quando era adolescente abandonou esta fé porque não via a sua racionalidade e não queria uma religião, que não fosse também para ele expressão da razão, isto é, da verdade. A sua sede de verdade era radical e levou-o portanto a afastar-se da fé católica. Mas a sua radicalidade era tal que ele não podia contentar-se com filosofias que não alcançassem a própria verdade, que não chegassem a Deus. E a um Deus que não fosse só uma última hipótese cosmológica, mas o verdadeiro Deus, o Deus que dá a vida e que entra na nossa própria vida. Assim todo o percurso intelectual e espiritual de Santo Agostinho constitui um modelo válido também hoje na relação entre fé e razão, tema não só para homens crentes mas para cada homem que procura a verdade, tema central para o equilíbrio e o destino de cada ser humano. Estas duas dimensões, fé e razão, não podem ser separadas nem contrapostas, mas devem antes estar sempre juntas. Como escreveu o próprio Agostinho, depois da sua conversão, fé e razão são "as duas forças que nos levam a conhecer" (Contra Academicos, III, 20, 43). A este propósito permanecem justamente célebres as duas fórmulas agostinianas (Sermones, 43, 9) que expressam esta síntese coerente entre fé e razão: crede ut intelligas ("crê para compreender") o crer abre o caminho para passar pela porta da verdade mas também, e inseparavelmente, intellige ut credas ("compreende para crer"), perscruta a verdade para poder encontrar Deus e crer.

As duas afirmações de Agostinho exprimem com eficaz prontidão e com igual profundidade a síntese deste problema, na qual a Igreja católica vê expresso o próprio caminho. Historicamente esta síntese vai-se formando, ainda antes da vinda de Cristo, no encontro entre fé judaica e pensamento grego no judaísmo helénico. Sucessivamente na história esta síntese foi retomada e desenvolvida por muitos pensadores cristãos. A harmonia entre fé e razão significa sobretudo que Deus não está longe: não está longe da nossa razão e da nossa vida; está próximo de cada ser humano, perto do nosso coração e da nossa razão, se realmente nos pusermos a caminho.
Precisamente esta proximidade de Deus ao homem foi sentida com extraordinária intensidade por Agostinho. A presença de Deus no homem é profunda e ao mesmo tempo misteriosa, mas pode ser reconhecida e descoberta no próprio íntimo: não saias afirma o convertido mas "volta para ti"; no homem interior habita a verdade; e se achares que a tua natureza é alterável, transcende-te a ti mesmo. Mas recorda-te, quando te transcendes a ti mesmo, transcendes uma alma que raciocina" (De vera religione, 39, 72). Precisamente como ele mesmo ressalta, com uma afirmação muito famosa, no início das Confessiones, autobiografia espiritual escrita para louvor de Deus: "Criastes-nos para Vós, e o nosso coração está inquieto, enquanto não descansa em Vós" (I, 1, 1).

A distância de Deus equivale à distância de si mesmo: "De facto, tu reconhece Agostinho (Confessiones, III, 6, 11) dirigindo-se directamente a Deus estavas dentro de mim mais que o meu íntimo e acima da minha parte mais alta", interior intimo meo et superior summo meo; a ponto que acrescenta noutro trecho recordando o tempo que precedeu a conversão "tu estavas diante de mim; e eu, ao contrário, tinha-me afastado de mim mesmo, e não me reencontrava; e muito menos te encontrava a ti" (Confessiones, V, 2, 2). Precisamente porque Agostinho viveu em primeira pessoa este percurso intelectual e espiritual, soube transmiti-lo nas suas obras com tanta prontidão, profundidade e sabedoria, reconhecendo em dois outros célebres trechos das Confessiones (IV, 4, 9 e 14, 22) que o homem é "um grande enigma" (magna quaestio) e "um grande abismo" (grande profundum), enigma e abismo que só Cristo ilumina e salva. Isto é importante: um homem que está distante de Deus está também afastado de si mesmo, alienado de si próprio, e só pode reencontrar-se encontrando-se com Deus. Assim chega também a si, ao seu verdadeiro eu, à sua verdadeira identidade.

O ser humano ressalta depois Agostinho no De civitate Dei (XII, 27) é social por natureza mas anti-social por vício, e é salvo por Cristo, único mediador entre Deus e a humanidade e "caminho universal da liberdade e da salvação", como repetiu o meu predecessor João Paulo II (Augustinum Hipponensem, 21): fora deste caminho, que nunca faltou ao género humano afirma ainda Santo Agostinho na mesma obra "ninguém jamais foi libertado, ninguém é libertado e ninguém será libertado" (De civitate Dei, X, 32, 2). Enquanto único mediador da salvação, Cristo é a cabeça da Igreja e a ela está misticamente unido a ponto que Agostinho pode afirmar: "Tornamo-nos Cristo. De facto, se ele é a cabeça, nós somos os seus membros, o homem total é Ele e nós" (In Iohannis evangelium tractatus, 21, 8).

Povo de Deus e casa de Deus, a Igreja na visão agostiniana está portanto estreitamente relacionada com o conceito de Corpo de Cristo, fundada na releitura cristológica do Antigo Testamento e na vida sacramental centrada na Eucaristia, na qual o Senhor nos dá o seu Corpo e nos transforma em seu Corpo. Então, é fundamental que a Igreja, povo de Deus em sentido cristológico e não em sentido sociológico, esteja verdadeiramente inserida em Cristo, o qual afirma Agostinho numa lindíssima página "reza por nós, reza em nós, é rezado por nós; reza por nós como nosso sacerdote, reza em nós como nossa cabeça, é rezado por nós como nosso Deus: reconhecemos portanto nele a nossa voz e em nós a sua" (Enarrationes in Psalmos, 85, 1).

Na conclusão da Carta apostólica Augustinum Hipponensem João Paulo II quis perguntar ao próprio Santo o que tem para dizer aos homens de hoje e responde antes de tudo com as palavras que Agostinho escreveu numa carta ditada pouco antes da sua conversão: "Parece-me que se deve reconduzir os homens à esperança de encontrar a verdade" (Epistulae, 1, 1); aquela verdade que é o próprio Cristo, Deus verdadeiro, ao qual é dirigida uma das orações mais bonitas e mais famosas das Confessiones (X, 27, 38): "Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Estáveis dentro de mim e eu estava fora, e aí Vos procurava; e disforme como era, lançava-me sobre estas coisas formosas que criastes. Estáveis comigo e eu não estava convosco. Retinha-me longe de Vós aquilo que não existiria se não existisse em Vós. Mas Vós me chamastes, clamastes e rompestes a minha surdez. Brilhastes, resplandecestes e curastes a minha cegueira. Exalastes o vosso perfume: respirei-o e agora suspiro por Vós. Saboreei-Vos, e agora tenho fome e sede de Vós. Tocastes-me, e comecei a desejar ardentemente a vossa paz".

Eis que Agostinho encontrou Deus e durante toda a sua vida fez experiência dele a ponto que esta realidade que é antes de tudo encontro com uma Pessoa, Jesus mudou a sua vida, assim como muda a de quantos, mulheres e homens, em todos os tempos têm a graça de o encontrar. Rezemos para que o Senhor nos conceda esta graça e nos faça encontrar assim a sua paz.

Saudações

Dirijo cordiais boas-vindas aos peregrinos de língua italiana. Em particular, saúdo os Bispos aqui reunidos por ocasião do 40º aniversário de fundação da Comunidade de Santo Egídio, garantindo a minha recordação na oração para que se fortaleça em cada um o firme desejo de anunciar a todos Jesus Cristo, único Salvador do mundo. Saúdo com particular afecto os fiéis da Paróquia de Santa Catarina de Nardò onde me dizem que há um mar lindíssimo com um pensamento especial para os jovens músicos. Queridos amigos, agradeço-vos a vossa presença e desejo que este encontro possa aumentar em cada um a vontade de testemunhar com alegria o Evangelho na vida de cada dia. Acompanho-vos com a minha oração, para que possais edificar todos os vossos projectos sobre as bases sólidas da fidelidade a Deus. Saúdo depois os trabalhadores da Cáritas da Diocese de Sabina-Poggio Mirteto e encorajo-os a prosseguir com generosidade a sua obra em favor dos mais necessitados.

Dirijo-me, por fim, aos jovens, aos doentes e aos recém-casados. Celebra-se amanhã a memória litúrgica de São João Bosco, sacerdote e educador. Olhai para ele, queridos jovens, especialmente vós, crismandos de Serroni de Battipaglia, como para um autêntico mestre de vida. Vós, queridos doentes, aprendei da sua experiência espiritual a confiarem cada circunstância em Cristo crucificado. E vós, queridos recém-casados, recorrei à sua intercessão para assumir com empenho generoso a vossa missão de esposos.



Sala Paulo VI

Quarta-feira de Cinzas, 6 de Fevereiro de 2008: Tempo Quaresmal

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Prezados irmãos e irmãs

Hoje, Quarta-Feira de Cinzas, retomamos como todos os anos o caminho quaresmal animados por um espírito mais intenso de oração e de reflexão, de penitência e de jejum. Entramos num tempo litúrgico "forte" que, enquanto nos prepara para as celebrações da Páscoa coração e centro do ano litúrgico e de toda a nossa existência convida-nos, aliás poderíamos dizer, provoca-nos a imprimir um impulso mais decisivo à nossa existência cristã. Uma vez que os compromissos, as inquietações e as preocupações nos fazem voltar ao hábito, expondo-nos ao risco de esquecermos como é extraordinária a aventura para a qual Jesus nos interpelou, temos necessidade de começar todos os dias de novo o nosso exigente itinerário de vida evangélica, voltando a nós mesmos mediante pausas fortalecedoras do espírito. Com o antigo rito da imposição das cinzas, a Igreja introduz-nos na Quaresma como num grande retiro espiritual que dura quarenta dias.

Portanto, entramos no clima quaresmal, que nos ajuda a redescobrir o dom da fé recebida com o Baptismo e nos impele a aproximar-nos do sacramento da Reconciliação, pondo o nosso compromisso de conversão sob o sinal da misericórdia divina. Originariamente, na Igreja primitiva, a Quaresma era o tempo privilegiado em que os catecúmenos se preparavam para os sacramentos do Baptismo e da Eucaristia, que eram celebrados na Vigília da Páscoa. A Quaresma era considerada como um tempo do devir cristão, que não se realizava num único momento, mas exigia um longo percurso de conversão e de renovação. A esta preparação uniam-se também as pessoas já baptizadas, revivendo a lembrança do Sacramento recebido, e dispondo-se a uma renovada comunhão com Cristo na jubilosa celebração da Páscoa. Assim a Quaresma tinha, e ainda hoje conserva, a índole de um itinerário baptismal, no sentido que ajuda a manter viva a consciência que o ser cristão se realiza sempre como um novo devir cristão: nunca é uma história concluída, que se encontra no nosso passado, mas um caminho que exige sempre um exercício renovado.

Impondo as cinzas sobre a cabeça, o celebrante diz: "Recorda-te que és pó e ao pó voltarás" (cf.
Gn 3,19), ou então repete a exortação de Jesus: "Arrependei-vos e acreditai no Evangelho" (Mc 1,15). Ambas as fórmulas constituem uma exortação à verdade da existência humana: somos criaturas limitadas, pecadores sempre necessitados de penitência e de conversão. Como é importante ouvir e aceitar esta exortação nesta nossa época! Quando proclama a sua autonomia total de Deus, o homem contemporâneo torna-se escravo de si mesmo e encontra-se muitas vezes numa solidão desconsolada. Então, o convite à conversão é um impulso a voltarmos aos braços de Deus, Pai terno e misericordioso, a termos confiança nele e a confiarmo-nos a Ele como filhos adoptivos, regenerados pelo seu amor. Com pedagogia sábia, a Igreja repete que a conversão é antes de tudo uma graça, uma dádiva que abre o coração à infinita bondade de Deus. É Ele mesmo quem antecipa, com a sua graça, o nosso desejo de conversão e acompanha os nossos esforços em vista da plena adesão à sua vontade salvífica. Então, converter-se significa deixar-se conquistar por Jesus (cf. Ph 3,12) e, com Ele, "voltar" ao Pai.

Por conseguinte, a conversão exige que nos ponhamos humildemente na escola de Jesus e caminhemos no seguimento dócil dos seus passos. A este propósito, são iluminadoras as palavras com que Ele mesmo indica as condições para ser seus verdadeiros discípulos. Depois de ter afirmado que "quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, salvá-la-á", Ele acrescenta: "Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua alma?" (Mc 8,35-36). A conquista do sucesso, o desejo do prestígio e a busca da comodidade, quando absorvem totalmente a vida, a ponto de excluir Deus do próprio horizonte, levam verdadeiramente à felicidade? Pode haver uma felicidade autêntica, prescindindo de Deus? A experiência demonstra que não somos felizes porque satisfazemos as expectativas e as exigências materias. Na realidade, a única alegria que cumula o coração humano é aquela que provém de Deus: com efeito, temos necessidade da alegria infinita. Nem as preocupações quotidianas, nem as dificuldades da vida conseguem apagar a alegria que nasce da amizade com Deus. O convite de Jesus a tomar a própria cruz e a segui-lo, num primeiro momento pode parecer árduo e contrário àquilo que nós queremos, mortificante para o nosso desejo de realização pessoal. No entanto, olhando mais de perto podemos descobrir que não é assim: o testemunho dos santos demonstra que na Cruz de Cristo, no amor que se entrega, renunciando à posse de si mesmo, encontra-se aquela profunda serenidade que é nascente de generosa dedicação aos irmãos, especialmente aos mais pobres e necessitados. E isto dá alegria também a nós mesmos. O caminho quaresmal de conversão, que hoje empreendemos com toda a Igreja, torna-se portanto a ocasião propícia, "o momento favorável" (cf. 2Co 6,2) para renovar o nosso abandono filial nas mãos de Deus e para pôr em prática quanto Jesus continua a repetir-nos: "Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me" (Mc 8,34), e deste modo progrida no caminho do amor e da verdadeira felicidade.

No tempo quaresmal a Igreja, fazendo eco ao Evangelho, propõe alguns compromissos específicos que acompanham os fiéis neste itinerário de renovação interior: a oração, o jejum e a esmola. Na Mensagem para a Quaresma do corrente ano, publicada há poucos dias, desejei reflectir "sobre a prática da esmola, que representa um modo concreto de ir ao encontro de quem se encontra em necessidade e, ao mesmo tempo, um exercício ascético para se libertar do apego aos bens terrenos" (n. 1). Nós sabemos que, infelizmente, a sugestão das riquezas materiais permeia profundamente a sociedade moderna. Como discípulos de Jesus Cristo, somos chamados a não idolatrar os bens terrestres, mas sim a utilizá-los como meios para viver e para ajudar os outros que se encontram em necessidade. Indicando-nos a prática da esmola, a Igreja educa-nos a fim de irmos ao encontro do próximo, à imitação de Jesus que, como São Paulo observa, se fez pobre para nos enriquecer mediante a sua pobreza (cf. 2Co 8,9). "Na sua escola escrevi ainda na referida Mensagem podemos aprender a fazer da nossa vida um dom total; imitando-o, conseguimos tornar-nos disponíveis, não tanto a dar algo daquilo que possuímos, mas a entregar-nos a nós mesmos". Depois, acrescentei: "Todo o Evangelho não se resume porventura no único mandamento da caridade? Eis, então, que a esmola, praticada com profundo espírito de fé, se torna um meio para compreender e realizar melhor a nossa própria vocação cristã. Com efeito, quando se oferece gratuitametne a si mesmo, o cristão dá testemunho do facto de que não é a riqueza material que define as leis da existência, mas sim o amor" (n. 5).

Estimados irmãos e irmãs, peçamos a Nossa Senhora, Mãe de Deus e da Igreja, que nos acompanhe ao longo do caminho quaresmal, para que seja um caminho de verdadeira conversão. Deixemo-nos conduzir por Ela e assim havemos de chegar, interiormente renovados, à celebração do grande mistério da Páscoa de Cristo, revelação suprema do amor misericordioso de Deus.
Boa Quaresma para todos!

Saudações

Queridos peregrinos de língua portuguesa, saúdo cordialmente a todos, nomeadamente os grupos das paróquias de Espinho e Ameal no Porto, de Nogueiró e Tenões em Braga, da diocese de Bragança-Miranda e ainda o Colégio Rainha Santa Isabel de Coimbra. De bom augúrio é este nosso encontro no início da Quaresma, que a todos chama a uma conversão mais profunda, deixando-nos conquistar por Jesus e, com Ele, regressar aos braços de Deus, Pai terno e misericordioso. Aí teremos a alegria que não morre; repletos da mesma, será impossível não transbordar como uma festa de Deus para os outros. Desejo a cada um de vós esta festa de Deus, deixando a Deus o tempo e o cuidado de insistir com os demais para que entrem na festa. Uma santa Quaresma!

Dirijo cordiais boas-vindas aos peregrinos de língua italiana. Saúdo em particular os pequenos cantores de Merano. Obrigado pelo vosso canto. Encorajo-vos a continuar com alegria o vosso compromisso de animação litúrgica. Saúdo-vos, representantes da Comissão Pio IX, de Senigallia, vindos a Roma por ocasião do 130º aniversário da morte do Beato Pio IX, cuja memória litúrgica vai ser celebrada amanhã. Agradeço-vos o compromisso destinado a chamar a atenção para a figura e a exemplaridade das virtudes deste grande Pontífice, que cumpriu com caridade heróica a sua missão de Pastor universal da Igreja, tendo sempre como finalidade a salvação das almas. No seu longo pontificado, assinalado por acontecimentos borrascosos, ele procurou confirmar com vigor as verdades da fé cristã diante de uma sociedade exposta a uma progressiva secularização. O seu testemunho de indómito e corajoso servidor de Cristo é, também nos dias de hoje, um luminoso ensinamento para todos. Formulo votos cordiais para que esta significativa celebração contribua para fazer conhecer melhor o espírito e o "rosto" deste meu Beato predecessor e para levar a estimar ainda mais a sua sabedoria evangélica e a sua fortaleza interior.

Enfim, saúdo os jovens, os doentes e os novos casais, convidando a todos a acolher com prontidão e a aceitar com perseverança o convite à conversão, que hoje a Igreja nos dirige de maneira especial.

Apelo

Nestes dias, estou particularmente próximo das queridas populações do Chade, angustiadas pelas dolorosas lutas internas, que causaram numerosas vítimas e a fuga de milhares de civis da Capital. Confio também às vossas orações e à vossa solidariedade estes irmãos e estas irmãs que estão a sofrer, pedindo que lhes sejam poupadas ulteriores violências e para que se lhes garanta a necessária assistência humanitária, enquanto dirijo um urgente apelo a depor as armas e a percorrer o caminho do diálogo e da reconciliação.




Sala Paulo VI

20 de Fevereiro de 2008: Santo Agostinho de Hipona (4)

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Queridos irmãos e irmãs

Depois da pausa dos exercícios espirituais da semana passada voltamos hoje à grande figura de Santo Agostinho, sobre o qual já falei repetidamente nas catequeses da quarta-feira. É o Padre da Igreja que deixou o maior número de obras, e hoje pretendo falar delas brevemente. Alguns dos escritos agostinianos são de importância fundamental, e não só para a história do cristianismo mas para a formação de toda a cultura ocidental: o exemplo mais claro são as Confessiones, sem dúvida um dos livros da antiguidade cristã ainda hoje muito lido. Como diversos Padres da Igreja dos primeiros séculos, mas em medida incomparavelmente mais ampla, também o Bispo de Hipona exerceu de facto uma influência alargada e persistente, como é demonstrado pela superabundante tradição manuscrita das suas obras, que deveras são numerosíssimas.

Ele mesmo as passou em revista alguns anos antes de morrer nas Retractationes e pouco depois da sua morte elas foram cuidadosamente registradas no Indiculus ("elenco") acrescentado pelo amigo fiel Possídio à biografia de Santo Agostinho, Vita Augustini. O elenco das obras de Agostinho foi realizado com a intenção explícita de salvaguardar a sua memória enquanto a invasão vândala se expandia em toda a África romana e conta mil e trinta escritos enumerados pelo seu Autor, com outros "que não podem ser numerados, porque não os enumerou". Bispo de uma cidade próxima, Possídio ditava estas palavras precisamente a Hipona onde se tinha refugiado e assistira à morte do amigo e quase certamente se baseava no catálogo da biblioteca pessoal de Agostinho. Hoje, são mais de trezentas as cartas do Bispo de Hipona que sobreviveram e quase seiscentas as homilias, mas elas eram muitas mais, talvez até entre as três mil e as quatro mil, fruto de quarenta anos de pregações do antigo reitor que tinha decidido seguir Jesus e falar já não aos grandes da corte imperial, mas à simples população de Hipona.

E ainda em anos recentes as descobertas de um grupo de cartas e de algumas homilias enriqueceram o nosso conhecimento deste grande Padre da Igreja. "Muitos livros escreve Possídio foram por ele compostos e publicados, muitas pregações foram feitas na igreja, transcritas e corrigidas, quer para contestar os diversos hereges quer para interpretar as sagradas Escrituras dos santos filhos da Igreja. Estas obras ressalta o Bispo amigo são tantas que dificilmente um estudioso tem a possibilidade de as ler e aprender a conhecê-las" (Vita Augustini, 18, 9).

Entre a produção literária de Agostinho portanto mais de mil publicações subdivididas em escritos filosóficos, apologéticos, doutrinais, morais, monásticos, exegéticos, anti-hereges, além, precisamente, das obras excepcionais de grande alcance teológico e filosófico. Antes de tudo é preciso recordar as já mencionadas Confessiones, escritas em treze livros entre 397 e 400 para louvor de Deus. Elas são uma espécie de autobiografia na forma de um diálogo com Deus. Este género literário reflecte precisamente a vida de Santo Agostinho, que era uma vida não fechada em si, dispersa em tantas coisas, mas vivida substancialmente como diálogo com Deus e assim uma vida com os outros. Já o título Confessiones indica a especificidade desta autobiografia. Esta palavra confessiones no latim cristão desenvolvido pela tradição dos Salmos tem dois significados, que contudo se entrelaçam. Confessiones indica, em primeiro lugar, a confissão das próprias debilidades, da miséria dos pecados; mas, ao mesmo tempo, confessiones significa louvor a Deus, reconhecimento a Deus. Ver a própria miséria na luz de Deus torna-se louvor a Deus e agradecimento porque Deus nos ama e nos aceita, nos transforma e nos eleva para si mesmo. Sobre estas Confessiones, que tiveram grande êxito já durante a vida de Santo Agostinho, ele mesmo escreveu: "Elas exerceram sobre mim tal acção enquanto as escrevia e ainda a exercem quando as releio. Estas obras são do agrado de muitos irmãos" (Retractationes, II, 6): e devo dizer que também eu sou um destes "irmãos". E graças às Confessiones, podemos seguir passo a passo o caminho interior deste homem extraordinário e apaixonado por Deus. Menos conhecidas mas igualmente originais e muito importantes são, outrossim, as Retractationes, compostas em dois livros por volta do ano 427, nas quais Santo Agostinho já idoso realiza uma obra de "revisão"(retractatio)detoda a sua obra escrita, deixando assim um documento literário singular e extremamente precioso, mas também um ensinamento de sinceridade e de humildade intelectual.

O De civitate Dei obra imponente e decisiva para o desenvolvimento do pensamento político ocidental e para a teologia cristã da história foi escrito de 413 a 426, em vinte e dois livros. A ocasião era o saque de Roma, levado a cabo pelos Gotos em 410. Numerosos pagãos ainda vivos, mas também muitos cristãos, disseram: Roma caiu e agora o Deus cristão e os apóstolos já não podem proteger a cidade. Durante a presença das divindades pagãs, Roma era caput mundi, a grande capital, e ninguém podia pensar que teria caído nas mãos dos inimigos. Agora, com o Deus cristão, esta grande cidade já não parecia segura. Portanto, o Deus dos cristãos já não protegia, não podia ser o Deus ao qual confiar-se. Nesta objecção, que tocava profundamente também o coração dos cristãos, Santo Agostinho responde com esta obra grandiosa, o De civitate Dei, esclarecendo o que devemos ou não esperar de Deus, qual é a relação entre o campo político e o campo da fé, da Igreja. Também nos dias de hoje, este livro é uma fonte para definir bem a verdadeira laicidade e a competência da Igreja, a grande e verdadeira esperança que a fé nos proporciona.

Este livro excelso é uma apresentação da história da humanidade governada pela Providência divina, mas actualmente dividida por dois amores. E este é o desígnio fundamental, a sua interpretação da história, que é a luta entre dois amores: o amor a si mesmo, "até à indiferença por Deus", e o amor a Deus", "até à indiferença por si mesmo" (De civitate Dei, XIV, 28), à plena liberdade de si próprio pelos outros, na luz de Deus. Portanto, este é talvez o maior livro de Santo Agostinho, de uma importância permanente. Igualmente importante é o De Trinitate, obra em quinze livros no núcleo principal da fé cristã, a fé no Deus trinitário, escrita em dois tempos: entre 399 e 412, os primeiros doze livros, publicados sem o conhecimento de Agostinho, que por volta de 420 os completou e reviu a obra inteira. Aqui, ele reflecte sobre o rosto de Deus e procura compreender este mistério do Deus que é singular, o único criador do mundo, de todos nós e, todavia, que precisamente este Deus único é trinitário, um círculo de amor. Procura compreender o mistério insondável: exactamente o ser trinitário, em três Pessoas, é a mais real e mais profunda unidade do único Deus. O De doctrina Christiana é, no entanto, uma verdadeira e própria introdução cultural à interpretação da Bíblia e, em última análise, ao próprio cristianismo, que teve uma importância determinante na formação da cultura ocidental.

Apesar de toda a sua humildade, Agostinho certamente estava consciente da sua estatura intelectual. Mas para ele, mais importante do que realizar grandes obras de elevado significado teológico, era transmitir a mensagem aos simples. Esta sua intenção mais profunda, que orientou toda a sua vida, manifesta-se numa carta escrita ao colega Evódio, na qual comunica a decisão de suspender momentaneamente o ditado dos livros do De Trinitate, "porque são demasiado cansativos e na minha opinião podem ser entendidos por poucos; por isso, são mais urgentes os textos que, esperamos, venham a ser mais úteis para muitos" (Epistulae, 169, 1, 1). Portanto, para ele era mais útil comunicar a fé de modo compreensível para todos, do que escrever grandes obras teológicas. A responsabilidade profundamente sentida em relação à divulgação da mensagem cristã é sentida também na origem de escritos, como De catechizandis rudibus, uma teoria e também uma prática da catequese, ou o Psalmus contra partem Donati. Os donatistas eram o grande problema da África de Santo Agostinho, um cisma intencionalmente africano. Eles afirmavam: a verdadeira cristandade é africana. Opunham-se à unidade da Igreja. Contra este cisma, o grande Bispo lutou durante toda a sua vida, procurando convencer os donatistas que somente na unidade também a africanidade pode ser verdadeira. E para se fazer compreender pelos mais simples, que não conseguiam entender o latim erudito do reitor, disse: devo escrever também com erros gramaticais, num latim muito simplificado. E fê-lo sobretudo neste Psalmus, uma espécie de poesia simples contra os donatistas, para ajudar todas as pessoas a compreenderem que unicamente na unidade da Igreja se realiza para todos realmente a nossa relação com Deus e aumenta a paz no mundo.

Nesta produção destinada a um público mais vasto reveste uma importância particular o número de homilias, muitas vezes pronunciadas "de modo improvisado", transcritas pelos taquígrafos durante a pregação e imediatamente postas em circulação. Entre elas, sobressaem as lindas Enarrationes in Psalmos, muito lidas na Idade Média. Precisamente a prática de publicação dos milhares de homilias de Agostinho muitas vezes sem o controle do autor explica a sua difusão e sucessiva dispersão, mas também a sua vitalidade. Com efeito, imediatamente as pregações do Bispo de Hipona tornavam-se, pela fama do seu autor, textos muito procurados e serviam também para outros Bispos e sacerdotes como modelos, adequados a contextos sempre novos.

A tradição iconográfica, já num afresco lateranense que remonta ao século VI, representa Santo Agostinho com um livro na mão, sem dúvida para expressar a sua produção literária que influenciou em grande medida a mentalidade e o pensamento cristãos, mas para exprimir também o seu amor pelos livros, pela leitura e pelo conhecimento da grande cultura precedente. Quando faleceu nada deixou, narra Possídio, mas "recomendava sempre que se conservasse diligentemente para a posteridade a biblioteca da igreja com todos os códices", sobretudo os das suas obras. Nelas, sublinha Possídio, Agostinho está "sempre vivo" e beneficia quem lê os seus escritos não obstante, conclui ele, "na minha opinião puderam tirar mais proveito do seu contacto aqueles que o conseguiram ver e ouvir, quando falava pessoalmente nas igrejas, e sobretudo aqueles que tiveram a experiência da sua vida quotidiana no meio do povo" (Vita Augustini, 31). Sim, também para nós teria sido muito bom poder ouvi-lo pessoalmente. Todavia, ele está deveras vivo nos seus escritos, está presente em nós e assim sentimos também a vitalidade permanente da fé, à qual ele entregou toda a sua vida.

Saudação

Saúdo os visitantes de língua portuguesa, especialmente os brasileiros de Porto Alegre. Faço votos por que vossa recente peregrinação à Terra Santa sirva de auspício para invocar do Altíssimo abundantes graças que vos façam prosseguir, seguros e concordes, na caminhada penitencial rumo à Páscoa eterna. Que Deus nosso Senhor abençoe vossas famílias e comunidades.



Sala Paulo VI

27 de Fevereiro de 2008: Santo Agostinho de Hipona (5)


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