Audiências 2005-2013 10069

10 de Junho de 2009: João Escoto Erígena

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Queridos irmãos e irmãs!

Hoje gostaria de falar de um notável pensador do Ocidente cristão: João Escoto Erígena, cujas origens porém são pouco claras. Provinha certamente da Irlanda, onde nasceu no início de 800, mas não sabemos quando deixou a sua Ilha para atravessar a Mancha e assim começar a fazer parte plenamente daquele mundo cultural que estava a renascerem volta dos Carolíngios, e em particular de Carlos, o Calvo, na França do século IX. Assim como não se conhece a data certa do seu nascimento, também ignoramos o ano da sua morte que, segundo os estudiosos, deveria contudo colocar-se por volta do ano 870.

João Escoto Erígena possuía uma cultura patrística, quer grega quer latina, de primeira mão: de facto, conhecia directamente os escritos dos Padres latinos e gregos. Conhecia bem, entre outras, as obras de Agostinho, de Ambrósio, de Gregório Magno, grandes Padres do Ocidente cristão, mas também conhecia bem o pensamento de Orígenes, de Gregório de Nissa, de João Crisóstomo e de outros Padres cristãos do Oriente não menos grandes. Era um homem excepcional, naquele tempo que dominava também a língua grega. Demonstrou uma atenção muito particular por São Máximo, o Confessor e, sobretudo, por Dionísio, o Areopagita. Sob este pseudónimo esconde-se um escritor eclesiástico do século v, da Síria, mas toda a Idade Média e também João Escoto Erígena, estava convencida de que este autor fosse idêntico a um discípulo directo de São Paulo, do qual se fala nos Actos dos Apóstolos (
Ac 17,34). Escoto Erígena, convencido desta apostolicidade dos escritos de Dionísio, qualificava-o "autor divino" por excelência; os seus escritos foram por isso uma fonte eminente do seu pensamento. João Escoto traduziu as suas obras em latim. Os grandes teólogos medievais, como São Boaventura, conheceram as obras de Dionísio através desta tradução. Dedicou-se toda a vida a aprofundar e a desenvolver o seu pensamento, haurindo destes escritos, a ponto que ainda hoje às vezes pode ser difícil distinguir onde estamos diante do pensamento de Escoto Erígena e onde, ao contrário, de mais não faz do que repropor o pensamento do Pseudodionísio.

Na realidade, o trabalho teológico de João Escoto não teve muita sorte. Não só o final da era carolíngia fez esquecer as suas obras; também uma censura por parte da Autoridade eclesiástica lançou uma sombra sobre a sua figura. Na realidade, João Escoto representa um platonismo radical, que por vezes parece aproximar-se de uma visão panteísta, mesmo se as suas intenções pessoais subjectivas foram sempre ortodoxas. De João Escoto Erígena chegaram até nós algumas obras, entre as quais merecem ser recordadas, em particular, o tratado "Sobre a divisão da natureza" e as "Exposições sobre a hierarquia celeste de São Dionísio". Nestas obras ele desenvolve estimulantes reflexões teológicas e espirituais, que poderiam sugerir interessantes aprofundamentos também aos teólogos contemporâneos. Refiro-me, por exemplo, a quanto escreve sobre o dever de exercer um discernimento apropriado sobre o que é apresentado como auctoritas vera, ou sobre o compromisso de continuar a procurar a verdade enquanto não se alcançar uma certa experiência na adoração silenciosa de Deus.

O nosso autor diz: "Salus nostra ex fide inchoat: a nossa salvação começa com a fé". Isto é, não podemos falar de Deus partindo das nossas invenções, mas de quanto Deus diz de si mesmo nas Sagradas Escrituras. Contudo, dado que Deus diz unicamente a verdade, Escoto Erígena está convencido de que a autoridade e a razão nunca podem estar em contraste uma com a outra; está convencido de que a verdadeira religião e a verdadeira filosofia coincidem. Nesta perspectiva escreve: "Qualquer tipo de autoridade que não for confirmada por uma verdadeira razão deveria ser considerada frágil... De facto, não é verdadeira autoridade, a não ser a que coincide com a verdade descoberta em virtude da razão, mesmo que se trate de uma autoridade recomendada e transmitida para utilidade das gerações vindouras pelos santos Padres" (I, PL, 122, ). Por conseguinte, ele admoesta: "Autoridade alguma te atemorize ou te distraia de quanto te faz compreender a persuasão obtida graças a uma recta contemplação racional. De facto, a autêntica autoridade nunca contradiz a recta razão, nem esta poderá jamais contradizer uma verdadeira autoridade. Uma e outra provêm sem dúvida alguma da mesma fonte, que é a sabedoria divina"(I, PL 122, Col 511). Vemos aqui uma corajosa afirmação do valor da razão, fundada sobre a certeza de que a autoridade verdadeira é ponderada, porque Deus é a razão criadora.

A própria Escritura não evita, segundo Erígena, a necessidade de ser abordada utilizando o mesmo critério de discernimento. De facto, a Escritura – afirma o teólogo irlandês repropondo uma reflexão já presente em João Crisóstomo – mesmo provindo de Deus, não teria sido necessária se o homem não tivesse pecado. Portanto, deve-se deduzir que a Escritura foi dada por Deus com uma intenção pedagógica e por condescendência, para que o homem pudesse recordar tudo o que lhe tinha sido impresso no coração desde o momento da sua criação, "à imagem e semelhança de Deus" (cf. Gn 1,26) e que a queda original lhe tinha feito esquecer. Erígena escreve nas Expositiones: "O homem não foi criado para a Escritura, da qual não teria necessidade se não tivesse pecado, mas ao contrário, a Escritura – embebida de doutrina e de símbolos – foi dada ao homem. Graças a ela, de facto, a nossa natureza racional pode ser introduzida nos segredos da autêntica contemplação pura de Deus" (II, PL 122, ). A palavra da Sagrada Escritura purifica a nossa razão um pouco cega e ajuda-nos a voltar à recordação do que nós, enquanto imagem de Deus, trazemos no nosso coração, infelizmente vulnerado pelo pecado.

Isto origina algumas consequências hermenêuticas, sobre o modo de interpretar a Escritura, que podem indicar ainda hoje o caminho justo para uma correcta leitura da Sagrada Escritura. De facto, trata-se de descobrir o sentido escondido no texto sagrado e isto supõe uma particular prática interior, graças à qual a razão se abre ao caminho seguro rumo à verdade. Esta prática consiste em cultivar uma disponibilidade constante à conversão. De facto, para chegar a uma visão profunda do texto é necessário progredir simultaneamente na conversão do coração e na análise conceptual da página bíblica quer ela seja de carácter cósmico, histórico ou doutrinal. De facto, só graças à constante purificação quer do olhar do coração quer do olhar da mente se pode conquistar a exacta compreensão.

Este caminho inacessível, exigente e entusiasmante, feito de contínuas conquistas e relativizações do saber humano, conduz a criatura inteligente ao limiar do Mistério divino, onde todas as noções acusam a própria debilidade e incapacidade e por isso impõem, com a simples força livre e doce da verdade, que se vá sempre além de tudo o que é continuamente adquirido. O reconhecimento adorante e silencioso do Mistério, que acaba na comunhão unificante, revela-se por isso como o único caminho de uma relação com a verdade que seja ao mesmo tempo a mais íntima possível e a mais escrupulosamente respeitadora da alteridade. João Escoto – utilizando também aqui um vocabulário querido à tradição cristã de língua grega chamou a esta experiência para a qual tendemos, "theosis" ou divinização, com afirmações tão audaciosas que foi possível suspeitá-lo de panteísmo heterodoxo. Permanece contudo forte a emoção face a textos como o seguinte, no qual – recorrendo à antiga metáfora da fusão do ferro – escreve: "Portanto, como todo o ferro tornado ardente se derreteu a ponto de parecer haver apenas fogo mas permanecendo contudo distintas as substâncias de um e de outro, assim se deve aceitar que depois do fim deste mundo toda a natureza, quer a corpórea quer a incorpórea


Sala Paulo VI

11 de Fevereiro de 2009: João Clímaco

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Queridos irmãos e irmãs

Depois de vinte catequeses dedicadas ao Apóstolo Paulo, gostaria de retomar hoje a apresentação dos grandes Escritores da Igreja do Oriente e do Ocidente da Idade Média. E proponho a figura de João, chamado Clímaco, transliteração latina do termo grego klímakos, que significa da escada (klímax). Trata-se do título da sua obra principal, na qual descreve a escalada da vida humana para Deus. Ele nasceu por volta de 575. Portanto, a sua vida desenvolveu-se nos anos em que Bizâncio, capital do império romano do Oriente, conheceu a maior crise da sua história. Repentinamente, o quadro geográfico do império mudou e a torrente das invasões barbáricas fez desabar todas as suas estruturas. Sustentou sozinho a estrutura da Igreja, que nestes tempos difíceis continuou a desempenhar a sua acção missionária, humana e sociocultural, especialmente através da rede de mosteiros, em que trabalhavam grandes personalidades religiosas, como precisamente João Clímaco.

No meio das montanhas do Sinai, onde Moisés encontrou Deus e Elias ouviu a sua voz, João viveu e narrou as suas experiências espirituais. Notícias sobre ele estão conservadas numa breve Vida (PG 88, 596-608), escrita pelo monge Daniel de Raito: com 16 anos João, que se tornou monge no monte Sinai, ali fez-se discípulo do abade Martírio, um "ancião", ou seja um "sábio". Com cerca de vinte anos, escolheu viver como eremita numa gruta no sopé do monte, na localidade de Tola, a oito quilómetros do actual mosteiro de Santa Catarina. Porém, a solidão não lhe impediu de encontrar pessoas desejosas de ter uma direcção espiritual, assim como de ir visitar alguns mosteiros nos arredores de Alexandria. Com efeito, o seu retiro eremítico, longe de ser uma fuga do mundo e da realidade humana, desabrochou num amor ardente pelo próximo (Vida 5) e a Deus (Vida 7). Depois de quarenta anos de vida eremítica vivida no amor a Deus e ao próximo, anos durante os quais chorou, rezou, lutou contra os demónios, foi nomeado igúmeno do grande mosteiro do monte Sinai e assim voltou à vida cenobítica no mosteiro. Mas alguns anos antes da morte, nostálgico da vida eremítica, passou ao irmão monge no mesmo mosteiro, a guia da comunidade. Morreu por volta do ano 650. A vida de João desenvolve-se entre duas montanhas, o Sinai e o Tabor, e verdadeiramente pode-se dizer que dele se irradiou a luz vista por Moisés no Sinai e contemplada pelos três Apóstolos no Tabor!

Tornou-se famoso, como já disse, por obra da Escada (klímax), qualificada no Ocidente como Escada do Paraíso (PG 88, 632-1164). Composta por insistente pedido do vizinho igúmeno do mosteiro de Raito, nos arredores do Sinai, a Escada é um tratado completo de vida espiritual, em que João descreve o caminho do monge, desde a renúncia ao mundo até à perfeição do amor. É um caminho que segundo este livro se desenvolve através de trinta degraus, cada um dos quais está ligado ao seguinte. O caminho pode ser resumido em três fases sucessivas: a primeira expressa-se na ruptura com o mundo, em vista de voltar ao estado da infância evangélica. Portanto, o essencial não é a ruptura, mas a ligação com aquilo que Jesus disse, ou seja, o regressar à verdadeira infância em sentido espiritual, o tornar-se como as crianças. João comenta: "Um bom fundamento é formado por três bases e por três colunas: inocência, jejum e castidade. Todos os recém-nascidos em Cristo (cf.
1Co 3,1) comecem a partir destas coisas, a exemplo daqueles que são recém-nascidos fisicamente" (1, 20; 636). O desapego voluntário das pessoas e dos lugares queridos permite à alma entrar em comunhão mais profunda com Deus. Esta renúncia leva à obediência, que é o caminho para a humildade diante das humilhações que nunca faltarão por parte dos irmãos. João comenta: Bem-aventurado aquele que mortificou a sua vontade até ao fim e que confiou o cuidado da própria pessoa ao seu mestre no Senhor: efectivamente, ele será colocado à direita do Crucificado!" (4, 37; 704).

A segunda fase do caminho é constituída pelo combate espiritual contra as paixões. Cada degrau da escada está ligado a uma paixão principal, que é definida e diagnosticada, com a indicação da terapia e com a proposta da virtude correspondente. Sem dúvida, o conjunto destes degraus constitui o mais importante tratado de estratégia espiritual que possuímos. Porém, a luta contra as paixões reveste-se de positividade não permanece algo negativo graças à imagem do "fogo" do Espírito Santo: "Todos aqueles que empreendem este bom combate (cf. 1Tm 6,12), duro e árduo [...] saibam que vieram lançar-se num fogo, se verdadeiramente desejam que o fogo imaterial habite neles" (1, 18; 636). O fogo do Espírito Santo, que é fogo do amor e da verdade. Só a força do Espírito Santo assegura a vitória. Mas segundo João Clímaco, é importante tomar consciência de que as paixões não são más em si próprias; tornam-se tais pelo mau uso que a liberdade do homem faz das mesmas. Se forem purificadas, as paixões hão-de abrir para o homem o caminho rumo a Deus com energias unificadas pela ascese e pela graça e, "se elas receberam do Criador uma ordem e um início... o limite da virtude é infinito" (26/2, 37; 1068).

A última fase do caminho é a perfeição cristã, que se desenvolve nos últimos sete degraus da Escada. Estes são os degraus mais altos da vida espiritual, experimentáveis pelos "hesicastas", os solitários, aqueles que alcançaram a tranquilidade e a paz interior; mas são fases acessíveis também aos cenobitas mais fervorosos. Dos primeiros três simplicidade, humildade e discernimento João, em sintonia com os Padres do deserto, considera mais importante o último, ou seja, a capacidade de discernir. Cada comportamento deve ser submetido ao discernimento; com efeito, tudo depende das motivações profundas, que se devem avaliar. Aqui entra-se no núcleo vivo da pessoa e trata-se de despertar no eremita, no cristão, a sensibilidade espiritual e o "sentido do coração", dons de Deus: "Como guia e regra em cada coisa, depois de Deus, temos que seguir a nossa consciência" (26/1, 5; 1013). Deste modo alcança-se a tranquilidade da alma, a esichía, graças à qual a alma pode debruçar-se sobre o abismo dos mistérios divinos.

O estado de tranquilidade, de paz interior, prepara o hesicasta para a oração, que em João é dúplice: a "oração corpórea" e a "oração do coração". A primeira é própria de quem se deve fazer ajudar por atitudes do corpo: estender as mãos, emitir gemidos, bater ao peito, etc. (15, 26; 900); a segunda é espontânea, porque é efeito do despertar da sensibilidade espiritual, dom de Deus a quem se dedica à oração corpórea. Em João ela adquire o nome de "oração de Jesus" (Iesoû euché), e é constituída pela invocação exclusiva do nome de Jesus, uma invocação contínua como a respiração: "A memória de Jesus seja uma só com a tua respiração, e então conhecerás a utilidade da esichía", da paz interior (27/2, 26; 1112). No final, a oração torna-se muito directa, simplesmente a palavra "Jesus", que se faz uma só com a nossa respiração.

O último degrau da escada (30), imbuído da "sóbria ebriedade do Espírito", é dedicado à suprema "trindade das virtudes": a fé, a esperança e sobretudo a caridade. Da caridade, João fala também como eros (amor humano), figura da união matrimonial da alma com Deus. E ele escolhe ainda a imagem do fogo para expressar o ardor, a luz, a purificação do amor a Deus. A força do amor humano pode ser novamente orientada para Deus, como no olival pode ser enxertado uma boa oliveira (cf. Rm 11,24) (15, 66; 893). João está convencido de que uma intensa experiência deste eros faz progredir a alma muito mais que a dura luta contra as paixões, porque o seu poder é grande. Portanto, prevalece a positividade do nosso caminho. Todavia, a caridade é vista também em estreita relação com a esperança: "A força da caridade é a esperança: graças a ela esperamos a recompensa da caridade... A esperança é a porta da caridade... A ausência da esperança aniquila a caridade: a ela estão vinculados os nossos cansaços, por ela são sustentados os nossos esforços e graças a ela somos circundados pela misericórdia de Deus" (30, 16; 1157). A conclusão da Escada contém a síntese da obra, com palavras que o autor faz o próprio Deus proferir: "Esta escada te ensine a disposição espiritual das virtudes. Eu estou no ápice desta escada, como disse aquele meu grande iniciado (São Paulo): Agora subsistem estas três coisas: a fé, a esperança e a caridade; mas a maior delas é a caridade (1Co 13,13)!" (30, 18; 1160).

Nesta altura impõe-se uma última pergunta: a Escada, obra escrita por um monge eremita que viveu há mil e quatrocentos anos, ainda pode dizer-nos algo hoje? O itinerário existencial de um homem que viveu sempre na montanha do Sinai, numa época muito distante, pode ter alguma actualidade para nós? Num primeiro momento pareceria que a resposta deve ser "não", porque João Clímaco está demasiado distante de nós. Mas se observarmos um pouco mais de perto, vemos que aquela vida monástica é apenas um grande símbolo da vida baptismal, da vida do cristão. Mostra, por assim dizer, com caracteres grandes, o que nós escrevemos no dia-a-dia com caracteres pequenos. Trata-se de um símbolo profético que revela o que é a vida do baptizado, em comunhão com Cristo, com a sua morte e ressurreição. É para mim particularmente importante o facto de que o ápice da "escada", os últimos degraus são, ao mesmo tempo, as virtudes fundamentais, iniciais, mais simples: a fé, a esperança e a caridade. Não são virtudes acessíveis apenas a heróis morais, mas são um dom de Deus para todos os baptizados: nelas cresce também a nossa vida. O início é também o fim, o ponto de partida é inclusive o ponto de chegada: todo o caminho se orienta para uma realização de fé, esperança e caridade cada vez mais radical. Nestas virtudes toda a escalada está presente. A fé é fundamental, porque tal virtude implica que eu renuncie à minha arrogância, ao meu pensamento; à pretensão de julgar sozinho, sem confiar nos outros. É necessário este caminho para a humildade, para a infância espiritual: é preciso superar a atitude de arrogância que faz dizer: neste meu tempo do século XXI eu sei mais do que pudessem saber aqueles de então. Contudo, é necessário confiar unicamente na Sagrada Escritura, na Palavra do Senhor, apresentar-se com humildade ao horizonte da fé, para entrar assim na enorme vastidão do mundo universal, do mundo de Deus. É desde modo que cresce a nossa alma, que aumenta a sensibilidade do coração a Deus. João Clímaco justamente diz que só a esperança nos torna capazes de viver a caridade. A esperança em que transcendemos as coisas de cada dia não esperamos o sucesso nos nossos dias terrenos, mas no final aguardamos a revelação do próprio Deus. É só nesta extensão da nossa alma, nesta autotranscendência, que a nossa vida se torna grande e podemos suportar os cansaços e as decepções de todos os dias, podemos ser bons para com os outros sem esperar uma recompensa. Só se existir Deus, esta grande esperança para a qual tendo, posso cada dia dar os pequenos passos da minha vida e assim aprender a caridade. Na caridade esconde-se o mistério da oração, do conhecimento pessoal de Jesus: uma oração simples, que só tende a tocar o Coração do Mestre divino. É assim que se abre o próprio coração, que se aprende dele a sua própria bondade, o seu amor. Por conseguinte, utilizemos esta "escalada" da fé, da esperança e da caridade; assim alcançaremos a verdadeira vida.

Saudação

Saúdo os peregrinos de língua portuguesa, nomeadamente os de Portugal, das Paróquias de São Martinho de Lordelo do Ouro, Cristo-Rei de Santa Bárbara Gaia, Santa Eulália de Águeda e Nossa Senhora de Lourdes de Coimbra. A todos faço votos de uma feliz estadia na Cidade Eterna, e que este encontro com o Sucessor de Pedro reforce os propósitos de unidade e de comunhão da única fé, em nosso Senhor Cristo Jesus. Que Deus vos abençoe e ampare, pela intercessão da Virgem de Fátima.




Praça de São Pedro

18 de Fevereiro de 2009: Beda, o Venerável

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Prezados irmãos e irmãs

O Santo do qual hoje nos aproximamos chama-se Beda e nasceu no Nordeste da Inglaterra, exactamente na Northumbria, no ano de 672/673. Ele mesmo narra que com sete anos de idade os seus parentes o confiaram ao abade do vizinho mosteiro beneditino para que fosse educado: "Neste mosteiro ele recorda desde então sempre vivi, dedicando-me intensamente ao estudo da Escritura e, enquanto eu observava a disciplina da Regra e o compromisso quotidiano de cantar na igreja, sempre me aprouve aprender, ou ensinar ou escrever" (Historia eccl. Anglorum, v, 24). Com efeito, Beda tornou-se uma das figuras mais insignes de erudito da alta Idade Média, podendo valer-se dos muitos manuscritos preciosos que os seus abades, voltando das viagens frequentes ao continente e a Roma, lhe traziam. O ensinamento e a fama dos escritos proporcionaram-lhes muitas amizades com as principais personalidades do seu tempo, que o encorajaram a continuar o seu trabalho, do qual muitos beneficiavam. Tendo adoecido, não parou de trabalhar, conservando sempre uma alegria interior que se expressava na oração e no canto. Concluía a sua obra mais importante, a Historia ecclesiastica gentis Anglorum, com esta invocação: "Peço-te, ó bom Jesus, que benevolamente me permitiste haurir as dóceis palavras da sua sabedoria, concede-me benigno que um dia eu chegue a ti, fonte de toda a sabedoria, e que eu permaneça sempre diante do teu rosto". A morte arrebatou-o a 26 de Maio de 735: era o dia da Ascensão.

As Sagradas Escrituras são a fonte constante da reflexão teológica de Beda. Tendo em consideração um atento estudo crítico do texto (chegou até nós um exemplar do monumental Codex Amiatinus da Vulgata, no qual Beda trabalhou), ele comenta a Bíblia, lendo-a em chave cristológica, ou seja, reúne duas coisas: por um lado, ouve exactamente o que o texto diz, quer realmente ouvir, compreender o próprio texto; por outro, está convencido de que a chave para compreender a Sagrada Escritura como única Palavra de Deus é Cristo e com Cristo, na sua luz, compreende-se o Antigo e o Novo Testamento como "uma" Sagrada Escritura. As vicissitudes do Antigo e do Novo Testamento caminham juntas, são um caminho rumo a Cristo, embora sejam expressas com diferentes sinais e instituições (aquela à qual ele chama concordia sacramentorum). Por exemplo, a tenda da aliança que Moisés levantou no deserto e o primeiro e segundo templo de Jerusalém são imagens da Igreja, novo templo edificado sobre Cristo e os Apóstolos com pedras vivas, cimentadas pela caridade do Espírito. E como para a construção do antigo templo contribuíram também pessoas pagãs, pondo à disposição materiais preciosos e a experiência técnica dos seus mestres-de-obras, assim para a edificação da Igreja contribuem apóstolos e mestres provenientes não apenas das antigas linhagens judaica, grega e latina, mas também dos novos povos, entre os quais apraz a Beda enumerar os Iro-Celtas e os Anglo-Saxões. São Beda vê crescer a universalidade da Igreja, que não é limitada a uma determinada cultura, mas compõe-se de todas as culturas do mundo que devem abrir-se a Cristo e encontrar nele o seu ponto de chegada.

Outro tema apreciado por Beda é a história da Igreja. Depois de se ter interessado pela época descrita nos Actos dos Apóstolos, ele volta a percorrer a história dos Padres e dos Concílios, persuadido de que a obra do Espírito Santo continua na história. Nos Chronica Maiora Beda delineia uma cronologia que se tornará a base do Calendário universal "ab incarnatione Domini". Já desde então calculava-se o tempo a partir da fundação da cidade de Roma. Vendo que o verdadeiro ponto de referência, o centro da história, é o nascimento de Cristo, Beda transmitiu-nos este calendário que lê a história a partir da Encarnação do Senhor. Registra os primeiros seis Concílios Ecuménicos e os seus desenvolvimentos, apresentando fielmente a doutrina escatológica, mariológica e soteriológica, e denunciando as heresias monofisita e monotelita, inconolasta e neopelagiana. Enfim, redige com rigor documentário e perícia literária a já mencionada História Eclesiástica dos Povos Anglos, pela qual é reconhecido como "o pai da historiografia inglesa". Os traços característicos da Igreja que Beda gostava de evidenciar são: a) a catolicidade como fidelidade à tradição e, ao mesmo tempo, abertura aos desenvolvimentos históricos, e como busca da unidade na multiplicidade, na diversidade da história e das culturas, segundo as directrizes que o Papa Gregório Magno tinha dado ao Apóstolo da Inglaterra, Agostinho de Canterbury; b) a apostolicidade e a romanidade: a este propósito, considera de primeira importância convencer todas as Igrejas Iro-Celtas e dos Pitti a celebrar unitariamente a Páscoa segundo o calendário romano. O Cálculo por ele cientificamente elaborado para estabelecer a data exacta da celebração pascal, e por isso todo o ciclo do ano litúrgico, tornou-se o texto de referência para toda a Igreja católica.

Beda foi também um insigne mestre de teologia litúrgica. Nas Homilias sobre os Evangelhos dominicais e festivos, desempenha uma verdadeira mistagogia, educando os fiéis para celebrar alegremente os mistérios da fé para os reproduzir de maneira coerente na vida, à espera da sua sua plena manifestação na volta de Cristo quando, com os nossos corpos glorificados, seremos admitidos em procissão ofertorial na liturgia eterna de Deus no céu. Seguindo o "realismo" das catequeses de Cirilo, Ambrósio e Agostinho, Beda ensina que os sacramentos da iniciação cristã constituem cada fiel "não só cristão, mas Cristo". Com efeito, cada vez que uma alma fiel acolhe e conserva com amor a Palavra de Deus, à imitação de Maria, concebe e gera novamente Cristo. E cada vez que um grupo de neófitos recebe os sacramentos pascais, a Igreja "gera-se a si mesma" ou, com uma expressão ainda mais ousada, a Igreja torna-se "mãe de Deus", participando na geração dos seus filhos, por obra do Espírito Santo.

Graças a este seu modo de fazer teologia, entrelaçando Bíblia, Liturgia e História, Beda tem uma mensagem actual para os diversos "estados de vida": a) aos estudiosos (doctores ac doctrices) recorda duas tarefas essenciais: perscrutar as maravilhas da Palavra de Deus para as apresentar de forma atraente aos fiéis; expor as verdades dogmáticas, evitando as complicações eréticas e seguindo a "simplicidade católica", com a atitude dos pequenos e humildes, aos quais Deus desejou revelar os mistérios do Reino; b) os pastores, por sua vez, devem dar prioridade à pregação, não apenas mediante a linguagem verbal ou hagiográfica, mas valorizando também ícones, procissões e peregrinações. A eles, Beda recomenda o uso da língua vulgar, como ele mesmo faz, explicando em Northumbro o "Pai-Nosso", o "Credo" e continuando até ao último dia da sua vida o comentário, em vulgar, ao Evangelho de João; c) às pessoas consagradas que se dedicam ao Ofício divino, vivendo na alegria da comunhão fraterna e progredindo na vida espiritual mediante a ascese e a contemplação, Beda recomenda que se cuide do apostolado ninguém tem o Evangelho só para si, mas deve senti-lo como um dom também para os outros quer colaborando com os Bispos em actividades pastorais de vários tipos a favor das jovens comunidades cristãs, quer tornando-se disponíveis para a missão evangelizadora junto dos pagãos, fora do próprio país, como "peregrini pro amore Dei".

Colocando-se nesta perspectiva, no comentário ao Cântico dos Cânticos Beda apresenta a Sinagoga e a Igreja como colaboradoras na difusão da Palavra de Deus. Cristo Esposo quer uma Igreja diligente, "bronzeada pelos cansaços da evangelização" é clara a referência à palavra do Cântico dos Cânticos (
Ct 1,5), onde a esposa diz: Nigra sumsed formosa" (Sou morena, mas formosa) empenhada a arar outros campos ou vinhas e a estabelecer entre as novas populações "não uma cabana provisória, mas uma morada estável", ou seja, a inserir o Evangelho no tecido social e nas instituições culturais. Nesta perspectiva, o Santo Doutor exorta os fiéis leigos a serem assíduos na instrução religiosa, imitando as "insaciáveis multidões evangélicas, que não deixavam tempo aos Apóstolos nem sequer para comer". Ensina-lhes a rezar continuamente, "reproduzindo na vida aquilo que celebram na liturgia", oferecendo todas as acções como sacrifício espiritual em união com Cristo. Aos pais explica que também no seu pequeno âmbito domético podem exercer "o ofício sacerdotal de pastores e de guias", formando cristãmente os filhos, e afirma que conhece muitos fiéis (homens e mulheres, casados ou solteiros), "capazes de uma conduta irrepreensível que, se forem oportunamente acompanhados, poderia aproximar-se todos os dias da comunhão eucarística" (Epist. ad Ecgberctum, ed. Plummer, pág. 149).

A fama de santidade e sabedoria de que Beda gozava já durante a vida levou-o a ganhar o título de "Venerável". Chama-lhe assim também o Papa Sérgio i quando, em 701, escreve ao seu abade pedindo que lhe permita vir temporariamente a Roma para consultas sobre questões de interesse universal. Depois da morte, os seus escritos foram difundidos amplamente na Pátria e no Continente europeu. O grande missionário da Germânia, o Bispo São Bonifácio (+ 754), pediu várias vezes ao Arcebispo de York e ao abade de Wearmouth que fizessem transcrever algumas das suas obras e lhas mandassem, de tal modo que também ele e os seus companheiros pudessem gozar da luz espiritual que delas emanava. Um século mais tarde Notkero Galbulo, abade de São Galo (+ 912), reconhecendo o extraordinário influxo de Beda, comparou-o com um novo sol que Deus tinha feito nascer, não do Oriente mas do Ocidente, para iluminar o mundo. À parte a ênfase retórica, o facto é que, com as suas obras, Beda contribuiu eficazmente para a construção de uma Europa cristã, em que as diferentes populações e culturas se amalgamaram entre si, conferindo-lhes uma fisionomia unitária, inspirada na fé cristã. Oremos para que também hoje haja personalidades da estatura de Beda, para manter todo o Continente unido; rezemos a fim de que todos nós estejamos disponíveis a redescobrir as nossas raízes comuns, para sermos construtores de uma Europa profundamente humana e autenticamente cristã.

Saudação

Amados peregrinos de língua portuguesa, queridos estudantes brasileiros de Criciúma, possa a vossa vinda a Roma cumprir-se nas vestes de um verdadeiro peregrino que, sabendo que não possui ainda o seu Bem maior, se põe a caminho decidido a encontrá-lo! Sabei que Deus se deixa encontrar por quantos assim o procuram; e, com Ele e n'Ele, a vossa vida não poderá deixar de ser feliz. Sobre vós e vossas famílias desça a minha Bênção.


Praça de São Pedro

11 de Março de 2009: São Bonifácio

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Queridos irmãos e irmãs

Hoje reflectimos sobre um grande missionário do século VIII, que difundiu o cristianismo na Europa central, também precisamente na minha pátria: São Bonifácio, que passou à história como o "apóstolo dos Germanos". Dispomos de não poucas notícias sobre a sua vida, graças à diligência dos seus biógrafos: nasceu de uma família anglo-saxónica no Wessex, por volta de 675 e foi baptizado com o nome de Winfrido. Atraído pelo ideal monástico, entrou muito jovem no mosteiro. Possuindo notáveis capacidades intelectuais, parecia iniciado numa tranquila e brilhante carreira de estudioso: tornou-se professor de gramática latina, escreveu alguns tratados e compôs também várias poesias em latim. Ordenado sacerdote com cerca de trinta anos de idade, sentiu-se chamado ao apostolado no meio dos pagãos do continente. A Grã-Bretanha, sua terra, evangelizada havia apenas cem anos pelos Beneditinos guiados por Santo Agostinho, mostrava uma fé tão sólida e uma caridade tão ardente a ponto de enviar missionários na Europa central para aí anunciar o Evangelho. Em 716 Winfrido com alguns companheiros foi à Frísia (hodierna Holanda), mas confrontou-se com a oposição do chefe local e a tentativa de evangelização fracassou. Tendo regressado à pátria, não desanimou, e dois anos depois veio a Roma para falar com o Papa Gregório II e dele receber conselhos. Segundo a narração de um biógrafo, o Papa acolheu-o "com o rosto risonho e o olhar cheiode doçura", e nos dias seguintes teve com ele "diálogos importantes" (Willibaldo, Vita S. Bonifatii, ed. Levison, págs. 13-14) e, enfim, depois de lhe ter imposto o novo nome de Bonifácio, confiou-lhe com cartas oficiais a missão de pregar o Evangelho no meio dos povos da Germânia.

Confortado e animado pelo apoio do Papa, Bonifácio comprometeu-se na pregação do Evangelho naquelas regiões, lutando contra os cultos pagãos e refortalecendo as bases da moralidade humana e cristã. Com grande sentido do dever, escrevia numa das suas cartas: "Estejamos firmes na luta no dia do Senhor, porque chegaram dias de aflição e miséria... Não sejamos cães emudecidos, nem observadores taciturnos, nem mercenários que fogem diante dos lobos! Pelo contrário, sejamos Pastores diligentes que velam sobre a grei de Cristo, que anunciam às pessoas importantes e às comuns, aos ricos e aos pobres, a vontade de Deus... oportuna e inoportunamente..." (Epistulae, 3, 352.354: MGH). Com a sua actividade incansável, com os seus dotes organizativos, com a sua índole flexível e amável, apesar da firmeza, Bonifácio alcançou grandes resultados. Então, o Papa "declarou que queria impor-lhe a dignidade episcopal, para que assim pudesse, com maior determinação, corrigir e reconduzir os errantes pelo caminho da verdade, para que se sentisse apoiado pela maior autoridade da dignidade apostólica e fosse tanto mais aceite por todos no ofício da pregação, quanto mais demonstrasse que por este motivo fora ordenado pelo prelado apostólico" (Otloho, Vita S. Bonifatii, ed. Levison, lib. i, pág. 127).

Foi o mesmo Sumo Pontífice que consagrou "Bispo regional" ou seja, para toda a Germânia, Bonifácio, que em seguida retomou as suas actividades apostólicas nos territórios a ele confiados, e estendeu a sua acção também à Igreja da Gália: com grande prudência restaurou a disciplina eclesiástica, proclamou vários sínodos para garantir a autoridade dos cânones sagrados, reforçou e comunhão necessária com o Pontífice Romano: um ponto que ele apreciava de modo particular. Também os sucessores do Papa Gregório II tiveram uma altíssima consideração por ele: Gregório III nomeou-o arcebispo de todas as tribos germânicas, enviou-lhe o pálio e conferiu-lhe a faculdade de organizar a hierarquia eclesiástica naquelas regiões (cf. Epist. 28: S. Bonifatii Epistulae, ed. Tangl, Berolini 1916); o Papa Zacarias confirmou o seu ofício e elogiou o seu compromisso (cf. Epist. 51, 57, 58, 60, 68, 77, 80, 86, 87, 89: op. cit.); o Papa Estêvão III, recém-eleito, recebeu dele uma carta com que lhe expressava o seu obséquio filial (cf. Epist. 108: op. cit.).

Além deste trabalho de evangelização e de organização da Igreja, mediante a fundação de dioceses e a celebração de sínodos, o grande Bispo não deixou de favorecer a fundação de vários mosteiros, masculinos e femininos, para que fossem como um farol para a irradiação da fé e da cultura humana e cristã no território. Dos cenóbios beneditinos da sua pátria, tinha chamado monges e monjas que lhe prestaram uma ajuda validíssima e preciosa na tarefa de anunciar o Evangelho e de difundir as ciências humanas e as artes no meio das populações. Com efeito, ele justamente considerava que o trabalho pelo Evangelho tinha que ser também trabalho por uma verdadeira cultura humana. Sobretudo o mosteiro de Fulda fundado por volta de 743 foi o coração e o centro de irradiação da espiritualidade e da cultura religiosa: aí os monges, na oração, no trabalho e na penitência, esforçavam-se por tender para a santidade, formavam-se no estudo das disciplinas sagradas e profanas, preparavam-se para o anúncio do Evangelho, para serem missionários. Portanto, por mérito de Bonifácio, dos seus monges e das suas monjas também as mulheres desempenharam um papel muito importante nesta obra de evangelização floresceu também aquela cultura humana que é inseparável da fé e revela a sua beleza. O próprio Bonifácio nos deixou obras intelectuais significativas. Antes de tudo, o seu abundante epistolário, em que cartas pastorais se alternam com missivas oficiais e outras de carácter particular, que revelam factos sociais e sobretudo o seu rico temperamento humano e a sua fé profunda. Compôs também um tratado de Ars grammatica, no qual explicava declinações, verbos e sintaxe da língua latina, mas que para ele se tornava inclusive um instrumento para difundir a fé e a cultura. Atribuem-se-lhe também uma Ars metrica, ou seja, uma introdução a como escrever poesias, várias composições poéticas e enfim uma colectânea de 15 sermões.

Embora já fosse bastante idoso – tinha quase 80 anos de idade – preparou-se para uma nova missão evangelizadora: com cerca de cinquenta monges, voltou para a Frísia, onde tinha começado a sua obra. Quase pressentindo a morte iminente, aludindo à viagem da vida, escrevia ao discípulo e sucessor na sede de Mainz, o Bispo Lulo: "Desejo levar a termo o propósito desta viagem; não posso de modo algum renunciar ao desejo de partir. Está próximo o dia do meu fim, aproxima-se a hora da minha morte; uma vez que os despojos mortais forem sepultados, subirei para receber o prémio eterno. Mas tu, caríssimo filho, admoesta incessantemente o povo no labirinto do erro, completa a edificação já iniciada da basílica de Fulda e aí sepultarás o meu corpo envelhecido por longos anos de vida" (Willibaldo, Vita S. Bonifatii, ed. cit., pág. 46). Enquanto estava a começar a celebração da Missa em Dokkum (na hodierna Holanda setentrional), no dia 5 de Junho de 754 foi assaltado por um bando de pagãos. Avançando com fronte serena, ele "proibiu que os seus combatessem, dizendo: "Filhinhos, deixai os combates, abandonai a guerra, porque o testemunho da Escritura nos admoesta a não pagar o mal com o mal, mas o mal com o bem. Eis o dia há muito almejado, eis que chegou o tempo do nosso fim; coragem no Senhor!"" (Ibid., págs. 49-50). Foram as suas últimas palavras, antes de cair sob os golpes dos agressores. Depois, os despojos do Bispo mártir foram levados ao mosteiro de Fulda, onde receberam uma digna sepultura. Já um dos seus primeiros biógrafos se exprime acerca dele com este juízo: "O santo Bispo Bonifácio pode dizer-se pai de todos os habitantes da Germânia, porque foi o primeiro a gerá-los para Cristo com a palavra da sua santa pregação, a confirmá-los com o exemplo e enfim a dar-lhes a vida, e não pode existir amor maior do que este" (Otloho, Vita S. Bonifatii, ed. cit. lib. I, pág. 158).

À distância de séculos, que mensagem nós podemos hoje recolher do ensinamento e da actividade prodigiosa deste grande missionário e mártir? Uma primeira evidência impõe-se a quem se aproxima de Bonifácio: a centralidade da Palavra de Deus, vivida e interpretada na fé da Igreja, Palavra que ele viveu, pregou e testemunhou até ao dom supremo de si no martírio. Vivia tão apaixonado pela Palavra de Deus, que sentia a urgência e o dever de a levar ao próximo, mesmo com o risco da sua própria pessoa. Sobre ela apoiava aquela fé para cuja difusão se tinha comprometido solenemente no momento da sua ordenação episcopal: "Professo integralmente a pureza da santa fé católica e, com a ajuda de Deus, quero permanecer na unidade desta fé, na qual sem qualquer dúvida está toda a salvação dos cristãos" (Epist. 12 in S. Bonifatii Epistulae, ed. cit., pág. 29). A segunda evidência, muito importante, que sobressai da vida de Bonifácio é a sua comunhão fiel com a Sé Apostólica, que era um ponto fixo e central do seu trabalho de missionário; ele sempre conservou tal comunhão como regra da sua missão e deixou-a quase como seu testamento. Numa carta ao Papa Zacarias, afirmava: "Nunca cesso de convidar e de submeter à obediência da Sé Apostólica aqueles que querem permanecer na fé católica e na unidade da Igreja romana, e todos aqueles que nesta minha missão Deus me concede como ouvintes e discípulos" (Epist. 50: in ibid., pág. 81). Fruto deste compromisso foi o sólido espírito de coesão ao redor do Sucessor de Pedro, que Bonifácio transmitiu às Igrejas do seu território de missão, unindo Roma a Inglaterra, com a Germânia e a França, e contribuindo assim de maneira determinante para lançar as raízes cristãs da Europa que haveriam de produzir frutos fecundos nos séculos seguintes. Para uma terceira característica, Bonifácio recomenda-se à nossa atenção: ele promoveu o encontro entre a cultura romano-cristã e a cultura germânica. Com efeito, sabia que humanizar e evangelizar a cultura era uma parte integrante da sua missão de Bispo. Transmitindo o antigo património de valores cristãos, ele instilou nas populações germânicas um novo estilo de vida mais humano, graças ao qual eram melhor respeitados os direitos inalienáveis da pessoa. Como autêntico filho de São Bento, ele soube unir oração e trabalho (manual e intelectual), pena e arado.

O testemunho corajoso de Bonifácio é um convite para todos nós, a acolher na nossa vida a palavra de Deus como ponto de referência essencial, a amar a Igreja apaixonadamente, a sentir-nos co-responsáveis pelo seu futuro e a buscar a sua unidade ao redor do Sucessor de Pedro. Ao mesmo tempo, ele recorda-nos que o cristianismo, favorecendo a difusão da cultura, promove o progresso do homem. Agora, compete-nos estar à altura de um património tão prestigioso e fazê-lo frutificar em vantagem das gerações vindouras.

Impressiona-me sempre este seu zelo ardente pelo Evangelho: com quarenta anos sai de uma vida monástica bonita e fecunda, de uma vida de monge e de professor, para anunciar o Evangelho aos simples, aos bárbaros; com oitenta anos, mais uma vez, vai a uma região onde prevê o seu martírio. Comparando esta sua fé ardente, este zelo pelo Evangelho com a nossa fé tão frequentemente tíbia e burocratizada, vemos o que temos que fazer e como renovar a nossa fé, para oferecer ao nosso tempo a pérola preciosa do Evangelho.

Apelo

Foi com profundo pesar que recebi a notícia do assassínio de dois jovens soldados britânicos e de um agente policial na Irlanda do Norte. Enquanto asseguro às famílias das vítimas e dos feridos a minha proximidade espiritual, condeno da maneira mais vigorosa estes abomináveis actos de terrorismo que, além de profanarem a vida humana, põem em sério perigo o actual processo de paz na Irlanda do Norte e correm o risco de destruir as grandes esperanças geradas por este processo na região e no mundo inteiro. Rezo ao Senhor a fim de que ninguém volte a ceder à horrenda tentação da violência, e que todos aumentem os seus esforços para continuar a construir através do paciente compromisso no diálogo uma sociedade pacífica, justa e reconciliada.



Saudação

Amados peregrinos de língua portuguesa, a minha saudação afectuosa para todos os presentes, nomeadamente para as Irmãs Carmelitas Mensageiras do Espírito Santo, com votos de uma boa viagem de regresso às vossas terras e comunidades, que vos esperam transfigurados pela graça desta romagem penitencial aos túmulos dos Apóstolos. Também eu vo-lo desejo, pedindo ao Espírito divino que guie a vossa mente e os vossos passos pelas sendas de um encontro sempre novo e surpreendente com Jesus Cristo. Ele é a suspirada Bênção de Deus Pai para vós e toda a humanidade.



Praça de São Pedro

1° de Abril de 2009: Viagem Apostólica à Camarões e Angola


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