Audiências 2005-2013 26118

26 de Novembro de 2008: Saudação à Sua Santidade Aram I, Catholicos da Cilícia dos Arménios

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Hoje de manhã saúdo com grande alegria Sua Santidade Aram I, Catholicos da Cilícia dos Arménios, juntamente com a ilustre delegação que o acompanha, e os peregrinos arménios de vários países. Esta visita fraterna constitui uma ocasião significativa para fortalecer os vínculos de unidade já existentes entre nós, enquanto caminhamos rumo à plena comunhão que é a finalidade que se apresenta a todos os seguidores de Cristo e, ao mesmo tempo, um dom a ser implorado diariamente ao Senhor.

Por este motivo, Santidade, invoco a graça do Espírito Santo sobre a sua peregrinação aos túmulos dos Apóstolos Pedro e Paulo, e convido todos os presentes a rezar ardentemente ao Senhor para que a sua visita e os nossos encontros representem mais um passo ao longo do caminho rumo à plena unidade.

Santidade, desejo expressar a minha particular gratidão pela sua constante participação pessoal no campo do ecumenismo, de forma especial na Comissão Conjunta Internacional para o Diálogo Teológico entre a Igreja católica e as Igrejas ortodoxas orientais, e o Conselho Mundial das Igrejas.

Na parte externa da Basílica Vaticana há uma estátua de São Gregório, o Iluminador, fundador da Igreja arménia, a quem um dos vossos historiadores chamou "nosso progenitor e pai do Evangelho" A presença desta imagem evoca os sofrimentos que ele padeceu para levar o povo arménio à cristandade, mas evoca também os numerosos mártires e confessores da fé, cujo testemunho produziu frutos abundantes na história do vosso povo. A cultura e a espiritualidade arménias estão imbuídas de orgulho por este testemunho dos seus antepassados, que sofreram com fidelidade e coragem em comunhão com o Cordeiro imolado pela salvação do mundo.

Sede bem-vindos, Santidade, queridos Bispos e amados amigos! Invoquemos em conjunto a intercessão de São Gregório, o Iluminador, e principalmente a Virgem Mãe de Deus, a fim de que eles iluminem o nosso caminho e o orientem para a plenitude daquela unidade pela qual todos nós aspiramos.

São Paulo (14): A doutrina da justificação: da fé às obras

Queridos irmãos e irmãs!

Na catequese de quarta-feira passada falei sobre a questão de como o homem se torna justo diante de Deus. Seguindo São Paulo, vimos que o homem não está em condições de se tornar "justo" com as suas próprias acções, mas só pode realmente tornar-se "justo" diante de Deus porque Deus lhe confere a sua "justiça" unindo-o a Cristo, seu Filho. E o homem obtém esta união com Cristo através da fé. Neste sentido São Paulo diz-nos: não são as nossas obras que nos tornam "justos", mas a fé. Contudo, esta fé não é um pensamento, uma opinião, uma ideia. Esta fé é comunhão com Cristo, que o Senhor nos doa e por isso se torna vida, conformidade com Ele. Ou, por outras palavras, a fé, se é verdadeira, se é real, torna-se amor, caridade, expressa-se na caridade. Uma fé sem caridade, sem este fruto não seria verdadeira. Seria fé morta.

Encontramos por conseguinte na última catequese dois níveis: o da irrelevância das nossas acções, das nossas obras para a consecução da salvação e o da "justificação" mediante a fé que produz o fruto do Espírito. A confusão destes dois níveis causou, ao longo dos séculos, não poucos mal-entendidos na cristandade. Neste contexto é importante que São Paulo na mesma Carta aos Gálatas acentue, por um lado, de modo radical, a gratuidade da justificação não pelas obras, mas que, ao mesmo tempo, ressalte também a relação entre a fé e a caridade, entre a fé e as obras: "Em Jesus Cristo nem a circuncisão nem a incircuncisão têm valor, mas a fé que actua pela caridade" (Ga 5,6). Por conseguinte, existem, por um lado, as "obras da carne" que são "prostituição, impureza, desonestidade, idolatria..." (Ga 5,19-21): todas elas são obras contrárias à fé; por outro lado, a acção do Espírito Santo alimenta a vida cristã suscitando "amor, alegria, paz, magnanimidade, benevolência, bondade, fidelidade, mansidão, domínio de si" (Ga 5,22): são estes os frutos do Espírito que brotam da fé.

No início deste elenco de virtudes é citada o ágape, o amor, e na conclusão o domínio de si. Na realidade, o Espírito, que é o Amor do Pai e do Filho, efunde o seu primeiro dom, o ágape, nos nossos corações (cf. Rm 5,5); e o ágape, o amor, para se expressar em plenitude exige o domínio de si. Do amor do Pai e do Filho, que nos alcança e transforma a nossa existência em profundidade, falei também na minha primeira Encíclica: Deus caritas est. Os crentes sabem que no amor recíproco se encarna o amor de Deus e de Cristo, por meio do Espírito. Voltemos à Carta aos Gálatas. Nela São Paulo diz que, carregando os fardos uns dos outros, os crentes cumprem o mandamento do amor (cf. Ga 6,2). Justificados pelo dom da fé em Cristo, somos chamados a viver no amor de Cristo pelo próximo, porque é com este critério que seremos julgados, no final da nossa existência. Na realidade, Paulo repete o que o próprio Jesus tinha dito e que nos foi reproposto pelo Evangelho do domingo passado, na parábola do Juízo final. Na Primeira Carta aos Coríntios, São Paulo difunde-se num famoso elogio do amor. É o chamado hino à caridade: "Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver caridade, sou como bronze que ressoa, ou como o címbalo que tine... A caridade é paciente, a caridade é benigna, não é invejosa; a caridade não se ufana, não se ensoberbece, não é inconveniente, não procura o seu interesse..." (1Co 13,1 1Co 13,4 1Co 13,5). O amor cristão é muito exigente porque brota do amor total de Cristo por nós: aquele amor que nos reclama, acolhe, abraça, ampara, até nos atormentar, porque obriga cada um a não viver mais para si mesmo, fechado no próprio egoísmo, mas para "Aquele que morreu e ressuscitou por nós" (cf. 2Co 5,15). O amor de Cristo faz-nos ser n'Ele aquela criatura nova (cf. 2Co 5,17) que começa a fazer parte do seu Corpo místico que é a Igreja.

Vista nesta perspectiva, a centralidade da justificação sem obras, objecto primário da pregação de Paulo, não entra em contradição com a fé activa no amor; aliás, exige que a nossa mesma fé se exprima numa vida segundo o Espírito. Com frequência viu-se uma infundada oposição entre a teologia de São Paulo e a de São Tiago, que na sua Carta escreve: "Assim como o corpo sem a alma é morto, assim também a fé sem obras é morta" (Jc 2,26). Na realidade, enquanto Paulo está antes de tudo preocupado em mostrar que a fé em Cristo é necessária e suficiente, Tiago realça as relações consequenciais entre a fé e as obras (cf. Jc 2,2-4). Portanto quer para Paulo quer para Tiago a fé activa no amor confirma o dom gratuito da justificação em Cristo. A salvação, recebida em Cristo, tem necessidade de ser constituída e testemunhada "com respeito e temor. De facto, é Deus quem suscita em vós o valor e as obras segundo o seu desígnio de amor. Fazei tudo sem murmurar e sem hesitar... mantendo firme a palavra de vida", dirá ainda São Paulo aos cristãos de Filipos (cf. Ph 2,12-14 Ph 2,16).

Muitas vezes somos levados a cair nos mesmos mal-entendidos que caracterizaram a comunidade de Corinto: aqueles cristãos pensavam que, tendo sido justificados gratuitamente em Cristo pela fé, "tudo lhes fosse lícito". E pensavam, e muitas vezes parece que o pensam também os cristãos de hoje, que é lícito criar divisões na Igreja, Corpo de Cristo, celebrar a Eucaristia sem se preocupar com os irmãos mais necessitados, aspirar aos melhores carismas sem se dar conta que são membros uns dos outros, e assim por diante. São desastrosas as consequências de uma fé que não encarna no amor, porque se reduz ao arbítrio e ao subjectivismo mais nocivo para nós e para os irmãos. Ao contrário, seguindo São Paulo, devemos tomar consciência renovada do facto que, precisamente porque justificados em Cristo, já não pertencemos a nós mesmos, mas tornamo-nos templos do Espírito e por isso somos chamados a glorificar Deus no nosso corpo com toda a nossa existência (cf. 1Co 6,19). Seria desbaratar o valor inestimável da justificação se, comprados a caro preço pelo sangue de Cristo, não o glorificássemos com o nosso corpo. Na realidade, é precisamente este o nosso culto "razoável" e ao mesmo tempo "espiritual", pelo que somos exortados por Paulo a "oferecer o nosso corpo como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus" (Rm 12,1). Ao que se reduziria uma liturgia dirigida apenas ao Senhor, sem se tornar, ao mesmo tempo, serviço pelos irmãos, uma fé que não se expressasse na caridade? E o Apóstolo coloca com frequência as suas comunidades face ao juízo final, por ocasião do qual "todos havemos de comparecer perante o tribunal de Cristo, para que cada um receba o que mereceu, conforme o bem ou o mal que tiver feito, enquanto estava no corpo" (2Co 5,10 cf. também Rm 2,16). E este pensamento do Juízo deve iluminar-nos na nossa vida de todos os dias.

Se a ética que Paulo propõe não decai em formas de moralismo e se demonstra actual para nós, é porque, todas as vezes, recomeça sempre da relação pessoal e comunitária com Cristo, para se imbuir na vida segundo o Espírito. Isto é essencial: a ética cristã não nasce de um sistema de mandamentos, mas é consequência da nossa amizade com Cristo. Esta amizade influencia a vida: se é verdadeira encarna-se e realiza-se no amor ao próximo. Por isso, qualquer decadência ética não se limita à esfera individual, mas é ao mesmo tempo desvalorização da fé pessoal e comunitária: dela deriva e sobre ela incide de modo determinante. Deixemo-nos portanto alcançar pela reconciliação, que Deus nos deu em Cristo, pelo amor "louco" de Deus por nós: nada e ninguém jamais nos poderá separar do seu amor (cf. Rm 8,39). Vivamos nesta certeza. É esta certeza que nos dá a força para viver concretamente a fé que realiza o amor.



3 de Dezembro de 2008: São Paulo (15): Adão e Cristo: do pecado (original) à liberdade

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Queridos irmãos e irmãs!

Detemo-nos na catequese de hoje sobre as relações entre Adão e Cristo, traçadas por São Paulo na conhecida página da Carta aos Romanos (
Rm 5,12-21), na qual ele entrega à Igreja as orientações essenciais da doutrina sobre o pecado original. Na realidade, já na primeira Carta aos Coríntios, tratando da fé na ressurreição, Paulo tinha introduzido o confronto entre o progenitor e Cristo: "Assim como todos morrem em Adão, assim também, em Cristo, todos serão vivificados... O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente: o último Adão é um espírito vivificante" (1Co 15,22 1Co 15,45). Com Rm 5,12-21 o confronto entre Cristo e Adão torna-se mais articulado e iluminador: Paulo repercorre a história da salvação de Adão até à Lei e dela até Cristo. No centro do cenário não se encontra tanto Adão com as consequências do pecado sobre a humanidade, quanto Jesus Cristo e a graça que, através d'Ele, foi derramada em abundância sobre a humanidade. A repetição do "muito mais" relativo a Cristo ressalta como o dom recebido n'Ele supera, em grande medida, o pecado de Adão e as consequências causadas sobre a humanidade, de modo que Paulo pode chegar à conclusão: "Onde, porém, abundou o pecado, superabundou a graça" (Rm 5,20). Portanto, o confronto que Paulo traça entre Adão e Cristo põe em realce a inferioridade do primeiro homem em relação à prevalência do segundo.

Por outro lado, é precisamente para pôr em ressalto o dom incomensurável da graça, em Cristo, que Paulo menciona o pecado de Adão: dir-se-ia que se não tivesse sido para demonstrar a centralidade da graça, ele não teria demorado a tratar o pecado que, "por causa de um só homem, entrou no mundo e, com o pecado, a morte" (Rm 5,12). Por isso, se na fé da Igreja maturou a consciência do dogma do pecado original foi porque ele está relacionado inseparavelmente com o outro dogma, o da salvação e da liberdade em Cristo. A consequência disto é que nunca deveríamos tratar o pecado de Adão e da humanidade separando-os do contexto salvífico, isto é, sem os incluir no horizonte da justificação em Cristo.

Mas como homens de hoje devemos perguntar-nos: o que é este pecado original? O que ensina São Paulo, o que ensina a Igreja? Ainda hoje se pode afirmar esta doutrina? Muitos pensam que, à luz da história da evolução, já não haveria lugar para a doutrina de um primeiro pecado, que depois se teria difundido em toda a história da humanidade. E, por conseguinte, também a questão da Redenção e do Redentor perderia o seu fundamento. Portanto, existe ou não o pecado original? Para poder responder devemos distinguir dois aspectos da doutrina sobre o pecado original. Existe um aspecto empírico, isto é, realidade concreta, visível, diria tangível para todos. E um aspecto mistérico, relativo ao fundamento ontológico deste facto. O dado empírico é que existe uma contradição no nosso ser. Por um lado, cada homem sabe que deve fazer o bem e intimamente até o quer fazer. Mas, ao mesmo tempo, sente também o outro impulso para fazer o contrário, para seguir o caminho do egoísmo, da violência, para fazer só o que lhe apraz, mesmo sabendo que assim age contra o bem, contra Deus e contra o próximo. São Paulo na sua Carta aos Romanos expressou esta contradição no nosso ser assim: "Quero o bem, que está ao meu alcance, mas realizá-lo não. Efectivamente, o bem que quero, não o faço, mas o mal que não quero é que pratico" (Rm 7,18-19). Esta contradição interior do nosso ser não é uma teoria. Cada um de nós a vive todos os dias. E sobretudo vemos sempre em nossa volta a prevalência desta segunda vontade. É suficiente pensar nas notícias quotidianas sobre injustiças, violência, mentira, luxúria. Vemo-lo todos os dias: é uma realidade.

Como consequência deste poder do mal nas nossas almas, desenvolveu-se na história um rio impuro, que envevena a geografia da história humana. O grande pensador francês Blaise Pascal falou de uma "segunda natureza", que se sobrepõe à nossa natureza originária, boa. Esta "segunda natureza" faz sobressair o mal como normal para o homem. Assim também a expressão habitual: "Isto é humano" pode querer dizer: este homem é bom, realmente age como deveria agir um homem. Mas "isto é humano" também pode significar falsidade: o mal é normal, é humano. O mal parece ter-se tornado uma segunda natureza. Esta contradição do ser humano, da nossa história deve provocar, e provoca também hoje, o desejo de redenção. E, na realidade, o desejo que o mundo seja mudado e a promessa que será criado um mundo de justiça, de paz, de bem, está presente em toda a parte: na política, por exemplo, todos falam desta necessidade de mudar o mundo, de criar um mundo mais justo. É precisamente esta a expressão do desejo que haja uma libertação da contradição que experimentamos em nós próprios.

Por conseguinte, o facto do poder do mal no coração humano e na história humana é inegável. A questão é: como se explica este mal? Na história do pensamento, prescindindo da fé cristã, existe um modelo principal de explicação, com diversas variações. Este modelo diz: o próprio ser é contraditório, tem em si quer o bem quer o mal. Na antiguidade esta ideia incluía a opinião que existiam dois princípios igualmente originários: um princípio bom e um princípio mau. Este dualismo seria insuperável; os dois princípios estão no mesmo nível, por isso haverá sempre, desde a origem do ser, esta contradição. A contradição do nosso ser, portanto, reflectiria apenas, por assim dizer, a contrariedade dos dois princípios divinos. Na versão evolucionista, ateia, do mundo volta de maneira nova a mesma visão. Mesmo se, nesta concepção, a visão do ser é monista, supõe-se que o ser como tal desde o início tenha em si o mal e o bem. O próprio ser não é simplesmente bom, mas aberto ao bem e ao mal. O mal é igualmente originário como o bem. E a história humana desenvolveria apenas o modelo já presente em toda a evolução precedente. Aquilo a que os cristãos chamam pecado original na realidade seria apenas o carácter misto do ser, uma mistura de bem e de mal que, segundo esta teoria, pertenceria à própria capacidade do ser. No fundo, trata-se de uma visão desesperada: se assim é, o mal é invencível. No final conta unicamente o próprio interesse. E cada progresso deveria ser necessariamente pago com um rio de mal e quem quisesse servir o progresso deveria aceitar pagar este preço. No fundo, a política é delineada precisamente sobre estas premissas: e vemos os seus efeitos. Este pensamento moderno pode, no final, criar tristeza e cinismo.

E assim perguntamos de novo: o que diz a fé, testemunhada por São Paulo? Como primeiro ponto, ela confirma o facto da competição entre as duas naturezas, o facto deste mal cuja sombra pesa sobre toda a criação. Ouvimos o capítulo 7 da Carta aos Romanos, poderíamos acrescentar o capítulo 8. O mal simplesmente existe. Como explicação, em contraste com os dualismos e os monismos que consideramos brevemente e que achamos desoladores, a fé diz-nos: existem dois mistérios de luz e um mistério de trevas, que contudo está envolvido pelos mistérios de luz. O primeiro mistério de luz é este: a fé diz-nos que não existem dois princípios, um bom e um mau, mas há um só princípio, o Deus criador, e este princípio é bom, só bom, sem sombra de mal. E por isso também o ser não é uma mistura de bem e mal; o ser como tal é bom e por isso é bom ser, é bom viver. É esta a boa nova da fé: há apenas uma fonte boa, o Criador. E por isso viver é um bem, é bom ser um homem, uma mulher, a vida é boa. Depois segue-se um mistério de escuridão, de trevas. O mal não provém da fonte do próprio ser, não tem a mesma origem. O mal vem de uma liberdade criada, de uma liberdade abusada.

Como foi possível, como aconteceu? Isto permanece obscuro. O mal não é lógico. Só Deus e o bem são lógicos, são luz. O mal permanece misterioso. Apresentámo-lo com grandes imagens, como faz o capítulo 3 do Génesis, com aquela visão das duas árvores, da serpente, do homem pecador. Uma grande imagem que nos faz adivinhar, mas não pode explicar quanto é em si mesmo ilógico. Podemos adivinhar, não explicar; nem sequer o podemos contar como um facto ao lado do outro, porque é uma realidade mais profunda. Permanece um mistério de escuridão, de trevas. Mas acrescenta-se imediatamente um mistério de luz. O mal vem de uma fonte subordinada. Deus com a sua luz é mais forte. E por isso o mal pode ser superado. Portanto a criatura, o homem, é curável. As visões dualistas, também o monismo do evolucionismo, não podem dizer que o homem é curável; mas se o mal só vem de uma fonte subordinada, é uma verdade que o homem é curável. E o livro da Sabedoria diz: "São salutares as criaturas do mundo" (Sg 1,14 vulg). E finalmente, último aspecto, o homem não é só curável, de facto está curado. Deus introduziu a cura. Entrou pessoalmente na história. Opôs à fonte permanente do mal uma fonte de bem puro. Cristo crucificado e ressuscitado, novo Adão, opõe ao rio impuro do mal um rio de luz. E este rio está presente na história: vejamos os santos, os grandes santos mas também os santos humildes, os simples fiéis. Vemos que o rio de luz que provém de Cristo está presente, é forte.

Irmãos e irmãs, é tempo de Advento. Na linguagem da Igreja a palavra Advento tem dois significados: presença e expectativa. Presença: a luz está presente, Cristo é o novo Adão, está connosco e no meio de nós. Já resplandece a luz e devemos abrir os olhos do coração para ver a luz e para nos introduzirmos no rio da luz. Estar sobretudo gratos pelo facto de que o próprio Deus entrou na história como nova fonte de bem. Mas Advento significa também expectativa. A noite escura do mal ainda é forte. E por isso rezemos no Advento com o antigo povo de Deus: "Rorate caeli desuper". E rezemos com insistência: vem Jesus, dá força à luz e ao bem; vem onde dominam a mentira, a ignorância de Deus, a violência, a injustiça, vem, Senhor Jesus, dá força ao bem no mundo e ajuda-nos a ser portadores da tua luz, artífices da paz, testemunhas da verdade. Vem Senhor Jesus!



10 de Dezembro de 2008: São Paulo (16): O papel dos Sacramentos

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Prezados irmãos e irmãs!

Seguindo São Paulo, vimos na catequese de quarta-feira passada duas coisas. A primeira é a que a nossa história humana dos inícios está maculada pelo abuso da liberdade criada, que tenciona emancipar-se da Vontade divina. E assim não encontra a verdadeira liberdade, mas opõe-se à verdade e falsifica, portanto, as nossas realidades humanas. Falsifica sobretudo as relações fundamentais: com Deus, entre o homem e a mulher, entre o homem e a terra. Dissemos que esta mancha da nossa história se difunde em todo o tecido e que este defeito herdado foi aumentando e agora é visível em toda a parte. Esta era a primeira coisa. A segunda é esta: de São Paulo aprendemos que existe um novo início na história e da história em Jesus Cristo, Aquele que é homem e Deus. Com Jesus, que vem de Deus, começa uma nova história formada pelo seu sim ao Pai, por isso fundada não na perspectiva de uma falsa emancipação, mas no amor e na verdade.

Mas agora apresenta-se a questão: como podemos entrar neste novo início, nesta nova história? Como chega até mim esta nova história? Com a primeira história maculada estamos inevitavelmente ligados pela nossa descendência biológica, dado que todos nós pertencemos ao único corpo da humanidade. Mas como se realiza a comunhão com Jesus, o novo nascimento para começar a fazer parte da nova humanidade? Como chega Jesus à minha vida, ao meu ser? A resposta fundamental de São Paulo, de todo o Novo Testamento é: chega por obra do Espírito Santo. Se a primeira história começa, por assim dizer, com a biologia, a segunda começa no Espírito Santo, o Espírito de Cristo ressuscitado. Este Espírito criou no Pentecostes o início da nova humanidade, da nova comunidade, a Igreja, o Corpo de Cristo.

Porém, temos que ser ainda mais concretos: como pode tornar-se este Espírito de Cristo o Espírito Santo, meu Espírito? A resposta é que isto acontece de três modos, íntima e reciprocamente interligados. O primeiro é este: o Espírito de Cristo bate à porta do meu coração, toca-me interiormente. Mas dado que a nova humanidade deve ser um verdadeiro corpo, porque o Espírito deve reunir-nos e realmente criar uma comunidade, porque é característico do novo início a superação das divisões e a criação da agregação dos dispersos, este Espírito de Cristo serve-se de dois elementos de agregação visível: da Palavra do anúncio e dos Sacramentos, de modo particular do Baptismo e da Eucaristia. Na Carta aos Romanos, São Paulo diz: "Se com a tua boca confessares o Senhor Jesus e no teu coração acreditares que Deus O ressuscitou dentre os mortos, serás salvo" (
Rm 10,9), ou seja, entrarás na nova história, história de vida e não de morte. Depois, São Paulo continua: "Mas como invocarão Aquele em quem não acreditaram? Como hão-de acreditar naquele de quem não ouviram falar? Como ouvirão, se ninguém lhes anunciar? E como O anunciarão, se não forem enviados?" (Rm 10,14-15). Num trecho sucessivo, diz ainda: "A fé vem da escuta" (cf. Rm 10,17). A fé não é produto do nosso pensamento, da nossa reflexão, é algo de novo que não podemos inventar, mas somente receber como uma novidade produzida por Deus. E a fé não vem da leitura, mas da escuta. Não é algo somente interior, mas uma relação com Alguém. Supõe um encontro com o anúncio, supõe a existência do outro que anuncia e cria comunhão.

E finalmente, o anúncio: aquele que anuncia não fala por si, mas é enviado. Está dentro de uma estrutura de missão que começa com Jesus enviado pelo Pai, passa aos apóstolos a palavra apóstolos significa "enviados" e continua no ministério, nas missões transmitidas pelos apóstolos. O novo tecido da história aparece nesta estrutura das missões, na qual ultimamente ouvimos falar o próprio Deus, a sua Palavra pessoal, o Filho que fala connosco, chega até nós. A Palavra fez-se carne, Jesus, para criar realmente uma nova humanidade. Por isso, a palavra do anúncio torna-se Sacramento no Baptismo, que é renascimento da água e do Espírito, como dirá São João. No capítulo 6 da Carta aos Romanos, São Paulo fala de modo muito profundo do Baptismo. Ouvimos o texto. Mas talvez seja útil repeti-lo: "Ignorais, porventura, que todos nós que fomos baptizados em Jesus Cristo, fomos baptizados na sua morte? Por meio do Baptismo, portanto, fomos sepultados juntamente com Ele na morte para que, como Cristo ressuscitou dos mortos mediante a glória do Pai, assim também nós possamos caminhar numa vida nova" (Rm 6,3-4).

Nesta catequese, naturalmente, não posso entrar numa interpretação pormenorizada deste texto não fácil. Gostaria de fazer notar brevemente só três coisas. A primeira: "fomos baptizados" é uma forma passiva. Ninguém pode baptizar-se a si mesmo, pois tem necessidade do outro. Ninguém pode tornar-se cristão por si próprio. Tornar-se cristão é um processo passivo. Somente podemos tornar-nos cristãos por meio de outro. E este "outro" que nos faz cristãos, que nos oferece o dom da fé, é em primeiro lugar a comunidade dos fiéis, a Igreja. Da Igreja recebemos a fé, o Baptismo. Sem nos deixarmos formar por esta comunidade, não nos tornamos cristãos. Um cristianismo autónomo, autoproduzido, é uma contradição em si. Em primeiro lugar, este outro é a comunidade dos fiéis, a Igreja, mas em segundo lugar também esta comunidade não age sozinha, segundo as próprias ideias e aspirações. Também a comunidade vive no mesmo processo passivo: somente Cristo pode constituir a Igreja. Cristo é o verdadeiro doador dos Sacramentos. Este é o primeiro ponto: ninguém se baptiza a si mesmo, e ninguém se torna cristão por si próprio. Nós tornamo-nos cristãos.

A segunda coisa é esta: o Baptismo é mais que um lavacro. É morte e ressurreição. O próprio Paulo, falando na Carta aos Gálatas da transformação da sua vida que se realizou no encontro com Cristo ressuscitado, descreve-a com estas palavras: estou morto. Nesse momento começa realmente uma nova vida. Tornar-se cristão é mais que uma operação cosmética, que acrescentaria algo de bonito a uma existência já mais ou menos completa. É um novo início, é o renascimento: morte e ressurreição. Obviamente, na ressurreição renasce aquilo que era bom na existência precedente.

A terceira coisa é: a matéria faz parte do Sacramento. O cristianismo não é uma realidade puramente espiritual. Implica o corpo. Implica o cosmos. Estende-se para a nova terra e nos novos céus. Voltemos às últimas palavras do texto de São Paulo. Assim diz ele podemos "caminhar numa vida nova". Elemento de um exame de consciência para todos nós: caminhar numa nova vida. Isto pelo Baptismo.

Agora consideremos o Sacramento da Eucaristia. Já mostrei noutras catequeses com que respeito profundo São Paulo transmite verbalmente a tradição sobre a eucaristia, que recebeu das mesmas testemunhas da última noite. Transmite estas palavras como um precioso tesouro confiado à sua fidelidade. E assim ouvimos nestas palavras realmente as testemunhas da última noite. Ouçamos as palavras do Apóstolo: "Eu recebi do Senhor aquilo que também vos transmiti: que o Senhor Jesus, na noite em que foi entregue, tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse: "Isto é o meu corpo, que será entregue por vós; fazei isto em memória de mim". Do mesmo modo, depois de cear, tomou o cálice e disse: "Este cálice é a Nova Aliança no meu sangue: todas as vezes que o beberdes, fazei-o em memória de mim"" (1Co 11,23-25). É um texto inesgotável. Também aqui, nesta catequese, somente duas breves observações. Paulo transmite assim as palavras do Senhor sobre o cálice: este cálice é "a Nova Aliança do meu sangue". Nestas palavras esconde-se uma referência a dois textos fundamentais do Antigo Testamento. A primeira referência é à promessa de uma nova aliança, no Livro do profeta Jeremias. Jesus diz aos discípulos e também a nós: agora, nesta hora, comigo e com a minha morte, realiza-se a nova aliança; do meu sangue começa no mundo esta nova história da humanidade. Mas nestas palavras está também presente uma referência ao momento da aliança do Sinai, onde Moisés dissera: "Este é o sangue da aliança, que o Senhor estabeleceu convosco, mediante todas estas palavras" (Ex 24,8). Ali, tratava-se de sangue de animais. O sangue dos animais somente podia ser expressão de um desejo, espera do verdadeiro sacrifício, do verdadeiro culto. Com o dom do cálice, o Senhor oferece-nos o verdadeiro sacrifício. O único sacrifício verdadeiro é o amor do Filho. É com a dádiva deste amor, do amor eterno, que o mundo entra na nova aliança. Celebrar a Eucaristia significa que Cristo se entrega a si mesmo, o seu amor, para nos conformar consigo e para criar assim um mundo novo.

O segundo aspecto importante da doutrina sobre a eucaristia aparece na mesma primeira Carta aos Coríntios, onde São Paulo diz: "O cálice da bênção que abençoamos não é a comunhão do sangue de Cristo? E o pão que partimos não é a comunhão do corpo de Cristo? Uma vez que há um só pão, nós, embora sendo muitos, formamos um só corpo, porque todos nós participamos do mesmo pão" (1Co 10,16-17). Nestas palavras manifestam-se igualmente o carácter pessoal e a índole social do Sacramento da Eucaristia. Cristo une-se pessoalmente a cada um de nós, mas é o próprio Cristo que se une também ao homem e à mulher que estão ao meu lado. E o pão é para mim e também para o outro. Assim Cristo une todos nós a si mesmo e une-nos todos uns aos outros. Na comunhão recebemos Cristo. Mas Cristo une-se de igual modo ao meu próximo: Cristo e o próximo são inseparáveis na Eucaristia. E assim todos nós somos um só pão, um só corpo. Uma Eucaristia sem solidariedade com os outros é uma Eucaristia abusada. E aqui estamos também na raiz e ao mesmo tempo no centro da doutrina sobre a Igreja como Corpo de Cristo, de Cristo ressuscitado.

Vejamos também todo o realismo desta doutrina. Na Eucaristia, Cristo entrega-nos o seu corpo, doa-se a si mesmo no seu corpo e assim faz-nos seu corpo, une-nos ao seu corpo ressuscitado. Se o homem come o pão normal, este pão no processo da digestão torna-se parte do seu corpo, transformado em substância de vida humana. Mas na sagrada Comunhão realiza-se o processo oposto. Cristo, o Senhor, assimila-nos a si, introduz-nos no seu Corpo glorioso e assim todos juntos nos tornamos seu Corpo. Quem lê somente o cap. 12 da primeira Carta aos Coríntios e o cap. 12 da Carta aos Romanos, poderia pensar que a palavra sobre o Corpo de Cristo como organismo dos carismas é apenas uma espécie de parábola sociológico-teológica. Realmente, na politologia romana esta parábola do corpo com diversos membros que formam uma unidade era usada para o próprio Estado, para dizer que o Estado é um organismo em que cada qual tem a sua função, a multiplicidade e diversidade das funções formam um corpo e cada um tem o seu lugar. Lendo somente o cap. 12 da primeira Carta aos Coríntios, poder-se-ia pensar que Paulo se limita a transferir apenas isto à Igreja, que também aqui se trata só de uma sociologia da Igreja. Mas tendo em consideração este capítulo 10, vemos que o realismo da Igreja é bem diferente, muito mais profundo e verdadeiro que o de um Estado-organismo. Porque realmente Cristo doa o seu corpo e faz de nós o seu corpo. Tornamo-nos realmente unidos ao corpo ressuscitado de Cristo e, assim, unidos uns aos outros. A Igreja não é somente uma corporação como o Estado, mas é um corpo. Não é simplesmente uma organização, mas um verdadeiro organismo.

No final, só uma brevíssima palavra sobre o Sacramento do matrimónio. Na Carta aos Coríntios encontram-se só algumas referências, enquanto a Carta aos Efésios desenvolveu realmente uma profunda teologia do Matrimónio. Aqui Paulo define o Matrimónio como "grande mistério". Di-lo "com referência a Cristo e à sua Igreja" (Ep 5,32). Neste trecho há que ressaltar uma reciprocidade que se configura numa dimensão vertical. A submissão recíproca deve adoptar a linguagem do amor, que tem o seu modelo no amor de Cristo pela Igreja. Esta relação Cristo-Igreja torna primário o aspecto teologal do amor matrimonial, exalta o relacionamento afectivo entre os esposos. Um matrimónio autêntico será bem vivido, se no constante crescimento humano e afectivo se revigorar para permanecer sempre vinculado à eficácia da Palavra e ao significado do Baptismo. Cristo santificou a Igreja, purificando-a por meio do lavacro da água, acompanhado pela Palavra. A participação no corpo e sangue do Senhor somente consolida, além de tornar visível, uma união tornada indissolúvel pela graça.

E no final ouvimos a palavra de São Paulo aos Filipenses: "O Senhor está próximo" (Ph 4,5). Parece-me que compreendemos que, mediante a Palavra e os Sacramentos, em toda a nossa vida o Senhor está próximo. Oremos a Ele a fim de podermos ser cada vez mais sensibilizados no íntimo do nosso ser por esta sua proximidade, para que nasça a alegria aquela alegria que brota quando Jesus está realmente próximo.

Saudação

Amados peregrinos de língua portuguesa, as minhas boas-vindas a todos, com uma saudação deferente e amiga aos Presidentes das Câmaras e respectivos munícipes do Alto Tâmega. Imploro as bênçãos de Deus sobre os respectivos compromissos institucionais para que, inspirados pela solidariedade cristã, possam servir e promover o bem comum da sociedade. Com estes votos e a certeza da minha oração pelas intenções que vos trouxeram a Roma, vos abençoo a todos, aos vossos familiares e comunidades cristãs.


Sala Paulo VI

17 de Dezembro de 2008: O mistério do Natal


Audiências 2005-2013 26118