Audiências 2005-2013 1049

1° de Abril de 2009: Viagem Apostólica à Camarões e Angola

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Queridos irmãos e irmãs!

Como anunciei no domingo passado no Angelus, hoje detenho-me a falar da recente viagem apostólica à África, a primeira do meu pontificado àquele continente. Ela limitou-se aos Camarões e Angola, mas idealmente com a minha visita eu quis abraçar todos os povos africanos e abençoá-los no nome do Senhor. Experimentei o tradicional caloroso acolhimento africano, que me foi dedicado em toda a parte, e aproveito de bom grado esta ocasião para expressar de novo a minha profunda gratidão aos Episcopados dos dois países, aos Chefes de Estado, a todas as Autoridades e a quantos de vários modos se prodigalizaram pelo sucesso desta minha visita pastoral.

A minha permanência em terra africana começou a 17 de Março em Yaoundé, capital dos Camarões, onde me encontrei imediatamente no coração da África, e não só geograficamente. De facto, este País resume muitas características daquele grande continente, primeira de todas a sua alma profundamente religiosa, que irmana todos os numerosíssimos grupos étnicos que o povoam. Nos Camarões, mais de um quarto dos habitantes são católicos, e convivem pacificamente com as outras comunidades religiosas. Por isso o meu amado Predecessor João Paulo II, em 1995, escolheu a capital desta nação para promulgar a Exortação Apostólica Ecclesia in Africa, depois da primeira Assembleia sinodal dedicada precisamente ao continente africano. Desta vez, o Papa voltou lá para entregar o Instrumentum laboris da segunda Assembleia sinodal para a África, em programa em Roma no próximo mês de Outubro e que terá como tema: "A Igreja em África ao serviço da reconciliação, da justiça e da paz: "Vós sois o sal da terra... Vós sois a luz do mundo" (
Mt 5,13-14)".

Nos encontros que, à distância de dois dias, tive com os Episcopados, respectivamente dos Camarões e de Angola e São Tomé e Príncipe, quis ainda mais neste Ano Paulino recordar a urgência da evangelização, que compete em primeiro lugar precisamente aos Bispos, ressaltando a dimensão colegial, fundada na comunhão sacramental. Exortei-os a ser sempre exemplo para os seus sacerdotes e para todos os fiéis, e a seguir atentamente a formação dos seminaristas, que graças a Deus são numerosos, e dos catequistas, que se tornam cada vez mais necessários para a vida da Igreja em África. Encorajei os Bispos a promover a pastoral do matrimónio e da família, da liturgia e da cultura, também para fazer com que os leigos sejam capazes de resistir ao ataque das seitas e dos grupos esotéricos. Quis confirmá-los com afecto na prática da caridade e na defesa dos direitos dos pobres.

Penso de novo na solene celebração das Vésperas realizada em Yaoundé, na igreja de Maria Rainha dos Apóstolos, Padroeira dos Camarões, um templo grande e moderno, situado no lugar onde começou a obra dos primeiros evangelizadores dos Camarões, os Missionários Espiritanos. Na vigília da solenidade de São José, a cujos cuidados solícitos Deus confiou os seus tesouros mais preciosos, Maria e Jesus, prestamos glória ao único Pai que está no céu, juntamente com os representantes das outras Igrejas e Comunidades eclesiais. Contemplando a figura espiritual de São José, que consagrou a sua existência a Cristo e à Virgem Maria, convidei os sacerdotes, as pessoas consagradas e os membros dos movimentos eclesiais a permanecer sempre fiéis à sua vocação, vivendo na presença de Deus e na obediência jubilosa à sua Palavra.

Na Nunciatura Apostólica de Yaoundé tive a oportunidade de me encontrar também com os representantes da comunidade muçulmana nos Camarões, reafirmando a importância do diálogo inter-religioso e da colaboração entre cristãos e muçulmanos para ajudar o mundo a abrir-se a Deus. Foi um encontro deveras muito cordial.

Certamente um dos momentos culminantes da viagem foi a entrega do Instrumentum laboris da II Assembleia sinodal para a África, realizada a 19 de Março dia de São José e meu onomástico no estádio de Yaoundé, no final da solene Celebração eucarística em honra de São José. Isto aconteceu na coralidade do povo de Deus, "entre cânticos de alegria e de louvor de uma multidão em festa" como diz o Salmo (Ps 42,5), do qual fizemos uma experiência concreta. A Assembleia sinodal terá lugar em Roma, mas num certo sentido já iniciou no coração do continente africano, no coração da família cristã que lá vive, sofre e espera. Por isso pareceu-me positiva a coincidência da publicação do "Instrumento de trabalho" com a festa de São José, modelo de fé e de esperança como o primeiro patriarca Abraão. A fé no "Deus próximo", que em Jesus nos mostrou o seu rosto de amor, é a garantia de uma esperança de confiança, para a África e para o mundo inteiro, garantia de um futuro de reconciliação, de justiça e de paz.

Depois da solene assembleia litúrgica e da jubilosa apresentação do Documento de trabalho, na Nunciatura Apostólica de Yaoundé pude encontrar-me com os Membros do Conselho Especial para a África do Sínodo dos Bispos e viver com eles um momento de comunhão intensa: reflectimos juntos sobre a história da África numa perspectiva teológica e pastoral. Era quase como uma primeira reunião do próprio Sínodo, num debate fraterno entre os diversos episcopados e o Papa sobre as perspectivas do Sínodo da reconciliação e da paz em África. De facto, o cristianismo e isto podia-se ver desde as origens lançou raízes profundas no solo africano, como confirmam os numerosos mártires e santos, pastores, doutores e catequistas que floresceram inicialmente no norte e depois, em épocas sucessivas, no resto do continente: pensamos em Cipriano, Agostinho, na mãe Mónica, em Atanásio; e depois nos mártires de Uganda, em Josefina Bakhita e em muitos outros. Na época actual, que vê a África empenhada a consolidar a independência política e a construção das identidades nacionais num contexto já globalizado, a Igreja acompanha os africanos recordando a grande mensagem do Concílio Vaticano II, aplicado mediante a primeira e, agora, a segunda Assembleia sinodal especial. Entre conflitos infelizmente numerosos e dramáticos que ainda afligem diversas regiões daquele continente, a Igreja sabe que deve ser sinal e instrumento de unidade e de reconciliação, para que toda a África possa construir junto um futuro de justiça, de solidariedade e de paz, concretizando os ensinamentos do Evangelho.

Um sinal forte da acção humanizadora da mensagem de Cristo é sem dúvida o Centro Cardeal Léger de Yaoundé, destinado à reabilitação das pessoas portadoras de deficiência. O seu fundador foi o Cardeal canadense Paul Emil Léger, que ali se quis retirar depois do Concílio, em 1968, para trabalhar entre os pobres. Naquele Centro, sucessivamente cedido ao Estado, encontrei numerosos irmãos e irmãs que enfrentam situações de sofrimento, partilhando com eles mas também recebendo deles a esperança que provém da fé, até em situações de sofrimento.

A segunda etapa e segunda parte da minha viagem foi Angola, País que, sob certos aspectos, também é emblemático: tendo saído de facto de uma longa guerra interna, está agora empenhado na obra de reconciliação e de reconstrução nacional. Mas como poderiam ser autênticas esta reconciliação e reconstrução se fossem realizadas em desvantagem dos mais pobres, que têm direito como todos a participar dos recursos da sua terra? Eis por que, com esta minha visita, cujo primeiro objectivo foi obviamente confirmar na fé a Igreja, pretendi também encorajar o processo social em acto. Em Angola é palpável o que, várias vezes, os meus venerados Predecessores repetiram: tudo está perdido com a guerra, tudo pode renascer com a paz. Mas para reconstruir uma nação há necessidade de grandes energias morais. E aqui, mais uma vez, se manifesta a importância do papel da Igreja, chamada a desempenhar uma função educativa, trabalhando em profundidade para renovar e formar as consciências.

O Padroeiro da cidade de Luanda, capital de Angola, é São Paulo: por isso escolhi celebrar a Eucaristia com os sacerdotes, os seminaristas, os religiosos, os catequistas e os agentes pastorais, no sábado 21 de Março, na igreja dedicada ao Apóstolo. Mais uma vez a experiência pessoal de São Paulo nos falou do encontro com Cristo Ressuscitado, capaz de transformar as pessoas e a sociedade. Mudam os contextos históricos – e é preciso ter isso em consideração – mas Cristo permanece a verdadeira força de renovação radical do homem e da comunidade humana. Portanto voltar para Deus, converter-se a Cristo significa ir em frente, rumo à plenitude da vida.

Para expressar a proximidade da Igreja aos esforços de reconstrução de Angola e de muitas outras regiões africanas, em Luanda quis dedicar dois encontros especiais respectivamente aos jovens e às mulheres. Com os jovens, no estádio, foi uma festa de alegria e de esperança, infelizmente entristecida pela morte de duas jovens, que foram esmagadas no atropelo da entrada. A África é um continente muito jovem, mas demasiados dos seus filhos, crianças e adolescentes já sofreram graves feridas, que só Jesus Cristo, o Crucificado-Ressuscitado, pode curar infundindo neles, com o seu Espírito, a força de amar e de se empenhar pela justiça e pela paz. Depois, prestei homenagem às mulheres pelo serviço que tantas delas oferecem à fé, à dignidade humana, à vida e à família. Reafirmei o seu pleno direito a empenhar-se na vida pública, sem que seja mortificado contudo o seu papel na família, missão fundamental que deve ser desempenhada sempre em partilha responsável com todos os outros elementos da sociedade e sobretudo com os maridos e pais. Eis portanto a mensagem que transmiti às novas gerações e ao mundo feminino, fazendo-a extensiva depois a todos na grande assembleia eucarística de domingo, 22 de Março, concelebrada com os Bispos dos Países da África Austral, com a participação de um milhão de fiéis. Se os povos africanos – eu disse-lhes – como o antigo Israel, fundam a sua esperança na Palavra de Deus, ricos do seu património religioso e cultural, podem realmente construir um futuro de reconciliação e de pacificação estável para todos.

Queridos irmãos e irmãs, quantas outras considerações tenho no coração e quantas recordações me afloram à mente pensando nesta viagem! Peço-vos que deis graças ao Senhor pelas maravilhas que Ele realizou e continua a realizar em África graças à acção generosa dos missionários, dos religiosos, das religiosas, dos voluntários, dos sacerdotes, dos catequistas, em comunidades jovens cheias de entusiasmo e de fé. Peço-vos que rezeis também pelas populações africanas, que me são muito queridas, para que possam enfrentar com coragem os grandes desafios sociais, económicos e espirituais do momento presente. Confiemos tudo e todos à intercessão materna de Maria Santíssima, Rainha da África, e dos Santos e Beatos africanos.

Saudação

A minha saudação amiga para os fiéis da diocese de Portalegre, para o grupo da escola do Olhão e demais peregrinos de língua portuguesa, nomeadamente de Angola e São Tomé e Príncipe, cujos compatriotas acabo de encontrar na minha Visita a África. No Sucessor de Pedro, viram personificada esta grande Família de Deus – a Igreja –, da qual todos os povos são chamados a fazer parte e à qual, por graça divina e adesão da fé, nós pertencemos. O anúncio desta verdade despertou neles a certeza de que nunca estão sozinhos; e recomeçaram a esperar e a sorrir. Amados peregrinos, peço-vos que rezeis pelos povos da África para enfrentarem com coragem os grandes desafios deste tempo. Presença consoladora junto à cruz de seus filhos é Maria Santíssima, a cuja materna protecção confio a vida e família deles e de cada um de vós, ao dar-vos a minha Bênção.



Praça de São Pedro

8 de Abril de 2009: Tríduo Pascal

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Queridos irmãos e irmãs!

A Semana Santa, que para nós cristãos é a semana mais importante do ano, oferece-nos a oportunidade de nos imergirmos nos acontecimentos centrais da Redenção, de reviver o Mistério pascal, o grande Mistério da fé. A partir de amanhã à tarde, com a Missa in Coena Domini, os solenes ritos litúrgicos ajudar-nos-ão a meditar de modo mais vivo a paixão, a morte e a ressurreição do Senhor nos dias do Santo Tríduo pascal, fulcro de todo o ano litúrgico. Que a graça divina abra os nossos corações à compreensão do dom inestimável que é a salvação que nos foi obtida pelo sacrifício de Cristo. Encontramos este dom imenso, admiravelmente narrado num célebre hino contido na Carta aos Filipenses (cf.
Ph 2,6-11), que na Quaresma meditámos várias vezes. O Apóstolo repercorre, de modo tanto essencial quanto eficaz, todo o mistério da história da salvação mencionando a soberba de Adão que, mesmo não sendo Deus, queria ser como Deus. E contrapõe a esta soberba do primeiro homem, que todos nós sentimos um pouco no nosso ser, a humildade do verdadeiro Filho de Deus que, tornando-se homem, não hesitou em assumir sobre si as debilidades do ser humano, excepto o pecado, e chegou ao extremo da profundidade da morte. A esta descida na última profundidade da paixão e da morte segue-se depois a sua exaltação, a verdadeira glória, a glória do amor até ao fim. E por isso é justo como diz Paulo que "em nome de Jesus se dobrem todos os joelhos nos céus, na terra e debaixo da terra, e todas as línguas proclamem: Jesus Cristo é o Senhor" (Ph 2,10-11). São Paulo menciona, com estas palavras, uma profecia de Isaías na qual Deus diz: Eu sou o Senhor, todos os joelhos se dobrem diante de mim nos céus e na terra (cf. Is 45,23). Isto diz Paulo é válido para Jesus Cristo. Ele realmente, na sua humildade, na verdadeira grandeza do seu amor, é o Senhor do mundo e diante d'Ele realmente todos os joelhos se dobram.

Como é maravilhoso, e ao mesmo tempo surpreendente, este mistério! Nunca podemos meditar suficientemente esta realidade. Jesus, mesmo sendo Deus, não quis fazer das suas prerrogativas divinas uma posse exclusiva; não quis usar o seu ser Deus, a sua dignidade gloriosa e o seu poder, como instrumento de triunfo e sinal de distância de nós. Ao contrário, "despojou-se a si mesmo" assumindo a miséria e a frágil condição humana Paulo usa, a este propósito, um verbo grego muito expressivo para indicar a Kénosis, a descida de Jesus. A forma (morphé) divina escondeu-se em Cristo sob a forma humana, ou seja, sob a nossa realidade marcada pelo sofrimento, pela pobreza, pelos nossos limites humanos e pela morte. A partilha radical e verdadeira da nossa natureza, partilha de tudo excepto do pecado, conduziu-o até àquela fronteira que é o sinal da nossa finitude, a morte. Mas tudo isto não foi fruto de um mecanismo obscuro ou de uma fatalidade: foi antes uma sua escolha livre, por adesão generosa ao desígnio salvífico do Pai. E a morte que enfrentou acrescenta Paulo foi a de cruz, a mais humilhante e degradante que se pudesse imaginar. Tudo isto o Senhor do universo o realizou por amor a nós: por amor quis "despojar-se a si mesmo" e fazer-se nosso irmão; por amor partilhou a nossa condição, a de cada homem e mulher. Escreve a propósito uma grande testemunha da tradição oriental, Teodoreto de Ciro: "Sendo Deus, e Deus por natureza, e tendo a igualdade com Deus, não considerou isto algo de grandioso, como fazem quantos recebem uma honra acima dos seus merecimentos, mas escondendo os seus merecimentos, escolheu a humildade mais profunda e assumiu a forma de um ser humano" (Comentário à carta aos Ph 2,6-7).

Prelúdio do Tríduo pascal, que iniciará amanhã como dizia com os sugestivos ritos da tarde da Quinta-Feira Santa, é a solene Missa Crismal, que o Bispo celebra de manhã com o próprio presbitério, e durante a qual juntos se renovam as promessas sacerdotais pronunciadas no dia da Ordenação. É um gesto de grande valor, uma ocasião propícia como nunca na qual os sacerdotes reafirmam a própria fidelidade a Cristo que os escolheu como seus ministros. Este encontro sacerdotal assume além disso um significado particular, porque é quase uma preparação para o Ano sacerdotal, que proclamei por ocasião do 150º aniversário da morte do Santo Cura d'Ars e que terá início no dia 19 de Junho próximo. Ainda na Missa Crismal serão abençoados o óleo dos enfermos e o dos catecúmenos, e será consagrado o Crisma. Estes são ritos com os quais simbolicamente se significam a plenitude do Sacerdócio de Cristo e a comunhão eclesial que deve animar o povo cristão, reunido para o sacrifício e vivificado na unidade pelo dom do Espírito Santo.

Na Missa da tarde, chamada in Coena Domini, a Igreja comemora a instituição da Eucaristia, o Sacerdócio ministerial e o Mandamento novo da caridade, deixado por Jesus aos seus discípulos. Do que aconteceu no Cenáculo, na vigília da paixão do Senhor, São Paulo oferece um dos mais antigos testemunhos. "O Senhor Jesus escreve ele, no início dos anos cinquenta, baseando-se num texto que recebeu do ambiente do próprio Senhor na noite em que foi entregue, tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse: "Isto é o Meu corpo, que será entregue por vós; fazei isto em Minha memória"". Do mesmo modo, depois da ceia, tomou também o cálice, dizendo: "Este Cálice é a Nova Aliança no Meu Sangue; todas as vezes que o beberdes, fazei-o em Minha memória" (1Co 11,23-25). Palavras cheias de mistério, que manifestam com clareza o valor de Cristo: sob as espécies do pão e do vinho Ele torna-se presente com o seu corpo entregue e com o seu sangue derramado. É o sacrifício da nova e definitiva aliança oferecida a todos, sem distinção de raça nem de cultura. E deste rito sacramental, que entrega à Igreja como prova suprema do seu amor, Jesus constitui ministros os seus discípulos e quantos prosseguem o seu ministério no decorrer dos séculos. A Quinta-Feira Santa constitui portanto um convite renovado a dar graças a Deus pelo dom extremo da Eucaristia, que deve ser acolhida com devoção e adorada com fé viva. Por isso, a Igreja encoraja, depois da celebração da Santa Missa, a vigiar na presença do Santíssimo Sacramento, recordando a hora triste que Jesus passou em solidão e oração no Getsémani, antes de ser preso para ser depois condenado à morte.

E assim chegamos à Sexta-Feira Santa, dia da paixão e da crucifixão do Senhor. Todos os anos, estando em silêncio diante de Jesus pregado no madeiro da cruz, sentimos quanto são cheias de amor as palavras por Ele pronunciadas na vigília, durante a Última Ceia. "Isto é o Meu sangue, sangue da aliança, que vai ser derramado por muitos" (cf. Mc 14,24). Jesus quis oferecer a sua vida em sacrifício pela remissão dos pecados da humanidade. Como diante da Eucaristia, assim diante da paixão e morte de Jesus na Cruz o mistério torna-se insondável para a razão. Somos postos diante de algo que humanamente poderia parecer surdo: um Deus que não só se faz homem, com todas as necessidades do homem, não só sofre para salvar o homem assumindo toda a tragédia da humanidade, mas morre pelo homem.

A morte de Cristo recorda o cúmulo de sofrimento e de males que pesa sobre a humanidade de todas as épocas: o peso esmagador do nosso morrer, o ódio e a violência que ainda hoje ensanguentam a terra. A paixão do Senhor continua nos sofrimentos dos homens. Como justamente escreve Blaise Pascal, "Jesus permanecerá em agonia até ao fim do mundo; não se deve dormir durante este tempo" (Pensamentos, 553). Se a Sexta-Feira Santa é um dia cheio de tristeza, é portanto ao mesmo tempo, um dia muito propício para despertar a nossa fé, para reforçar a nossa esperança e a coragem de carregar cada qual a sua cruz com humildade, confiança e abandono a Deus, na certeza do seu apoio e da sua vitória. A liturgia deste dia canta: O Crux, ave, spes unica Ave, ó cruz, única esperança".

Esta esperança alimenta-se no grande silêncio do Sábado Santo, na expectativa da ressurreição de Jesus. Neste dia as Igrejas não estão ornamentadas e não são previstos particulares ritos litúrgicos. A Igreja vigia em oração como Maria e juntamente com Maria, compartilha os mesmos sentimentos de dor e de confiança em Deus. Justamente se recomenda que se conserve durante todo o dia um clima orante, favorável à meditação e à reconciliação; encorajam-se os fiéis a aproximar-se do sacramento da Penitência, para poder participar realmente renovados nas Festas pascais.

O recolhimento e o silêncio do Sábado Santo conduzir-nos-ão na noite à solene Vigília pascal, "mãe de todas as vigílias", quando irromper em todas as igrejas e comunidades o cântico da alegria pela ressurreição de Cristo. Mais uma vez, será proclamada a vitória da luz sobre as trevas, da vida sobre a morte, e a Igreja rejubilará no encontro com o seu Senhor. Entraremos assim no clima da Páscoa de Ressurreição.

Queridos irmãos e irmãs, predisponhamo-nos a viver intensamente o Tríduo Santo, para sermos cada vez mais profundamente partícipes do Mistério de Cristo. Acompanha-nos neste itinerário a Virgem Santa, que seguiu em silêncio o Filho Jesus até ao Calvário, participando com grande dor no seu sacrifício, cooperando assim no mistério da Redenção e tornando-se Mãe de todos os crentes (cf. Jn 19,25-27). Juntamente com ela entraremos no Cenáculo, permaneceremos aos pés da Cruz, vigiaremos idealmente ao lado de Cristo morto aguardando com esperança o alvorecer do dia radiante da ressurreição. Nesta perspectiva, formulo desde já a todos vós os mais cordiais votos de uma serena e santa Páscoa, juntamente com as vossas famílias, paróquias e comunidades.

Saudações

Saúdo os peregrinos de língua portuguesa, nomeadamente os estudantes brasileiros de Londrina e todos os participantes no encontro universitário internacional UNIV 2009, formulando os votos mais cordiais de uma feliz e santa Páscoa para cada um dos presentes, suas famílias e comunidades de estudo e de fé. Possam os dias do Tríduo pascal fortalecer em todos a esperança e a coragem de levar a sua cruz com humildade, confiança e abandono em Deus, certos do seu apoio e da sua vitória. Com estes votos, dou-vos a minha Bênção Apostólica.



Praça de São Pedro

15 de Abril de 2009#15049

Queridos irmãos e irmãs!

Esta habitual Audiência geral da quarta-feira está hoje repleta do júbilo espiritual, aquele júbilo que sofrimento ou pena alguma podem cancelar, porque é alegria que brota da certeza que Cristo, com a sua morte e ressurreição, triunfou definitivamente sobre o mal e sobre a morte. "Cristo ressuscitou! Aleluia!, canta a Igreja em festa. E este clima de festa, estes sentimentos típicos da Páscoa, prolongam-se não só durante esta semana a – Oitava de Páscoa – mas também nos cinquenta dias que vão até ao Pentecostes. Aliás, podemos dizer: o mistério da Páscoa abraça todo o arco da nossa existência.

Neste tempo litúrgico são deveras muitas as referências bíblicas e os estímulos à meditação que nos são oferecidos para aprofundar o significado e o valor da Páscoa. A "via crucis", que no Tríduo Santo repercorremos com Jesus até ao Calvário revivendo a dolorosa paixão, na solene Vigília pascal tornou-se a confortadora "via lucis". Visto a partir da ressurreição, podemos dizer que todo este caminho de sofrimento é caminho de luz e de renascimento espiritual, de paz interior e de esperança firme. Depois do pranto, depois da desorientação da Sexta-Feira Santa, seguida pelo silêncio cheio de expectativa do Sábado Santo, na alvorada do "primeiro dia depois do sábado" ressoou com vigor o anúncio da Vida que derrotou a morte: "Dux vitae mortuus/ regnat vivus – o Senhor da vida estava morto; mas agora, vivo, triunfa!". A novidade perturbadora da ressurreição é tão importante que a Igreja a proclama ininterruptamente, prolongando a sua recordação sobretudo ao domingo: de facto, todos os domingos são "dia do Senhor" e Páscoa semanal do povo de Deus. Os nossos irmãos orientais, quase para evidenciar este mistério de salvação que investe a nossa vida quotidiana, chamam em língua russa ao domingo "dia da ressurreição" (voskrescénje).

Portanto, é fundamental para a nossa fé e para o nosso testemunho cristão proclamar a ressurreição de Jesus de Nazaré como acontecimento real, histórico, confirmado por muitas e respeitáveis testemunhas. Afirmámo-lo com vigor porque, também neste nosso tempo, não falta quem procura negar a sua historicidade reduzindo a narração evangélica a um mito, a uma "visão" dos Apóstolos, retomando e apresentando antigas e já consumadas teorias como novas e científicas. Certamente a ressurreição não foi para Jesus um simples regresso à vida precedente. Neste caso, de facto, teria sido uma coisa do passado: há dois mil anos alguém ressuscitou, voltou à sua vida precedente, como por exemplo Lázaro. A ressurreição situa-se noutra dimensão: é a passagem para uma dimensão de vida profundamente nova, que diz respeito também a nós, que envolve toda a família humana, a história e o universo. Este acontecimento que introduziu uma nova dimensão de vida, uma abertura deste nosso mundo à vida eterna, mudou a existência das testemunhas oculares como demonstram as narrações evangélicas e os outros escritos neotestamentários; é um anúncio que inteiras gerações de homens e mulheres ao longo dos séculos receberam com fé e testemunharam com frequência com o preço do seu sangue, sabendo que precisamente assim entravam nesta nova dimensão da vida. Também este ano, na Páscoa ressoa inalterada e sempre nova, em todos os recantos da terra, esta boa notícia: Jesus morto na cruz ressuscitou, vive glorioso porque derrotou o poder da morte, levou o ser humano a uma comunhão nova de vida com Deus e em Deus. Esta é a vitória da Páscoa, a nossa salvação! Podemos, portanto, cantar com Santo Agostinho: "A ressurreição de Cristo é a nossa esperança", porque nos introduz num futuro novo.

É verdade: a ressurreição de Jesus funda a nossa firme esperança e ilumina toda a nossa peregrinação terrena, inclusive o enigma humano do sofrimento e da morte. A fé em Cristo crucificado e ressuscitado é o âmago de toda a mensagem evangélica, o núcleo do nosso "Credo". Deste "Credo" essencial podemos encontrar uma expressão autorizada num conhecido trecho paulino, contido na Primeira Carta aos Coríntios (1Co 15,3-8) no qual, o Apóstolo, para responder a alguns da comunidade de Corinto que paradoxalmente proclamavam a ressurreição de Jesus mas negavam a dos mortos – a nossa esperança – transmite fielmente o que ele – Paulo – tinha recebido da primeira comunidade apostólica sobre a morte e ressurreição do Senhor.

Ele inicia com uma afirmação quase peremptória: "Lembro-vos, irmãos, o Evangelho que vos anunciei, o qual recebestes e no qual perseverais. Por ele sereis salvos, se o tiverdes como vo-lo transmiti; de outra forma, tereis acreditado em vão" (vv. 1-2). Acrescenta imediatamente que lhes transmitiu o que ele mesmo tinha recebido. Segue depois a perícope que ouvimos no início deste nosso encontro. São Paulo apresenta antes de tudo a morte de Jesus e coloca, num texto tão pobre, dois complementos à notícia de que "Cristo morreu". O primeiro é: morreu "pelos nosso pecados"; e o seguinte: "segundo as Escrituras" (1Co 15,3). Esta expressão "segundo as Escrituras" coloca o acontecimento da morte do Senhor em relação com a história da aliança veterotestamentária de Deus com o seu povo, e faz-nos compreender que a morte do Filho de Deus pertence ao tecido da história da salvação, e aliás, faz-nos compreender que esta história recebe dela a sua lógica e o seu verdadeiro significado. Até àquele momento a morte de Cristo tinha permanecido quase um enigma, cujo êxito ainda era incerto. No mistério pascal cumprem-se as palavras da Escritura, isto é, esta morte realizada "segundo as Escrituras" é um acontecimento que tem em si o logos, uma lógica: a morte de Cristo testemunha que a Palavra de Deus se fez totalmente "carne", "história" humana. Compreende-se, de outro acréscimo feito por Paulo, o como e o porquê isto aconteceu: Cristo morreu "pelos nosso pecados". Com estas palavras o texto paulino parece retomar a profecia de Isaías contida no Quarto Canto do Servo de Deus (cf. Is 53,12). O Servo de Deus – assim diz o Canto – "despojou-se até à morte", carregou "os pecados de muitos", e intercedendo pelos "culpados" pôde proporcionar o dom da reconciliação dos homens entre si e dos homens com Deus: a sua é portanto uma morte que põe fim à morte; o caminho da Cruz leva à Ressurreição.

Nos versículos que seguem, o Apóstolo detém-se depois sobre a ressurreição do Senhor. Ele diz que Cristo "ressuscitou no terceiro dia segundo as Escrituras". De novo: "segundo as Escrituras"! Não poucos exegetas entrevêem na expressão: "ressuscitou no terceiro dia segundo as Escrituras" uma significativa referência a quanto lemos no Salmo 16, no qual o Salmista proclama: "Vós não me entregareis à mansão dos mortos, nem deixareis que o Vosso amigo veja o sepulcro" (v. 10). Este é um dos textos do Antigo Testamento, citados com frequência no cristianismo primitivo, para provar o carácter messiânico de Jesus. Dado que segundo a interpretação judaica a corrupção começava depois do terceiro dia, a palavra da Escritura cumpre-se em Jesus que ressuscitou no terceiro dia, isto é, antes que comece a corrupção. São Paulo, ao transmitir fielmente o ensinamento dos apóstolos, ressalta que a vitória de Cristo sobre a morte acontece através do poder criador da Palavra de Deus. Este poder divino dá esperança e alegria: é este definitivamente o conteúdo libertador da revelação pascal. Na Páscoa, Deus revela-se a Si mesmo e ao poder do amor trinitário que destrói as forças destruidoras do mal e da morte.

Queridos irmãos e irmãs, deixemo-nos iluminar pelo esplendor do Senhor ressuscitado. Acolhamo-lo com fé e aderamos generosamente ao seu Evangelho, como fizeram as testemunhas privilegiadas da sua ressurreição; como fez, alguns anos mais tarde, São Paulo que encontrou o Mestre divino de modo extraordinário no caminho de Damasco. Não podemos conservar só para nós o anúncio desta Verdade que muda a vida de todos. E com humilde confiança rezamos: "Jesus, que ao ressuscitar dos mortos antecipastes a nossa ressurreição, nós cremos em Ti!". Apraz-me concluir com uma exclamação que Silvano de Monte Athos gostava de repetir: "Rejubila, ó minha alma. É sempre Páscoa, porque Cristo ressuscitado é a nossa ressurreição!". Que a Virgem Maria nos ajude a cultivar em nós, e à nossa volta, este clima de alegria pascal, para sermos testemunhas do Amor divino em cada situação da nossa existência. Mais uma vez, Boa Páscoa a todos vós!

Saudação

Amados peregrinos de língua portuguesa, alegrai-vos e exultai comigo, porque o Senhor Jesus ressuscitou. A ressurreição de Cristo é a nossa esperança! Este pregão pascal ressoa por toda a terra: ressoa no coração dos brasileiros e dos portugueses de Lamego e da diocese de Coimbra! Com alegria, saúdo a comunidade do seu Seminário Maior que, há 250 anos, facilita esta passagem do testemunho da ressurreição, com a formação de novos arautos e servidores. Sobre todos, desça a minha Bênção. Ad multos annos!



Praça de São Pedro

22 de Abril de 2009: Santo Ambrósio Autperto

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Queridos irmãos e irmãs!

A Igreja vive nas pessoas e quem deseja conhecer a Igreja, compreender o seu mistério, deve considerar as pessoas que viveram e vivem a sua mensagem, o seu mistério. Por isso há muito tempo falo nas catequeses da quarta-feira de pessoas das quais podemos aprender o que é a Igreja. Começámos com os Apóstolos e com os Padres da Igreja e, pouco a pouco, chegamos ao século VIII, o período de Carlos Magno. Hoje gostaria de falar de Ambrósio Autperto, um autor bastante desconhecido: as suas obras de facto foram atribuídas em grande parte a outras personagens mais conhecidas, como Santo Ambrósio de Milão e Santo Ildefonso, sem falar das que os monges de Montecassino consideraram dever atribuir a um seu abade anónimo, que viveu quase um século mais tarde. Prescindindo de breves menções autobiográficas inseridas no seu grande comentário ao Apocalipse, temos poucas notícias certas sobre a sua vida. A leitura atenta das obras das quais a pouco e pouco a crítica lhe reconhece a paternidade permite contudo descobrir no seu ensinamento um tesouro teológico e espiritual precioso também para o nosso tempo.

Nasceu na Provença, numa família distinta, Ambrósio Autperto — segundo o seu tardio biógrafo Giovanni — fez parte da corte do rei dos francos Pepino o Breve onde, além do encargo oficial, desempenhou de certa forma também o de preceptor do futuro imperador Carlos Magno. Provavelmente no séquito do Papa Estêvão II, que em 753-54 fora à corte franca, Autperto veio à Itália e teve a ocasião de visitar a famosa abadia beneditina de São Vicente, na nascente do Volturno, no ducado de Benevento. Fundada no início daquele século pelos três irmãos de Benevento Paldone, Tatone e Tasone, a abadia era conhecida como oásis de cultura clássica e cristã. Pouco depois da sua visita, Ambrósio Autperto decidiu abraçar a vida religiosa e entrou naquele mosteiro, onde pôde formar-se de modo adequado, sobretudo no campo da teologia e da espiritualidade, segundo a tradição dos Padres. Por volta de 761 foi ordenado sacerdote e a 4 de Outubro de 777 foi eleito abade com o apoio dos monges francos, enquanto que lhe eram contrários os longobardos, favoráveis ao longobardo Potone. A tensão de inspiração nacionalista não se apaziguou nos meses sucessivos, com a consequência que Autperto no ano seguinte, 778, pensou em demitir-se e retirar-se com alguns monges francos em Espoleto, onde podia contar com a protecção de Carlos Magno. Mas mesmo assim o dissídio no mosteiro de S. Vicente não foi aplainado, e alguns anos mais tarde, quando morreu o abade que sucedeu a Autperto, foi eleito precisamente Potone (a. 782), o contraste voltou a alastrar e chegou-se à denúncia do novo abade junto de Carlos Magno. Ele remeteu os contendentes para o tribunal do Pontífice, o qual os convocou em Roma. Chamou também como testemunha Autperto o qual, durante a viagem faleceu improvisamente, talvez assassinado, a 3o de Janeiro de 784.

Ambrósio Autperto foi monge e abade numa época marcada por fortes tensões políticas, que se repercutiam também na vida dentro dos mosteiros. Disto temos ecos frequentes e preocupados nos seus escritos. Por exemplo, ele denuncia a contradição entre a maravilhosa aparência externa dos mosteiros e a tibiez dos monges: certamente esta crítica atingia também a própria abadia. Para ela escreveu a Vita dos três fundadores com a clara intenção de oferecer à nova geração de monges um ponto de referência com o qual se confrontar. Uma finalidade semelhante perseguia também o pequeno tratado ascético Conflictus vitiorum et virtutum ("Conflito entre os vícios e as virtudes"), que teve grande sucesso na Idade Média e foi publicado em 1473 em Utrecht com o nome de Gregório Magno e um ano mais tarde em Estrasburgo com o de Santo Agostinho. Nele Ambrósio Autperto pretende ensinar os monges de modo concreto como enfrentar o combate espiritual dia após dia. De modo significativo ele aplica a afirmação de
2Tm 3,12: "Todos os que aspiram a viver piedosamente em Jesus Cristo hão-de sofrer perseguições" já não à perseguição externa, mas o assalto das forças do mal que o cristão deve enfrentar dentro de si. São apresentadas numa espécie de contenda 24 pares de combatentes: cada vício procura cativar a alma com raciocínios subtis, enquanto a respectiva virtude contesta tais insinuações servindo-se de preferência das palavras da Escritura.

Neste tratado sobre conflito entre vícios e virtudes, Autperto contrapõe à cupiditas (a avidez) o contemptus mundi (o desprezo do mundo), que se torna uma figura importante na espiritualidade dos monges. Este desprezo do mundo não é um desprezo da criação, da beleza e da bondade da criação e do Criador, mas um desprezo da falsa visão do mundo que nos foi apresentada e insinuada precisamente pela avidez. Ela incute em nós que "ter" seria o máximo valor do nosso ser, do nosso viver no mundo aparentando ser importantes. Deste modo falsifica a criação do mundo e destrói o mundo. Autperto observa depois que a avidez de lucro dos ricos e dos poderosos na sociedade do seu tempo existe também no interior das almas dos monges e portanto escreve um tratado intitulado De cupiditate, no qual, com o apóstolo Paulo, denuncia desde o início a avidez como raiz de todos os males. Escreve: "Do solo da terra diversos espinhos agudos surgem de várias raízes; no coração do homem, ao contrário, as picadas de todos os vícios provêm de uma só raiz, a avidez" (De cupiditate 1: CCCM 27b, p. 963). Realce, este, que à luz da actual crise económica mundial, revela toda a sua actualidade. Vemos precisamente que esta crise nasceu desta raiz da avidez. Ambrósio imagina a objecção que os ricos e os poderosos poderiam aduzir dizendo: mas nós não somos monges, para nós certas exigências ascéticas não são válidas. E ele responde: "É verdade o que dizeis, mas também para vós, na maneira da vossa categoria e segundo a medida das vossas forças, é válido o caminho rípido e estreito, porque o Senhor propôs só duas portas e dois caminhos (ou seja, a porta estreita e a larga, o caminho rípido e o cómodo); não indicou uma terceira porta e um terceiro caminho" (L.C., p. 978). Ele vê claramente que os modos de viver são muito diversos. Mas também para o homem neste mundo, inclusive para o rico, é válido o dever de combater contra a avidez, contra a vontade de possuir, sobressair, contra o conceito falso de liberdade como faculdade de dispor de tudo segundo o próprio arbítrio. Também o rico deve encontrar o caminho autêntico da verdade, do amor e assim da via recta. Portanto, Autperto, como prudente pastor de almas, sabe depois dizer, no final da sua pregação penitencial, uma palavra de conforto: "Não falei contra os ávidos, mas contra a avidez, não contra a natureza, mas contra o vício" (L.C., p. 981).

A obra mais importante de Ambrósio Autperto é certamente o seu comentário ao Apocalipse em dez livros: ele constitui, depois de séculos, o primeiro comentário amplo no mundo latino sobre o último livro da Sagrada Escritura. Esta obra era fruto de um trabalho plurianual, realizado em duas etapas entre 758 e 767, portanto antes da sua eleição para abade. No preâmbulo, ele indica com exactidão as suas fontes, o que não era absolutamente normal na Idade Média. Através da sua fonte talvez mais significativa, o comentário do Bispo Primásio Adrumetano, redigido a meados do séc. vi, Autperto entra em contacto com a interpretação que tinha deixado do Apocalipse o africano Ticonio, que viveu uma geração antes de Santo Agostinho. Não era católico; pertencia à Igreja cismática donatista; era contudo um grande teólogo. Neste seu comentário ele vê reflectido sobretudo no Apocalipse o mistério da Igreja. Ticonio tinha chegado à convicção de que a Igreja fosse um corpo bipartido: uma parte, diz ele, pertence a Cristo, mas há outra parte da Igreja que pertence ao diabo. Agostinho leu este comentário e dele tirou vantagem, mas ressaltou fortemente que a Igreja está nas mãos de Cristo, permanece o seu Corpo, formando com Ele um só elemento, partícipe da mediação da graça. Por isso realça que a Igreja nunca pode ser separada de Jesus Cristo. Na sua leitura do Apocalipse, semelhante à de Ticonio, Autperto não se interessa tanto pela segunda vinda de Cristo no fim dos tempos, mas antes pelas consequências que derivam para a Igreja do presente desde a sua primeira vinda, a encarnação no seio da Virgem Maria. E diz-nos uma palavra muito importante: na realidade Cristo "deve nascer, morrer e ressuscitar quotidianamente em nós, seu Corpo" (In Apoc. III: CCCM 27, p. 205). No contexto da dimensão mística que investe cada cristão, ele olha para Maria como modelo da Igreja, modelo para todos nós, porque também em nós e entre nós deve nascer Cristo. Sobre a multidão de Padres que viam na "mulher revestida de sol" de Ap 12, 1 a imagem da Igreja, Autperto argumenta: "A bem-aventurada e piedosa Virgem... quotidianamente dá à luz novos povos, dos quais se forma o Corpo geral do Mediador. Portanto não surpreende se aquela, em cujo seio abençoado a própria Igreja mereceu ser unida à sua cabeça, representa o tipo da Igreja". Neste sentido Autperto vê um papel decisivo da Virgem Maria na obra da Redenção (cf. também as suas homilias In purificatione S. Mariae e In adsumptione S. Mariae). A sua grande veneração e o seu profundo amor pela Mãe de Deus inspiram-lhe por vezes formulações que de certa forma antecipam as de São Bernardo e da mística franciscana, sem contudo se desviar para formas discutíveis de sentimentalismo, porque ele nunca separa Maria do mistério da Igreja. Portanto, com razão Ambrósio Autperto é considerado o maior mariólogo no Ocidente. À piedade que, na sua opinião, deve libertar a alma do apego aos prazeres terrenos e passageiros, ele considera que se deve unir o estudo profundo das ciências sagradas, sobretudo a meditação das Sagradas Escrituras, que qualifica "céu profundo, abismo insondável" (In Apoc. IX). Na bonita oração com a qual conclui o seu comentário ao Apocalipse ressaltando a prioridade que em cada busca teológica da verdade compete ao amor, ele dirige-se a Deus com estas palavras: "Quando por nós és perscrutado intelectualmente, não és descoberto como és realmente; quando és amado, és alcançado".

Podemos hoje ver em Ambrósio Autperto uma personalidade que viveu numa época de forte instrumentalização política da Igreja, na qual nacionalismos e tribalismos tinham desfigurado o rosto da Igreja. Mas ele, entre tantas dificuldades que também nós conhecemos, soube descobrir o verdadeiro rosto da Igreja em Maria, nos Santos. E soube assim compreender o que significa ser católico, ser cristão, viver da Palavra de Deus, entrar neste abismo e viver assim o mistério da Mãe de Deus: dar de novo vida à Palavra de Deus, oferecer à Palavra de Deus a própria carne no tempo actual. E com todo o seu conhecimento teológico, a profundidade da sua ciência, Autperto soube compreender que com a simples busca teológica Deus não pode ser conhecido realmente como é. Só o amor o alcança. Ouçamos esta mensagem e rezemos ao Senhor para que nos ajude a viver o mistério da Igreja hoje, neste nosso tempo.

Saudações

Com amizade, saúdo o grupo brasileiro do Colégio São Mauro e demais peregrinos de língua portuguesa aqui presentes, com votos de que esta romagem fortaleça a vossa adesão a Jesus Cristo e o desejo de O fazer amar na própria casa e na sociedade. O Pai do Céu derrame os seus dons sobre vós e vossas famílias, que de coração abençoo.

Por fim, desejo dirigir uma palavra especial aos jovens do Centro Internacional Juvenil de São Lourenço, que recordam hoje o 25º aniversário da entrega da cruz do Ano Santo aos jovens do mundo. De facto, era 22 de Abril de 1984, quando no final do Ano Santo da Redenção, o amado João Paulo II confiou aos jovens do mundo a grande cruz de madeira que, por seu desejo, esteve no altar-mor da Basílica de São Pedro durante aquele especial Ano Jubilar. Desde então, a cruz foi acolhida no Centro Internacional Juvenil de São Lourenço, e dali começou a viajar pelos continentes, abrindo os corações de tantos jovens ao amor redentor de Cristo. Esta sua peregrinação ainda prossegue, sobretudo na preparação das Jornadas Mundiais da Juventude, a ponto de ser já conhecida como "Cruz das JMJ". Caros amigos, confio-vos novamente esta cruz! Continuai a levá-la a cada canto da terra, para que também as próximas gerações descubram a Misericórdia de Deus e renovem nos seus corações a esperança em Cristo crucificado e ressuscitado!




Praça de São Pedro

29 de Abril de 2009: Patriarca Germano de Constantinopla


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