Audiências 2005-2013 17128

17 de Dezembro de 2008: O mistério do Natal

17128 Estimados irmãos e irmãs

Começam precisamente hoje os dias do Advento que nos preparam imediatamente para o Natal do Senhor: estamos na Novena de Natal, que em muitas comunidades cristãs é celebrada com liturgias ricas de textos bíblicos, todos destinados a alimentar a expectativa pelo nascimento do Salvador. Com efeito, a Igreja inteira concentra o seu olhar de fé nesta festa já próxima predispondo-se, como todos os anos, para se unir ao cântico jubiloso dos anjos, que no coração da noite anunciarão aos pastores o extraordinário acontecimento do nascimento do Redentor, convidando-os a ir à gruta de Belém. Ali está o Emanuel, o Criador que se fez criatura, envolvido em faixas e posto numa pobre manjedoura (cf.
Lc 2,13-14).

Pelo clima que o distingue, o Natal é uma festa universal. De facto, mesmo quem não se professa crente, pode sentir nesta celebração cristã anual algo de extraordinário e de transcendente, algo de íntimo que fala ao coração. É a festa que canta o dom da vida. O nascimento de uma criança deveria ser sempre um acontecimento que traz alegria; o abraço de um recém-nascido suscita normalmente sentimentos de atenção e de cuidado, de emoção e de ternura. O Natal é o encontro com um recém-nascido que geme numa gruta miserável. Contemplando-o no presépio, como deixar de pensar nas numerosas crianças que ainda hoje vêm à luz numa grande pobreza, em muitas regiões do mundo? Como não pensar nos recém-nascidos não acolhidos e rejeitados, naqueles que não conseguem sobreviver devido à carência de cuidados e de atenções? Como deixar de pensar também nas famílias que gostariam de ter a alegria de um filho, e não conseguem satisfazer esta sua expectativa? Sob o impulso de um consumismo hedonista, infelizmente, o Natal corre o risco de perder o seu significado espiritual, para se reduzir a uma mera ocasião comercial de compras e troca de presentes! Na verdade, porém, as dificuldades, as incertezas e a própria crise económica que nestes meses estão a viver muitíssimas famílias, e que atinge toda a humanidade, podem ser um estímulo a redescobrir o calor da simplicidade, da amizade e da solidariedade, valores típicos do Natal. Despojado das incrustações consumistas e materialistas, o Natal pode tornar-se assim uma ocasião para acolher, como dom pessoal, a mensagem de esperança que promana do mistério do nascimento de Cristo.

Porém, tudo isto não basta para compreender na sua plenitude o valor da festa para a qual estamos a preparar-nos. Nós sabemos que ela celebra o acontecimento central da história: a Encarnação do Verbo divino para a redenção da humanidade. São Leão Magno, numa das suas numerosas homilias natalícias, assim exclama: "Exultemos no Senhor, ó meus queridos, e abramos o nosso coração à alegria mais pura. Porque despontou o dia que para nós significa a nova redenção, a antiga preparação, a felicidade eterna. Com efeito, renova-se para nós no recorrente ciclo anual, o excelso mistério da nossa salvação que, prometido no início e concedido no fim dos tempos, está destinado a durar eternamente" (Homilia XXII). Sobre esta verdade fundamental São Paulo reflecte várias vezes nas suas Cartas. Aos Gálatas, por exemplo, escreve: "Mas ao chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher, nascido sujeito à Lei... para que recebêssemos a adopção de filhos" (Ga 4,4). Na Carta aos Romanos evidencia as consequências lógicas e exigentes deste acontecimento salvífico: "Se somos filhos (de Deus), somos igualmente herdeiros herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo se verdadeiramente participamos nos seus sofrimentos, para sermos também glorificados com Ele" (Rm 8,17). Mas é sobretudo São João, no Prólogo do quarto Evangelho, que medita profundamente sobre o mistério da Encarnação. E é por isso que o Prólogo faz parte da liturgia do Natal desde os tempos mais antigos: efectivamente, nele encontra-se a expressão que indica o fundamento da nossa alegria e resume o conteúdo autêntico desta festa: "Et Verbum caro factum est et habitavit in nobis / E o Verbo fez-se homem e habitou entre nós" (Jn 1,14).

Portanto, no Natal não nos limitamos a comemorar o nascimento de uma grande personagem; não celebramos simples e abstractamente o mistério do nascimento do homem ou em geral o mistério da vida; ainda menos festejamos o início da nova estação. No Natal, recordamos algo de muito concreto e importante para os homens, algo de essencial para a fé cristã, uma verdade que São João resume com estas poucas palavras: "O Verbo fez-se carne". Trata-se de um acontecimento histórico que o Evangelista Lucas se preocupa em situar num contexto bem determinado: nos dias em que foi emanado o decreto para o primeiro recenseamento de César Augusto, quando Quirino era governador da Síria (cf. Lc 2,1-7). Portanto, foi numa noite historicamente datada que se verificou o acontecimento de salvação que Israel aguardava havia séculos. Na escuridão da noite de Belém acendeu-se uma grande luz: o Criador do universo encarnou, unindo-se indissoluvelmente à natureza humana, de maneira a ser realmente "Deus de Deus, luz da luz" e ao mesmo tempo homem, verdadeiro homem. Aquilo ao que João chama, em grego "ho logos" traduzido em latim como "Verbum", "Verbo" significa também "o Sentido". Portanto, poderíamos entender a expressão de João assim: o "Sentido eterno" do mundo fez-se tangível aos nossos sentidos e à nossa inteligência: agora podemos tocá-lo e contemplá-lo (cf. 1Jn 1,1). O "Sentido" que se fez carne não é simplesmente uma ideia geral ínsita no mundo; é uma "Palavra" dirigida a nós. O Logos conhece-nos, chama-nos, guia-nos. Não é uma lei universal, no seio da qual nós desempenhamos um papel, mas é uma Pessoa que se interessa por cada pessoa: é o Filho de Deus vivo, que se fez homem em Belém.

Para muitos homens, e de certo modo para todos nós, isto parece demasiado bonito para ser verdade. Com efeito, aqui é-nos reiterado: sim, existe um sentido, e o sentido não é um protesto importante contra o absurdo. O Sentido tem poder: é Deus. Um Deus bom, que não deve ser confundido com qualquer ser excelso e distante, que nunca nos é concedido alcançar, mas um Deus que se fez nosso próximo e está muito próximo de nós, que tem tempo para cada um de nós e que veio para permanecer connosco. Então, é espontâneo perguntar-se: "É possível algo deste tipo? É digno de Deus, tornar-se criança?". Para procurar abrir o coração a esta verdade que ilumina toda a existência humana, é necessário humilhar a mente e reconhecer o limite da nossa inteligência. Na gruta de Belém, Deus mostra-se-nos como humilde "menino" para derrotar esta nossa soberba. Talvez nos teríamos rendido mais facilmente diante do poder, diante da sabedoria; mas Ele não quer a nossa rendição; pelo contrário, faz apelo ao nosso coração e à nossa livre decisão de aceitar o seu amor. Fez-se pequeno para nos libertar daquela humana pretensão de grandeza, que brota da soberba; encarnou-se livremente para nos tornar deveras livres, livres para o amar.

Estimados irmãos e irmãs, o Natal é uma oportunidade privilegiada para meditar sobre o sentido e o valor da nossa existência. O aproximar-se desta solenidade ajuda-nos a reflectir, por um lado, sobre a dramaticidade da história em que os homens, feridos pelo pecado, andam perenemente à procura da felicidade e de um sentido satisfatório do viver e do morrer; por outro, exorta-nos a meditar sobre a bondade misericordiosa de Deus, que veio ao encontro do homem para lhe comunicar directamente a Verdade que salva, e para o tornar partícipe da sua amizade e da sua vida. Por conseguinte, preparemo-nos para o Natal com humildade e simplicidade, dispondo-nos a receber o dom da luz, da alegria e da paz, que se irradiam deste mistério. Acolhamos o Natal de Cristo como um acontecimento capaz de renovar hoje a nossa existência. O encontro com o Menino Jesus faça de nós pessoas que não pensam unicamente em si mesmas, mas que se abram às expectativas e às necessidades dos irmãos. Desta maneira, tornar-nos-emos também nós testemunhas da luz que o Natal irradia sobre a humanidade do terceiro milénio. Peçamos a Maria Santíssima, tabernáculo do Verbo encarnado, e a São José, silenciosa testemunha dos acontecimentos da salvação, que nos transmitam os sentimentos que eles nutriam enquanto esperavam o nascimento de Jesus, de modo que possamos preparar-nos para celebrar santamente o próximo Natal, no júbilo da fé e animados pelo compromisso de uma conversão sincera.

Feliz Natal a todos!



7 de Janeiro de 2009: São Paulo (17): O culto espiritual

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Queridos irmãos e irmãs!

Nesta primeira Audiência geral de 2009, desejo formular a todos vós fervorosos bons votos para o novo ano que acaba de iniciar. Reavivemos em nós o compromisso a abrir a Cristo a mente e o coração, para sermos e vivermos como seus verdadeiros amigos. A sua companhia fará com que este ano, apesar das suas inevitáveis dificuldades, seja um caminho cheio de alegria e de paz. De facto, só se permanecermos unidos a Jesus, o ano novo será bom e feliz.

O compromisso de união com Cristo é o exemplo que nos oferece também São Paulo. Prosseguindo as catequeses a ele dedicadas, detemo-nos hoje a reflectir sobre um dos aspectos importantes do seu pensamento, o relativo ao culto que os cristãos são chamados a praticar. No passado, agradava falar de uma tendência bastante anticultual do Apóstolo, de uma "espiritualização" da ideia do culto. Hoje compreendemos melhor que Paulo vê na cruz de Cristo uma mudança histórica, que transforma e renova radicalmente a realidade do culto. Há sobretudo três textos da Carta aos Romanos nas quais sobressai esta nova visão do culto.

1. Em
Rm 3,25, depois de ter falado da "redenção realizada por Jesus Cristo", Paulo continua com uma fórmula para nós misteriosa e diz assim: Deus "preestabeleceu-o para servir como instrumento de expiação por meio da fé, no seu sangue". Com esta expressão para nós bastante inusual "instrumento de expiação" São Paulo menciona o chamado "propiciatório" do templo antigo, isto é a tampa da arca da aliança, que era considerada ponto de contacto entre Deus e o homem, ponto da Sua presença misteriosa no mundo dos homens. Este "propiciatório", no grande dia da reconciliação "yom kippur" era aspergido com o sangue de animais sacrificados sangue que simbolicamente levava os pecados do ano transcorrido ao contacto com Deus e deste modo eram lançados no abismo da bondade divina, como que absorvidos pela força de Deus, superados, perdoados. A vida começava de novo.

São Paulo menciona este rito e diz: Este rito era expressão do desejo de que se pudessem realmente lançar todas as nossas culpas no abismo da misericórdia divina e assim fazê-las desaparecer. Mas com o sangue de animais não se realiza este processo. Era necessário um contacto mais real entre culpa humana e amor divino. Este contacto teve lugar na cruz de Cristo. Cristo, verdadeiro Filho de Deus, que se fez homem verdadeiro, assumiu em si todas as nossas culpas. Ele próprio é o lugar de contacto entre miséria humana e misericórdia divina; no seu coração dissolve-se a massa triste do mal realizado pela humanidade, e renova-se a vida.

Revelando esta mudança, São Paulo diz-nos: com a cruz de Cristo o acto supremo do amor divino tornado amor humano o velho culto com sacrifícios dos animais no tempo de Jerusalém terminou. Este culto simbólico, culto de desejo, agora é substituído pelo culto real: o amor de Deus encarnado em Cristo e levado a cumprimento com a morte na cruz. Portanto esta não é uma espiritualização de um culto real, mas ao contrário o culto real, o verdadeiro amor divino-humano, substitui o culto simbólico e provisório. A cruz de Cristo, o seu amor com a carne e com o sangue é o culto real, correspondendo à realidade de Deus e do homem. Antes da destruição externa do templo para Paulo a era do templo e do seu culto já tinha terminado: Paulo encontra-se aqui em perfeita sintonia com as palavras de Jesus, que tinha anunciado o fim do templo e outro templo "não construído por mãos humanas" o templo do seu corpo ressuscitado (cf. Mc 14,58 Jn 2,19ss.). Este é o primeiro texto.

2. O segundo texto sobre o qual hoje gostaria de falar encontra-se no primeiro versículo do capítulo 12 da Carta aos Romanos. Ouvimo-lo e repito-o de novo: "Exorto-vos, portanto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais os vossos corpos como hóstia viva, santa e agradável a Deus: este é o vosso culto espiritual". Verifica-se nestas palavras um aparente paradoxo: o sacrifício normalmente exige a morte da vítima, mas Paulo fala dele em relação com a vida do cristão. A expressão "apresentai os vossos corpos", considerando o conceito sucessivo de sacrifício, assume a tonalidade cultual de "dar em oblação, oferecer". A exortação a "oferecer os corpos" refere-se a todas as pessoas; de facto, em Rm 6,13 ele convida a "apresentar-vos". De resto, a referência explícita à dimensão física do cristão coincide com o convite a "glorificar Deus no vosso corpo" (1Co 6,20): isto é, trata-se de honrar Deus na existência quotidiana mais concreta, feita de visibilidade relacional e perceptível.

Um comportamento como este é qualificado por Paulo como "sacrifício vivo, santo, agradável a Deus". É aqui que encontramos precisamente o vocábulo "sacrifício". No uso corrente esta palavra faz parte de um contexto sacral e serve para designar a degolação de um animal, do qual uma parte pode ser queimada em honra dos deuses e a outra ser consumida pelos oferentes num banquete. Paulo, ao contrário, aplica-o à vida do cristão. De facto, qualifica tal sacrifício servindo-se de três adjectivos. O primeiro "vivo" expressa uma vitalidade. O segundo "santo" recorda a ideia paulina de uma santidade relacionada não com lugares ou objectos, mas com a própria pessoa dos cristãos. O terceiro "agradável a Deus" talvez recorde a frequente expressão bíblica do sacrifício "em agradável odor" (cf. Lv 1,13 Lv 1,17 Lv 23,18 Lv 26,31 etc.).

Logo a seguir, Paulo define assim este novo modo de viver: este é "o vosso culto espiritual". Os comentadores do texto sabem bem que a expressão grega (ten logiken latreian) não é fácil de traduzir. A Biblia latina traduz: "rationabile obsequium". A mesma palavra "rationabile" aparece na Oração eucaristica, o Cânone Romano: nele reza-se para que Deus aceite esta oferenda como "rationabile". A habitual tradução portuguesa "culto espiritual" não reflecte todas as conotações do texto grego (nem sequer do latino). Contudo não se trata de um culto menos real, ou até só metafórico, mas de um culto mais concreto e realista um culto no qual o próprio homem na sua totalidade de um ser dotado de razão, se torna adoração, glorificação do Deus vivo.

Esta fórmula paulina, que volta na Oração eucarística romana, é fruto de um longo desenvolvimento da experiência religiosa nos séculos anteriores a Cristo. Nesta experiência encontram-se desenvolvimentos teológicos do Antigo Testamento e correntes do pensamento grego. Gostaria de mostrar pelo menos alguns elementos deste desenvolvimento. Os profetas e muitos Salmos criticam bastante os sacrifícios cruentos do templo. Por exemplo, diz o Salmo 50 (49), no qual é Deus quem fala: "Se eu tivesse fome não o diria a ti, pois o mundo é meu, e o que nele existe. Acaso comeria eu carne de touros, e beberia sangue de cabritos? Oferece a Deus um sacrifício de confissão..." (Ps 50,12-14). No mesmo sentido diz o Salmo seguinte, 51(50): "Pois tu não queres um sacrifício e um holocausto não te agrada. Sacrifício a Deus é um espírito contrito, coração contrito e esmagado, ó Deus, tu não o desprezas" (Ps 51,18ss.). No Livro de Daniel, no tempo da nova destruição do templo por parte do regime helénico (séc. II a. c.) encontramos um trecho na mesma direcção. No meio do fogo isto é, na perseguição, no sofrimento Azarias reza assim: "Não há mais, nestas circunstâncias, nem chefe, nem profeta, nem príncipe, nem holocausto, nem sacrifício, nem oblação, nem incenso, nem lugar onde oferecermos as primícias diante de ti para encontrarmos misericórdia. Contudo com a alma quebrantada e o espírito humilhado possamos encontrar acolhida, tal como se viéssemos com holocaustos de carneiros e de touros... Tal se torne o nosso sacrifício hoje diante de ti, e se complete junto a ti..." (Da 3, 38ss.). Na destruição do santuário e do culto, nesta situação de privação de qualquer sinal da presença de Deus, o crente oferece como verdadeiro holocausto o coração contrito o seu desejo de Deus.

Vemos um desenvolvimento importante, mas com um perigo. Há uma espiritualização, uma moralização do culto: o culto torna-se só uma coisa do coração, do espírito. Mas falta o corpo, falta a comunidade. Assim compreende-se por exemplo que o Salmo 51 e também o Livro de Daniel, apesar da critica do culto, desejam que voltem os sacrifícios no templo. Mas trata-se de um tempo renovado, um sacrifício renovado, numa síntese que ainda não era previsível, que ainda não se podia pensar.

Voltemos a São Paulo. Ele é herdeiro destes desenvolvimentos, do desejo do verdadeiro culto, no qual o próprio homem se torne glória de Deus, adoração viva com todo o seu ser. Neste sentido ele diz aos Romanos: "Oferecei os vossos corpos como sacrifício vivo...: este é o vosso culto espiritual" (Rm 12,1).Paulo repete assim o que já tinha indicado no capítulo 3: o tempo de sacrifícios de animais, sacrifícios de substituição, terminou. Chegou o tempo do culto verdadeiro. Mas aqui há também o perigo de uma incompreensão: poder-se-ia interpretar facilmente este novo culto num sentido moralista: oferecendo a nossa vida fazemos nós o culto verdadeiro. Deste modo o culto com os animais seria substituído pelo moralismo: o próprio homem faria tudo sozinho com o seu esforço moral. E esta não era certamente a intenção de São Paulo. Mas permanece a questão: então como devemos interpretar este "culto espiritual, razoável"? Paulo supõe sempre que nós nos tornamos "um em Cristo Jesus" (Ga 3,28), que morremos no baptismo (cf. Rm 1) e vivemos agora com Cristo, para Cristo e em Cristo. Nesta união e só assim podemos tornar-nos n'Ele e com Ele "sacrifício vivo", oferecer o "culto verdadeiro". Os animais sacrificados deveriam ter substituído o homem, o dom de si do homem, e não podiam. Jesus Cristo, na sua doação ao Pai e a nós, não é uma substituição, mas traz realmente em si o ser humano, as nossas culpas e o nosso desejo; representa-nos realmente, assume-nos. Na comunhão com Cristo, realizada na fé e nos sacramentos, tornamo-nos, apesar de todas as nossas insuficiências, sacrifício vivo: realiza-se o "culto verdadeiro".

Esta síntese está no final do Cânone romano no qual se reza para que esta oferenda se torne "rationabile" que se realize o culto espiritual. A Igreja sabe que na Santíssima Eucaristia a autodoação de Cristo, o seu sacrifício verdadeiro se torna presente. Mas a Igreja reza para que a comunidade celebrante esteja realmente unida com Cristo, seja transformada; reza para que nós próprios nos tornemos o que não podemos ser com as nossas forças: oferenda "rationabile" que apraz a Deus. Assim a oração eucarística interpreta de modo justo as palavras de São Paulo. Santo Agostinho esclareceu tudo isto de modo maravilhoso no 10º livro da sua Cidade de Deus. Cito apenas duas frases. "Isto é o sacrifício dos cristãos: mesmo sendo muitos somos um só corpo em Cristo"... "Toda a comunidade (civitas) remida, isto é a congregação e a sociedade dos santos, é oferenda a Deus mediante o Sumo Sacerdote que se doou a si mesmo" (10, 6: ccl 47, 27ss.).

3. Por fim, ainda uma breve palavra sobre o terceiro texto da Carta aos Romanos relativo ao novo culto. São Paulo diz assim no cap. 15: "a graça que me foi concedida por Deus de ser o ministro (hierourgein) de Cristo Jesus para os gentios, a serviço do Evangelho de Deus, a fim de que a oblação dos gentios se torne agradável, santificada pelo Espírito Santo" (Rm 15,15s). Desejo realçar só dois aspectos deste texto maravilhoso e a terminologia única nas cartas paulinas. Antes de tudo, São Paulo interpreta a sua acção missionária entre os povos do mundo para construir a Igreja universal como acção sacerdotal. Anunciar o Evangelho para unir os povos na comunhão de Cristo ressuscitado é uma acção "sacerdotal". O apóstolo do Evangelho é um verdadeiro sacerdote, faz o que é o centro do sacerdócio: prepara o verdadeiro sacrifício. E depois o segundo aspecto: a meta da acção missionária é podemos dizer a liturgia cósmica: que os povos unidos em Cristo, o mundo, se tornem como tal glória de Deus, "oblação agradável, santificada no Espírito Santo". Sobressai aqui o aspecto dinâmico, o aspecto da esperança no conceito paulino do culto: a autodoação de Cristo implica a tendência a atrair todos à comunhão do seu Corpo, de unir o mundo. Só em comunhão com Cristo, o homem exemplar, um com Deus, o mundo se torna assim como todos o desejamos: espelho do amor divino. Este dinamismo está sempre presente na Eucaristia este dinamismo deve inspirar e formar a nossa vida. E com este dinamismo comecemos o novo ano. Obrigado pela vossa paciência.





Sala Paulo VI

14 de Janeiro de 2009: São Paulo (18): A visão teológica das Cartas aos Colossenses e aos Efésios

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Queridos irmãos e irmãs!

Entre as Cartas do epistolário paulino, há duas, aos Colossenses e aos Efésios, que em certa medida se podem considerar gémeas. De facto, as duas contêm expressões que se encontram só nelas, e foi calculado que mais de um terço das palavras da Carta aos Colossenses se encontra também na Carta aos Efésios. Por exemplo, enquanto em Colossenses se lê literalmente o convite: "admoestando-vos... com salmos, hinos e cânticos espirituais; cantando... louvores a Deus em vossos corações" (
Col 3,16), em Efésios recomenda-se igualmente que se recite "entre vós salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando e louvando ao Senhor em vossos corações" (Ep 5,19). Poderíamos meditar sobre estas palavras: o coração deve cantar, e assim também a voz, com salmos e hinos para entrar na tradição da oração de toda a Igreja do Antigo e do Novo Testamento; aprendemos assim a estar juntamente connosco e entre nós, e com Deus. Além disso, nas duas Cartas encontra-se um chamado "código doméstico", ausente das outras Cartas paulinas, ou seja, uma série de recomendações dirigidas a maridos e esposas, a pais e filhos, a senhores e escravos (cf. respectivamente Col 3,18-4,1 e Ep 5,22-6,9).

É ainda mais importante verificar que só nestas duas Cartas é confirmado o título de "cabeça", kefalé, dado a Jesus Cristo. E este título é empregue num nível duplo. Num primeiro sentido, Cristo é entendido como cabeça da Igreja (cf. Col 2,18-19 e Ep 4,15-16). Isto tem dois significados: o primeiro, que ele é o governante, o dirigente, o responsável que guia a comunidade cristã como seu chefe e Senhor (cf. Col 1,18): "Ele é a cabeça do Corpo, a Igreja"; e depois o outro significado é que ele é como a cabeça que alimenta e une todos os membros do corpo sobre o qual foi elegido (de facto, segundo Col 2,19) é preciso "manter-se vinculado à Cabeça, pela qual todo o corpo é alimentado e unido"): ou seja, não é só alguém que dá ordens, mas alguém que organicamente está unido a nós, do qual vem também a força de agir de modo recto.

Nos dois casos, a Igreja é considerada submetida a Cristo, quer para seguir a sua orientação superior os mandamentos quer para receber todas as influências vitais que d'Ele promanam. Os seus ensinamentos não são palavras, mandamentos, mas forças vitais que provêm d'Ele e nos ajudam.

Esta ideia é desenvolvida de modo particular em Efésios, onde até os ministérios da Igreja, em vez de serem reconduzidos ao Espírito Santo (como 1Co 12) são conferidos por Cristo ressuscitado: foi Ele quem "estabeleceu alguns como apóstolos, outros como profetas, outros como evangelistas, outros como pastores e mestres" (Ep 4,11). E é d'Ele que "o corpo inteiro, coordenado e unido, por meio de todas as junturas, opera o seu crescimento orgânico... a fim de se edificar na caridade" (Ep 4,16). De facto, Cristo dedicou-se totalmente a "apresentar a Si mesmo como Igreja gloriosa sem mancha nem ruga, nem qualquer coisa semelhante, mas santa e imaculada" (Ep 5,27). Com isto diz-se que a força com a qual constrói a Igreja, a guia e lhe dá também a justa orientação, é precisamente o seu amor.

Portanto, o primeiro significado é Cristo Cabeça da Igreja: quer no que se refere à condução, quer, sobretudo, no que diz respeito à inspiração e revitalização pelo seu amor. Depois, num segundo sentido, Cristo é considerado não só como cabeça da Igreja, mas como cabeça dos poderes celestes e de toda a criação. Assim em Colossenses lemos que Cristo "despojou os Principados e as Potestades, exibiu-os publicamente, triunfando deles pela Cruz" (Col 2,15). Analogamente em Efésios encontramos escrito que, com a ressurreição, Deus colocou Cristo "acima de todo o Principado, Potestade, Virtude e Dominação e acima de todo o nome que se evoca, não só neste mundo como também no futuro" (Ep 1,21). Com estas palavras as duas Cartas entregam-nos uma mensagem altamente positiva e fecunda. É esta: Cristo não teme qualquer eventual concorrente, porque é superior a qualquer tipo de poder que presumisse humilhar o homem. Só Ele "nos amou e por nós se entregou" (Ep 5,2). Por isso, se estamos unidos a Cristo, não devemos temer inimigo algum nem qualquer adversidade; mas isto significa portanto que devemos manter-nos muito firmes a Ele, sem abrandar a presa!

Para o mundo pagão, que acreditava num mundo cheio de espíritos, em grande parte perigosos e dos quais era preciso defender-se, aparecia como uma verdadeira libertação o anúncio de que Cristo era o único vencedor e que quem estava com Cristo ninguém devia temer. O mesmo é válido também para o paganismo de hoje, porque os actuais seguidores de semelhantes ideologias vêem o mundo cheio de poderes perigosos. A estes é preciso anunciar que Cristo é o vencedor, de modo que quem está com Cristo, quem permanece unido a Ele, não deve temer nada nem ninguém. Parece-me que isto é importante também para nós, que devemos aprender a enfrentar todos os receios, porque Ele está acima de qualquer dominação, é o verdadeiro Senhor do mundo.

Até a criação inteira Lhe está submetida, e para Ele converge como para a própria cabeça. São célebres as palavras da Carta aos Efésios, que fala do projecto de Deus de "recapitular em Cristo todas as coisas, as do céu e as da terra" (Ep 1,10). Analogamente na Carta aos Colossenses lê-se que "por meio d'Ele todas as coisas foram criadas, as do céu e as da terra, as visíveis e as invisíveis" (Col 1,16) e que pacificou "pelo sangue da Sua Cruz, tanto as da terra como as dos Céus" (Col 1,20). Portanto não há, por um lado, o grande mundo material e, por outro, esta pequena realidade da história da nossa terra, o mundo das pessoas: tudo é um em Cristo. Ele é a cabeça da criação; também o cosmos foi por Ele criado, criado para nós porque estamos unidos a Ele. É uma visão racional e personalista do universo. E diria que não era possível conceber uma visão mais universalista do que esta, e ela convém só a Cristo ressuscitado. Cristo é o Pantokrátor, ao qual estão submetidas todas as coisas: o pensamento dirige-se precisamente para Cristo Pantocrator, que enche a bacia absidal das igrejas bizantinas, por vezes representado sobre um arco-íris para indicar a sua equiparação ao próprio Deus, a cuja direita está sentado (cf. Ep 1,20 Col 3,1), e portanto também a sua inigualável função de condutor dos destinos humanos.

Uma visão como esta só é concebível da parte da Igreja, não no sentido de que ela pretenda indevidamente apropriar-se daquilo a que não tem direito, mas num sentido duplo: seja porque a Igreja reconhece que contudo Cristo é maior do que ela, dado que pelo seu senhorio se alarga também para além dos seus confins, e seja porque só a Igreja é qualificada como Corpo de Cristo, e não a criação. Tudo isto significa que devemos considerar positivamente as realidades terrenas, porque Cristo as recapitula em si, e de igual modo devemos viver em plenitude a nossa específica identidade eclesial, que é a mais homogénea com a identidade do próprio Cristo.

Há depois também um conceito especial, que é típico destas duas Cartas, que é o do "mistério". Uma vez fala-se do "mistério da vontade" de Deus (Ep 1,9) e outras vezes do "mistério de Cristo" (Ep 3,4 Col 4,3) ou até do "mistério de Deus, que é Cristo, no qual estão escondidos os tesouros da sabedoria e do conhecimento" (cf. Col 3,2-3). Isto significa o imperscrutável desígnio divino sobre o destino do homem, dos povos e do mundo. Com esta linguagem as duas Epístolas dizem-nos que é em Cristo que se encontra o cumprimento deste mistério. Se estamos com Cristo, mesmo se não podemos intelectualmente compreender tudo, sabemos que estamos no núcleo do "mistério" e no caminho da verdade. É Ele na sua totalidade, e não só num aspecto da sua pessoa ou num momento da sua existência, que traz em si a plenitude do insondável plano divino de salvação. N'Ele assume forma aquela a que se chama "a multiforme sabedoria de Deus (Ep 3,10), porque n'Ele "habita corporalmente toda a plenitude divina" (Col 2,9). Portanto, de agora em diante, não é possível pensar e adorar o beneplácito de Deus, a sua soberana disposição, sem nos conformarmos pessoalmente com o próprio Cristo, no qual aquele "mistério" se encarna e pode ser visivelmente sentido. Chega-se assim a contemplar a "insondável riqueza de Cristo" (Ep 3,8), que supera qualquer compreensão humana. Não que Deus não tenha deixado sinais da sua passagem, porque é o próprio Cristo a pegada de Deus, a sua extrema marca; mas apercebemo-nos de "qual é a largura, o comprimento, a altura e a profundidade" deste mistério "que excede toda a ciência" (Ep 3,18-19). As categorias intelectuais sozinhas manifestam-se insuficientes e, reconhecendo que muitas coisas superam as nossas capacidades racionais, devemo-nos confiar à contemplação humilde e jubilosa não só da mente mas também do coração. De resto, os Padres da Igreja dizem-nos que o amor compreende mais do que só a razão.

Deve ser dita uma última palavra sobre o conceito, já mencionado, relativo à Igreja como parceira esponsal de Cristo. Na segunda Carta aos Coríntios o apóstolo Paulo tinha comparado a comunidade cristã com uma noiva, escrevendo assim: "Sinto por vós um santo ciúme, por vos ter desposado com um único esposo, como virgem pura oferecida a Cristo" (2Co 11,2). A Carta aos Efésios desenvolve esta imagem, esclarecendo que a Igreja não é só uma esposa prometida, mas é a esposa real de Cristo. Ele, por assim dizer, conquistou-a, e fê-lo ao preço da sua vida: como diz o texto, "entregou-se a Si mesmo por ela" (Ep 5,25). Qual demonstração de amor pode ser maior do que esta? Mais ainda, ele está preocupado com a sua beleza: não só com a beleza adquirida no baptismo, mas também com a que deve crescer todos os dias graças a uma vida irrepreensível "sem mancha nem ruga", no seu comportamento moral (cf. Ep 5,26-27). Daqui à comum experiência do matrimónio cristão, o passo é breve; aliás, nem sequer é bem claro para o autor da Carta o ponto de referência inicial: se é a relação Cristo-Igreja, em cuja luz considerar a união do homem e da mulher, ou se o facto experiencial da união conjugal, em cuja luz considerar a relação entre Cristo e a Igreja. Mas ambos os aspectos se esclarecem reciprocamente: aprendemos o que é o matrimónio à luz da comunhão de Cristo e da Igreja, aprendemos como Cristo se une a nós pensando no mistério do matrimónio. Contudo, a nossa Carta situa-se quase a meio caminho entre o profeta Oseias, que indicava a relação entre Deus e o seu povo nos termos de núpcias já realizadas (cf. Os 2,4 Os 2,16 Os 2,21), e o Vidente do Apocalipse, que perspectivará o encontro escatológico entre a Igreja e o Cordeiro como umas núpcias jubilosas e indefectíveis (cf. Ap 19,7-9 Ap 21,9).

Haveria ainda muito a dizer, mas parece-me que, do que foi exposto, já se pode compreender que estas duas Cartas são uma grande catequese, da qual podemos aprender não só como ser bons cristãos, mas também como tornar-nos realmente homens. Se começamos a compreender que a criação é a marca de Cristo, aprendemos a nossa recta relação com a criação, com todos os problemas da conservação do cosmos. Aprendemos a vê-lo com a razão, mas com uma razão movida pelo amor, e com a humildade e o respeito que permitem agir de modo recto. E se pensamos que a Igreja é o Corpo de Cristo, que Cristo se entregou a Si mesmo por ela, aprendemos a viver com Cristo o amor recíproco, o amor que nos une a Deus e que nos mostra no outro a imagem do próprio Cristo. Peçamos ao Senhor que nos ajude a meditar bem a Sagrada Escritura, a sua Palavra, e assim a aprender realmente a viver bem.

Saudação

Aos peregrinos portugueses vindos de Lisboa e aos brasileiros, professores, alunos e familiares do Colégio de São Bento do Rio de Janeiro, por ocasião das festas jubilares deste estabelecimento de ensino, como penhor de abundantes dons divinos que sirvam de estímulo para a sua vida cristã, concedo benevolamente minha Bênção Apostólica.



Sala Paulo VI

21 de Janeiro de 2009: Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos


Audiências 2005-2013 17128