Audiências 2005-2013 1108

1 de Outubro de 2008: São Paulo (6): O "Concílio" de Jerusalém e o incidente de Antioquia

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Queridos irmãos e irmãs

O respeito e a veneração que Paulo sempre cultivou pelos Doze não diminuem quando ele defende com franqueza a verdade do Evangelho, que não é senão Jesus Cristo, o Senhor. Hoje, queremos reflectir sobre dois episódios que demonstram a veneração e, ao mesmo tempo, a liberdade com que o Apóstolo se dirige a Cefas e aos outros Apóstolos: o chamado "Concílio" de Jerusalém e o incidente de Antioquia da Síria, narrados na Carta aos Gálatas (cf.
Ga 2,1-10 Ga 2,11-14).

Cada Concílio e Sínodo da Igreja é "evento do Espírito" e contém na sua realização as instâncias de todo o povo de Deus: experimentaram-no pessoalmente quantos receberam o dom de participar no Concílio Vaticano II. Por isso São Lucas, informando-nos sobre o primeiro Concílio da Igreja, realizado em Jerusalém, assim introduz a carta que os Apóstolos enviaram naquela circunstância às comunidades cristãs da diáspora: "Decidimos, o Espírito Santo e nós..." (Ac 15,28). O Espírito, que age em toda a Igreja, conduz pela mão os Apóstolos no empreendimento de novos caminhos para realizar os seus projectos: Ele é o artífice principal da edificação da Igreja.

E no entanto, a assembleia de Jerusalém realizou-se num momento de não pequena tensão no interior da Comunidade das origens. Tratava-se de responder à questão se era necessário exigir dos pagãos que então aderiam a Jesus Cristo o Senhor, a circuncisão, ou se era lícito deixá-los livres da Lei mosaica, ou seja, da observância das normas necessárias para ser homens justos, seguidores da Lei, e sobretudo livres das normas relativas às purificações cultuais, aos alimentos puros e impuros e ao sábado. Sobre a assembleia de Jerusalém, também São Paulo discorre em Ga 2,1-10: à distância de 14 anos do encontro com o Ressuscitado em Damasco estamos na segunda metade dos anos 40 d.C. Paulo parte com Barnabé de Antioquia da Síria e faz-se acompanhar por Tito, o seu fiel colaborador que, embora fosse de origem grega, não tinha sido obrigado a fazer-se circuncidar para entrar na Igreja. Nesta ocasião, Paulo expõe aos Doze, definidos como as pessoas mais respeitáveis, o seu evangelho da liberdade da Lei (cf. Ga 2,6). À luz do encontro com Cristo ressuscitado, Ele compreendera que no momento da passagem ao Evangelho de Jesus Cristo, os pagãos já não tinham necessidade da circuncisão, das regras acerca dos alimentos, do sábado, como sinais distintivos da justiça: Cristo é a nossa justiça, e "justo" é tudo aquilo que está em conformidade com Ele. Não são necessários outros sinais distintivos para serem justos. Na Carta aos Gálatas narra, com poucas observações, o desenvolvimento da assembleia: com entusiasmo recorda que o Evangelho da liberdade da Lei foi aprovado por Tiago, Cefas e João, "as colunas", que oferecem a ele e a Barnabé a direita da comunhão eclesial em Cristo (cf. Ga 2,9). Se, como observamos, para Lucas o Concílio de Jerusalém exprime a acção do Espírito Santo, para Paulo representa o decisivo reconhecimento da liberdade compartilhada entre todos aqueles que nele participaram: uma liberdade das obrigações provenientes da circuncisão e da Lei; aquela liberdade para a qual "Cristo nos libertou, para que permanecêssemos livres" e já não nos deixássemos impor o jugo da escravidão (cf. Ga 5,1). As duas modalidades com que Paulo e Lucas descrevem a assembleia de Jerusalém são unidas pela acção libertadora do Espírito, porque "onde está o Espírito do Senhor existe liberdade", dirá na segunda Carta aos Coríntios (cf. 2Co 3,17).

Todavia, como se vê com grande clareza nas Cartas de São Paulo, a liberdade cristã nunca se identifica com a libertinagem ou com o arbítrio de fazer aquilo que se quer: ela realiza-se na conformidade com Cristo e, por isso, no serviço autêntico aos irmãos, sobretudo aos mais necessitados. Portanto, o resumo de Paulo sobre a assembleia conclui-se com a recordação da recomendação que os Apóstolos lhe dirigiram: "Recomendaram-nos somente que nos lembrássemos dos pobres, o que procurei fazer com grande solicitude" (Ga 2,10). Cada Concílio nasce da Igreja e volta para a Igreja: naquela ocasião, volta a ela com a atenção pelos pobres que, das diversas anotações de Paulo nas suas Cartas, são sobretudo os da Igreja de Jerusalém. Na solicitude pelos pobres, atestada de modo particular na segunda Carta aos Coríntios (cf. 2Co 8-9) e na parte conclusiva da Carta aos Romanos (cf. Rm 15), Paulo demonstra a sua fidelidade às decisões amadurecidas durante a assembleia.

Talvez já não sejamos capazes de compreender plenamente o significado que Paulo e as suas comunidades atribuem à colecta para os pobres de Jerusalém. Tratava-se de uma iniciativa totalmente nova no panorama das actividades religiosas: não era obrigatória, mas livre e espontânea; nela participaram todas as Igrejas fundadas por Paulo no Ocidente. A colecta exprimia a dívida das suas comunidades em relação à Igreja-mãe da Palestina, da qual tinham recebido o dom inefável do Evangelho. O valor que Paulo atribui a este gesto de partilha é tão grande, que raramente ele o chama simplesmente "colecta": para ele, é acima de tudo "serviço", "bênção", "amor", graça", aliás, "liturgia" (cf. 2Co 9). Surpreende, de modo particular, este último termo, que confere à angariação de dinheiro um valor também cultual: por um lado, ela é gesto litúrgico ou "serviço", oferecido por cada comunidade a Deus, por outro é acção de amor realizada a favor do povo. Amor aos pobres e liturgia divina caminham juntos, o amor aos pobres é liturgia. Os dois horizontes estão presentes em cada liturgia celebrada e vivida na Igreja, que por sua natureza se opõe à separação entre o culto e a vida, entre a fé e as obras, entre a oração e a caridade para com os irmãos. Assim, o Concílio de Jerusalém nasce para dirimir a questão sobre o modo de se comportar com os pagãos que chegam à fé, escolhendo a liberdade da circuncisão e das observâncias da Lei, e resolve-se na instância eclesial e pastoral que põe no centro a fé em Jesus Cristo e o amor pelos pobres de Jerusalém e de toda a Igreja.

O segundo episódio é o conhecido incidente de Antioquia, na Síria, que dá testemunho da liberdade interior de que Paulo gozava: como comportar-se por ocasião da comunhão comensal entre crentes de origem judaica e aqueles de origem pagã? Sobressai aqui o outro epicentro da observância mosaica: a distinção entre alimentos puros e impuros, que dividia profundamente os judeus observantes dos pagãos. Inicialmente Cefas, Pedro, compartilhava a mesa com uns e com outros; mas com a chegada de alguns cristãos ligados a Tiago, "o irmão do Senhor" (Ga 1,19), Pedro tinha começado a evitar os contactos com os pagãos à mesa, para não escandalizar aqueles que continuavam a observar as leis de pureza alimentar; e a opção tinha sido compartilhada por Barnabé. Esta opção dividia profundamente os cristãos vindos da circuncisão e os cristãos provenientes do paganismo. Este comportamento, que ameaçava realmente a unidade e a liberdade da Igreja, suscitou as profundas reacções de Paulo, que chegou a acusar Pedro e os outros de hipocrisia: "Se tu, que és judeu, vives à maneira dos gentios e não à dos judeus, como podes obrigar os gentios a judaizar" (Ga 2,14). Na realidade, eram diversas as preocupações de Paulo, por um lado, e de Pedro e Barnabé por outro: para estes últimos, a separação dos pagãos representava uma modalidade para tutelar e não para escandalizar os crentes provenientes do judaísmo; para Paulo constituía, ao contrário, um perigo de mal-entendido da salvação universal em Cristo, oferecida tanto aos pagãos como aos judeus. Se a justificação se realiza somente em virtude da fé em Cristo, da conformidade com Ele, sem qualquer obra de Lei, que sentido tem continuar a observar a pureza alimentar por ocasião da partilha da mesa? Muito provavelmente as perspectivas de Pedro e de Paulo eram diversas: para o primeiro, não perder os judeus que tinham aderido ao Evangelho; para o segundo, não diminuir o valor salvífico da morte de Cristo para todos os crentes.

Parece estranho, mas escrevendo aos cristãos de Roma alguns anos depois (a meados dos anos 50 a.C.), o próprio Paulo estará diante de uma situação análoga e pedirá aos fortes que não comam alimentos impuros para não perderem ou para não escandalizarem os fracos: "O que é bom é não comer carne, nem beber vinho, e evitar aquilo que faz o teu irmão tropeçar" (Rm 14,21). O incidente de Antioquia revelou-se assim uma lição, tanto para Pedro como para Paulo. Somente o diálogo sincero, aberto à verdade do Evangelho, pôde orientar o caminho da Igreja: "Porque o Reino de Deus não consiste em comer e beber, mas na justiça, paz e alegria do Espírito Santo" (Rm 14,17). É uma lição que também temos de aprender: com os diferentes carismas confiados a Pedro e a Paulo, deixemo-nos todos guiar pelo Espírito, procurando viver na liberdade que encontra a sua orientação na fé em Cristo, concretizando-se no serviço aos irmãos. É essencial que estejamos sempre em conformidade com Cristo. É assim que nos tornamos realmente livres, assim se expressa em nós o núcleo mais profundo da Lei: o amor a Deus e ao próximo. Oremos ao Senhor que nos ensine a compartilhar os seus sentimentos, para aprender dele a verdadeira liberdade e o amor evangélico que abraça cada ser humano.

Saudações

Aos peregrinos de língua portuguesa que vieram de Portugal e do Brasil, saúdo cordialmente com estima e sincero afeto. Seguindo os passos da Catequese de hoje, faço votos por que possais acompanhar, unidos às intenções do Papa, as celebrações e o desenrolar da décima segunda Assembléia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, subordinada ao tema: "A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja". "Todo o Concílio e Sínodo é, com efeito, um evento do Espírito". Por isso, ajudados pelos dons do Altíssimo, confiamos no sucesso deste significativo acontecimento eclesial. Que Deus vos abençoe!



8 de Outubro de 2008: São Paulo (7): A relação com o Jesus histórico

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Queridos irmãos e irmãs!

Nas últimas catequeses sobre São Paulo falei do seu encontro com Cristo ressuscitado, que mudou profundamente a sua vida, e depois da sua relação com os doze Apóstolos chamados por Jesus particularmente com Tiago, Cefas e João e da sua relação com a Igreja de Jerusalém. Permanece agora a questão sobre o que São Paulo soube do Jesus terreno, da sua vida, dos seus ensinamentos, da sua paixão. Antes de entrar nesta questão, pode ser útil ter presente que o próprio São Paulo distingue dois modos de conhecer Jesus e mais em geral dois modos de conhecer uma pessoa. Escreve na Segunda Carta aos Coríntios: "De modo que, desde agora em diante, a ninguém conhecemos segundo a carne. Ainda que tenhamos conhecido a Cristo desse modo, agora já não O conhecemos assim" (
2Co 5,16). Conhecer "segundo a carne", de modo carnal, significa conhecer de modo apenas exterior, com critérios superficiais: pode-se ter visto uma pessoa diversas vezes, conhecer portanto as suas feições e os diversos pormenores do seu comportamento: como fala, como se move, etc. Contudo, mesmo conhecendo alguém desta forma, não o conhecemos realmente, não se conhece o núcleo da pessoa. Só com o coração se conhece verdadeiramente uma pessoa. De facto, os fariseus e os saduceus conheceram Jesus de modo exterior, ouviram o seu ensinamento, conheceram muitos pormenores acerca dele, mas não O conheceram na sua verdade. Há uma distinção análoga numa palavra de Jesus. Depois da Transfiguração, Ele pergunta aos Apóstolos: "Quem dizem as pessoas que Eu sou?" e "Quem dizeis vós que Eu sou?". O povo conhece-o, mas superficialmente; sabe diversas coisas acerca d'Ele, mas não O conhece realmente. Ao contrário os Doze, graças à amizade que chama em causa o coração, compreenderam pelo menos na substância e começaram a conhecer quem é Jesus. Também hoje existe este modo diverso de conhecimento: há pessoas doutas que conhecem Jesus nos seus muitos pormenores e pessoas simples que não conhecem estes pormenores, mas conheceram-no na sua verdade: "o coração fala ao coração". E Paulo quer dizer que conhece essencialmente Jesus assim, com o coração, e que conhece deste modo fundamentalmente a pessoa na sua verdade; e depois, num segundo momento, conhece os seus pormenores.

Dito isto, permanece contudo a questão: o que soube São Paulo da vida concreta, das palavras, da paixão, dos milagres de Jesus? Parece certo que não O encontrou durante a sua vida terrena. Através dos Apóstolos e da Igreja nascente conheceu certamente também os pormenores sobre a vida terrena de Jesus. Nas suas Cartas podemos encontrar três formas de referência ao Jesus pré-pascal. Em primeiro lugar, há referências explícitas e directas. Paulo fala da ascendência davídica de Jesus (cf. Rm 1,3), conhece a existência de seus "irmãos" ou consanguíneos (1Co 9,5 Ga 1,19), conhece a realização da Última Ceia (cf. 1Co 11,23), conhece outras palavras de Jesus, por exemplo sobre a indissolubilidade do matrimónio (cf. 1Co 7,10 com Mc 10,11-12), sobre a necessidade que quem anuncia o Evangelho seja mantido pela comunidade porque o operário é digno do seu salário (cf. 1Co 9,14 com Lc 10,7); Paulo conhece as palavras pronunciadas por Jesus na Últimas Ceia (cf. 1Co 11,24-25 com Lc 22,19-20) e conhece também a cruz de Jesus. Estas são referências directas a palavras e factos da vida de Jesus.

Em segundo lugar, podemos entrever nalgumas frases das Cartas paulinas várias alusões à tradição confirmada nos Evangelhos sinópticos. Por exemplo, as palavras que lemos na primeira Carta aos Tessalonicenses, segundo as quais "o dia do Senhor virá como um ladrão de noite" (1Th 5,2), não se explicariam com uma referência às profecias veterotestamentárias, porque a comparação do ladrão nocturno se encontra só nos Evangelhos de Mateus e de Lucas, portanto é tirada precisamente da tradição sinóptica. Assim, quando lemos: "Deus escolheu o que segundo o mundo é louco..." (1Co 1,27-28), ouvimos o eco fiel do ensinamento de Jesus sobre os simples e os pobres (cf. Mt 5,3 Mt 11,25 Mt 19,30). Há depois as palavras pronunciadas por Jesus no júbilo messiânico: "Bendigo-Te, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos entendidos e as revelaste aos pequeninos". Paulo sabe é a sua experiência missionária quanto são verdadeiras estas palavras, isto é, que precisamente os simples têm o coração aberto ao conhecimento de Jesus. Também o realce sobre a obediência de Jesus "até à morte", que se lê em Fl 2, 8 não pode deixar de recordar a total disponibilidade do Jesus terreno a realizar a vontade de seu Pai (cf. Mc 3,35 Jn 4,34). Portanto Paulo conhece a paixão de Jesus, a sua cruz, o modo como Ele viveu os últimos momentos da sua vida. A cruz de Jesus e a tradição sobre este acontecimento da cruz está no centro do Querigma paulino. Outro pilar da vida de Jesus conhecido por São Paulo é o Sermão da Montanha, do qual cita alguns elementos quase à letra, quando escreve aos Romanos: "Amai-vos uns aos outros... Bendizei aqueles que vos perseguem... Vivei em paz com todos... Vence o mal com o bem...". Portanto, nas suas Cartas há um reflexo fiel do Sermão da Montanha (cf. Mt 5-7).

Por fim, é possível ver um terceiro modo de presença das palavras de Jesus nas Cartas de Paulo: é quando ele realiza uma forma de transposição da tradição pré-pascal para a situação depois da Páscoa. Um caso típico é o tema do Reino de Deus. Ele está certamente no centro da pregação do Jesus histórico (cf. Mt 3,2 Mc 1,15 Lc 4,43). Em Paulo pode-se ver uma transposição desta temática, porque depois da ressurreição é evidente que Jesus em pessoa, o Ressuscitado, é o Reino de Deus. Portanto, o Reino chega aonde está a chegar Jesus. E assim necessariamente o tema do Reino de Deus, no qual estava antecipado o mistério de Jesus, transforma-se em cristologia. Contudo, as mesmas disposições exigidas por Jesus para entrar no Reino de Deus são válidas exactamente para Paulo em relação à justificação mediante a fé: quer a entrada no Reino quer a justificação exigem uma atitude de grande humildade e disponibilidade, livre de presunções, para acolher a graça de Deus. Por exemplo, a parábola do fariseu e do publicano (cf. Lc 18,9-14) oferece um ensinamento igual ao de Paulo, quando insiste sobre a exclusão obrigatória de qualquer vanglória em relação a Deus. Também as frases de Jesus sobre os publicanos e as prostitutas, mais disponíveis que os fariseus a acolher o Evangelho (cf. Mt 21,31 Lc 7,36-50), e as suas opções de partilha da mesa com eles (cf. Mt 9,10-13 Lc 15,1-2) encontram plena correspondência na doutrina de Paulo sobre o amor misericordioso de Deus pelos pecadores (cf. Rm 5,8-10 e também Ep 2,3-5). Assim o tema do Reino de Deus é reproposto de forma nova, mas sempre em plena fidelidade à tradição do Jesus histórico.

Outro exemplo de transformação fiel do núcleo doutrinal indicado por Jesus encontra-se nos "títulos" que a Ele se referem. Antes da Páscoa ele mesmo se qualifica como Filho do homem; depois da Páscoa torna-se evidente que o Filho do homem é também o Filho de Deus. Portanto o título preferido por Paulo para qualificar Jesus é Kýrios, "Senhor" (cf. Ph 2,9-11), que indica a divindade de Jesus. O Senhor Jesus, com este título, sobressai na plena luz da ressurreição. No Horto das Oliveiras, no momento da extrema agonia de Jesus (cf. Mc 14,36), os discípulos antes de adormecerem tinham ouvido como Ele falava com o Pai e como O chamava "Abbá Pai". É uma palavra muito familiar equivalente ao nosso "papá", usada só por crianças em comunhão com o seu pai. Até àquele momento era impossível que um judeu usasse uma semelhante palavra para se dirigir a Deus; mas Jesus, sendo verdadeiro filho, naquele momento de intimidade fala assim e diz: "Abbá, Pai". Nas Cartas de São Paulo aos Romanos e aos Gálatas surpreendentemente esta palavra "Abbá", que expressa a exclusividade da filiação de Jesus, sai da boca dos baptizados (cf. Rm 8,15 Ga 4,6), porque receberam o "Espírito do Filho" e agora trazem consigo este Espírito e podem falar como Jesus e com Jesus como verdadeiros filhos ao seu Pai, podem dizer "Abbá" porque se tornaram filhos no Filho.

E finalmente gostaria de mencionar a dimensão salvífica da morte de Jesus, como encontramos na frase evangélica segundo a qual "o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por muitos" (Mc 10,45 Mt 20,28). O reflexo fiel desta palavra de Jesus sobressai na doutrina paulina sobre a morte de Jesus como resgate (cf. 1Co 6,20), como redenção (cf. Rm 3,24), como libertação (cf. Ga 5,1) e como reconciliação (cf. Rm 5,10 2Co 5,18-20). Está aqui o centro da teologia paulina, que se baseia nesta palavra de Jesus.

Em conclusão, São Paulo não pensa em Jesus na veste de historiador, como numa pessoa do passado. Conhece certamente a grande tradição sobre a sua vida, as palavras, a morte e a ressurreição de Jesus, mas não trata tudo isto como coisas do passado; propõe-no como realidade do Jesus vivo. As palavras e as acções de Jesus para Paulo não pertencem ao tempo histórico, ao passado. Jesus vive e fala agora connosco e vive para nós. É este o verdadeiro modo de conhecer Jesus e de acolher a tradição acerca dele. Também nós devemos aprender a conhecer Jesus não segundo a carne, como uma pessoa do passado, mas como nosso Senhor e Irmão, que hoje está connosco e nos mostra como viver e como morrer.

Saudações

Amados peregrinos de língua portuguesa, a minha cordial saudação para todos os presentes, mormente os grupos paroquiais referidos de Itapecerica da Serra, Monte Sião e São Paulo, no Brasil. Bem-vindos a Roma! Pisais terra santa, banhada pelo sangue dos mártires. Quiseram obrigá-los a deixar Cristo para salvarem a vida, mas eles responderam que a sua vida era Cristo; e, certos disso, preferiram Cristo à própria vida. Possa a mesma certeza iluminar a vida de cada um de vós e dos vossos familiares, que de coração abençoo.



15 de Outubro de 2008: São Paulo (8): A dimensão eclesiológica do pensamento de Paulo

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Amados irmãos e irmãs!

Na catequese de quarta-feira passada falei sobre o relacionamento de Paulo com o Jesus pré-pascal na sua vida terrena. A questão era: "O que sabia Paulo da vida de Jesus, das suas palavras e da sua paixão?". Hoje, gostaria de falar do ensinamento de São Paulo sobre a Igreja. Devemos começar pela constatação de que esta palavra, "Chiesa" em italiano assim como em francês "Eglise" e em espanhol "Iglesia" deriva do grego "ekklesía"! Ela provém do Antigo Testamento e significa a assembleia do povo de Israel, convocada por Deus, particularmente a assembleia exemplar aos pés do Sinai. Com esta palavra, agora é significada a nova comunidade dos crentes em Cristo que se sentem a assembleia de Deus, a nova convocação de todos os povos por parte de Deus e diante dele. O vocábulo ekklesía faz a sua aparição, pela primeira vez, sob a pena de Paulo, que é o primeiro autor de um escrito cristão. Isto acontece no incipit da primeira Carta aos Tessalonicenses, onde Paulo se dirige textualmente "à Igreja dos Tessalonicenses" (cf. também "a Igreja da Laodiceia", em
Col 4,16). Noutras Cartas, ele fala da Igreja de Deus que está em Corinto (cf. 1Co 1,2 2Co 1,1), que está na Galácia (cf. Ga 1,2 etc.) portanto, Igrejas particulares mas diz também que perseguiu "a Igreja de Deus": não uma determinada comunidade local, mas "a Igreja de Deus". Assim vemos que esta palavra "Igreja" tem um significado pluridimensional: indica por um lado as assembleias de Deus em determinados lugares (uma cidade, um país, uma casa), mas significa também toda a Igreja no seu conjunto. E assim vemos que "a Igreja de Deus" não é apenas uma soma de diversas Igrejas locais, mas que as várias Igrejas locais são por sua vez a realização da única Igreja de Deus. Todas juntas são "a Igreja de Deus", que precede as Igrejas locais singularmente e que nelas se exprime e se realiza.

É importante observar que quase sempre a palavra "Igreja" aparece com o acréscimo da qualificação "de Deus": não se trata de uma associação humana, nascida de ideias ou de interesses conjuntos, mas de uma convocação de Deus. Ele convocou-a e, por isso, é una em todas as suas realizações. A unidade de Deus cria a unidade da Igreja em todos os lugares onde se encontra. Mais tarde, na Carta aos Efésios, Paulo elaborará abundantemente o conceito de unidade da Igreja, em continuidade com o conceito de Povo de Deus, Israel, considerado pelos profetas como "esposa de Deus", chamada a viver uma relação esponsal com Ele. Paulo apresenta a única Igreja de Deus como "esposa de Cristo" no amor, um só corpo e um único espírito com o próprio Cristo. Sabe-se que o jovem Paulo fora um feroz adversário do novo movimento constituído pela Igreja de Cristo. Era seu adversário, porque vira ameaçada neste novo movimento a fidelidade à tradição do povo de Deus, animado pela fé no único Deus. Esta fidelidade expressava-se sobretudo na circuncisão, na observância das regras da pureza cultual, da abstensão de certos alimentos, do respeito pelo sábado. Os israelitas tinham pago esta fidelidade com o sangue dos mártires, na época dos Macabeus, quando o regime helenista queria obrigar todos os povos a conformar-se com a única cultura helenista. Muitos israelitas tinham defendido com o sangue a própria vocação de Israel. Os mártires pagaram com a vida a identidade do seu povo, que se expressava mediante estes elementos. Depois do encontro com Cristo ressuscitado, Paulo compreendeu que os cristãos não eram traidores; pelo contrário, na nova situação o Deus de Israel, através de Cristo, tinha ampliado a sua chamada a todas as gentes, tornando-se o Deus de todos os povos. Assim se realizava a fidelidade ao único Deus; já não eram necessários sinais distintivos, constituídos por normas e observações particulares, porque todos eram chamados, na sua variedade, a fazer parte do único povo de Deus da "Igreja de Deus" em Cristo.

Para Paulo uma coisa foi imediatamente clara na nova situação: o valor fundamental e constituinte de Cristo e da "palavra" que O anunciava. Paulo sabia que as pessoas não só não se tornam cristãs por coercção, mas que na configuração interna da nova comunidade a componente institucional estava inevitavelmente vinculada à "palavra" viva, ao anúncio do Cristo vivo em quem Deus se abriu a todos os povos, unindo-os num único povo de Deus. É sintomático que nos Actos dos Apóstolos Lucas utilize várias vezes, também a propósito de Paulo, o sintagma "anunciar a palavra" (Ac 4,29 Ac 4,31 Ac 8,25 Ac 11,19 Ac 23,46 Ac 14,25 Ac 16,6 Ac 16,32), com a evidente intenção de pôr em evidência ao máximo o alcance decisivo da "palavra" do anúncio. A nível concreto, tal palavra é constituída pela cruz e pela ressurreição de Cristo, em quem as Escrituras encontraram realização. O Mistério pascal, que provocou a transformação da sua vida no caminho de Damasco, está obviamente no âmago da pregação do Apóstolo (cf. 1Co 2,2 1Co 15,4). Este Mistério, anunciado pela palavra, realiza-se nos sacramentos do Baptismo e da Eucaristia, e depois torna-se realidade na caridade cristã. A obra evangelizadora de Paulo não tem como finalidade outra coisa, senão implantar a comunidade dos crentes em Cristo. Esta ideia é ínsita na etimologia do vocábulo ekklesía que Paulo, e com ele o cristianismo inteiro, preferiu ao outro termo de "sinagoga": não somente porque, originariamente, o primeiro é mais "laico" (uma vez que deriva da prática grega da assembleia política, e não propriamente religiosa), mas também porque ele implica de modo directo a ideia mais teológica de uma chamada ab extra, portanto não de uma simples reunião; os fiéis são chamados por Deus, que os reúne numa comunidade, a sua Igreja.

Nesta linha podemos entender também o conceito original exclusivamente paulino, da Igreja como "Corpo de Cristo". A este propósito, é necessário ter presentes as duas dimensões deste conceito. Uma é de cunho sociológico, segundo o qual o corpo é constituído pelos seus membros e sem eles não existiria. Esta interpretação aparece na Carta aos Romanos e na primeira Carta aos Coríntios, onde Paulo assume uma imagem que já existia na sociologia romana: ele diz que um povo é como um corpo com diversos membros, cada qual com sua própria função, mas todos, mesmo os mais pequeninos e aparentemente insignificantes, são necessários para que o corpo possa viver e realizar as funções que lhe são próprias. Oportunamente, o Apóstolo observa que na Igreja existem muitas vocações: profetas, apóstolos, mestres, pessoas simples, e todos são chamados a viver cada dia a caridade, e todos são necessários para construir a unidade viva deste organismo espiritual. A outra interpretação faz referência ao próprio Corpo de Cristo. Paulo afirma que a Igreja não é somente um organismo, mas torna-se realmente corpo de Cristo no sacramento da Eucaristia, onde todos nós recebemos o seu Corpo e nos tornamos realmente o seu Corpo. Assim se realiza o mistério esponsal que todos se tornam um só corpo e um único espírito em Cristo. Assim a realidade vai muito além da imagem sociológica, expressando a sua essência verdadeira e profunda, ou seja, a unidade de todos os baptizados em Cristo, considerados pelo Apóstolo "um só" em Cristo, conformados com o sacramento do seu Corpo.

Dizendo isto, Paulo mostra que bem sabe e faz compreender a todos que a Igreja não é sua e não é nossa: a Igreja é Corpo de Cristo, é "Igreja de Deus", "campo de Deus, edificação de Deus... templo de Deus" (1Co 3,9 1Co 3,16). Esta última designação é particularmente interessante, porque atribui a um tecido de relacionamentos interpessoais um termo que, em geral, servia para indicar um lugar físico, considerado sagrado. Por isso, a relação entre Igreja e templo assume duas dimensões complementares: por um lado, é aplicada à comunidade eclesial a característica de separação e pureza que cabia ao edifício sagrado, mas por outro é também ultrapassado o conceito de um espaço material, para transferir este valor para a realidade de uma comunidade de fé viva. Se antes os templos eram considerados lugares da presença de Deus, agora sabe-se e vê-se que Deus não habita nos edifícios feitos de pedra, mas que o lugar da presença de Deus no mundo é a comunidade viva dos fiéis.

Uma abordagem à parte mereceria a qualificação de "povo de Deus", que em Paulo é aplicada substancialmente ao povo do Antigo Testamento e depois aos pagãos, que eram "o não-povo" e também eles se tornaram povo de Deus graças à sua inserção em Cristo mediante a palavra e o sacramento. E finalmente um derradeiro pormenor. Na Carta a Timóteo, Paulo qualifica a Igreja como "casa de Deus" (1Tm 3,15); e esta é uma definição verdadeiramente original, porque se refere à Igreja como estrutura comunitária em que se vivem profundos relacionamentos interpessoais de índole familiar. O Apóstolo ajuda-nos a compreender cada vez mais profundamente o mistério da Igreja nas suas diferentes dimensões de assembleia de Deus no mundo. Esta é a grandeza da Igreja e a grandeza da nossa chamada: somos templo de Deus no mundo, lugar onde Deus realmente habita e, ao mesmo tempo, somos comunidade, família de Deus, que é caridade. Como família e casa de Deus, temos que realizar no mundo a caridade de Deus e deste modo ser, com o vigor que provém da fé, lugar e sinal da sua presença. Oremos ao Senhor, a fim de que nos conceda ser cada vez mais a sua Igreja, o seu Corpo, o lugar da presença da sua caridade neste nosso mundo e também na nossa história.

Saudações

Estimados peregrinos e visitantes de língua portuguesa, a minha mais cordial saudação em Cristo Jesus. Convidoa todos, na linha da catequese de hoje, a invocar ao Apóstolo Paulo, para que nos ajude a compreender com maior profundidade o mistério da Igreja, sobretudo para amá-la e cooperar responsavelmente na sua edificação. Com estes votos saúdo os grupos de portugueses que vieram da Arquidiocese de Braga, e os brasileiros de Foz do Iguaçu e de São João da Boa Vista. A todos vós e às vossas famílias dou de coração a minha Bênção Apostólica.



22 de Outubro de 2008:São Paulo (9): A importância da cristologia - Preexistência e encarnação

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Prezados irmãos e irmãs

Nas catequeses das semanas passadas, meditamos sobre a "conversão" de São Paulo, fruto do encontro pessoal com Jesus crucificado e ressuscitado, e interrogamo-nos sobre qual foi o relacionamento do Apóstolo das Nações com o Jesus terreno. Hoje, gostaria de falar do ensinamento que São Paulo nos deixou acerca da centralidade de Cristo ressuscitado no mistério da salvação, sobre a sua cristologia. Na verdade, Jesus Cristo ressuscitado, "exaltado acima de todos os nomes", encontra-se no âmago de toda a sua reflexão. Para o Apóstolo, Cristo constitui o critério de avaliação dos acontecimentos e das realidades, a finalidade de todo o esforço que ele realiza para anunciar o Evangelho, a grande paixão que sustém os seus passos pelos caminhos do mundo. E trata-se de um Cristo vivo, concreto: o Cristo diz Paulo "que me amou e se entregou a si mesmo por mim" (
Ga 2,20). Esta pessoa que me ama, com a qual eu posso falar, que me ouve e me responde, ela é realmente o princípio para compreender o mundo e para encontrar o caminho na história.

Quem leu os escritos de São Paulo sabe bem que ele não se preocupou em narrar os simples acontecimentos em que se articula a vida de Jesus, embora possamos intuir que nas suas catequeses narrou muito mais sobre o Jesus pré-pascal de quanto escreveu nas suas Cartas, que constituem admoestações em situações específicas. A sua intenção pastoral e teológica estava tão orientada para as comunidades nascentes, que lhe era espontâneo concentrar todo o anúncio de Jesus Cristo como "Senhor", vivo e presente agora no meio dos seus. Daqui, a essencialidade característica da cristologia paulina, que desenvolve as profundidades do mistério com uma preocupação constante e específica: sem dúvida, anunciar Jesus vivo, o seu ensinamento, mas anunciar sobretudo a realidade central da sua morte e ressurreição, como ápice da sua existência terrena e raiz do sucessivo desenvolvimento de toda a fé cristã, de toda a realidade da Igreja. Para o Apóstolo, a ressurreição não é um acontecimento independente, desvinculado da morte: o Ressuscitado é sempre aquele que, primeiro, foi crucificado. Também como Ressuscitado tem as suas feridas: a paixão está presente nele e pode-se dizer com Pascal que Ele é sofredor até ao fim do mundo, embora seja o Ressuscitado e viva connosco e para nós. Esta identidade do Ressuscitado com Cristo crucificado, Paulo compreendeu-a no encontro no caminho de Damasco: naquele momento, revelou-se-lhe claramente que o Crucificado é o Ressuscitado, e o Ressuscitado é o Crucificado, que a Paulo diz: "Por que me persegues?" (Ac 9,4). Paulo persegue Cristo na Igreja, e então compreende que a cruz não é "uma maldição de Deus" (Dt 21,23), mas sim um sacrifício para a nossa redenção.

O Apóstolo contempla fascinado o segredo escondido do Crucificado-Ressuscitado e, através dos sofrimentos experimentados por Cristo na sua humanidade (dimensão terrena), remonta àquela existência eterna em que Ele é um só com o Pai (dimensão pré-temporal): "Quando chegou a plenitude dos tempos ele escreve Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher, nascido sujeito à Lei, para resgatar aqueles que estavam sob o jugo da Lei e para que recebêssemos a adopção de filhos" (Ga 4,4-5). Estas duas dimensões, a preexistência eterna no Pai e a descida do Senhor na encarnação, anunciam-se já no Antigo Testamento, na figura da Sabedoria. Encontramos nos Livros sapienciais do Antigo Testamento alguns textos que exaltam o papel da Sabedoria preexistente à criação do mundo. É neste sentido que devem ser lidos trechos como este, do Salmo 90: "Antes que nascessem as montanhas, e se transformassem a terra e o universo, desde os séculos dos séculos Vós sois, ó Deus" (v. 2); ou trechos como aquele que fala da Sabedoria criadora. "O Senhor criou-me como primícias das suas obras, desde o princípio, antes que criasse qualquer coisa. Desde a eternidade fui constituída, desde as origens, antes dos primórdios da terra" (Pr 8,22-23). É sugestivo também o elogio da Sabedoria, contido no livro homónimo: "A Sabedoria estende o seu vigor de uma extremidade à outra e governa o universo com suavidade" (Sg 8,1).

Os próprios textos sapienciais que falam da preexistência eterna da Sabedoria, falam também da descida, da humilhação desta Sabedoria, que construiu para si uma tenda no meio dos homens. Assim, já sentimos ressoar as palavras do Evangelho de João, que fala da tenda da carne do Senhor. Construiu para si uma tenda no Antigo Testamento: aqui está indicado o templo, o culto segundo a "Torá"; mas do ponto de vista do Novo Testamento, podemos compreender que esta era uma prefiguração da tenda muito mais real e significativa: a tenda da carne de Cristo. E já vemos nos Livros do Antigo Testamento que esta humilhação da Sabedoria, a sua descida na carne, implica também a possibilidade da sua rejeição. Desenvolvendo a sua cristologia, São Paulo refere-se precisamente a esta perspectiva sapiencial: reconhece em Jesus a sabedoria eterna existente desde sempre, a sabedoria que desce e constrói para si uma tenda no meio de nós, e assim ele pode descrever Cristo como "poder e sabedoria de Deus", pode dizer que Cristo se tornou para nós "sabedoria por obra de Deus, justiça, santificação e redenção" (cf. 1Co 1,24-30). De modo análogo, Paulo esclarece que Cristo, da mesma forma como a Sabedoria, pode ser rejeitado sobretudo pelos dominadores deste mundo (cf. 1Co 2,6-9), de tal modo que se pode criar, nos desígnios de Deus, uma situação paradoxal, a cruz, que se transformará em caminho de salvação para todo o género humano.

Um ulterior desenvolvimento deste ciclo sapiencial, que vê a Sabedoria humilhar-se para depois ser exaltada, não obstante a rejeição, verifica-se no famoso hino contido na Carta aos Filipenses (cf. Sg 2,6-11). Trata-se de um dos textos mais excelsos de todo o Novo Testamento. Na sua esmagadora maioria, os exegetas já concordam em considerar que esta perícope apresenta uma composição precedente ao texto da Carta aos Filipenses. Este é um dado de grande importância, porque significa que, antes de Paulo, o judeu-cristianismo acreditava na divindade de Jesus. Em síntese, a fé na divindade de Jesus não é uma invenção helenista, surgida muitos anos depois da vida terrena de Jesus, uma invenção que, esquecendo-se da sua humanidade, O teria divinizado; na realidade, vemos que o primeiro judeu-cristianismo acreditava na divindade de Jesus; aliás, podemos dizer que os próprios Apóstolos, nos principais momentos da vida do seu Mestre, compreenderam que Ele é o Filho de Deus, como São Pedro disse em Cesareia de Filipe: "Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo" (Mt 16,16). Todavia, voltemos ao hino da Carta aos Filipenses. A estrutura deste texto pode ser articulada em três estrofes, que explicam os momentos principais do percurso realizado por Cristo. A sua preexistência é expressa pelas palavras: "Ele, que era de condição divina, não reivindicou o direito de ser equiparado a Deus" (v. 6); segue-se, então, a humilhação voluntária do Filho, na segunda estrofe: "Despojou-se a si mesmo, tomando a condição de servo" (v. 7), humilhando-se a si mesmo, "fazendo-se obediente até à morte, e morte de cruz" (v. 8). A terceira estrofe do hino anuncia a resposta do Pai à humilhação do Filho: "Por isso é que Deus O exaltou e lhe deu um nome que está acima de todo o nome" (v. 9). O que surpreende é o contraste entre a humilhação radical e a sucessiva exaltação na glória de Deus. É evidente que esta segunda estrofe está em contraste com a pretensão de Adão, que queria ser Deus; está também em contraste com o gesto dos construtores da torre de Babel, que sozinhos desejavam edificar a ponte para o céu e fazer-se, eles mesmos, divindades. Mas esta iniciativa da soberba terminou na autodestruição: não é assim que se chega ao céu, à verdadeira felicidade, a Deus. O gesto do Filho é exactamente o contrário: não a soberba, mas a humildade, que é realização do amor, e o amor é divino. A iniciativa de humilhação, de humildade radical de Cristo, com a qual contrasta a soberba humana, é realmente expressão do amor divino; segue-se-lhe aquela elevação ao céu, à qual Deus nos atrai mediante o seu amor.

Além da Carta aos Filipenses, existem outros lugares da literatura paulina, onde os temas da preexistência e da descida do Filho de Deus sobre a terra estão ligados entre si. Uma confirmação da assimilação entre Sabedoria e Cristo, com todos os correspondentes aspectos cósmicos e antropológicos, encontra-se na primeira Carta a Timóteo: "Ele manifestou-se na carne, foi justificado pelo Espírito, visto pelos anjos, pregado aos gentios, acreditado no mundo e exaltado na glória" (Ph 3,16). É sobretudo segundo estas premissas que melhor se pode definir a função de Cristo como único Mediador, tendo como pano de fundo o único Deus do Antigo Testamento (cf. 1Tm 2,5, em relação a Is 43,10-11 Is 44,6). Cristo constitui a verdadeira ponte que nos orienta para o céu, para a comunhão com Deus.

E, finalmente, apenas uma referência aos últimos desenvolvimentos da cristologia de São Paulo nas Cartas aos Colossenses e aos Efésios. Na primeira, Cristo é qualificado como "primogénito de todas as criaturas" (cf. Col 1,15-20). Esta palavra "primogénito" implica que o primeiro entre muitos filhos, o primeiro entre muitos irmãos e irmãs, desceu para nos atrair e fazer seus irmãos e irmãs. Na Carta aos Efésios encontramos uma bonita exposição do desígnio divino da salvação, quando Paulo diz que Deus queria recapitular tudo em Cristo (cf. Ep 1,23). Cristo é a renovação de tudo, resume tudo e orienta-nos para Deus. E deste modo insere-nos num movimento de descida e de ascensão, convidando-nos a participar na sua humildade, ou seja, no seu amor ao próximo, para assim sermos partícipes também da sua glorificação, tornando-nos com Ele filhos no Filho. Oremos a fim de que o Senhor nos ajude a conformar-nos com a sua humildade e com o seu amor, para que assim nos tornemos partícipes da sua divinização.

Saudação

Amados peregrinos de língua portuguesa, uma saudação afectuosa para todos, especialmente para os grupos do Brasil e de Portugal: esta peregrinação a Roma encha de luz e fortaleza o vosso testemunho cristão, para confessardes Jesus Cristo como único Salvador e Senhor da vida: fora dele não há vida, nem esperança de a ter. Com Cristo, sucesso eterno à vida que Deus vos confiou. Para cada um de vós e família, a minha Bênção!




Audiências 2005-2013 1108