Audiências 2005-2013 27059

27 de Maio de 2009: São Teodoro Studita

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Queridos irmãos e irmãs

O Santo que hoje encontramos, São Teodoro Studita leva-nos à plena Idade Média bizantina, a um período bastante turbulento sob os pontos de vista religioso e político. São Teodoro nasceu em 759 numa família nobre e piedosa: a mãe, Teoctista, e um tio, Platão, abade do mosteiro de Sakkudion na Bitínia, são venerados como santos. Foi precisamente o tio que o orientou para a vida monástica, que ele abraçou com a idade de 22 anos. Foi ordenado sacerdote pelo Patriarca Tarásio, mas em seguida interrompeu a comunhão com ele pela debilidade demonstrada no caso do matrimónio adulterino do imperador Constantino VI. A consequência foi o exílio de Teodoro para Tessalonica em 796. A reconciliação com a autoridade imperial teve lugar no ano seguinte, sob a imperatriz Irene, cuja benevolência levou Teodoro e Platão a transferir-se para o mosteiro urbano de Studios, juntamente com uma boa parte da comunidade dos monges de Sakkudion, para evitar as incursões dos sarracenos. Deste modo teve início a importante "reforma studita".

Todavia, a vicissitude pessoal de Teodoro continuou a ser movimentada. Com a sua energia habitual, tornou-se o chefe da resistência contra o iconoclasmo de Leão V, o Arménio, que se opôs novamente à existência de imagens e ícones na Igreja. A procissão de ícones organizada pelos montes de Studios desencadeou a reacção da polícia. De 815 a 821, Teodoro foi flagelado, aprisionado e exilado em diversos lugares da Ásia. No final conseguiu voltar para Constantinopla, mas não para o seu mosteiro. Então, estabeleceu-se com os seus monges na outra margem do Bósforo. Parece que veio a falecer em Prinkipo, a 11 de Novembro de 826, dia em que o calendário bizantino o recorda. Teodoro distinguiu-se na história da Igreja como um dos grandes reformadores da vida monástica e também como defensor das imagens sacras, durante a segunda fase do iconoclasmo, ao lado do Patriarca de Constantinopla, São Nicéforo. Teodoro compreendera que a questão da veneração dos ícones interpelava a própria verdade da Encarnação. Nos seus três livros Antirretikoi (Confutações), Teodoro faz uma comparação entre as relações eternas intratrinitárias, onde a existência de cada uma das Pessoas divinas não destrói a unidade, e arelações entre as duas naturezas em Cristo, que não comprometem nele a única Pessoa do Logos. E argumenta: abolir a veneração do ícone de Cristo significaria eliminar a sua própria obra redentora, dado que, assumindo a natureza humana, a Palavra eterna invisível, apareceu na carne humana visível e deste modo santificou todo o cosmos visível. Santificados pela bênção litúrgica e pelas orações dos fiéis, os ícones unem-nos à Pessoa de Cristo, aos seus santos e, através deles, ao Pai celeste e dão testemunho do ingresso da realidade divina no nosso cosmos visível e material.

Teodoro e os seus monges, testemunhas de coragem no tempo das perseguições iconoclastas, estão inseparavelmente ligados à reforma da vida cenobítica no mundo bizantino. A sua importância já se impõe por uma circunstância externa: o número. Enquanto nos mosteiros dessa época não havia mais que trinta ou quarenta monges, da Vida de Teodoro sabemos da existência global de mais de mil monges studitas. É o próprio Teodoro que nos informa sobre a presença no seu mosteiro de cerca de trezentos monges; portanto, vemos o entusiasmo da fé que nasceu no contexto deste homem realmente informado e formado pela própria fé. No entanto, mais do que o número, revelou-se influente o novo espírito que o fundador imprimiu à vida cenobítica. Nos seus escritos, ele insiste sobre a urgência de um voltar consciente ao ensinamento dos Padres, principalmente a São Basílio, primeiro legislador da vida monástica, e a São Doroteu de Gaza, famoso padre espiritual do deserto da Palestina. A contribuição característica de Teodoro consiste na insistência sobre a necessidade da ordem e da submissão por parte dos monges. Durante as perseguições, eles dispersaram-se habituando-se a viver cada qual segundo o próprio juízo. Agora, que fora possível reconstituir a vida comum, era necessário comprometer-se profundamente para voltar a fazer do mosteiro uma verdadeira comunidade orgânica, uma autêntica família ou, como ele mesmo diz, um verdadeiro "Corpo de Cristo". É em tal comunidade que se verifica de maneira concreta a realidade da Igreja no seu conjunto.

Outra convicção fundamental de Teodoro é a seguinte: em relação aos seculares, os monges assumem o compromisso de observar os deveres cristãos com maior rigor e intensidade. Por isso, pronunciam uma profissão especial, que pertence às hagiasmata (consagrações) e é quase um "novo baptismo", cujo símbolo é a vestidura. Contudo, a característica dos monges em relação aos seculares é o compromisso da pobreza, da castidade e da obediência. Dirigindo-se aos monges, Teodoro fala da pobreza de modo concreto, às vezes quase pitoresto, mas no seguimento de Cristo ela é desde o início um elemento essencial do monaquismo e indica também um caminho para todos nós. A renúncia à propriedade particular, esta liberdade das coisas materiais, assim como a sobriedade e a simplicidade, valem de forma radical somente para os monges, mas o espírito de tal renúncia é igual para todos. Com efeito, não podemos depender da propriedade material mas, ao contrário, temos que aprender a renúncia, a simplicidade, a austeridade e a sobriedade. Somente assim pode crescer uma sociedade solidária e pode ser superado o problema da pobreza deste mundo. Portanto, neste sentido o sinal radical dos monges pobres indica substancialmente também a vereda para todos nós. Além disso, quando expõe as tentações contra a castidade, Teodoro não esconde as próprias experiências e demonstra o caminho de luta interior para encontrar o domínio de si mesmo e assim o respeito pelo próprio corpo e do próximo, como templo de Deus.

Mas para ele as renúncias principais são exigidas pela obediência, porque cada um dos monges tem o seu modo de viver e a inserção na grande comunidade de trezentos monges implica realmente um novo estilo de vida, que ele qualifica como o "martírio da submissão". Também aqui os monges apresentam apenas um exemplo de quanto é necessário para nós mesmos, porque depois do pecado original a tendência do homem é fazer a própria vontade, o princípio primário é a vida do mundo e tudo o resto deve ser submetido à própria vontade. Mas deste modo, se cada um seguir somente a si mesmo, o tecido social não poderá funcionar. Só aprendendo a inserir-se na liberdade comum, a compartilhar e a submeter-se a esta, aprendendo a legalidade, ou seja, a submissão e a obediência às regras do bem comum e da vida conjunta poderei salvar a sociedade e eu mesmo da soberba de ser o centro do mundo. Assim, com uma introspecção requintada, São Teodoro ajuda os seus monges e enfim também a nós, a compreender a verdadeira vida, a resistir à tentação de pôr a própria vontade como máxima regra de vida, e a conservar a verdadeira identidade pessoal – que é sempre uma identidade em conjunto com os outros – e a paz do coração.

Para Teodoro Studita, uma virtude tão importante quanto a obediência e a humildade é a philergia, ou seja, o amor ao trabalho, em que ele vê um critério para provar a qualidade da devoção pessoal: quem é fervoroso nos compromissos materiais, quem trabalha com assiduidade argumenta ele é-o também nos compromissos espirituais. Por isso não admite que, sob o pretexto da oração e da contemplação, o monge se exima do trabalho, também do trabalho manual, que na realidade é, na sua opinião e segundo toda a tradição monástica, o modo para encontrar Deus. Teodoro não tem medo de falar do trabalho como do "sacrifício do monge", da sua "liturgia" e até de um tipo de Missa através da qual a vida monástica se torna uma vida angélica. E precisamente assim o mundo do trabalho deve ser humanizado e, mediante o trabalho, o homem torna-se mais ele mesmo, mais próximo de Deus. Uma consequência desta visão singular merece ser recordada: exactamente porque é fruto de uma forma de "liturgia", as riquezas alcançadas a partir do trabalho comum não devem servir para a comodidade dos monges, mas ser destinadas à ajuda aos pobres. Aqui todos nós podemos entrever a necessidade de que o fruto do trabalho seja um bem para todos. Obviamente, o trabalho dos "studitas" não era apenas manual: eles tiveram uma grande importância no desenvolvimento religioso-cultural da civilização bizantina como calígrafos, pintores, poetas, educadores dos jovens, professores escolares e bibliotecários.

Mesmo exercendo uma actividade externa muito vasta, Teodoro não se deixava distrair por aquilo que considerava estritamente atinente à sua função de superior: ser o padre espiritual dos seus monges. Ele sabia como fora decisiva a influência que tiveram na sua vida, tanto a boa mãe como o santo tio Platão, por ele qualificado com o título significativo de "pai". Por isso, exercia sobre os monges a direcção espiritual. Cada dia, menciona o biógrafo, depois da oração vespertina ele punha-se diante da iconostase para ouvir as confissões de todos. Aconselhava também espiritualmente muitas pessoas fora do próprio mosteiro. O Testamento espiritual e as Cartas põem em evidência esta sua índole aberta e carinhosa, demonstrando como da sua paternidade nasceram autênticas amizades espirituais no âmbito monástico e mesmo fora.

A Regra, conhecida com o nome de Hypotyposis, codificada pouco tempo depois da morte de Teodoro, foi adoptada com algumas modificações no Monte Athos, quando em 962 Santo Atanásio Athonita fundou aí a Grande Lavra, na Rus' de Kiev quando, no início do segundo milénio, São Teodósio a introduziu na Lavra das Grutas. Compreendida no seu significado genuíno, a Regra revela-se singularmente actual. Hoje existem numerosas correntes que ameaçam a unidade da fé coral e impelem para um tipo de perigoso individualismo e soberba espirituais. É necessário comprometer-se em defender e fazer crescer a perfeita unidade do Corpo de Cristo, na qual podem compor-se harmoniosamente a paz da ordem e os sinceros relacionamentos pessoais no Espírito.

Talvez seja útil retomar, no final, alguns dos elementos principais da doutrina espiritual de Teodoro. Amor ao Senhor encarnado e à sua visibilidade na Liturgia e nos ícones. Fidelidade ao baptismo e compromisso a viver na comunhão do Corpo de Cristo, entendida inclusive como comunhão dos cristãos entre si. Espírito de pobreza, de sobriedade, de renúncia, castidade, domínio de si mesmo, humildade e obediência contra o primado da própria vontade, que destrói o tecido social e a paz das almas. Amor pelo trabalho material e espiritual. Amizade espiritual nascida da purificação da própria consciência, da própria alma e da própria vida. Procuremos seguir estes ensinamentos, que realmente nos indicam o caminho da verdadeira vida.

Saudações

Uma saudação amiga e encorajadora para todos os peregrinos de língua portuguesa! Este nosso encontro tem lugar na novena do Pentecostes, que quer recriar sentimentos de fraterna benevolência e humilde adoração nos corações e comunidades, como argila nas mãos de Deus à espera do sopro vivificador do Espírito Santo. Venha Ele sobre os grupos brasileiros das Dioceses de Bauru, São José dos Campos e São Paulo, e também sobre os fiéis cristãos de Paderne e de Lisboa. Sobre todos os presentes e seus familiares desça a minha Bênção.



Praça de São Pedro

3 de Junho de 2009: Rabano Mauro

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Caros irmãos e irmãs

Hoje gostaria de falar de uma personagem do Ocidente latino verdadeiramente extraordinário: o monge Rabano Mauro. Juntamente com homens como Isidoro de Sevilha, Beda o Venerável e Ambrósio Autperto, de quem já falei em catequeses precedentes, ao longo dos séculos da chamada Alta Idade Média ele soube manter o contacto com as grandes culturas dos antigos sábios e dos Padres cristãos. Recordado frequentemente como "praeceptor Germaniae", Rabano Mauro teve uma fecundidade extraordinária. Com a sua capacidade de trabalho absolutamente excepcional, talvez tenha contribuído mais do que todos para manter viva a cultura teológica, exegética e espiritual, da qual teriam haurido os séculos sucessivos. Nele inspiram-se quer grandes personagens pertencentes ao mundo dos monges, como Pier Damiani, Pedro o Venerável e Bernardo de Claraval, quer também um número cada vez mais consistente de "clérigos" do clero secular, que durante os séculos XII-XIII deram vida a um dos florescimentos mais bonitos e fecundos do pensamento humano.

Tendo nascido em Mainz por volta de 760, Rabano entrara no mosteiro extremamente jovem: foi-lhe acrescentado o nome de Mauro precisamente com referência ao jovem Mauro que, segundo o Livro ii dos Diálogos de São Gregório Magno, fora confiado quando era ainda criança pelos seus pais, nobres romanos, ao abade Bento de Núrsia. Esta inserção precoce de Rabano como "puer oblatus" no mundo monástico beneditino, e os frutos que obteve para o seu crescimento humano, cultural e espiritual, abririam sozinhos uma espiral interessantíssima não só sobre a vida dos monges e da Igreja, mas também sobre toda a sociedade da sua época, habitualmente qualificada como "carolíngia". Deles, ou talvez de si mesmo, Rabano Mauro escreve: "Há alguns que têm a sorte de ser introduzidos no conhecimento das Escrituras desde a tenra infância" ("a cunabulis suis") e foram tão bem nutridos com o alimento oferecido pela Santa Igreja que, com a educação apropriada, puderam ser promovidos às ordens sagradas mais altas" (pl 107, ).

A cultura extraordinária, pela qual Rabano Mauro se distinguia, chamou depressa a atenção dos grandes do seu tempo. Tornou-se conselheiro de príncipes. Empenhou-se para garantir a unidade do império e, a nível cultural mais amplo, nunca deixou de oferecer a quem o interrogava uma resposta ponderada, que tirava preferivelmente da Bíblia e dos textos dos santos Padres. Eleito primeiro Abade do famoso mosteiro de Fulda e depois Arcebispo da cidade natal, Mainz, não cessou por isso de continuar os seus estudos, demonstrando com o exemplo da sua vida que se pode estar simultaneamente à disposição dos outros, sem se privar por isso de um tempo côngruo para a reflexão, o estudo e a meditação. Assim Rabano Mauro foi exegeta, filósofo, poeta, pastor e homem de Deus. As dioceses de Fulda, Mainz, Limbourg e Wroclaw veneram-no como Santo ou Beato. As suas obras completam seis volumes da Patrologia Latina do Migne. É a ele que se deve, provavelmente, um dos hinos mais bonitos e conhecidos da Igreja latina, o "Veni Creator Spiritus", síntese extraordinária de pneumatologia cristã. O primeiro compromisso teológico de Rabano manifestou-se, com efeito, sob a forma de poesia e teve como objecto o mistério da Santa Cruz, numa obra intitulada: "De laudibus Sanctae Crucis", concebida de maneira a propor não somente conteúdos de conceito, mas também estímulos mais requintadamente artísticos, utilizando tanto a forma poética como a pictórica no interior do mesmo códice manuscrito. Propondo iconograficamente nas entrelinhas do seu escrito a imagem de Cristo crucificado, ele por exemplo escreve: "Eis a imagem do Salvador que, com a posição dos seus membros, torna sagrada para nós a salubérrima, dulcíssima e amadíssima forma da Cruz, a fim de que, acreditando no seu nome e obedecendo aos seus mandamentos, possamos obter a vida eterna graças à sua Paixão. Por isso, cada vez que elevarmos o olhar para a Cruz, recordemo-nos daquele que padeceu por nós para nos tirar do poder das trevas, aceitando a morte para nos tornar herdeiros da vida eterna" (Lib. 1, Fig. 1, pl 107 ).

Este método de combinar todas as artes, o intelecto, o coração e os sentidos, que vinha do Oriente, teria tido um desenvolvimento enorme no Ocidente, atingindo níveis inigualáveis nos códices miniaturados da Bíblia e em outras obras de fé e de arte, que floresceram na Europa até à invenção da imprensa e além dela também. De qualquer modo, isto demonstra que Rabano Mauro tem uma consciência extraordinária da necessidade de empenhar, na experiência da fé, não apenas a mente e o coração, mas também os sentidos mediante aqueles outros aspectos do gosto estético e da sensibilidade humana que levam o homem a fruir da verdade com a totalidade do seu ser, "espírito, alma e corpo". Isto é importante: a fé não é só pensamento, mas refere-se a todo o nosso ser. Dado que Deus se fez homem em carne e osso, entrando no mundo sensível, nós em todas as dimensões do nosso ser temos que procurar e encontrar Deus. Assim a realidade de Deus, mediante a fé, penetra no nosso ser transformando-o. Por isso Rabano Mauro concentrou a sua atenção sobretudo na Liturgia, como síntese de todas as dimensões da nossa percepção da realidade. Esta intuição de Rabano Mauro torna-o extraordinariamente actual. Dele permaneceram inclusive os famosos "Carmina", propostos para ser utilizados principalmente nas celebrações litúrgicas. Com efeito, dado que Rabano era acima de tudo um monge, era totalmente evidente o seu interesse pela celebração litúrgica. Porém, ele não se dedicava à arte poética como fim em si mesma, mas subordinava a arte e qualquer outro tipo de saber ao aprofundamento da Palavra de Deus. Por isso, com compromisso e rigor extremos, procurou introduzir os seus contemporâneos, mas em primeiro lugar os ministros (bispos, presbíteros e diáconos), na compreensão do significado profundamente teológico e espiritual de todos os elementos da celebração litúrgica.

Assim, tentou compreender e propor aos outros os significados teológicos escondidos nos ritos, inspirando-se na Bíblia e na tradição dos Padres. Não hesitava em declarar, por honestidade mas também para dar maior importância às suas explicações, as fontes patrísticas às quais devia o seu saber. Todavia, servia-se das mesmas com liberdade e discernimento atento, dando continuidade ao desenvolvimento do pensamento patrístico. Por exemplo, no final da "Epistola prima", dirigida a um "corepiscopo" da diocese de Mainz, depois de ter respondido aos pedidos de esclarecimento a respeito do comportamento que se devia ter no exercício da responsabilidade pastoral, prossegue: "Escrevemos-te tudo isto do modo como o deduzimos das Sagradas Escrituras e dos cânones dos Padres. Tu porém, santíssimo homem, toma as tuas decisões como melhor te parecer, caso por caso, procurando moderar a tua avaliação de forma a garantir em tudo a discrição, porque esta é a mãe de todas as virtudes" (Epistulae, I, PL 112, ). Assim, vê-se a continuidade da fé cristã, que tem os seus primórdios na Palavra de Deus; porém, ela é sempre viva, desenvolve-se e exprime-se de modos novos, sempre em coerência com todaa construção, com todo o edifício da fé.

Dado que uma parte integrante da celebração litúrgica é a Palavra de Deus, a ela se dedicou Rabano Mauro com o máximo empenhamento durante toda a sua existência. Ofereceu explicações exegéticas apropriadas praticamente para todos os livros bíblicos do Antigo e do Novo Testamento com uma intenção claramente pastoral, que justificava com palavras como estas: "Escrevi estas coisas... resumindo explicações e propostas de muitos outros para oferecer um serviço ao leitor pobre que não pode ter à disposição muitos livros, mas também para ajudar aqueles que em muitas coisas não conseguem entrar em profundidade na compreensão dos significados descobertos pelos Padres" (Commentariorum in Matthaeum praefatio, PL 107, ). Com efeito, quando comentava os textos bíblicos, hauria a mãos-cheias dos Padres antigos, com especial predilecção por Jerónimo, Ambrósio, Agostinho e Gregório Magno.

Depois, a acentuada sensibilidade pastoral levou-o a enfrentar sobretudo um dos problemas mais sentidos pelos fiéis e pelos ministros sagrados do seu tempo: o da Penitência. Efectivamente, foi compilador de "Penintenciários" — assim eram chamados nos quais, segundo a sensibilidade dessa época, eram enumerados pecados e penas correspondentes, utilizando na medida do possível motivações tiradas da Bíblia, das decisões dos Concílios e das Decretais dos Papas. De tais textos serviram-se inclusive os "Carolíngios" na sua tentativa de reforma da Igreja e da sociedade. A esta mesma intenção pastoral correspondiam obras como "De disciplina ecclesiastica" e "De institutione clericorum", nos quais, inspirando-se principalmente em Agostinho, Rabano explicava aos simples e ao clero da sua diocese os rudimentos fundamentais da fé cristã: tratava-se de uma espécie de pequenos catecismos.

Gostaria de concluir a apresentação deste grande "homem de Igreja", citando algumas das suas palavras em que se reflectem a sua convicção de base: "Quem é negligente na contemplação ("qui vacare Deo negligit"), priva-se sozinho da visão da luz de Deus; além disso, quem se deixa surpreender de modo indiscreto pelas preocupações e permite que os seus pensamentos sejam alterados pelo tumulto das coisas do mundo, condena-se à absoluta impossibilidade de penetrar os segredos do Deus invisível" (Lib. I, PL 112,
Col 1263). Penso que Rabano Mauro dirige estas palavras também a nós, hoje: nas horas de trabalho, com os seus ritmos frenéticos, e nos períodos de férias, temos que reservar momentos para Deus, abrir-lhe a nossa vida, dirigindo-lhe um pensamento, uma reflexão, uma breve oração e principalmente não podemos esquecer que o domingo é o dia do Senhor, o dia da liturgia, para vislumbrar na beleza das nossas igrejas, da música sacra e da Palavra de Deus, a própria beleza de Deus, deixando-O entrar no nosso ser. Somente assim a nossa vida se tornará grande, verdadeira.

Saudação

Com amizade saúdo os diversos grupos do Brasil e demais peregrinos de língua portuguesa, com votos de que alcanceis aquilo que aqui vos trouxe de tão longe: parar junto das memórias dos Apóstolos e dos Mártires, meditando sobre o fim glorioso do seu combate por Cristo e receber a investidura do mesmo Espírito para idênticas batalhas em prol do triunfo do Evangelho no seio da família e da sociedade. Sobre cada um de vós e seus familiares, desça a minha Bênção.



Praça de São Pedro

10 de Junho de 2009: João Escoto Erígena

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Queridos irmãos e irmãs!

Hoje gostaria de falar de um notável pensador do Ocidente cristão: João Escoto Erígena, cujas origens porém são pouco claras. Provinha certamente da Irlanda, onde nasceu no início de 800, mas não sabemos quando deixou a sua Ilha para atravessar a Mancha e assim começar a fazer parte plenamente daquele mundo cultural que estava a renascerem volta dos Carolíngios, e em particular de Carlos, o Calvo, na França do século IX. Assim como não se conhece a data certa do seu nascimento, também ignoramos o ano da sua morte que, segundo os estudiosos, deveria contudo colocar-se por volta do ano 870.

João Escoto Erígena possuía uma cultura patrística, quer grega quer latina, de primeira mão: de facto, conhecia directamente os escritos dos Padres latinos e gregos. Conhecia bem, entre outras, as obras de Agostinho, de Ambrósio, de Gregório Magno, grandes Padres do Ocidente cristão, mas também conhecia bem o pensamento de Orígenes, de Gregório de Nissa, de João Crisóstomo e de outros Padres cristãos do Oriente não menos grandes. Era um homem excepcional, naquele tempo que dominava também a língua grega. Demonstrou uma atenção muito particular por São Máximo, o Confessor e, sobretudo, por Dionísio, o Areopagita. Sob este pseudónimo esconde-se um escritor eclesiástico do século v, da Síria, mas toda a Idade Média e também João Escoto Erígena, estava convencida de que este autor fosse idêntico a um discípulo directo de São Paulo, do qual se fala nos Actos dos Apóstolos (
Ac 17,34). Escoto Erígena, convencido desta apostolicidade dos escritos de Dionísio, qualificava-o "autor divino" por excelência; os seus escritos foram por isso uma fonte eminente do seu pensamento. João Escoto traduziu as suas obras em latim. Os grandes teólogos medievais, como São Boaventura, conheceram as obras de Dionísio através desta tradução. Dedicou-se toda a vida a aprofundar e a desenvolver o seu pensamento, haurindo destes escritos, a ponto que ainda hoje às vezes pode ser difícil distinguir onde estamos diante do pensamento de Escoto Erígena e onde, ao contrário, de mais não faz do que repropor o pensamento do Pseudodionísio.

Na realidade, o trabalho teológico de João Escoto não teve muita sorte. Não só o final da era carolíngia fez esquecer as suas obras; também uma censura por parte da Autoridade eclesiástica lançou uma sombra sobre a sua figura. Na realidade, João Escoto representa um platonismo radical, que por vezes parece aproximar-se de uma visão panteísta, mesmo se as suas intenções pessoais subjectivas foram sempre ortodoxas. De João Escoto Erígena chegaram até nós algumas obras, entre as quais merecem ser recordadas, em particular, o tratado "Sobre a divisão da natureza" e as "Exposições sobre a hierarquia celeste de São Dionísio". Nestas obras ele desenvolve estimulantes reflexões teológicas e espirituais, que poderiam sugerir interessantes aprofundamentos também aos teólogos contemporâneos. Refiro-me, por exemplo, a quanto escreve sobre o dever de exercer um discernimento apropriado sobre o que é apresentado como auctoritas vera, ou sobre o compromisso de continuar a procurar a verdade enquanto não se alcançar uma certa experiência na adoração silenciosa de Deus.

O nosso autor diz: "Salus nostra ex fide inchoat: a nossa salvação começa com a fé". Isto é, não podemos falar de Deus partindo das nossas invenções, mas de quanto Deus diz de si mesmo nas Sagradas Escrituras. Contudo, dado que Deus diz unicamente a verdade, Escoto Erígena está convencido de que a autoridade e a razão nunca podem estar em contraste uma com a outra; está convencido de que a verdadeira religião e a verdadeira filosofia coincidem. Nesta perspectiva escreve: "Qualquer tipo de autoridade que não for confirmada por uma verdadeira razão deveria ser considerada frágil... De facto, não é verdadeira autoridade, a não ser a que coincide com a verdade descoberta em virtude da razão, mesmo que se trate de uma autoridade recomendada e transmitida para utilidade das gerações vindouras pelos santos Padres" (I, PL, 122, ). Por conseguinte, ele admoesta: "Autoridade alguma te atemorize ou te distraia de quanto te faz compreender a persuasão obtida graças a uma recta contemplação racional. De facto, a autêntica autoridade nunca contradiz a recta razão, nem esta poderá jamais contradizer uma verdadeira autoridade. Uma e outra provêm sem dúvida alguma da mesma fonte, que é a sabedoria divina"(I, PL 122, Col 511). Vemos aqui uma corajosa afirmação do valor da razão, fundada sobre a certeza de que a autoridade verdadeira é ponderada, porque Deus é a razão criadora.

A própria Escritura não evita, segundo Erígena, a necessidade de ser abordada utilizando o mesmo critério de discernimento. De facto, a Escritura – afirma o teólogo irlandês repropondo uma reflexão já presente em João Crisóstomo – mesmo provindo de Deus, não teria sido necessária se o homem não tivesse pecado. Portanto, deve-se deduzir que a Escritura foi dada por Deus com uma intenção pedagógica e por condescendência, para que o homem pudesse recordar tudo o que lhe tinha sido impresso no coração desde o momento da sua criação, "à imagem e semelhança de Deus" (cf. Gn 1,26) e que a queda original lhe tinha feito esquecer. Erígena escreve nas Expositiones: "O homem não foi criado para a Escritura, da qual não teria necessidade se não tivesse pecado, mas ao contrário, a Escritura – embebida de doutrina e de símbolos – foi dada ao homem. Graças a ela, de facto, a nossa natureza racional pode ser introduzida nos segredos da autêntica contemplação pura de Deus" (II, PL 122, ). A palavra da Sagrada Escritura purifica a nossa razão um pouco cega e ajuda-nos a voltar à recordação do que nós, enquanto imagem de Deus, trazemos no nosso coração, infelizmente vulnerado pelo pecado.

Isto origina algumas consequências hermenêuticas, sobre o modo de interpretar a Escritura, que podem indicar ainda hoje o caminho justo para uma correcta leitura da Sagrada Escritura. De facto, trata-se de descobrir o sentido escondido no texto sagrado e isto supõe uma particular prática interior, graças à qual a razão se abre ao caminho seguro rumo à verdade. Esta prática consiste em cultivar uma disponibilidade constante à conversão. De facto, para chegar a uma visão profunda do texto é necessário progredir simultaneamente na conversão do coração e na análise conceptual da página bíblica quer ela seja de carácter cósmico, histórico ou doutrinal. De facto, só graças à constante purificação quer do olhar do coração quer do olhar da mente se pode conquistar a exacta compreensão.

Este caminho inacessível, exigente e entusiasmante, feito de contínuas conquistas e relativizações do saber humano, conduz a criatura inteligente ao limiar do Mistério divino, onde todas as noções acusam a própria debilidade e incapacidade e por isso impõem, com a simples força livre e doce da verdade, que se vá sempre além de tudo o que é continuamente adquirido. O reconhecimento adorante e silencioso do Mistério, que acaba na comunhão unificante, revela-se por isso como o único caminho de uma relação com a verdade que seja ao mesmo tempo a mais íntima possível e a mais escrupulosamente respeitadora da alteridade. João Escoto – utilizando também aqui um vocabulário querido à tradição cristã de língua grega chamou a esta experiência para a qual tendemos, "theosis" ou divinização, com afirmações tão audaciosas que foi possível suspeitá-lo de panteísmo heterodoxo. Permanece contudo forte a emoção face a textos como o seguinte, no qual – recorrendo à antiga metáfora da fusão do ferro – escreve: "Portanto, como todo o ferro tornado ardente se derreteu a ponto de parecer haver apenas fogo mas permanecendo contudo distintas as substâncias de um e de outro, assim se deve aceitar que depois do fim deste mundo toda a natureza, quer a corpórea quer a incorpórea, manifeste apenas Deus e contudo permaneça íntegra de tal modo que Deus possa ser de certa forma com-preendido, mesmo permanecendo in-compreensível e a própria criatura seja transformada, com admiração inefável, em Deus" (V, PL 122, Col 451).

Na realidade, todo o pensamento teológico de João Escoto é a demonstração mais evidente da tentativa de expressar o dizível do Deus indizível, fundando-se unicamente no mistério do Verbo feito carne em Jesus de Nazaré. As numerosas metáforas por ele utilizadas para indicar esta realidade inefável demonstram quanto ele está consciente da absoluta inadequação das palavras com as quais falamos destas coisas. E contudo permanece o encanto e aquela atmosfera de autêntica experiência mística que se pode de vez em quando verificar nos seus textos. É suficiente citar, como prova disto, uma página do De divisione naturae que sensibiliza profundamente também o coração dos crentes do século XXI: "Não se deve desejar outra coisa – escreve ele – a não ser a alegria da verdade que é Cristo, nem evitar outra coisa a não ser a Sua ausência. De facto, ela deveria ser considerada a única causa da total e eterna tristeza. Priva-me de Cristo e não terei bem algum nem nada me atemorizará como a sua ausência. O maior tormento de uma criatura racional são a privação e a ausência d'Ele" (V, PL 122, Col 989). São palavras que podemos fazer nossas, traduzindo-as em oração Àquele que constitui o anseio também do nosso coração.

Saudação

Dirijo agora uma cordial saudação a todos os peregrinos de língua portuguesa, nomeadamente ao grupo brasileiro de Santa Catarina e aos "pequenos cantores" de Amorim, Portugal, pedindo à Virgem Mãe que guarde a vida e a família de cada um com um canto de louvor perene a Deus e de bênção generosa para quantos cruzam o seu caminho. Obrigado pela vossa jubilosa participação neste encontro com o Sucessor de Pedro. Sobre vós e vossos entes queridos, desça a minha Bênção.


Praça de São Pedro

17 de Junho de 2009: Santos Cirilo e Metódio


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