Audiências 2005-2013 29108

29 de Outubro de 2008: São Paulo (10): A importância da cristologia - A teologia da Cruz

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Queridos irmãos e irmãs

Na experiência pessoal de São Paulo há um dado incontestável: enquanto no início fora um perseguidor e recorrera à violência contra os cristãos, a partir do momento da sua conversão no caminho de Damasco passara do lado de Cristo crucificado, fazendo dele a sua razão de vida e o motivo da sua pregação. A sua existência foi inteiramente consumida pelas almas (cf.
2Co 12,15), nada tranquila nem protegida contra ameaças e dificuldades. No encontro com Jesus, tornou-se-lhe claro o significado central da Cruz: compreendera que Jesus tinha morrido e ressuscitado por todos e por ele mesmo. Ambas as realidades eram importantes; a universalidade: Jesus morreu realmente por todos; e a subjectividade: Ele morreu também por mim. Portanto, na Cruz manifestou-se o amor gratuito e misericordioso de Deus. Paulo experimentou este amor em si mesmo (cf. Ga 2,20) e, de pecador, tornou-se crente; de perseguidor, Apóstolo. Dia após dia, na sua nova vida, experimentava que a salvação era "graça", que tudo derivava da morte de Cristo, e não dos seus méritos, que de resto não existiam. Assim, o "Evangelho da graça" tornou-se para ele o único modo de compreender a Cruz, o critério não somente da sua nova existência, mas também a resposta aos seus interlocutores. Entre eles havia, em primeiro lugar, os judeus que depositavam a própria esperança nas obras e delas esperavam a salvação; depois, havia os gregos, que à cruz opunham a sua sabedoria humana; finalmente, havia aqueles grupos de hereges, que tinham formado uma sua ideia do cristianismo segundo o seu próprio modelo de vida.

Para São Paulo a Cruz tem um primado fundamental na história da humanidade; ela representa o ponto focal da sua teologia, porque dizer Cruz significa dizer salvação como graça concedida a cada criatura. O tema da Cruz de Cristo torna-se um elemento essencial e primário da pregação do Apóstolo: o exemplo mais claro diz respeito à comunidade de Corinto. Diante de uma Igreja onde estavam presentes de modo preocupante desordens e escândalos, onde a comunhão era ameaçada por partidos e divisões internas que debelavam a unidade do Corpo de Cristo, Paulo apresenta-se não com sublimidade de palavras ou de sabedoria, mas com o anúncio de Cristo, de Cristo crucificado. A sua força não é a linguagem persuasiva mas, paradoxalmente, a debilidade e a trepidação de quem se confia ao "poder de Deus" (cf. 1Co 2,1-4). Por tudo aquilo que representa e portanto também pela mensagem teológica que contém, a Cruz é escândalo e loucura. O Apóstolo afirma-o com uma força impressionante, que é bom ouvir das suas próprias expressões: "Porque a linguagem da Cruz é loucura para aqueles que se perdem, mas poder de Deus para os que se salvam, isto é, para nós... aprouve a Deus salvar os fiéis por meio da loucura da pregação. Enquanto os judeus pedem sinais e os gregos buscam a sabedoria, nós anunciamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos" (1Co 1,18-23).

As primeiras comunidades cristãs, às quais São Paulo se dirige, sabem muito bem que Jesus já ressuscitou e está vivo; o Apóstolo quer recordar não apenas aos Coríntios ou aos Gálatas, mas a todos nós, que o Ressuscitado é sempre Aquele que foi crucificado. O "escândalo" e a "loucura" da Cruz encontram-se precisamente no facto de que onde parece existir somente falência, dor e derrota, exactamente ali está todo o poder do Amor ilimitado de Deus, porque a cruz é expressão de amor, e o amor é o verdadeiro poder que se revela precisamente nesta aparente debilidade. Para os judeus, a Cruz é skandalon, ou seja, armadilha ou pedra de tropeço: ela parece impedir a fé do israelita piedoso, que tem dificuldade de encontrar algo de semelhante nas Sagradas Escrituras. Aqui, com não pouca coragem, Paulo parece dizer que a aposta é extremamente elevada: para os judeus, a Cruz contradiz a própria essência de Deus, que se manifestou mediante sinais prodigiosos. Portanto, aceitar a Cruz de Cristo significa realizar uma profunda conversão no modo de se relacionar com Deus. Se para os judeus o motivo da rejeição da Cruz se encontra na Revelação, ou seja, a fidelidade ao Deus dos Pais, para os gregos, ou seja os pagãos, o critério de juízo para se opor à Cruz é a razão. Com efeito, para estes últimos a Cruz é morta, loucura, literalmente insipiência, isto é, um alimento sem sal; por conseguinte, mais que um erro, é um insulto ao bom senso.

Em várias ocasiões, o próprio Paulo fez a amarga experiência da rejeição do anúncio cristão julgado "insipiente", desprovido de relevância, nem sequer digno de ser considerado no plano da lógica racional. Para quem, como os gregos, via a perfeição no espírito, no pensamento puro, já era inaceitável que Deus pudesse tornar-se homem, imergindo-se em todos os limites do espaço e do tempo. Além disso, era decididamente inconcebível acreditar que um Deus pudesse acabar numa Cruz! E vemos como esta lógica grega é também a lógica comum do nosso tempo. O conceito de apátheia, indiferença, como ausência de paixões em Deus, como poderia compreender um Deus que se tornou homem e foi derrotado, e que depois chegaria mesmo a resgatar o seu corpo para viver como ressuscitado? "Ouvir-te-emos falar sobre isto mais uma vez" (Ac 17,32), disseram com desprezo os atenienses a Paulo, quando ouviram falar de ressurreição dos mortos. Julgavam uma perfeição o libertar-se do corpo, concebido como prisão; como não considerar uma aberração o resgate do próprio corpo? na cultura antiga não parecia existir espaço para a mensagem do Deus encarnado. Todo o acontecimento "Jesus de Nazaré" parecia ser caracterizado pela mais total insipiência e, sem dúvida, a Cruz era o seu ponto mais emblemático.

Mas por que fez São Paulo precisamente disto, da palavra da Cruz, o ponto fundamental da sua pregação? A resposta não é difícil: a Cruz revela "o poder de Deus" (cf. 1Co 1,24), que é diferente do poder humano; com efeito, revela o seu amor: "O que é considerado como loucura de Deus é mais sábio que os homens, e o que é tido como debilidade de Deus é mais forte que os homens" (Ibid., 1Co 1,25). A séculos de distância de Paulo, nós vemos que na história venceu a Cruz e não a sabedoria que se opõe à Cruz. O Crucifixo é sabedoria, porque manifesta verdadeiramente quem é Deus, ou seja, poder de amor que chega até à Cruz para salvar o homem. Deus serve-se de modos e de instrumentos que para nós, à primeira vista, parecem debilidade. O Crucifixo releva, por um lado, a debilidade do homem e, por outro, o verdadeiro poder de Deus, ou seja, a gratuidade do amor: precisamente esta total gratuidade do amor é a verdadeira sabedoria. São Paulo fez esta experiência até na sua carne, e disto dá-nos testemunho em várias fases do seu percurso espiritual, que se tornaram pontos de referência específicos para cada discípulo de Jesus: "Ele disse-me: basta-te a minha graça, porque é na fraqueza que a minha força se revela plenamente" (2Co 12,9); e ainda. "Deus escolheu o que é fraco, segundo o mundo, para confundir o que é forte" (1Co 1,27). O Apóstolo identifica-se a tal ponto com Cristo que também ele, embora se encontre no meio de muitas provações, vive na fé do Filho de Deus que o amou e se entregou pelos pecados dele e de todos (cf. Ga 1,4 Ga 2,20). Este dado autobiográfico do Apóstolo torna-se paradigmático para todos nós.

São Paulo ofereceu uma síntese admirável da teologia da Cruz na segunda Carta aos Coríntios (2Co 5,14-21), onde tudo está contido em duas afirmações fundamentais: por um lado Cristo, que Deus tratou como pecado em nosso benefício (2Co 5,21), morreu por todos (2Co 5,14); por outro, Deus reconciliou-nos consigo, sem atribuir a nós as nossas culpas (cf. 2Co 5,18-20). É deste "ministério da reconciliação" que toda a escravidão já foi resgatada (cf. 1Co 16,20 1Co 7,23). Aqui aparece como tudo isto é relevante para a nossa vida. Também nós temos que entrar neste "ministério da reconciliação", que supõe sempre a renúncia à própria superioridade e à opção da loucura do amor. São Paulo renunciou á própria vida, entregando-se totalmente a si mesmo pelo ministério da reconciliação, da Cruz que é salvação para todos nós. E também nós devemos saber fazer isto. Podemos encontrar a nossa força precisamente na humildade do amor, e a nossa sabedoria na debilidade de renunciar para entrar assim na força de Deus. Todos nós devemos formar a nossa vida sobre esta verdadeira sabedoria: não viver para nós mesmos, mas viver na fé naquele Deus, de quem todos nós podemos dizer: "Amou-me e entregou-se por mim!".

Saudação

Amados irmãos e irmãs

A Catequese de hoje nos convida a considerar esta teologia da Cruz, sempre presente nas pessoas, e nela descobrir que o Espírito Santo sustenta nossas fraquezas e nos encoraja a aceitá-la com santa resignação. Aproveito para saudar a todos os peregrinos de Portugual e do Brasil que aqui vieram para rezar junto ao túmulo do Apóstolo Pedro. Que Deus vos abençoe!


Praça de São Pedro

5 de Novembro de 2008: São Paulo (11): A importância da cristologia - A decisividade da ressurreição

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Queridos irmãos e irmãs!

"Se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é a vossa fé... ainda estais nos vossos pecados" (
1Co 15,14 1Co 15,17). Com estas fortes palavras da primeira Carta aos Coríntios, São Paulo faz compreender que importância decisiva ele atribui à ressurreição de Jesus. De facto, neste acontecimento está a solução para o problema apresentado pelo drama da Cruz. Sozinha, a Cruz não poderia explicar a fé cristã. Aliás permaneceria uma tragédia, indicação do absurdo do ser. O mistério pascal consiste no facto de que aquele Crucificado "ressuscitou ao terceiro dia segundo as Escrituras (1Co 15,4) assim afirma a tradição protocristã. Encontra-se aqui o fecho da abóbada da cristologia paulina: tudo gira em volta deste centro gravitacional. Todo o ensinamento do apóstolo Paulo parte do e chega sempre ao mistério d'Aquele que o Pai ressuscitou da morte. A ressurreição é um acontecimento fundamental, quase um axioma prévio (cf. 1Co 15,12), com base no qual Paulo pode formular o seu anúncio (querigma) sintético: Aquele que foi crucificado, e que assim manifestou o amor imenso de Deus pelo homem, ressuscitou e está vivo entre nós.

É importante compreender o vínculo entre o anúncio da ressurreição, do modo como Paulo o formula, e o que é usado nas primeiras comunidades cristãs pré-paulinas. Nele pode-se ver a importância da tradição que precede o Apóstolo e que ele, com grande respeito e atenção, deseja por sua vez transmitir. O texto sobre a ressurreição, contido no cap. 15, 1-11 da primeira Carta aos Coríntios, realça bem o nexo entre "receber" e "transmitir". São Paulo atribui muita importância à formulação literal da tradição; no final do trecho em questão ressalta: "Tanto eu como eles, eis o que pregamos" (1Co 15,11), dando assim relevo à unidade do querigma, do anúncio para todos os crentes e para todos os que anunciarem a ressurreição de Cristo. A tradição à qual se refere é a fonte da qual haurir. A originalidade da sua cristologia nunca é em desvantagem da fidelidade à tradição. O querigma dos Apóstolos preside sempre à reelaboração pessoal de Paulo; qualquer sua argumentação parte da tradição comum, na qual se expressa a fé partilhada por todas as Igrejas, que são uma só Igreja. E assim São Paulo oferece um modelo para todos os tempos sobre como fazer teologia e como rezar. O teólogo, o pregador não cria novas visões do mundo e da vida, mas está ao serviço da verdade transmitida, ao serviço do facto real de Cristo, da Cruz, da ressurreição. A sua tarefa é ajudar-nos a compreender hoje, segundo as antigas palavras, a realidade do "Deus connosco", portanto a realidade da verdadeira vida.

É oportuno esclarecer: São Paulo, ao anunciar a ressurreição, não se preocupa em apresentar uma exposição doutrinal orgânica não quer escrever um manual de teologia mas enfrenta o tema respondendo a dúvidas e perguntas concretas que lhe eram apresentadas pelos fiéis; portanto, um discurso ocasional, mas cheio de fé e de teologia vivida. Nele encontra-se uma concentração sobre o essencial: nós fomos "justificados", ou seja, tornados justos, salvos, pelo Cristo morto e ressuscitado por nós. Sobressai antes de tudo o facto da ressurreição, sem o qual a vida cristã seria simplesmente absurda. Naquela manhã de Páscoa aconteceu algo de extraordinário, de novo e, ao mesmo tempo, de muito concreto, marcado por sinais muito claros, registrados por numerosas testemunhas. Também para Paulo, como para os outros autores do Novo Testamento, a ressurreição está ligada ao testemunho de quem fez uma experiência directa do Ressuscitado. Trata-se de ver e de sentir não só com os olhos ou com os sentidos, mas também com uma luz interior que estimula a reconhecer o que os sentidos externos afirmam como dado objectivo. Portanto Paulo como os quatro Evangelhos dá importância fundamental ao tema das aparições, as quais são a condição fundamental para a fé no Ressuscitado que deixou o túmulo vazio. Estes dois factos são importantes: o túmulo está vazio e Jesus apareceu realmente. Constituiu-se assim aquela cadeia da tradição que, através do testemunho dos Apóstolos e dos primeiros discípulos, chegará às gerações sucessivas, até nós. A primeira consequência, ou o primeiro modo de expressar este testemunho, é pregar a ressurreição de Cristo como síntese do anúncio evangélico e como ponto culminante de um itinerário salvífico. Paulo faz isto em diversas ocasiões: podem-se consultar as Cartas dos Actos dos Apóstolos onde se vê sempre que o ponto essencial para ele é ser testemunha da ressurreição. Gostaria de citar só um texto: Paulo, feito prisioneiro em Jerusalém, está diante do Sinédrio como acusado. Nesta circunstância na qual está em questão para ele a morte ou a vida, ele indica qual é o sentido e o conteúdo de toda a sua pregação: "É pela nossa esperança, a ressurreição dos mortos, que estou a ser julgado" (Ac 23,6). Paulo repete continuamente nas suas Cartas esta mesma frase (cf. 1Th 1,9 s.; 1Th 4,13-18 1Th 5,10), nas quais faz apelo também à sua experiência pessoal, ao seu encontro pessoal com Cristo ressuscitado (cf. Ga 1,15-16 1Co 9,1).

Mas podemos perguntar-nos: qual é, para São Paulo, o sentido profundo do acontecimento da ressurreição de Jesus? Que nos diz, à distância de dois mil anos? A afirmação "Cristo ressuscitou" é actual também para nós? Por que a ressurreição é para ele e para nós hoje um tema tão determinante? Paulo responde solenemente a esta pergunta no início da Carta aos Romanos, onde começa referindo-se ao "Evangelho de Deus... que diz respeito a seu Filho, nascido da estirpe de David segundo a carne, estabelecido Filho de Deus com poder pela sua ressurreição dos mortos" (Rm 1,3). Paulo sabe bem e diz muitas vezes que Jesus era Filho de Deus sempre, desde o momento da sua encarnação. A novidade da ressurreição consiste no facto de que Jesus, elevado da humildade da sua existência terrena, é constituído Filho de Deus "com poder". O Jesus humilhado até à morte de cruz pode agora dizer aos Onze: "Foi-me dada toda a autoridade sobre o céu e sobre a terra" (Mt 28,18). Realiza-se o que diz o Salmo Ps 2,8: "Pede, e eu te darei as nações como herança". Começa portanto com a ressurreição o anúncio do Evangelho de Cristo a todos os povos começa o Reino de Cristo, este novo Reino que não conhece outro poder a não ser o da verdade e do amor. A ressurreição e a extraordinária estrutura do Crucificado. Uma dignidade incomparável e elevadíssima: Jesus é Deus! Para São Paulo a identidade secreta de Jesus, ainda mais do que na encarnação, revela-se no mistério da ressurreição. Enquanto o título de Cristo, isto é de "Messias", "Ungido", em São Paulo tende a tornar-se o nome próprio de Jesus e o do Senhor especifica a sua relação pessoal com os crentes, agora o título de Filho de Deus ilustra a íntima relação de Jesus com Deus, uma relação que se revela plenamente no acontecimento pascal. Pode-se dizer, portanto, que Jesus ressuscitou para ser o Senhor dos mortos e dos vivos (cf. Rm 14,9 2Co 5,15) ou, por outras palavras, o nosso Salvador (cf. Rm 4,25).

Tudo isto está repleto de importantes consequências para a nossa vida de fé: nós somos chamados a participar até ao íntimo do nosso ser em toda a vicissitude da morte e da ressurreição de Cristo. Diz o Apóstolo: "morremos com Cristo" e cremos que "viveremos com Ele, sabendo que Cristo, uma vez ressuscitado de entre os mortos, já não morre, a morte não tem mais domínio sobre ele" (Rm 6,8-9). Isto traduz-se numa partilha dos sofrimentos de Cristo, que anuncia aquela plena configuração com Ele mediante a ressurreição pela qual aspiramos na esperança. E o que aconteceu também a São Paulo, cuja experiência pessoal é descrita nas Cartas com tons tão prementes quanto realistas: "para conhecê-lo, conhecer o poder da sua ressurreição e a participação nos seus sofrimentos, conformando-me com ele na sua morte, para ver se alcanço a ressurreição de entre os mortos" (Ph 3,10-11 cf. 2Tm 2,8-12). A teologia da Cruz não é uma teoria é a realidade da vida cristã. Viver na fé em Jesus Cristo, viver a verdade e o amor obriga a renúncias todos os dias, a sofrimentos. O cristianismo não é o caminho do conforto, mas antes uma escalada exigente, mas iluminada pela luz de Cristo e pela grande esperança que nasce d'Ele. Santo Agostinho diz: Aos cristãos não é poupado o sofrimento, aliás, a eles cabe um pouco mais, porque viver a fé expressa a coragem de enfrentar a vida e a história mais em profundidade. Contudo só assim, experimentando o sofrimento, conhecemos a vida na sua profundidade, na sua beleza, na grande esperança suscitada por Cristo crucificado e ressuscitado. Portanto, o crente encontra-se situado entre dois pólos: por um lado, a ressurreição que de certa forma já está presente e activa em nós (cf. Col 3,1-4 Ep 2,6); por outro, a urgência de se inserir naquele processo que leva todos e tudo à plenitude, descrita na Carta aos Romanos com uma imagem ousada: assim como toda a criação geme e sofre como que dores de parto, também nós gememos na expectativa da redenção do nosso corpo, da nossa redenção e ressurreição (cf. Rm 8,18-23).

Em síntese, podemos dizer com Paulo que o verdadeiro crente obtém a salvação professando com a sua boca que Jesus é o Senhor e crendo com o seu coração que Deus ressuscitou dos mortos (cf. Rm 10,9). É antes de tudo importante o coração que crê em Cristo e na fé "toca" o Ressuscitado; mas não é suficiente trazer a fé no coração, devemos confessá-la e testemunhá-la com a boca, com a nossa vida, tornando assim presente a verdade da cruz e da ressurreição na nossa história. Assim, de facto, o cristão insere-se naquele processo graças ao qual o primeiro Adão, terrestre e sujeito à corrupção e à morte, vai-se transformando no último Adão, o celeste e incorruptível (cf. 1Co 15,20-22 1Co 15,42-49). Este processo foi iniciado com a ressurreição de Cristo, na qual se funda portanto a esperança de podermos um dia também nós entrar com Cristo na nossa verdadeira pátria que está nos Céus. Amparados por esta esperança prossigamos com coragem e com alegria.

Saudação

Saúdo também os peregrinos de língua portuguesa, nomeadamente o grupo do Renovamento Carismático de Setúbal e a Comunidade "Canção Nova", em festa pelo reconhecimento como associação internacional de fiéis junto do Pontifício Conselho para os Leigos. Exprimo o apreço da Igreja pelo ideal e empenho que os anima de dar inspiração cristã às linguagens do nosso mundo e à leitura dos acontecimentos da história. Sobre todos vós invoco os dons do Espírito Santo para serem verdadeiros discípulos e missionários de Cristo Ressuscitado, fazendo jorrar a sua Vida no meio de suas famílias e comunidades, que de coração abençoo.



Praça de São Pedro

12 de Novembro de 2008: São Paulo (12): Escatologia - A espera da parusia

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Amados irmãos e irmãs!

O tema da ressurreição, sobre o qual nos detivemos na semana passada, abre uma nova perspectiva, a da expectativa da vinda do Senhor, e por isso faz-nos reflectir sobre a relação entre o tempo presente, tempo da Igreja e do Reino de Cristo, e o futuro (éschaton) que nos espera, quando Cristo entregará o Reino ao Pai (cf.
1Co 15,24). Cada discurso cristão sobre as coisas derradeiras, chamado escatologia, parte sempre do acontecimento da ressurreição: neste acontecimento as coisas derradeiras já começaram e, num certo sentido, já estão presentes.

Provavelmente no ano 52 São Paulo escreveu a primeira das suas cartas, a primeira Carta aos Tessalonicenses, na qual fala deste regresso de Jesus, chamado parusia, advento, nova, definitiva e manifesta presença (cf. 1Th 4,13-18). Aos Tessalonicenses, que têm dúvidas e problemas, o Apóstolo escreve assim: "Se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também os que morreram em Jesus, Deus há-de levá-los em sua companhia" (1Th 4,14). E prossegue: "em seguida nós, os vivos que estiverem lá, seremos arrebatados com eles nas nuvens para o encontro com o Senhor, nos ares. E assim, estaremos para sempre com o Senhor" (1Th 4,16-17). Paulo descreve a parusia de Cristo com tonalidades vivas como nunca e com imagens simbólicas, que contudo transmitem uma mensagem simples e profunda: o nosso futuro é "estar com o Senhor"; como crentes, na nossa vida já estamos com o Senhor; o nosso futuro, a vida eterna, já começou.

Na segunda Carta aos Tessalonicenses Paulo muda de perspectiva; fala de acontecimentos negativos, que deverão preceder o final e conclusivo. Não nos devemos deixar enganar diz como se o dia do Senhor fosse deveras iminente, segundo um cálculo cronológico: "Quanto à vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, e à nossa reunião com ele, rogamo-vos, irmãos, que não percais tão depressa a serenidade de espírito, e não vos perturbeis nem por palavra profética, nem por carta que se diga vir de nós, como se o dia do Senhor já estivesse próximo. Não vos deixeis enganar de modo algum!" (2Th 2,1-3). A continuação deste texto anuncia que antes da vinda do Senhor haverá a apostasia e deverá ser revelado um não bem identificado "homem iníquo" (2Th 2,3), que a tradição chamará depois o Anticristo. Mas a intenção desta Carta de São Paulo é antes de tudo prática; ele escreve: "Quando estávamos entre vós, já vos demos esta ordem: quem não quer trabalhar também não há-de comer. Ora, ouvimos dizer que alguns dentre vós levam vida à-toa, muito atarefados sem nada fazer. A estas pessoas ordenamos e exortamos, no Senhor Jesus Cristo, que trabalhem na tranquilidade, para ganhar o pão com o próprio esforço" (2Th 3,10-12). Noutras palavras, a expectativa da parusia de Jesus não dispensa do compromisso neste mundo, mas ao contrário cria responsabilidade face ao Juiz divino acerca do nosso agir neste mundo. Precisamente assim cresce a nossa responsabilidade de trabalhar em e para este mundo. Veremos a mesma coisa no próximo domingo no Evangelho dos talentos, onde o Senhor nos diz que confiou talentos a todos e o Juiz pedirá contas por eles dizendo: Fizeste-los frutificar? Portanto a espera da vinda exige responsabilidade por este mundo.

A mesma coisa e o mesmo nexo entre parusia vinda do Juiz/Salvador e o nosso compromisso na vida aparece noutro contexto e com novos aspectos na Carta aos Filipenses. Paulo está na prisão e espera a sentença que pode ser de condenação à morte. Nesta situação pensa no seu futuro estar com o Senhor, mas pensa também na comunidade de Filipos que tem necessidade do próprio pai, de Paulo, e escreve: "Pois para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro. Mas, se o viver na carne me dá ocasião de trabalho frutífero, não sei bem o que escolher. Sinto-me num dilema: o meu desejo é partir e estar com Cristo, pois isso me é muito melhor, mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa. Convencido disso, sei que ficarei e continuarei com todos vós, para proveito vosso e para alegria da vossa fé, a fim de que, por mim pelo meu regresso entre vós aumente a vossa glória em Cristo Jesus" (Col 1,21-26). Paulo não tem medo da morte, ao contrário: de facto ela indica o ser completo com Cristo. Mas Paulo participa também dos sentimentos de Cristo, o qual não viveu para si, mas para nós. Viver para os outros torna-se o programa da sua vida e por isso demonstra a sua perfeita disponibilidade à vontade de Deus, ao que Deus decidir. É disponível sobretudo, também no futuro, a viver nesta terra para os outros, a viver para Cristo, a viver para a sua presença viva e assim pela renovação do mundo. Vemos que este seu ser com Cristo gera uma grande liberdade interior: liberdade diante da ameaça da morte, mas liberdade também diante de todos os compromissos e sofrimentos da vida. Está simplesmente disponível para Deus e é realmente livre.

Passemos agora, depois de ter examinado os diversos aspectos da expectativa da parusia de Cristo, a interrogar-nos: quais são as atitudes fundamentais do cristão em relação às coisas derradeiras: a morte, o fim do mundo? A primeira atitude é a certeza de que Jesus ressuscitou, está com o Pai, e precisamente assim está connosco. Por isso temos a certeza, somos libertados do receio. Era este um efeito essencial da pregação cristã. O medo dos espíritos, das divindades estava difundido em todo o mundo antigo. E também hoje os missionários, juntamente com tantos elementos bons das religiões naturais, têm medo dos espíritos, dos poderes nefastos que nos ameaçam. Cristo vive, venceu a morte e venceu todos os poderes. Vivemos com esta certeza, com esta liberdade, com esta alegria. É este o primeiro aspecto do nosso viver em relação ao futuro.

Em segundo lugar, a certeza que Cristo está comigo. E como em Cristo o mundo futuro já começou, isto dá também a certeza da esperança. O futuro não é uma escuridão na qual ninguém se orienta. O cristão sabe que a luz de Cristo é mais forte e por isso vive numa esperança não vaga, numa esperança que dá certeza e coragem para enfrentar o futuro.

Por fim, a terceira atitude. O Juiz que volta é ao mesmo tempo juiz e salvador deixou-nos o compromisso de viver neste mundo segundo o seu modo de viver. Confiou-nos os seus talentos. Por isso a nossa terceira atitude é: responsabilidade pelo mundo, pelos irmãos diante de Cristo, e ao mesmo tempo também certeza da sua misericórdia. As duas coisas são importantes. Não vivamos como se o bem e o mal fossem iguais, porque Deus só pode ser misericordioso. Isto seria um engano. Na realidade, vivemos numa grande responsabilidade. Temos os talentos, somos encarregados de trabalhar para que este mundo se abra a Cristo, seja renovado. Mas mesmo trabalhando e sabendo na nossa responsabilidade que Deus é juiz verdadeiro, temos também a certeza de que este juiz é bom, conhecemos o seu rosto, o rosto de Cristo ressuscitado, de Cristo crucificado por nós. Por isso podemos ter a certeza da sua bondade e ir em frente com muita coragem.

Outro aspecto do ensinamento paulino em relação à escatologia é a universalidade da chamada à fé, que reúne Judeus e Gentios, isto é, os pagãos, como sinal e antecipação da realidade futura, pelo que podemos dizer que já estamos sentados no céu com Jesus Cristo, mas para mostrar nos séculos futuros a riqueza da graça (cf. Ep 2, 6s): o depois faz-se um antes para tornar evidente o estado de realização incipiente no qual vivemos. Isto torna toleráveis os sofrimentos do momento presente, que contudo não são comparáveis com a glória futura (cf. Rm 8,18). Caminha-se na fé e não na visão, e mesmo sendo preferível ser exilado do corpo e habitar com o Senhor, o que conta definitivamente, habitando no corpo ou saindo dele, é sermos-Lhe agradáveis (cf. 2Co 5,7-9).

Por fim, um último aspecto que talvez pareça difícil para nós. São Paulo na conclusão da sua primeira Carta aos Coríntios repete e coloca nos lábios também dos Coríntios uma oração que surgiu nas primeiras comunidades cristãs da área da Palestina: Maraná, thá!, que literalmente significa "Vinde, Senhor Jesus!" (1Co 16,22). Era a oração da primeira cristandade, e também o último livro do Novo Testamento, o Apocalipse, termina com esta oração: "Vinde, Senhor!". Podemos, também nós, rezar assim? Parece-me que para nós hoje, na nossa vida, no nosso mundo, é difícil rezar sinceramente para que este mundo pereça, para que venha a nova Jerusalém, para que cheguem o juízo derradeiro e o juiz, Cristo. Penso que se nós não ousarmos rezar assim sinceramente por muitos motivos, contudo de modo justo e correcto podemos também nós dizer, com a primeira cristandade: "Vinde, Senhor Jesus!". Certamente não queremos que venha agora o fim do mundo. Mas, por outro lado, também queremos que termine este mundo injusto. Queremos também nós que o mundo seja fundamentalmente mudado, que comece a civilização do amor, que venha um mundo de justiça, de paz, sem violência, sem fome. Queremos tudo isto: e como poderia acontecer sem a presença de Cristo? Sem a presença de Cristo nunca chegará um mundo realmente justo e renovado. E também se de outra forma, totalmente e em profundidade, podemos e devemos dizer também nós, com grande urgência e nas circunstâncias do nosso tempo: Vinde, Senhor Jesus! Vinde ao vosso modo, da maneira que conheceis. Vinde onde há injustiça e violência. Vinde nos campos dos prófugos, no Darfur, no Kivu-Norte, em tantas partes do mundo. Vinde onde domina a droga. Vinde também entre aqueles ricos que vos esqueceram, que vivem só para si mesmos. Vinde onde sois desconhecido. Vinde à vossa maneira e renovai o mundo de hoje. Vinde também aos nossos corações, vinde e renovai o nosso viver, vinde ao nosso coração para que nós próprios possamos tornar-nos luz de Deus, vossa presença. Neste sentido rezemos com São Paulo: Maraná thá! "Vinde, Senhor Jesus!", e oremos para que Cristo esteja realmente presente hoje no nosso mundo e o renove.

Saudação

Saúdo cordialmente os peregrinos de língua portuguesa, a todos desejando felicidades, em Jesus Cristo: em particular, desejo saudar muito cordialmente os grupos vindos de Portugal e do Brasil. Que a vinda a Roma vos fortaleça na fé e avive no vosso ânimo a coragem para testemunhar a grandeza do Redentor dos homens, vencedor do mal e ressuscitado para ser a nossa esperança e a nossa paz. Que o Senhor vos abençoe!




Praça de São Pedro

19 de Novembro de 2008: São Paulo (13): A doutrina da justificação - Das obras à fé

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Queridos irmãos e irmãs!

No caminho que estamos a percorrer sob a guia de São Paulo, desejamos agora reflectir sobre um tema que está no centro das controvérsias do século da Reforma: a questão da justificação. Como se torna justo o homem aos olhos de Deus? Quando Paulo encontrou o ressuscitado no caminho de Damasco era um homem realizado: irrepreensível em relação à justiça que provém da Lei (cf.
Ph 3,6), superava muitos dos seus coetâneos na observância das prescrições moisaicas e era zeloso na defesa das tradições dos padres (cf. Ga 1,14). A iluminação de Damasco mudou radicalmente a sua existência: começou a considerar todos os méritos, adquiridos numa carreira religiosa integérrima, como "esterco" face à sublimidade do conhecimento de Jesus Cristo (cf. Ph 3,8). A Carta aos Filipenses oferece-nos um testemunho comovedor da passagem de Paulo de uma justiça fundada na Lei e adquirida com a observância das obras prescritas, para uma justiça baseada na fé em Cristo: ele tinha compreendido que tudo o que lucrado até então na realidade era, perante Deus, uma perda e por isso decidiu apostar toda a sua existência em Jesus Cristo (cf. Ph 3,7). O tesouro escondido no campo e a pérola preciosa em cuja aquisição investir tudo o resto já não eram as obras da Lei, mas Jesus Cristo, o seu Senhor.

A relação entre Paulo e o Ressuscitado tornou-se tão profunda que o induziu a afirmar que Cristo não era apenas a sua vida mas o seu viver, a ponto que para o poder alcançar até morrer era um lucro (cf. Ph 1,21). E não desprezava a vida, mas tinha compreendido que para ele o viver já não tinha outra finalidade e não sentia outro desejo a não ser o de alcançar Cristo, como numa competição atlética, para permanecer sempre com Ele: o Ressuscitado tinha-se tornado o início e o fim da sua existência, o motivo e a meta da sua corrida. Só a preocupação pela maturação na fé dos que tinha evangelizado e a solicitude por todas as Igrejas por ele fundadas (cf. 2Co 11,28), o levavam a abrandar a corrida para o seu único Senhor, para aguardar os discípulos a fim de que pudessem, com ele, correr para a meta. Se na precedente observância da Lei nada tinha para se reprovar sob o ponto de vista da integridade moral, uma vez alcançado por Cristo preferia não pronunciar juízos sobre si mesmo (cf. 1Co 4,3-4), mas limitava-se a predispor-se a correr para conquistar Aquele pelo qual tinha sido conquistado (cf. Ph 3,12).

É precisamente por esta experiência pessoal da relação com Jesus Cristo que Paulo põe precisamente no centro do seu Evangelho uma irredutível oposição entre dois percursos alternativos rumo à justiça: um construído sobre as obras da Lei, o outro fundado na graça da fé em Cristo. A alternativa entre a justiça para as obras da Lei e a justiça pela fé em Cristo torna-se assim um dos motivos dominantes que atravessam as suas Cartas: "Nós somos judeus de nascimento e não pecadores da gentilidade; sabendo, entretanto, que o homem não se justifica pelas obras da Lei, mas pela fé em Jesus Cristo, nós também cremos em Cristo Jesus para sermos justificados pela fé em Cristo e não pelas obras da Lei, porque pelas obras da Lei ninguém é justificado" (Ga 2,15-16). E aos cristãos de Roma recorda que "todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus, e são justificados gratuitamente, por sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus" (Rm 3,23-24). E acrescenta: "Nós sustentamos que o homem é justificado pela fé, sem as obras da Lei" (Ibid., v. 28). Sobre este ponto, Lutero traduziu: "Justificado unicamente pela fé". Voltarei a este aspecto no final da catequese. Primeiro devemos esclarecer o que significa esta "Lei" da qual somos libertados e o que são aquelas "obras da Lei" que não justificam. Já na comunidade de Corinto existia a opinião que depois voltaria sistematicamente à história; a opinião consistia em considerar que se tratasse da lei moral e que a liberdade cristã fosse portanto a libertação da ética. Assim em Corinto circulava a palavra "p??ta µ?? ??est??" (tudo me é lícito). É obvio que esta interpretação é errada: a liberdade cristã não é libertinagem, a libertação da qual fala São Paulo não é libertação de praticar o bem.

Mas o que significa então a Lei da qual somos libertados e que não salva? Para São Paulo, como para todos os seus contemporâneos, a palavra Lei significava a Torah na sua totalidade, ou seja, os cinco livros de Moisés. A Torah implicava, na interpretação farisaica, a que era estudada e tornada própria por Paulo, um conjunto de comportamentos que ia do núcleo ético até às observâncias rituais e cultuais que determinavam substancialmente a identidade do homem justo. Particularmente a circuncisão, as observâncias acerca do alimento puro e geralmente a pureza ritual, as regras sobre a observância do sábado, etc. Comportamentos que, com frequência, aparecem também nos debates entre Jesus e os seus contemporâneos. Todas estas observâncias que expressam uma identidade social, cultural e religiosa tinham-se tornado singularmente importantes no tempo da cultura helenista, começando pelo século III a.C. Esta cultura, que se tinha tornado a cultura universal de então, e era uma cultura aparentemente racional, uma cultura politeísta, aparentemente tolerante, constituía uma forte pressão rumo à uniformidade cultural e ameaçava assim a identidade de Israel, que era politicamente obrigado a entrar nesta identidade comum da cultura helenista com a consequente perda da própria identidade, perda portanto também da preciosa herança da fé dos Padres, da fé no único Deus e nas promessas de Deus.

Contra esta pressão cultural, que ameaçava não só a identidade israelita, mas também a fé no único Deus e nas suas promessas, era necessário criar um muro de distinção, um escudo de defesa em protecção da preciosa herança da fé; tal muro consistia precisamente nas observâncias e prescrições judaicas. Paulo, que tinha aprendido tais observâncias precisamente na sua função defensiva do dom de Deus, da herança da fé num único Deus, viu esta identidade ameaçada pela liberdade dos cristãos: perseguia-os por isto. No momento do seu encontro com o Ressuscitado, compreendeu que com a ressurreição de Cristo a situação tinha mudado radicalmente. Com Cristo, o Deus de Israel, o único Deus verdadeiro, tornava-se o Deus de todos os povos. O muro assim diz na Carta aos Efésios entre Israel e os pagãos, não era mais necessário: é Cristo que nos protege do politeísmo e todos os seus desvios; é Cristo que nos une com e no único Deus; é Cristo que garante a nossa verdadeira identidade na diversidade das culturas. O muro já não é necessário, a nossa identidade comum na diversidade das culturas é Cristo, e é Ele quem nos torna justos. Ser justo significa simplesmente estar com Cristo e em Cristo. E isto é suficiente. Não são mais necessárias outras observâncias. Por isso, a expressão "sola fide" de Lutero é verdadeira, se não se opõe a fé à caridade, ao amor. A fé é olhar Cristo, confiar-se a Cristo, apegar-se a Cristo, conformar-se com Cristo e com a sua vida. E a forma, a vida de Cristo, é o amor; portanto, acreditar é conformar-se com Cristo e entrar no seu amor. Por isso, São Paulo na Carta aos Gálatas, sobretudo na qual desenvolveu a sua doutrina sobre a justificação, fala da fé que age por meio da caridade (cf. Ga 5,14).

Paulo sabe que no dúplice amor a Deus e ao próximo está presente e é completada toda a Lei. Assim, na comunhão com Cristo, na fé que cria a caridade, toda a Lei é realizada. Tornamo-nos justos, entrando em comunhão com Cristo, que é amor. Veremos a mesma coisa no Evangelho do próximo domingo, solenidade de Cristo-Rei. É o Evangelho do juiz, cujo único critério é o amor. O que Ele exige é só isto: Tu visitaste-me quando estava doente? Quando estava na prisão? Tu deste-me de comer quando eu tinha fome, tu vestiste-me quando eu estava nu? E assim a justiça decide-se na caridade. Assim, no final deste Evangelho podemos quase dizer: só amor, só caridade. Mas não há contradição entre este Evangelho e São Paulo. É a mesma visão, segundo a qual a comunhão com Cristo, a fé em Cristo, cria a caridade. E a caridade é realização da comunhão com Cristo. Assim, somos justos permanecendo unidos a Ele, e de nenhum outro modo.

No final, só podemos rezar ao Senhor que nos ajude a crer. Crer realmente; assim, acreditar torna-se vida, unidade com Cristo, transformação da nossa vida. E assim, transformados pelo seu amor, pelo amor a Deus e ao próximo, podemos ser realmente justos aos olhos de Deus.

Saudação

Amados peregrinos de língua portuguesa, uma fraterna saudação de boas-vindas a todos. Antes de vós, muitas gerações de romeiros vieram ajoelhar-se junto dos túmulos de São Pedro e São Paulo, à procura daquela razão de viver tão forte e segura que levou os Apóstolos a darem a sua vida por Cristo. Espero que a encontreis... Sobre vós e vossos entes queridos, desça a minha Bênção.




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