Audiências 2005-2013 14058

14 de Maio de 2008: Dionísio Areopagita

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Queridos irmãos e irmãs

Hoje, durante as catequeses sobre os Padres da Igreja, gostaria de falar de uma figura muito misteriosa: um teólogo do século VI, cujo nome é desconhecido, que escreveu sob o pseudónimo de Dionísio Areopagita. Com este pseudónimo, ele aludia ao trecho da Escritura que agora ouvimos, ou seja, à vicissitude narrada por São Lucas no capítulo 17 dos Actos dos Apóstolos, onde é narrado que Paulo pregou em Atenas no Areópago, para uma elite do grande mundo intelectual grego, mas no final a maior parte dos ouvintes mostrou-se desinteressada e afastou-se, ridicularizando-o; todavia alguns, poucos, diz-nos São Lucas, aproximaram-se de Paulo abrindo-se à fé. O Evangelista oferece-nos dois nomes: Dionísio, membro do Areópago, e uma certa mulher, Damaris.

Se o autor destes livros escolheu cinco séculos depois o pseudónimo de Dionísio Areopagita, quer dizer que a sua intenção era pôr a sabedoria grega ao serviço do Evangelho, ajudar o encontro entre a cultura e a inteligência gregas e o anúncio de Cristo; queria fazer aquilo que este Dionísio tencionava realizar, ou seja, que o pensamento grego se encontrasse com o anúncio de São Paulo; sendo grego, tornar-se discípulo de São Paulo e assim discípulo de Cristo.

Por que escondeu ele o seu nome e escolheu este pseudónimo? Uma parte da resposta já foi dita: queria exprimir precisamente esta intenção fundamental do seu pensamento. Mas existem duas hipóteses acerca deste anonimato e pseudonimato. Uma primeira hipótese diz: era uma falsificação intencional com a qual, remontando as suas obras ao primeiro século, ao tempo de São Paulo, ele queria dar à sua produção literária uma autoridade quase apostólica. Mas melhor que esta hipótese que me parece pouco credível é a outra: ou seja, que ele quisesse fazer precisamente um acto de humildade. Não dar glória ao seu próprio nome, não criar um monumento para si mesmo com as suas obras, mas realmente servir o Evangelho, criar uma teologia eclesial, não individual, baseada em si próprio. Na realidade, conseguiu construir uma teologia que, sem dúvida, podemos fazer remontar ao segundo século, mas não atribuir a uma das figuras daquele tempo: é uma teologia um pouco desindividualizada, ou seja, uma teologia que exprime um pensamento e uma linguagem comuns. Era um tempo de polémicas acérrimas depois do Concílio de Calcedónia; ele, ao contrário, na sua Sétima Epístola, diz: "Não gostaria de fazer polémicas; falo simplesmente da verdade, procuro a verdade". E a luz da verdade, por si mesma, faz desaparecer os erros e faz resplandecer quanto é bom. E com este princípio, ele purificou o pensamento grego e colocou-o em relação com o Evangelho. Este princípio, que ele afirma na sua sétima carta, é também expressão de um verdadeiro espírito de diálogo: não buscar as coisas que separam, buscar a verdade na própria Verdade; depois, ela resplandece e faz desaparecer os erros.

Portanto, embora a teologia deste autor seja, por assim dizer, "sobrepessoal", realmente eclesial, nós podemos inseri-la no século VI. Por quê? O espírito grego, que ele pôs ao serviço do Evangelho, encontrou-o nos livros de um certo Proclo, morto em 485 em Atenas: este autor pertencia ao platonismo tardio, uma corrente de pensamento que tinha transformado a filosofia de Platão numa espécie de religião, cujo objectivo no final era criar uma grande apologia do politeísmo grego e retornar, após o sucesso do cristianismo, à antiga religião grega. Na realidade, queria demonstrar que as divindades eram as forças activas do cosmos. Como consequência, devia considerar-se mais verdadeiro o politeísmo que o monoteísmo, com um único Deus criador. Proclo mostrava um grande sistema cósmico de divindades, de forças misteriosas, e para ele neste cosmos deificado o homem podia encontrar o acesso à divindade. Porém, ele distinguia os caminhos para os simples, que não eram capazes de se elevar aos píncaros da verdade para eles, certos ritos podiam ser também suficientes e os caminhos para os sábios, que contudo deviam purificar-se para chegar à luz pura.

Como se vê, este pensamento é profundamente anticristão. É uma reacção tardia contra a vitória do cristianismo. Um uso anticristão de Platão, enquanto já estava em acto um uso cristão do grande filósofo. É interessante que este Pseudodionísio tenha ousado servir-se precisamente deste pensamento para mostrar a verdade de Cristo; transformar este universo politeísta num cosmos criado por Deus, na harmonia do cosmos de Deus, onde todas as forças são louvor de Deus, e mostrar esta grande harmonia, esta sinfonia do cosmos que vai desde os serafins até aos anjos e ancanjos, ao homem e a todas as criaturas que, em conjunto, reflectem a beleza de Deus e são louvor de Deus. Assim, transformava a imagem politeísta num elogio do Criador e da sua criatura. Deste modo, podemos descobrir as características essenciais do seu pensamento: ele é, em primeiro lugar, um louvor cósmico. Toda a criação fala de Deus e é um elogio de Deus. Dado que a criatura é um louvor de Deus, a teologia do Pseudodionísio torna-se uma teologia litúrgica: Deus encontra-se sobretudo louvando-O, não somente reflectindo; e a liturgia não é algo de construído por nós, algo inventado para fazer uma experiência religiosa durante um certo período de tempo; ela é cantar com o coro das criaturas e entrar na própria realidade cósmica. E precisamente assim a liturgia, na aparência apenas eclesiástica, torna-se ampla e grande, torna-se nossa união com a linguagem de todas as criaturas. Ele diz: não se pode falar de Deus de modo abstracto; falar de Deus é sempre ele diz com a palavra grega um "hymnein", um cantar para Deus com o grande canto das criaturas, que se reflecte e se concretiza no louvor litúrgico. Todavia, embora a sua teologia seja cósmica, eclesial e litúrgica, ela é também profundamente pessoal. Ele criou a primeira grande teologia mística. Aliás, a palavra "mística" adquire com ele um novo significado. Até àquele tempo, para os cristãos esta palavra era equivalente à palavra "sacramental", ou seja, quanto pertence ao "mysterion", ao sacramento. Com ele, a palavra "mística" torna-se mais pessoal, mais íntima: exprime o caminho da alma para Deus. E como encontrar Deus? Aqui, observamos de novo um elemento no seu diálogo entre a filosofia grega e o cristianismo, de modo particular a fé bíblica. Aparentemente, quanto afirma Platão e quando diz a grande filosofia sobre Deus é muito mais excelso, é muito mais verdadeiro; a Bíblia parece bastante "bárbara", simples e hoje dir-se-ia pré-crítica; mas ele observa que precisamente isto é necessário, porque assim podemos compreender que os conceitos mais elevados de Deus nunca chegam até à sua verdadeira grandeza; são sempre impróprios. Na realidade, estas imagens fazem-nos compreender que Deus está acima de todos os conceitos; na simplicidade das imagens, encontramos mais verdade que nos grandes conceitos. O rosto de Deus é a nossa incapacidade de exprimir realmente o que Ele é.

Assim fala-se é o próprio Pseudodionísio que o faz de uma "teologia negativa". Podemos dizer mais facilmente o que Deus não é, do que dizer o que Ele verdadeiramente é. Só através destas imagens podemos adivinhar o seu verdadeiro rosto e, por outro lado, este rosto de Deus é muito concreto: é Jesus Cristo. E não obstante Dionísio, seguindo nisto Proclo, nos mostre a harmonia dos coros celestes, de forma a parecer que todos dependem de todos, permanece verdadeiro que o nosso caminho para Deus está muito longe dele; o Pseudodionísio demonstra que, no final, o caminho para Deus é o próprio Deus, que se faz próximo de nós em Jesus Cristo.

E assim a teologia grande e misteriosa torna-se também muito concreta, quer na interpretação da liturgia quer no discurso sobre Jesus Cristo: com tudo isto, este Dionísio Areopagita teve uma profunda influência sobre toda a teologia medieval, sobre toda a teologia mística, tanto do Oriente como do Ocidente, e foi quase redescoberto no século XIII, sobretudo por São Boaventura, o grande teólogo franciscano que nesta teologia mística encontrou o instrumento conceitual para interpretar a herança tão simples e tão profunda de São Francisco: com Dionísio, o Pobrezinho diz-nos enfim, que o amor vê mais que a razão. Onde está a luz do amor, não têm mais acesso as trevas da razão; o amor vê, o amor é olho e a experiência oferece-nos mais que a reflexão. Boaventura viu o que é esta experiência, em São Francisco: é a experiência de um caminho muito humilde, muito realista, dia após dia, é este caminhar com Cristo, aceitando a sua cruz. Nesta pobreza e nesta humildade, na humildade que se vê também na eclesialidade, existe uma experiência de Deus que é mais excelsa do que aquela que se alcança mediante a reflexão: nela atingimos realmente o Coração de Deus.

Hoje existe uma nova actualidade de Dionísio Areopagita: ele manifesta-se como um grande mediador no diálogo moderno entre o cristianismo e as teologias místicas da Ásia, cuja nota característica está na convicção de que não se pode dizer quem é Deus; só se pode falar dele de formas negativas; de Deus só se consegue falar com o "não", e Ele somente é alcançado, quando se entra nesta experiência do "não". E aqui vê-se uma proximidade entre o pensamento do Areopagita e o das religiões asiáticas: hoje ele pode ser um mediador, como o foi entre o espírito grego e o Evangelho.

Vê-se, assim, que o diálogo não aceita a superficialidade. Precisamente quando se entra na profundidade do encontro com Cristo, abre-se também o vasto espaço para o diálogo. Quando se encontra a luz da verdade, compreende-se que se trata de uma luz para todos; desaparecem as polémicas e torna-se possível entender-se reciprocamente, ou pelo menos falar uns com os outros, aproximar-se. O caminho do diálogo consiste precisamente em estar próximo de Deus em Cristo, na profundidade do encontro com Ele, na experiência da verdade que nos abre à luz e nos ajuda a caminhar ao encontro do próximo: a luz da verdade, a luz do amor. E no fim de contas, diz-nos: percorrei o caminho da experiência, da humilde experiência da fé, todos os dias. Então, o coração torna-se grande e pode ver e iluminar também a razão, para que veja a beleza de Deus. Oremos ao Senhor a fim de que nos ajude inclusivamente hoje a pôr ao serviço do Evangelho a sabedoria dos nossos tempos, descobrindo novamente a beleza da fé, o encontro com Deus em Cristo.

Saudação

Amados irmãos e irmãs, saúdo os peregrinos de língua portuguesa, especialmente com um cordial abraço o numeroso grupo de visitantes provindos do Brasil. Desejo a todos felicidades, paz e graça no Senhor! Faço votos de que a luz de Cristo ilumine sempre a vossa fé, para que tenham uma vida digna, cristã e repleta de alegrias. Recebam a Bênção do Todo-Poderoso que, de bom grado, estendo aos vossos familiares e amigos.

Apelo

Neste momento, dirijo o meu pensamento às populações do Sichuan e das Províncias limítrofes na China, duramente atingidas pelo terramoto, que causou graves perdas de vidas humanas, numerosíssimos dispersos e prejuízos incalculáveis. Convido-vos a unir-vos a mim na ardente oração por todos aqueles que perderam a vida. Estou espiritualmente próximo das pessoas provadas por uma calamidade tão devastadora: para elas, imploremos de Deus o alívio no sofrimento. Queira o Senhor conceder sustento a quantos estão comprometidos em fazer frente às exigências imediatas do socorro.



Sala Paulo VI

21 de Maio de 2008: Romano, o Melodista

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Caros irmãos e irmãs

Na série de catequeses sobre os Padres da Igreja, hoje gostaria de falar de uma figura pouco conhecida: Romano, o Melodista, nascido por volta de 490 em Emesa (hoje, Homs), na Síria. Teólogo, poeta e compositor, pertence à grande plêiade de teólogos que transformaram a teologia em poesia. Pensemos no seu compatriota, Santo Efrém da Síria, que viveu duzentos anos antes dele. Mas pensemos também em teólogos do Ocidente, como Santo Ambrósio, cujos hinos ainda hoje fazem parte da nossa liturgia e sensibilizam também o coração; ou num teólogo, num pensador de grande vigor como S. Tomás, que nos transmitiu os hinos da festa do Corpus Christi de amanhã; pensemos em São João da Cruz e em muitos outros. A fé é amor, e por isso cria poesia e música. A fé é alegria, e por isso cria beleza.

Assim Romano, o Melodista, é um deles, um poeta e compositor teólogo. Tendo aprendido os primeiros rudimentos de cultura grega e síria na sua cidade natal, ele transferiu-se para Berito (Beirute), aperfeiçoando aí a educação clássica e os conhecimentos rectóricos. Tendo sido ordenado diácono permanente (515 ca), ali foi pregador durante três anos. Em seguida, transferiu-se para Constantinopla por volta do final do reino de Anastácio I (518 ca) e ali estabeleceu-se no mosteiro, junto da igreja da Theotókos, a Mãe de Deus. Aí teve lugar o episódio-chave da sua vida: o Sinaxário informa-nos sobre a aparição em sonho da Mãe de Deus e sobre o dom do carisma poético. Com efeito, Maria obrigou-o a engolir uma folha enrolada. Quando acordou na manhã do dia seguinte era a festa da Natividade do Senhor Romano começou a declamar do ambão: "Hoje, a Virgem dá à luz o Transcendente" (Hino "Sobre a Natividade" I. Proémio). Assim, tornou-se homiliasta-cantor até à sua morte (depois de 555).

Romano permanece na história como um dos mais representativos autores de hinos litúrgicos. Nessa época, para os fiéis a homilia era praticamente a única ocasião de educação catequética. Assim, Romano apresenta-se como testemunha eminente do sentimento religioso da sua época, mas também de um modo vivaz e original de catequese. Através das suas composições, podemos dar-nos conta da criatividade do pensamento teológico, da estética e da hinografia sagrada daquela época. O lugar em que Romano pregava era um santuário da periferia de Constantinopla: ele subia ao ambão, posto no centro da igreja, e falava à comunidade recorrendo a uma encenação bastante dispendiosa: utilizava representações murais ou ícones dispostos sobre o ambão e recorria também ao diálogo. As suas homilias eram métricas cantadas, chamadas "kontáki" (kontákia). Parece que o termo kontákion, "pequena vara", se refere à pequena haste ao redor da qual se envolvia o rolo de um manuscrito litúrgico ou de outro tipo. Os kontákia que chegaram até nós sob o nome de Romano são oitenta e nove, mas a tradição atribui-lhe mil.

Em Romano, cada kontákion é composto de estrofes, sobretudo de dezoito a vinte e quatro, com igual número de sílabas, estruturadas segundo o modelo da primeira estrofe (irmo); os acentos rítmicos dos versos de todas as estrofes modelam-se segundo os acentos do irmo. Cada estrofe termina com um estribilho (efimnio), de resto idêntico para criar a unidade poética. Além disso, as iniciais de cada uma das estrofes indicam o nome do autor (acróstico), muitas vezes precedido do adjectivo "humilde". Uma prece em relação aos gestos celebrados ou evocados conclui o hino. Quando terminava a leitura bíblica, Romano cantava o Proémio, sobretudo em forma de oração ou de súplica. Assim, anunciava o tema da homilia e explicava o estribilho a repetir em coro no final de cada uma das estrofes, por ele declamada com cadência em voz alta.

Um exemplo significativo é-nos oferecido pelo kontákion para a Sexta-Feira da Paixão: é um diálogo dramático entre Maria e o Filho, que se desenvolve no caminho da cruz. Maria diz: "Aonde vais, Filho? Por que percorres tão rapidamente o percurso da tua vida? / Jamais teria acreditado, ó Filho, que te veria nesta condição, / e nunca teria imaginado que a tal ponto de furor chegariam os ímpios / de lançar as mãos sobre ti, contra toda a injustiça". Jesus responde: "Por que choras, minha Mãe? [...] Não deveria eu padecer? Não deveria morrer? / Então, como poderia salvar Adão?". O Filho de Maria consola a Mãe, mas exorta-a ao seu papel na história da salvação: "Depõe portanto, Mãe, depõe a tua dor: / não te corresponde o gemer, porque foste chamada "cheia de graça"" (Maria aos pés da cruz, 1-2; 4-5). Depois, no hino sobre o sacrifício de Abraão, Sara reserva a si a decisão sobre a vida de Isaac. Abraão diz: "Quando Sara ouvir, meu Senhor, todas as tuas palavras, / conhecendo esta tua vontade, ela dir-me-á: / Se aquele que no-lo concedeu volta a tomá-lo, por que no-lo deu? / [...] Tu, ó sentinela, deixa-me o meu filho, / e quando aquele que te chamou o quiser, terá que dizê-lo a mim" (O sacrifício de Abraão, 7).

Romano não adopta o solene grego bizantino da corte, mas um grego simples, próximo à linguagem do povo. Aqui, gostaria de citar um exemplo do seu modo vivaz e muito pessoal de falar do Senhor Jesus: chama-lhe "fonte que não arde e luz contra as trevas", e diz: "Ouso ter-te na mão como uma lâmpada; / com efeito, quem leva uma candeia no meio dos homens é iluminado sem arder. / Ilumina-me, pois, Tu que és a Lâmpada inextinguível" (A Apresentação, ou Festa do Encontro, 8). A força de convicção das suas pregações fundava-se na grande coerência entre as suas palavras e a sua vida. Numa oração, ele diz: "Torna clara a minha língua, meu Salvador, abre a minha boca / e, depois de a ter enchido, trespassa o meu coração, para que o meu gesto / seja coerente com as minhas palavras" (Missão dos Apóstolos, 2).

Agora, analisemos alguns dos seus temas principais. Um tema fundamental da sua pregação é a unidade da acção de Deus na história, a unidade entre criação e história da salvação, a unidade entre o Antigo e o Novo Testamento. Outro tema importante é a pneumatologia, ou seja, a doutrina sobre o Espírito Santo. Na Festa do Pentecostes, ele ressalta a continuidade que existe entre Cristo que subiu ao céu e os Apóstolos, ou seja, a Igreja, enquanto exalta a sua acção missionária no mundo: "[...] com virtude divina conquistaram todos os homens; / tomaram a cruz de Cristo como uma caneta, / utilizaram as palavras como redes e, com elas, pescaram o mundo, / tiveram o Verbo como anzol afiado, / como isca tornou-se para eles / a carne do Soberano do universo" (O Pentecostes, 2; 18).

Outro tema central é, naturalmente, a cristologia. Ele não entra no problema dos conceitos difíceis da teologia, tão debatidos naquela época, e que também muito dilaceraram a unidade não só entre os teólogos, mas também entre os cristãos na Igreja. Ele prega uma cristologia simples mas fundamental, a cristologia dos grandes Concílios. Mas sobretudo, está próximo da piedade popular de resto, os conceitos dos Concílios nasceram da piedade popular e do conhecimento do coração cristão e assim Romano sublinha o facto de que Cristo é verdadeiro homem e verdadeiro Deus, e sendo verdadeiro Homem-Deus, é uma só pessoa, a síntese entre a criação e o Criador: nas suas palavras humanas, ouvimos falar o próprio Verbo de Deus. "Era homem diz Cristo, mas também era Deus, / porém não dividido em dois: é Um só, Filho de um Pai que é Um só" (A Paixão, 19). Quanto à mariologia, grato à Virgem pelo dom do carisma poético, Romano recorda-a no final de quase todos os hinos e dedica-lhe os seus kontáki mais lindos: Natividade, Anunciação, Maternidade divina e Nova Eva.

Enfim, os ensinamentos morais referem-se ao juízo final (As dez virgens, [II]). Ele conduz-nos para este momento da verdade da nossa vida, do confronto com o Juiz justo, e por isso exorta à conversão na penitência e no jejum. De modo positivo, o cristão deve praticar a caridade, a esmola. Ele acentua o primado da caridade sobre a continência em dois hinos, as Bodas de Caná e as Dez virgens. A caridade é a maior das virtudes: "[...] dez virgens possuíam a virtude da virgindade intacta, /mas para cinco delas o árduo exercício não deu fruto. / As outras brilharam pelas lâmpadas do amor pela humanidade, / e foi por isso que o esposo as convidou" (As dez virgens, 1).

Humanidade palpitante, ardor de fé e profunda humildade permeiam os cantos de Romano, o Melodista. Este grande poeta e compositor recorda-nos todo o tesouro da cultura cristã, nascida da fé, nascida do coração que se encontrou com Cristo, com o Filho de Deus. Deste contacto do coração com a Verdade que é Amor nasce a cultura, nasceu toda a grande cultura cristã. E se a fé permanecer viva, também esta herança cultural não morrerá, mas permanecerá viva e presente. Os ícones falam também hoje ao coração dos fiéis, não são realidades do passado. As catedrais não são monumentos medievais, mas casas de vida, onde nos sentimos "em casa": encontramo-nos com Deus e encontramo-nos uns com os outros. Nem sequer a grande música o gregoriano, ou Bach, ou Mozart é algo do passado, mas vive da vitalidade da liturgia e da nossa fé. Se a fé for viva, a cultura cristã não se tornará algo do "passado", mas permanecerá viva e presente. E se a fé for viva, também hoje poderemos responder ao imperativo que se reitera sempre de novo nos Salmos: "Cantai ao Senhor um cântico novo". Criatividade, invocação, canto novo, cultura nova e presença de toda a herança cultural na vitalidade da fé não se excluem, mas são uma única realidade; são presença da beleza de Deus e da alegria de ser seus filhos.

Saudações

A minha saudação amiga para todos vós, peregrinos de língua portuguesa, com menção especial para os grupos paroquiais de Grifões, em Portugual, e do Senhor Bom Jesus em Limeira, no Brasil: sede bem-vindos! Esta peregrinação a Roma encha de luz e fortaleza o vosso testemunho cristão, para confessardes Jesus Cristo como único Salvador e Senhor da vida: fora dele não há vida, nem esperança de a ter. Com Cristo, sucesso eterno à vida que Deus vos confiou. Para cada um de vós e família, a minha Bênção!



28 de Maio de 2008: São Gregório Magno

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Amados irmãos e irmãs!

Falei na quarta-feira passada de um Padre da Igreja pouco conhecido no Ocidente, Romano, o Melodista; hoje gostaria de apresentar a figura de um dos maiores Padres da história da Igreja, um dos quatro Doutores do Ocidente, o Papa São Gregório, que foi Bispo de Roma entre 590 e 604, e que mereceu da tradição o título de Magnus/Grande. Gregório foi verdadeiramente um grande Papa e um grande Doutor da Igreja! Nasceu em Roma, por volta de 540, de uma rica família patrícia da gens Anicia, que se distinguia não só pela nobreza de sangue, mas também pela dedicação à fé cristã e pelos serviços prestados à Sé Apostólica. Desta família nasceram dois Papas: Félix III (483-492), trisavô de Gregório, e Agapito (535-536). A casa na qual Gregório cresceu estava situada no Clivus Scauri, circundada por solenes edifícios que testemunhavam a grandeza da Roma antiga e a força espiritual do cristianismo. Os exemplos dos pais Gordiano e Sílvia, ambos venerados como santos, e os das duas tias paternas, Emiliana e Tarsília, que viveram na própria casa como virgens consagradas num caminho partilhado de oração e de ascese, inspiraram-lhe altos sentimentos cristãos.

Gregório entrou cedo na carreira administrativa, que também o pai tinha seguido, e em 572 alcançou o seu ápice, tornando-se prefeito da cidade. Esta função, complicada pela tristeza dos tempos, consentiu-lhe dedicar-se num amplo raio a todos os géneros de problemas administrativos, haurindo luzes para as futuras tarefas. Em particular, permaneceu-lhe um profundo sentido da ordem e da disciplina: tornando-se Papa, sugerirá aos Bispos que tomarem como modelo na gestão dos assuntos eclesiásticos a diligência e o respeito pelas leis próprias dos funcionários civis. Contudo, esta vida talvez não o satisfizesse porque, não muito tempo depois, deixou qualquer cargo civil, para se retirar na sua casa e iniciar a vida de monge, transformando a casa de família no mosteiro de Santo André "al Celio". Deste período de vida monástica, vida de diálogo permanente com o Senhor na escuta da sua palavra, permanecer-lhe-á uma profunda saudade que se vê sempre de novo e cada vez mais nas suas homilias: entre as obsessões das preocupações pastorais, recordá-lo-á várias vezes nos escritos como um tempo feliz de recolhimento em Deus, de dedicação à oração, de serena imersão no estudo. Assim pôde adquirir aquele conhecimento profundo da Sagrada Escritura e dos Padres da Igreja do qual se serviu depois nas suas obras.

Mas o retiro claustral de Gregório não durou muito tempo. A preciosa experiência maturada na administração civil num período caracterizado por graves problemas, as relações mantidas nesse cargo com os bizantinos, a estima universal que tinha adquirido, levaram o Papa Pelágio a nomeá-lo diácono e a enviá-lo a Constantinopla como seu "apocrisário", hoje dir-se-ia "Núncio Apostólico", para favorecer a superação dos últimos vestígios da controvérsia monofisita e sobretudo para obter o apoio do imperador no esforço de conter a pressão longobarda. A permanência em Constantinopla, onde um grupo de monges tinha retomado a vida monástica, foi importantíssima para Gregório, porque lhe deu a ocasião de adquirir experiência directa com o mundo bizantino, assim como de entrar em contacto com o problema dos Longobardos, que depois teria posto à dura prova a sua habilidade e a sua energia nos anos do Pontificado. Depois de alguns anos foi chamado de novo para Roma pelo Papa, que o nome ou seu secretário. Eram anos difíceis: as chuvas contínuas, o transbordar dos rios, a carestia afligiam muitas zonas da Itália e também Roma. No final desencadeou-se também a peste, que fez numerosas vítimas, entre as quais também o Papa Pelágio II. O clero, o povo e o senado foram unânimes em escolher como seu sucessor na Sé de Pedro precisamente a ele, Gregório. Ele procurou opor resistência, tentando até a fuga, mas sem êxito: no final teve que ceder. Era o ano 590.

Reconhecendo em quanto tinha acontecido a vontade de Deus, o novo Pontífice pôs-se imediatamente com alento à obra. Desde o início revelou uma visão singularmente lúcida da realidade com a qual se devia medir, uma extraordinária capacidade de trabalho ao enfrentar os assuntos quer eclesiásticos quer civis, um constante equilíbrio nas decisões, até corajosas, que o cargo lhe impunha. Conserva-se do seu governo uma ampla documentação graças ao Registro das suas cartas (cerca de 800), nas quais se reflecte o confronto quotidiano com as interrogações complexas que afluíam à sua mesa. Eram questões que lhe chegavam dos Bispos, dos Abades, dos clérigos, e também das autoridades civis de qualquer ordem e grau. Entre os problemas que afligiam naquele tempo a Itália e Roma encontrava-se um de particular realce em âmbito tanto civil como eclesial: a questão longobarda. A ela o Papa dedicou todas as energias possíveis em vista de uma solução verdadeiramente pacificadora. Ao contrário do Imperador bizantino que partia do pressuposto de que os Longobardos fossem apenas indivíduos grosseiros e saqueadores, a serem derrotados ou exterminados, São Gregório via este povo com os olhos de um bom pastor, preocupado em lhes anunciar a palavra da salvação, estabelecendo com eles relações de fraternidade em vista de uma paz futura fundada no respeito recíproco e na serena convivência entre italianos, imperiais e longobardos. Preocupou-se com a conversão dos jovens povos e da nova organização civil da Europa: os Visigodos da Espanha, os Francos, os Saxões, os imigrados na Bretanha e os Longobardos, foram os destinatários privilegiados da sua missão evangelizadora. Celebrámos ontem a memória litúrgica de Santo Agostinho de Cantuária, o chefe de um grupo de monges encarregados por Gregório de ir à Bretanha para evangelizar a Inglaterra.

Para obter uma paz efectiva em Roma e na Itália, o Papa comprometeu-se profundamente era um verdadeiro pacificador empreendendo uma cerrada negociação com o rei longobardo Agilulfo. Tal negociação levou a um período de trégua que durou cerca de três anos (598-601), depois dos quais foi possível estabelecer em 603 um armistício mais estável. Este resultado positivo foi obtido também graças aos contactos paralelos que, entretanto, o Papa mantinha com a rainha Teodolinda, que era uma princesa bávara e, ao contrário dos chefes dos outros povos germânicos, era católica, profundamente católica. Conserva-se uma série de cartas do Papa Gregório a esta rainha, nas quais revela a sua estima e a sua amizade por ela. Teodolinda conseguiu pouco a pouco guiar o rei ao catolicismo, preparando assim o caminho para a paz. O Papa preocupou-se também em lhe enviar as relíquias para a basílica de São João Baptista por ela feita erigir em Monza, e não deixou de lhe enviar expressões de bons votos e preciosos dons para a mesma Catedral de Monza por ocasião do nascimento e do baptismo do filho Adaloaldo. A vicissitude desta rainha constitui um bonito testemunho sobre a importância das mulheres na história da Igreja. No fundo, os objectivos nos quais Gregório apostou constantemente foram três: conter a expansão dos Longobardos na Itália; subtrair a rainha Teodolinda à influência dos cismáticos e fortalecer a fé católica; mediar entre Longobardos e Bizantinos em vista de um acordo que garantisse a paz na península e ao mesmo tempo consentisse desempenhar uma acção evangelizadora entre os próprios Longobardos. Portanto, foi dúplice a sua constante orientação na complexa vicissitude: promover entendimentos a nível diplomático-político, difundir o anúncio da verdadeira fé entre as populações.

Ao lado da acção meramente espiritual e pastoral, o Papa Gregório tornou-se protagonista activo também de uma mutiforme actividade social. Com os rendimentos do conspícuo património que a Sé romana possuía na Itália, especialmente na Sicília, comprou e distribuiu trigo, socorreu quem estava em necessidade, ajudou sacerdotes, monges e monjas que viviam na indigência, pagou resgates de cidadãos que caíram prisioneiros dos Longobardos, comprou armistícios e tréguas. Além disso, desempenhou quer em Roma quer noutras partes da Itália uma atenta obra de reorganização administrativa, dando instruções claras para que os bens da Igreja, úteis para a sua subsistência e a sua obra evangelizadora no mundo, fossem geridos com absoluta rectidão e segundo as regras da justiça e da misericórdia. Exigia que os colonos fossem protegidos das prevaricações dos concessionários das terras de propriedade da Igreja e, em caso de fraude, fossem imediatamente indemnizados, para que o rosto da Esposa de Cristo não fosse maculado com lucros desonestos.

Gregório desempenhou esta intensa actividade apesar da saúde frágil, que o obrigava com frequência a permanecer de cama por longos dias. Os jejuns praticados durante os anos da vida monástica tinham-lhe causado sérias complicações no aparelho digestivo. Além disso, a sua voz era muito débil e assim, com frequência, era obrigado a confiar ao diácono a leitura das suas homilias, para que os fiéis presentes nas basílicas romanas pudessem ouvi-lo. Contudo, fazia o possível para celebrar nos dias de festa a Missarum sollemnia, isto é, a Missa solene, e então encontrava-se pessoalmente como povo de Deus, que lhe estava muito afeiçoado, porque via nele a referência autorizada da qual haurir segurança: não por acaso lhe foi depressa atribuído o título de consul Dei. Apesar das condições dificilíssimas nas quais teve que desempenhar a sua obra, conseguiu conquistar, graças à santidade da vida e à rica humanidade, a confiança dos fiéis, obtendo para o seu tempo e para o futuro resultados verdadeiramente grandiosos. Era um homem imerso em Deus: o desejo de Deus estava sempre vivo no fundo da sua alma e precisamente por isso ele vivia sempre muito próximo das pessoas, das necessidades do povo do seu tempo. Numa época desastrosa, aliás desesperada, soube criar paz e dar esperança. Este homem de Deus mostra-nos onde estão as verdadeiras nascentes da paz, de onde vem a verdadeira esperança e torna-se assim um guia também para nós hoje.

Saudações

Amados irmãos e irmãs!

Saúdo cordialmente a quantos me escutam de língua portuguesa, desejando-lhes todo o bem no Senhor. Em particular saúdo o numeroso grupo de peregrinos provindos de diversas partes do Brasil. Faço votos de que a visita à cidade, onde foram martirizados os Apóstolos São Pedro e São Paulo, reavive a fé em Cristo Jesus, que por amor nos redimiu e nos chamou filhos de Deus, para que vivamos na justiça e na paz. A todos de coração dou a minha Bênção, que faço extensiva aos vossos familiares e amigos.




Audiências 2005-2013 14058