Audiências 2005-2013 17210

17 de Fevereiro de 2010: Quarta-feira de Cinzas

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Amados irmãos e Irmãs!

Hoje, Quarta-Feira de Cinzas, damos início ao caminho quaresmal: um caminho que se desenvolve por quarenta dias e que nos conduz à alegria da Páscoa do Senhor. Neste itinerário espiritual não estamos sozinhos, porque a Igreja nos acompanha e nos ampara desde o início com a Palavra de Deus, que encerra um programa de vida espiritual e de compromisso penitencial, e com a graça dos Sacramentos.

São as palavras do apóstolo Paulo que nos oferecem uma preciosa recomendação: "exortamo-vos a que não recebais em vão a graça de Deus... Ouvi-te no tempo favorável e ajudei-te no dia da salvação" (
2Co 6,1-2). Na realidade, na visão cristã da vida todos os momentos devem ser considerados favoráveis e todos os dias devem ser dias de salvação, mas a liturgia da Igreja refere estas palavras de um modo totalmente particular no tempo da Quaresma. E podemos compreender que os quarenta dias em preparação para a Páscoa são tempo favorável e de graça do apelo que o austero rito da imposição das cinzas nos dirige e que se exprime, na liturgia, com duas fórmulas: "Convertei-vos e acreditai no Evangelho!", "Recorda-te que és pó e pó te hás-de tornar".

A primeira chamada é à conversão, palavra que se deve acolher na sua extraordinária seriedade, compreendendo a surpreendente novidade que ela irradia. O apelo à conversão, de facto, ressalta e denuncia a fácil superficialidade que caracteriza com muita frequência a nossa vida. Converter-se significa mudar de direcção no caminho da vida: não com um pequeno ajustamento, mas com uma verdadeira inversão de marcha. Conversão é ir contra a corrente, onde a "corrente" é o estilo de vida superficial, incoerente e ilusório, que muitas vezes nos arrasta, nos domina e nos torna escravos do mal ou prisioneiros da mediocridade moral. Com a conversão, ao contrário, tem-se como objectivo a medida alta da vida cristã, confiamo-nos no Evangelho vivente e pessoal, que é Cristo Jesus. A sua pessoa é a meta final e o sentido profundo da conversão, ele é o caminho pelo qual todos são chamados a caminhar na vida, deixando-se iluminar pela sua luz e amparar pela sua força que move os nossos passos. Deste modo a conversão manifesta o seu rosto mais maravilhoso e fascinante: não é uma simples decisão moral, que rectifica o nosso modo de vida, mas é uma escolha de fé, que nos envolve totalmente na comunhão íntima com a pessoa viva e concreta de Jesus. Converter-se e crer no Evangelho não são duas coisas diversas ou de qualquer modo apenas próximas entre si, mas expressam a mesma realidade. A conversão é o "sim" total de quem entrega a própria existência ao Evangelho, respondendo livremente a Cristo que foi o primeiro a oferecer-se ao homem como caminho, verdade e vida, como o único que liberta e salva. É precisamente este o sentido das primeiras palavras com as quais, segundo o evangelista Marcos, Jesus abre a pregação do "Evangelho de Deus": "Completou-se o tempo e o reino de Deus está perto: Arrependei-vos e acreditai na Boa Nova" (Mc 1,15).

O "arrependei-vos e acreditai na Boa Nova" não está só no início da vida cristã, mas acompanha todos os seus passos, permanece renovando-se e difunde-se ramificando-se em todas as suas expressões. Todos os dias é momento favorável e de graça, porque todos os dias nos solicita a entregar-nos a Jesus, a ter confiança n'Ele, a permanecer n'Ele, a partilhar o seu estilo de vida, a aprender d'Ele o amor verdadeiro, a segui-lo no cumprimento quotidiano da vontade do Pai, a única grande lei de vida. Todos os dias, também quando não faltam as dificuldades e as fadigas, as canseiras e as quedas, quando somos tentados a abandonar o caminho do seguimento de Cristo e a fechar-nos em nós mesmos, no nosso egoísmo, sem nos darmos conta da necessidade que temos de nos abrir ao amor de Deus em Cristo, para viver a mesma lógica de justiça e de amor. Na recente Mensagem para a Quaresma eu quis recordar que "é necessário humildade para aceitar que é preciso que um Outro me liberte do "meu", para me dar gratuitamente o "seu". Isto acontece particularmente nos sacramentos da Penitência e da Eucaristia. Graças à acção de Cristo, nós podemos entrar na justiça "maior", que é aquela do amor (cf. Rm 13,8-10), a justiça de quem se sente em todo o caso sempre mais devedor que credor, porque recebeu mais do que aquilo que poderia esperar" (L'Oss. Rom. edição portuguesa de 6 de Fevereiro de 2010, p. 3).

O momento favorável e de graça da Quaresma mostra-nos o próprio significado espiritual também através da antiga fórmula: Recorda-te que és pó e pó te hás-de tornar, que o sacerdote pronuncia quando impõe sobre a nossa cabeça um pouco de cinza. Somos assim remetidos para o início da história humana, quando o Senhor disse a Adão depois do pecado original: "Com o suor do teu rosto comerás o pão, enquanto não voltares à terra, porque dela foste tirado: tu és pó e pó te hás-de tornar!" (Gn 3,19). Aqui, a palavra de Deus recorda-nos a nossa fragilidade, aliás a nossa morte, que é a sua forma extrema. Perante o inato medo do fim, e ainda mais no contexto de uma cultura que de muitos modos tende a censurar a realidade e a experiência humana do morrer, a liturgia quaresmal, por um lado, recorda-nos a morte convidando-nos ao realismo e à sabedoria, mas, por outro, estimula-nos sobretudo a aceitar e a viver a novidade inesperada que a fé cristã desencadeia na realidade da própria morte.

O homem é pó e pó se há-de tornar, mas é pó precioso aos olhos de Deus, porque Deus criou o homem destinando-o à imortalidade. Assim a fórmula litúrgica "Recorda-te que és pó e pó te hás-de tornar" encontra a plenitude do seu significado em referência ao novo Adão, Cristo. Também o Senhor Jesus quis partilhar livremente com cada homem o destino da fragilidade, sobretudo através da sua morte na cruz; mas infelizmente esta morte, cheia do seu amor pelo Pai e pela humanidade, foi o caminho para a ressurreição gloriosa, através da qual Cristo se tornou fonte de uma graça doada a quantos crêem n'Ele e são tornados partícipes da própria vida divina. Esta vida que não terá fim já está a decorrer na fase terrena da nossa existência, mas será levada a cumprimento depois "da ressurreição da carne". O pequeno gesto da imposição das cinzas revela-nos a singular riqueza do seu significado: é um convite a percorrer o tempo quaresmal como uma imersão mais consciente e intensa no mistério pascal de Cristo, na sua morte e ressurreição, mediante a participação na Eucaristia e na vida de caridade, que da Eucaristia nasce e na qual encontra o seu cumprimento. Com a imposição das cinzas nós renovamos o nosso compromisso a seguir Jesus, a deixar-nos transformar pelo seu mistério pascal, para vencer o mal e praticar o bem, para fazer morrer o nosso "homem velho" ligado ao pecado e fazer nascer o "homem novo" transformado pela graça de Deus.

Queridos amigos! Enquanto nos preparamos para empreender o austero caminho quaresmal, desejamos invocar com particular confiança a protecção e a ajuda da Virgem Maria. Seja ela, a primeira crente em Cristo, quem nos acompanha nestes quarenta dias de intensa oração e sincera penitência, para chegar a celebrar, purificados e completamente renovados na mente e no espírito, o grande mistério da Páscoa do seu Filho.

Boa Quaresma a todos!

Saudação

Saúdo com particular afecto o grupo de fiéis do Patriarcado de Lisboa, peregrinos com o seu bem-amado Pastor, Cardeal Dom José Policarpo, em romagem de fé e gratidão pelas sendas do Venerável Servo de Deus Papa João Paulo II, que vos conquistou para Cristo, no Parque Eduardo VII da vossa cidade, há vinte e oito anos. Ver-vos hoje aqui, traz à mente aquele seu último pensamento para os jovens: «Andei à vossa procura. Agora viestes ter comigo. Eu vos agradeço». Queria-vos a todos com Cristo. Que este nosso encontro suscite em vós e em todos peregrinos presentes de língua portuguesa, com suas famílias e comunidades cristãs, uma renovada vitalidade espiritual na fiel e generosa adesão a Cristo e à Igreja. Olhai o futuro com esperança e não vos canseis de trabalhar na vinha do Senhor. Uma santa Quaresma para todos!





3 de Março de 2010: São Boaventura de Bagnoregio

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Queridos irmãos e irmãs

Hoje gostaria de falar de São Boaventura de Bagnoregio. Confesso-vos que, ao propor-vos este argumento, sinto uma certa saudade, porque volto a pensar nas pesquisas que, como jovem estudioso, fiz precisamente sobre este autor, que me é particularmente caro. O seu conhecimento influiu em grande medida na minha formação. Com muita alegria, há alguns meses, fui em peregrinação à sua terra natal, Bagnoregio, uma pequena cidade italiana no Lácio, que conserva com veneração a sua memória.

Tendo nascido provavelmente em 1217 e falecido em 1274, ele viveu no século XIII, uma época em que a fé cristã, radicada profundamente na cultura e na sociedade da Europa, inspirou obras imperecíveis no campo da literatura, das artes visuais, da filosofia e da teologia. Entre as grandes figuras cristãs que contribuíram para a composição desta harmonia entre fé e cultura sobressai precisamente Boaventura, homem de acção e de contemplação, de profunda piedade e de prudência no governo.

Chamava-se João de Fidanza. Um episódio que teve lugar quando ainda era jovem marcou profundamente a sua vida, como ele mesmo narra. Tinha sido atingido por uma grave doença e nem sequer o seu pai, que era médico, esperava salvá-lo da morte. Então, sua mãe recorreu à intercessão de São Francisco de Assis, que tinha sido canonizado há pouco tempo. E João ficou curado.

A figura do Pobrezinho de Assis tornou-se-lhe ainda mais familiar alguns anos mais tarde, quando se encontrava em Paris, aonde tinha ido para estudar. Obtivera o diploma de Mestre de Artes, que poderíamos comparar com o de um Liceu prestigioso dos nossos tempos. Nesta altura, como muitos jovens de ontem e também de hoje, João formulou uma pergunta crucial: "O que devo fazer da minha vida?". Fascinado pelo testemunho de fervor e de radicalidade evangélica dos Frades Menores, que tinham chegado a Paris em 1219, João bateu à porta do Convento franciscano daquela cidade, e pediu para ser acolhido na grande família dos discípulos de São Francisco. Muitos anos depois, ele explicou as razões da sua escolha: em São Francisco e no movimento por ele iniciado, entrevia a acção de Cristo. Assim escrevia numa carta endereçada a outro frade: "Confesso diante de Deus que a razão que me fez amar mais a vida do Beato Francisco é que ela se assemelha aos inícios e ao crescimento da Igreja. A Igreja começou com simples pescadores e em seguida enriqueceu-se de doutores muito ilustres e sábios; a religião do Beato Francisco não foi estabelecida pela prudência dos homens, mas de Cristo" (Epistula de tribus quaestionibus ad magistrum innominatum, in Opere di San Bonaventura. Introduzione generale, Roma 1990, pág. 29).

Portanto, por volta do ano de 1243 João vestiu o hábito franciscano e adquiriu o nome de Boaventura. Foi imediatamente destinado aos estudos e frequentou a Faculdade de Teologia da Universidade de Paris, seguindo uma série de cursos muitos exigentes. Obteve os vários títulos requeridos pela carreira académica, os de "bacharel bíblico" e de "bacharel sentenciário". Assim Boaventura estudou a fundo a Sagrada Escritura, as Sentenças de Pedro Lombardo, o manual de teologia daquela época e os mais importantes autores de teologia e, em contacto com os mestres e os estudantes que afluíam a Paris de toda a Europa, amadureceu a sua reflexão pessoal e uma sensibilidade espiritual de grande valor que, durante os anos seguintes, soube transferir para as suas obras e os seus sermões, tornando-se assim um dos teólogos mais importantes da história da Igreja. É significativo recordar o título da tese que ele defendeu para ser habilitado ao ensino da teologia, a licentia ubique docendi, como então se dizia. A sua dissertação tinha como título Questões sobre o conhecimento de Cristo. Este argumento mostra o papel central que Cristo teve sempre na vida e no ensinamento de Boaventura. Sem dúvida, podemos dizer que todo o seu pensamento foi profundamente cristocêntrico.

Naqueles anos em Paris, a cidade de adopção de Boaventura, desencadeava-se uma polémica violenta contra os Frades Menores de São Francisco de Assis e contra os Padres Pregadores de São Domingos de Guzman. Contestava-se o seu direito de ensinar na Universidade e chegava-se até a pôr em dúvida a autenticidade da sua vida consagrada. Certamente, as mudanças introduzidas pelas Ordens Mendicantes no modo de entender a vida religiosa, de que falei nas catequeses precedentes, eram tão inovativas que nem todos conseguiam compreendê-las. Além disso acrescentavam-se, como às vezes acontece também entre pessoas sinceramente religiosas, motivos de debilidade humana, como a inveja e o ciúme. Embora estivesse circundado pela oposição dos outros mestres universitários, Boaventura já tinha começado a ensinar na cátedra de teologia dos Franciscanos e, para responder àqueles que contestavam as Ordens Mendicantes, compôs um escrito intitulado A perfeição evangélica. Neste escrito, ele demonstra que as Ordens Mendicantes, de modo especial os Frades Menores, praticando os votos de pobreza, de castidade e de obediência, seguiam os conselhos do próprio Evangelho. Para além destas circunstâncias históricas, o ensinamento oferecido por Boaventura nesta sua obra e na sua vida permanece sempre actual: a Igreja tornou-se mais luminosa e bonita pela fidelidade à vocação da parte daqueles seus filhos e filhas que não só põem em prática os preceitos evangélicos mas, pela graça de Deus, são chamados a observar os seus conselhos e assim, através do seu estilo de vida pobre, casto e obediente, são testemunho de que o Evangelho é nascente de alegria e de perfeição.

O conflito foi pacificado, pelo menos por um certo período e, mediante a intervenção pessoal do Papa Alexandre IV em 1257, Boaventura foi reconhecido oficialmente doutor e mestre da Universidade parisiense. Todavia, ele teve que renunciar a este cargo prestigioso, porque naquele mesmo ano o Capítulo geral da Ordem o elegeu Ministro-Geral.

Desempenhou tal encargo durante 17 anos com sabedoria e dedicação, visitando as províncias, escrevendo aos irmãos e intervindo por vezes com uma certa severidade para eliminar abusos. Quando Boaventura deu início a este serviço, a Ordem dos Frades Menores desenvolveu-se de modo prodigioso: contavam-se mais de 30.000 frades espalhados por todo o Ocidente, com presenças missionárias no norte da África, no Médio Oriente e até em Pequim. Era necessário consolidar esta expansão e sobretudo conferir-lhe, em plena fidelidade ao carisma de Francisco, unidade de acção e de espírito. Com efeito, entre os seguidores do Santo de Assis havia vários modos de interpretar a sua mensagem e existia realmente o risco de uma ruptura interna. Para evitar este perigo, o Capítulo geral da Ordem em Narbona, em 1260, aceitou e rectificou um texto proposto por Boaventura, em que se reuniam e unificavam as normas que regulavam a vida diária dos Frades Menores. No entanto, Boaventura intuía que as disposições legislativas, por mais que se inspirassem na sabedoria e na moderação, não eram suficientes para garantir a comunhão do espírito e dos corações. Era necessário compartilhar os mesmos ideais e motivações. Por isso, Boaventura quis apresentar o carisma genuíno de Francisco, a sua vida e o seu ensinamento. Reuniu, então, com grande zelo documentos relativos ao Pobrezinho e ouviu com atenção as recordações daqueles que tinham conhecido Francisco directamente. Daqui nasceu uma biografia do Santo de Assis, bem fundamentada sob o ponto de vista histórico, intitulada Legenda maior, redigida também de forma mais abreviada e por isso chamada Legenda minor. Diversamente do termo italiano, esta palavra latina não indica um fruto da fantasia, mas ao contrário "Legenda" significa um texto autorizado, "que se deve ler" oficialmente. Com efeito, o Capítulo geral dos Frades Menores de 1263, reunindo-se em Pisa, reconheceu na biografia de São Boaventura o retrato mais fiel do Fundador e deste modo ela tornou-se a biografia oficial do Santo.

Qual é a imagem de São Francisco que sobressai do coração e da pena do seu filho devoto e sucessor, São Boaventura? O ponto essencial: Francisco é um alter Christus, um homem que procurou Cristo apaixonadamente. No amor que impele à imitação, conformou-se de modo total com Ele. Boaventura indicava este ideal vivo a todos os seguidores de Francisco. Este ideal, válido para cada cristão ontem, hoje e sempre, foi apontado como programa também para a Igreja do Terceiro Milénio pelo meu Predecessor, o Venerável João Paulo II. Tal programa, escreveu na Carta Novo millennio ineunte, está centrado "no próprio Cristo, que deve ser conhecido, amado e imitado, para viver nele a vida trinitária, e transformar com Ele a história até ao seu cumprimento na Jerusalém celeste" (
NM 29).

Em 1273, a vida de São Boaventura conheceu outra mudança. O Papa Gregório x quis consagrá-lo Bispo e nomeá-lo Cardeal. Pediu-lhe também que preparasse um importantíssimo evento eclesial: o II Concílio Ecuménico de Lião, que tinha como finalidade o restabelecimento da comunhão entre as Igrejas latina e grega. Ele dedicou-se a esta tarefa com diligência, mas não conseguiu ver a conclusão daquela assembleia ecuménica, porque faleceu durante a sua realização. Um notário pontifício anónimo compôs um elogio de Boaventura, que nos oferece um retrato conclusivo deste grande santo e excelente teólogo: "Homem bom, afável, piedoso e misericordioso, repleto de virtudes, amado por Deus e pelos homens... Com efeito, Deus concedeu-lhe tal graça, que todos aqueles que o viam permaneciam imbuídos de um amor que o coração não podia ocultar" (cf. J. G. Bougerol, Bonaventura, in A. Vauchez (por), Storia dei santi e della santità cristiana. Vol. VI. L'epoca del rinnovamento evangelico, Milão 1991, pág. 91).

Recolhamos a herança deste Santo Doutor da Igreja, que nos recorda o sentido da nossa vida com as seguintes palavras: "Na terra... podemos contemplar a imensidão divina mediante o raciocínio e a admiração; na pátria celeste, ao contrário, mediante a visão, quando nos tornarmos semelhantes a Deus, e através do êxtase... entraremos na alegria de Deus" (La conoscenza di Cristo, q. 6, conclusione, in Opere di San Bonaventura. Opuscoli Teologici/1, Roma 1993, pág. 187).

Saudação

Acolho cordialmente todos os peregrinos de língua portuguesa que vieram a Roma encontrar o Sucessor de Pedro: que a perseverança na prática das boas obras vos possa conduzir sempre mais à união com Jesus Cristo. Desça a sua Bênção sobre cada um de vós e vossas famílias.





10 de Março de 2010: São Boaventura de Bagnoregio (2)

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Queridos irmãos e irmãs,

Dotado de grande inteligência, equilíbrio, zelo apostólico e fervor místico, Antônio de Pádua ou – como também é conhecido – de Lisboa, contribuiu de modo significativo para o desenvolvimento da espiritualidade franciscana, sendo um dos santos mais populares da Igreja Católica. Começou sua vida religiosa entre os Cônegos Regulares de Santo Agostinho, dedicando-se ao estudo da Bíblia e dos Padres da Igreja. Porém, atraído pelo exemplo dos primeiros mártires franciscanos, fez-se discípulo de São Francisco de Assis e acabou por ser destinado para a pregação do Evangelho ao povo simples e o ensino da teologia a seus confrades, lançando as bases da teologia franciscana. No último período da sua vida, Antônio escreveu os «Sermões», onde propõe um verdadeiro itinerário de vida cristã. Neste Ano Sacerdotal, peçamos que os sacerdotes e diáconos cumpram sempre com solicitude este ministério de anúncio e atualização da Palavra de Deus no meio do Povo de Deus.
* * *


Saúdo, com fraterna amizade, os grupos vindos de São Paulo, Rio de Janeiro, Ribeirão Preto e demais peregrinos de língua portuguesa, desejando que esta visita aos lugares santificados pela pregação e martírio dos Apóstolos Pedro e Paulo possa confirmar a todos na fé, esperança e caridade. A Virgem Mãe vos acompanhe e proteja!




Praça de São Pedro

17 de Março de 2010: São Boaventura (3)

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Queridos irmãos e irmãs

Esta manhã, continuando a reflexão de quarta-feira passada, gostaria de aprofundar convosco outros aspectos da doutrina de São Boaventura de Bagnoregio. Ele é um teólogo eminente, que merece ser posto ao lado de outro grandíssimo pensador, seu contemporâneo, São Tomás de Aquino. Ambos perscrutaram os mistérios da Revelação, valorizando os recursos da razão humana, naquele diálogo fecundo entre fé e razão que caracteriza a Idade Média cristã, fazendo dela uma época de grande vivacidade intelectual, e também de fé e de renovação eclesial, muitas vezes não suficientemente evidenciada. Eles são irmanados por outras analogias: tanto Boaventura, franciscano, como Tomás, dominicano, pertenciam às Ordens Mendicantes que, com o seu vigor espiritual, como recordei em catequeses precedentes, renovaram no século XIII a Igreja inteira e atraíram muitos seguidores. Ambos serviram a Igreja com diligência, com paixão e com amor, a ponto de terem sido convidados a participar no Concílio Ecuménico de Lião em 1274, o mesmo ano em que vieram a falecer: Tomás, enquanto ia a Lião, Boaventura durante a realização do mesmo Concílio. Também na Praça de São Pedro as imagens dos dois Santos são paralelas, colocadas precisamente no início da Colunata, a partir da fachada da Basílica Vaticana: uma na Ala da esquerda, e a outra na Ala da direita. Não obstante todos estes aspectos, podemos ver nos dois grandes Santos duas abordagens diversas da pesquisa filosófica e teológica, que mostram a originalidade e a profundidade de pensamento de um e do outro. Gostaria de mencionar algumas destas diferenças.

Uma primeira diferença diz respeito ao conceito de teologia. Ambos os doutores perguntam se a teologia é uma ciência prática ou uma ciência teórica, especulativa. São Tomás reflecte sobre duas possíveis respostas contrastantes. A primeira diz: a teologia é reflexão sobre a fé, e a finalidade da fé é que homem se torne bom, viva segundo a vontade de Deus. Portanto, a finalidade da teologia deveria ser a de guiar pelo caminho recto, bom; por conseguinte, no fundo, ela é uma ciência prática. A outra posição diz: a teologia procura conhecer Deus. Nós somos obra de Deus; Deus está acima do nosso agir. Deus realiza em nós o agir justo. Por conseguinte, trata-se substancialmente não do nosso fazer, mas de conhecer Deus, não do nosso agir. A conclusão de São Tomás é: a teologia implica ambos os aspectos: é teórica, procura conhecer Deus cada vez mais, e é prática: procura orientar a nossa vida para o bem. Mas há um primado do conhecimento: sobretudo, temos que conhecer Deus, depois vem o agir segundo Deus (cf. Summa Theologiae,
I 1,4). Este primado do conhecimento em relação à prática é significativo para a orientação fundamental de São Tomás.

A resposta de São Boaventura é muito semelhante, mas os matizes são diferentes. São Boaventura conhece os mesmos argumentos em ambas as direcções, como São Tomás, mas para responder à pergunta se a teologia é uma ciência prática ou teórica, São Boaventura faz uma distinção tríplice – portanto, amplia a alternativa entre teórico (primado do conhecimento) e prático (primado da prática), acrescentando uma terceira atitude, que chama "sapiencial" e afirmando que a sabedoria abrange ambos os aspectos. E depois, continua: a sabedoria procura a contemplação (como a mais elevada forma do conhecimento) e tem como intenção "ut boni fiamus" – que nos tornemos bons, sobretudo isto: tornar-nos bons (cf. Breviloquium, Prologus, 5). Depois, acrescenta: "A fé está no intelecto, de tal modo que provoca o afecto. Por exemplo: saber que Cristo morreu "por nós" não permanece conhecimento, mas torna-se necessariamente afecto, amor" (Proemium in I Sent., q. 3).

A sua defesa da teologia, ou seja, da reflexão racional e metódica da fé, move-se na mesma linha. São Boaventura enumera alguns argumentos contra a prática da teologia, talvez difundidos também entre alguns dos frades franciscanos e presentes inclusive no nosso tempo: a razão esvaziaria a fé, seria uma atitude violenta em relação à palavra de Deus, temos que ouvir e não analisar a palavra de Deus (cf. Carta de São Francisco de Assis a Santo António de Pádua). A estes argumentos contra a teologia, que demonstram os perigos existentes na própria teologia, o Santo responde: é verdade que existe um modo arrogante de fazer teologia, uma soberba da razão, que se põe acima da palavra de Deus. Mas a verdadeira teologia, o trabalho racional da teologia verdadeira e boa tem outra origem, não a soberba da razão. Quem ama quer conhecer cada vez melhor e sempre mais o amado; a verdadeira teologia não empenha a razão e sua busca motivada pela soberba, "sed propter amorem eius cui assentit" – "motivada pelo amor daquele, a quem deu o seu consentimento" (Proemium in I Sent., q. 2), e que conhecer melhor o amado: esta é a intenção fundamental da teologia. Portanto, no final para São Boaventura é determinante o primado do amor.

Por conseguinte, São Tomás e São Boaventura definem de modo diferente o destino último do homem, a sua plena felicidade: para São Tomás o fim supremo ao qual se dirige nosso desejo é: ver Deus. Neste simples gesto de ver Deus todos os problemas encontram solução: estamos felizes, nada mais é necessário.

Para São Boaventura, o destino último do homem é outro: amar Deus, o encontrar-se e o unir-se do seu e do nosso amor. Esta é para ele a definição mais adequada da nossa felicidade.

Nesta linha, poderíamos dizer também que para São Tomás a categoria mais elevada é a verdade, enquanto para São Boaventura é o bem. Seria errado ver nestas duas respostas uma contradição. Para ambos, a verdade é também o bem, e o bem é também a verdade; ver Deus é amar, e amar é ver. Portanto, trata-se de aspectos diferentes de uma visão fundamentalmente comum. Ambos os aspectos formaram diferentes tradições e diversas espiritualidades, e assim mostraram a fecundidade da fé, uma só na diversidade das suas expressões.

Voltemos a São Boaventura. É evidente que o aspecto específico da sua teologia, do qual só dei um exemplo, se explica a partir do carisma franciscano: o Pobrezinho de Assis, para além dos debates intelectuais do seu tempo, tinha mostrado com toda a sua vida o primado do amor; era um ícone vivo e apaixonado de Cristo e assim, na sua época, tornou presente a figura do Senhor não convenceu os seus contemporâneos com as palavras, mas com a sua vida. Em todas as obras de São Boaventura, precisamente também as obras científicas, escolares, vê-se e encontra-se esta inspiração franciscana; ou seja, observa-se que ele pensa a partir do encontro com o Pobrezinho de Assis. No entanto, para compreender a elaboração concreta do tema "primado do amor", temos que ter presente mais uma fonte: os escritos do chamado Pseudodionísio, um teólogo sírio do século VI, que se escondeu sob o pseudónimo de Dionísio, o Areopagita, referindo-se com este nome a uma figura dos Actos dos Apóstolos (cf. Ac 17,34). Este teólogo tinha criado uma teologia litúrgica e uma teologia mística, e falara amplamente das diversas ordens dos anjos. Os seus escritos foram traduzidos em latim no século IX; na época de São Boaventura – estamos no século XIII – surgia uma nova tradição, que despertou o interesse do Santo e dos outros teólogos do seu século. Duas coisas chamavam a atenção de São Boaventura de modo particular:

1. O Pseudodionísio fala de nove ordens dos anjos, cujos nomes tinha encontrado na Escritura e depois disposto à sua maneira, desde os anjos simples até aos serafins. São Boaventura interpreta estas ordens dos anjos como degraus na aproximação da criatura a Deus. Assim eles podem representar o caminho humano, a elevação rumo à comunhão com Deus. Para São Boaventura não há qualquer dúvida: São Francisco de Assis pertencia à ordem seráfica, à ordem suprema, ao coro dos serafins, ou seja: era puro fogo de amor. E assim deveriam ser os franciscanos. Mas São Boaventura sabia bem que este último grau de aproximação a Deus não pode ser inserido num ordenamento jurídico, mas é sempre um dom particular de Deus. Por isso, a estrutura da Ordem franciscana é mais modesta, mais realista, porém deve ajudar os membros a aproximar-se cada vez mais de uma existência seráfica de amor puro. Na quarta-feira passada, falei sobre esta síntese entre realismo sóbrio e radicalidade evangélica no pensamento e no agir de São Boaventura.

2. Contudo, São Boaventura encontrou nos escritos do Pseudodionísio outro elemento, para ele ainda mais importante. Enquanto para Santo Agostinho o intellectus, o ver com a razão e o coração, é a última categoria do conhecimento, o Pseudodionísio dá mais um passo: na escalada rumo a Deus pode-se chegar a um ponto em que a razão já não vê. Mas na noite do intelecto, o amor ainda vê – vê aquilo que permanece inacessível à razão. O amor estende-se além da razão, vê mais, entra mais profundamente no mistério de Deus. São Boaventura sentia-a fascinado por esta visão, que se encontrava com a sua espiritualidade franciscana. Precisamente na noite obscura da Cruz aparece toda a grandeza do amor divino; onde a razão já não vê, o amor vê. As palavras conclusivas do seu "Itinerário da mente em Deus", a uma leitura superficial podem parecer como expressão exagerada de uma devoção sem conteúdo; por outro lado, lidas à luz da teologia da Cruz de São Boaventura, elas são uma expressão límpida e realista da espiritualidade franciscana: "Se agora desejas saber como isto acontece (ou seja, a escalada para Deus), interroga a graça, não a doutrina; o desejo, não o intelecto; o gemido da oração, não o estudo da letra; ...não a luz, mas o fogo, que tudo inflama e transporta em Deus" (VII, 6). Tudo isto não é anti-intelectual e não é anti-racional: supõe o caminho da razão, mas transcende-o no amor de Cristo crucificado. Com esta transformação da mística do Pseudodionísio, São Boaventura coloca-se nos primórdios de uma corrente mística, que elevou e purificou em grande medida a mente humana: é um ápice na história do espírito humano.

Esta teologia da Cruz, nascida do encontro entre a teologia do Pseudodionísio e a espiritualidade franciscana, não nos deve fazer esquecer que São Boaventura compartilha com São Francisco de Assis também o amor pela criação, a alegria pela beleza da criação de Deus. Cito nesta altura uma frase do primeiro capítulo do "Itinerário": "Quem... não vê os inúmeros esplendores das criaturas, é cego; aquele que não desperta com tantas vezes, é surdo; quem não louva a Deus por todas estas maravilhas, é mudo; aquele que de tantos sinais não se eleva ao primeiro princípio, é estulto" (I, 15). Toda a criação fala em voz alta de Deus, do Deus bom e belo, do seu amor.

Portanto, toda a nossa vida é para São Boaventura um "itinerário", uma peregrinação – uma escalada rumo a Deus. Mas só com as nossas forças, não podemos elevar-nos à altura de Deus. O próprio Deus deve ajudar-nos, deve "puxar-nos" para o alto. Por isso, é necessária a oração. A oração – como diz o Santo – é a mãe e a origem da elevação – "sursum actio", acção que nos leva para o alto – diz Boaventura. Por isso, concluo com a prece, com a qual ele começa o seu "Itinerário": "Portanto, oremos e digamos ao nosso Senhor Deus: "Conduza-me, Senhor, pela tua via, e eu caminharei na tua verdade. Alegre-se o meu coração no temor do teu nome"" (I, 1).



Saudação

Saúdo os peregrinos de língua portuguesa, desejando que esta visita aos lugares santificados pela pregação e martírio dos Apóstolos Pedro e Paulo vos ajude a reafirmar sempre mais a fé que opera pela caridade. Que Deus abençoe a vós e às vossas famílias.






Praça de São Pedro

24 de Março de 2010: Santo Alberto Magno


Audiências 2005-2013 17210