Audiências 2005-2013 7911

7 de Setembro de 2011: "Levanta-te, Senhor, Salva-me!"

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Estimados irmãos e irmãs

Retomemos hoje as audiências na praça de São Pedro e, na «escola da oração» que vivemos juntos nestas Catequeses de quarta-feira, gostaria de começar a meditar sobre alguns Salmos que, como eu dizia no passado mês de Junho, constituem o «livro de oração» por excelência. O primeiro Salmo sobre o qual medito é de lamentação e de súplica, imbuído de profunda confiança, no qual a certeza da presença de Deus funda a prece que brota de uma condição de extrema dificuldade em que se encontra o orante. Trata-se do Salmo 3, referido pela tradição judaica a David no momento em que foge do filho Absalão (cf. v.
Ps 3,1): é um dos episódios mais dramáticos e duros na vida do rei, quando o seu filho usurpa o seu trono régio e o obriga a deixar Jerusalém para salvar a própria vida (cf. 2S 15 ss.). Portanto, a situação de perigo e de angústia experimentada por David serve de base para esta prece e ajuda a compreendê-la, apresentando-se como a situação típica em que tal Salmo pode ser recitado. No brado do Salmista, cada homem pode reconhecer os sentimentos de dor, de amargura e também de confiança em Deus que, segundo a narração bíblica, tinham acompanhado a fuga de David da sua cidade.

O Salmo começa com uma invocação ao Senhor:

«Senhor, quão numerosos são os meus adversários,
quão numerosos os que se levantam contra mim!
Muitos dizem a meu respeito:
“Não há salvação para ele em Deus!”» (vv. Ps 3,2-3).

Portanto, a descrição que o orante faz da sua situação é marcada por tons fortemente dramáticos. Repete-se três vezes a ideia de multidão — «numerosos», «muitos», «tantos» — que no texto original é dita com a mesma raiz hebraica, de modo a frisar ainda mais a enormidade do perigo, de forma repetitiva, quase martelante. Esta insistência sobre o número e a grandeza dos inimigos serve para expressar a percepção, da parte do Salmista, da desproporção absoluta existente entre ele e os seus perseguidores, uma desproporção que justifica e funda a urgência do seu pedido de ajuda: os opressores são muitos, prevalecem, enquanto o orante está sozinho e inerme, à mercê dos seus agressores. E no entanto, a primeira palavra que o Salmista pronuncia é «Senhor»; o seu grito começa com a invocação a Deus. Uma multidão incumbe e revolta-se contra ele, gerando um medo que amplia a ameaça, fazendo-a parecer ainda maior e mais terrificante; mas o orante não se deixa vencer por esta visão de morte, mantém firme a relação com o Deus da vida e antes de tudo dirige-se a Ele, em busca de ajuda. Mas os inimigos procuram também romper este vínculo com Deus e debilitar a fé da sua vítima. Eles insinuam que o Senhor não pode intervir, afirmam que nem sequer Deus pode salvá-lo. Portanto, a agressão não é só física, mas diz respeito à dimensão espiritual: «O Senhor não pode salvá-lo» — dizem — o fulcro central da alma do Salmista deve ser agredido. É a extrema tentação à qual o crente é submetido, é a tentação de perder a fé, a confiança na proximidade de Deus. O justo supera a última prova, permanece firme na fé e na certeza da verdade e na plena confiança em Deus, e precisamente assim encontra a vida e a verdade. Parece-me que o Salmo nos toca muito pessoalmente: em muitos problemas somos tentados a pensar que talvez nem Deus me salve, não me me conheça, talvez não seja capaz; a tentação contra a fé é a última agressão do inimigo, e a isto temos que resistir, pois só assim encontramos Deus e a vida.

Portanto, o orante do nosso Salmo é chamado a responder com a fé aos ataques dos ímpios: os inimigos — como eu disse — negam que Deus possa ajudá-lo, mas ele invoca-O, chama-O pelo nome, «Senhor», e depois dirige-se a Ele com um «tu» enfático, que exprime uma relação firme, sólida, e encerra em si a certeza da resposta divina:

«Mas Vós, Senhor, sois o meu escudo,
sois a minha glória! Sois Vós quem levantais o meu poder.
Com a minha voz invoco o Senhor
e Ele responde-me da sua montanha santa» (vv. Ps 3,4-5).

Agora, a visão dos inimigos desaparece, eles não venceram porque quem crê em Deus está convicto de que Deus é o seu amigo: só permanece o «Tu» de Deus, aos «muitos» opõe-se agora um só, mas muito maior e mais poderoso que numerosos adversários. O Senhor é ajuda, defesa, salvação; como escudo protege quem se confia a Ele, e faz-lhe levantar a cabeça, no gesto de triunfo e de vitória. O homem deixou de estar só, os inimigos não são invencíveis como pareciam, porque o Senhor ouve o clamor do oprimido e responde do lugar da sua presença, do seu monte santo. O homem clama na angústia, no perigo e na dor; o homem pede ajuda e Deus responde. Neste entrelaçar-se de clamor humano e resposta divina consiste a dialéctica da oração e a chave de leitura de toda a história da salvação. O clamor exprime a necessidade de ajuda e apela-se à fidelidade do outro; gritar quer dizer fazer um gesto de fé na proximidade e na disponibilidade à escuta de Deus. A oração expressa a certeza de uma presença divina já experimentada e acreditada, que na resposta salvífica de Deus se manifesta plenamente. Isto é relevante: que na nossa prece seja importante, presente, a certeza da presença de Deus. Assim o Salmista, que se sente cercado pela morte, confessa a sua fé no Deus da vida que, como escudo, o circunda com uma protecção invulnerável; quem pensava que já estava perdido pode erguer a cabeça, porque o Senhor o salva; o orante, ameaçado e desprezado, está na glória, porque Deus é a sua glória.

A resposta divina que ouve a prece oferece ao Salmista uma segurança total; terminou também o medo, e o clamor sossega na paz, numa profunda tranquilidade interior:

«Deito-me, adormeço e acordo,
o Senhor é o meu sustentáculo.
Não temo as grandes multidões
colocadas contra mim» (vv. Ps 3,6-7).

O orante, mesmo no meio do perigo e da batalha, pode adormecer tranquilo, numa atitude inequívoca de abandono confiante. Ao seu redor os adversários acampam-se, assediam-no, são muitos, levantam-se contra ele, desprezam-no e procuram derrubá-lo, mas ele deita-se e dorme tranquilo e sereno, certo da presença de Deus. E quando acorda, encontra Deus ainda ao seu lado, como guardião que não dorme (cf. Ps 121,3-4), que o sustém, pega-lhe na mão e nunca o abandona. O medo da morte é vencido pela presença daquele que não morre. E precisamente a noite, povoada por temores ancestrais, a noite dolorosa da solidão e da espera angustiante, agora transforma-se: o que evoca a morte torna-se presença do Eterno.

À visibilidade do assalto inimigo, maciço e imponente, opõe-se a presença invisível de Deus, com todo o seu poder invencível. E é a Ele que de novo o Salmista, depois das suas expressões de confiança, dirige a sua prece: «Levantai-vos, Senhor! Salvai-me, ó meu Deus!» (v. Ps 3,8a). Os agressores «atacavam» (cf. v. Ps 3,2) a sua vítima, mas quem se «elevará» é o Senhor», e fá-lo-á para os derrotar. Deus salvá-lo-á, respondendo ao seu grito. Por isso, o Salmo termina com a visão da libertação do perigo que mata e da tentação que pode fazer perecer. Depois do pedido dirigido ao Senhor, de se elevar para salvar, o orante descreve a vitória divina: os inimigos que, com a sua opressão injusta e cruel, são símbolo de tudo o que se opõe a Deus e ao seu plano de salvação, são derrotados. Atingidos na boca, já não poderão agredir com a sua violência destruidora, já não poderão insinuar o mal da dúvida na presença e na obra de Deus: o seu falar insensato e blasfemo é definitivamente desmentido e reduzido ao silêncio pela intervenção salvífica do Senhor (cf. v. Ps 3,8bc). Assim o Salmista pode concluir a sua prece com uma frase com conotações litúrgicas que celebra, na gratidão e no louvor, o Deus da vida: «O Senhor tem a vitória. Desça a vossa bênção sobre o vosso povo» (v. Ps 3,9).

Caros irmãos e irmãs, o Salmo 3 apresentou-nos uma súplica cheia de confiança e consolação. Recitando este Salmo, podemos fazer nossos os sentimentos do Salmista, figura do justo perseguido que encontra em Jesus o seu cumprimento. Na dor, no perigo, na amargura da incompreensão e da ofensa, as palavras do Salmo abrem o nosso coração à certeza confortadora da fé. Deus está sempre perto — mesmo nas dificuldades, nos problemas e nos contratempos da vida — ouve, responde e salva à sua maneira. Mas é preciso saber reconhecer a sua presença e aceitar os seus modos, como David na sua fuga humilhante do filho Absalão, como o justo perseguido do Livro da Sabedoria e, última e definitivamente, como o Senhor Jesus no Gólgota. E quando, aos olhos dos ímpios, Deus parece não intervir e o Filho morre, é precisamente então que se manifesta, para todos os fiéis, a verdadeira glória e a realização definitiva da salvação. Que o Senhor nos conceda a fé, nos ajude na nossa debilidade e nos torne capazes de crer e de rezar em todas as angústias, nas noites dolorosas da dúvida e nos longos dias da dor, abandonando-nos com confiança a Ele, que é o nosso «escudo» e a nossa «glória». Obrigado!

Saudação

Amados peregrinos de língua portuguesa, a minha saudação amiga para todos, em particular para os fiéis de várias paróquias das cidades de Santo Amaro, São João del Rei e São Paulo, desejando que este Salmo 3 vos sirva de portal na vossa peregrinação a Roma: da infinidade de coisas — tantas vezes duras — da vida, aprendei a elevar o coração até ao Pai do Céu, repousando no seio da sua infinita bondade, e vereis que as dores e aflições da vida vos farão menos mal. Sobre todos, e extensiva aos familiares e comunidades eclesiais, desça a minha Bênção Apostólica.




Sala Paulo VI

14 de Setembro de 2011: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?" Salmo 22, (21)

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Queridos irmãos e irmãs,

Na catequese hodierna gostaria de meditar sobre um Salmo com fortes implicações cristológicas, que sobressai continuamente nas narrações da Paixão de Jesus, com a sua dúplice dimensão de humilhação e glória, de morte e vida. É o Salmo 22 segundo a tradição judaica, 21 segundo a tradição greco-latina, uma oração intensa e comovedora, de uma densidade humana e de uma riqueza teológica que fazem dele um dos Salmos mais recitados e estudados de todo o Saltério. Trata-se de uma longa composição poética, e meditaremos de modo particular sobre a sua primeira parte, centrada na lamentação, para aprofundar algumas dimensões significativas da oração de súplica a Deus.

Este Salmo apresenta a figura de um inocente perseguido e circundado de adversários que desejam a sua morte; e ele recorre a Deus numa lamentação dolorosa que, na certeza da fé, se abre misteriosamente ao louvor. Na sua oração, a realidade angustiante do presente e a memória consoladora do passado alternam-se, numa difícil tomada de consciência acerca da sua situação desesperada que, no entanto, não quer renunciar à esperança. O seu clamor inicial é um apelo dirigido a um Deus que parece distante, que não responde e parece tê-lo abandonado:

«Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?
As palavras do meu clamor não são por Vós ouvidas.
Meu Deus, clamo de dia e não me respondeis;
imploro durante a noite, sem conseguir sossegar» (vv.
Ps 22,2-3).

Deus cala-se, e este silêncio dilacera a alma do orante, que chama incessantemente, mas sem encontrar uma resposta. Os dias e as noites sucedem-se, numa busca incansável de uma palavra, de uma ajuda que não chega; Deus parece tão distante, tão esquecido, tão ausente! A oração pede escuta e resposta, solicita um contacto, procura uma relação que possa conferir conforto e salvação. Mas se Deus não responde, o grito de ajuda perde-se no vazio e a solidão torna-se insustentável. E no entanto o orante do nosso Salmo, no seu brado, chama três vezes o Senhor «meu» Deus, num extremo gesto de confiança e de fé. Não obstante qualquer aparência, o Salmista não pode acreditar que o vínculo com o Senhor se tenha interrompido totalmente; e enquanto pergunta o porquê do presumível abandono incompreensível, afirma que o «seu» Deus não o pode abandonar.

Como se sabe, o clamor inicial do Salmo, «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?», é citado pelos Evangelhos de Mateus e de Marcos como o grito lançado por Jesus agonizante na Cruz (cf. Mt 27,46 Mc 15,34). Ele manifesta toda a desolação do Messias, Filho de Deus, que enfrenta o drama da morte, uma realidade totalmente oposta ao Senhor da vida. Abandonado por quase todos os seus, atraiçoado e renegado pelos discípulos, circundado por quantos o insultam, Jesus encontra-se sob o peso esmagador de uma missão que deve passar pela humilhação e o aniquilamento. Por isso, clama ao Pai, e o seu sofrimento assume as palavras dolorosas do Salmo. Mas o seu grito não é desesperado, como 0 do Salmista, que na sua súplica percorre um caminho atormentado, mas que no final acaba numa perspectiva de l0uvor, na confiança da vitória divina. E dado que no uso hebraico citar o início de um Salmo implicava uma referência ao poema inteiro, a prece dilacerante de Jesus, embora mantenha a sua carga de sofrimento indizível, abre-se à certeza da glória. «Não tinha o Messias de sofrer estas coisas para entrar na sua glória?», dirá o Ressuscitado aos discípulos de Emaús (Lc 24,26). Na sua paixão, em obediência ao Pai, o Senhor Jesus atravessa o abandono e a morte para alcançar a vida e para a doar a todos os fiéis.

A este brado inicial de súplica, no nosso Salmo 22, segue-se num contraste doloroso a recordação do passado:

«Em Vós confiaram os nossos pais,
confiaram, e Vós os livrastes;
a vós clamaram e foram salvos;
confiaram em Vós e não foram confundidos» (vv. Ps 22,5-6).

Aquele Deus que hoje ao Salmista parece tão distante é, no entanto, o Senhor misericordioso que Israel sempre experimentou na sua história. O povo ao qual o orante pertence foi objecto do amor de Deus, e pode dar testemunho da sua fidelidade. A começar pelos Patriarcas, e depois no Egipto e durante a longa peregrinação pelo deserto, na permanência na terra prometida em contacto com populações agressivas e inimigas, até ao obscurecimento do exílio, toda a história bíblica foi uma história de clamores de ajuda da parte do povo e de respostas salvíficas da parte de Deus. E o Salmista faz referência à fé inabalável dos seus Pais, que «confiaram» — esta palavra é repetida três vezes — sem jamais permanecer confundidos. Agora, no entanto, parece que esta série de invocações confiantes e de respostas divinas se interrompeu; a situação do Salmista parece desmentir toda a história da salvação, tornando ainda mais dolorosa a realidade presente.

Mas Deus não pode desmentir-se, e eis então que a oração volta a descrever a situação penosa do orante, para induzir o Senhor a ter piedade e a intervir, como sempre tinha feito no passado. O Salmista define-se «um verme, não um homem, o opróbrio de todos e a abjecção da plebe» (v. Ps 22,7), é escarnecido, zombado (cf. v. Ps 22,8) e ferido precisamente na fé: «Confiou no Senhor, que Ele o livre, que o salve, se o ama» (v. Ps 22,9), dizem. Sob os golpes ultrajantes da ironia e do desprezo, parece quase que o perseguido perde as suas conotações humanas, como o Servo sofredor delineado no Livro de Isaías (cf. Is 52,14 Is 53,2-3). E como o justo oprimido, do Livro da Sabedoria (cf. Sg 2,12-20), ou como Jesus no Calvário (cf. Mt 27,39-43), o Salmista vê posta em dúvida a própria relação com o seu Senhor, na evidência cruel e sarcástica daquilo que o faz sofrer: o silêncio de Deus, a sua aparente ausência. E no entanto, Deus esteve presente na existência do orante com uma proximidade e uma ternura inquestionáveis. O Salmista recorda-o ao Senhor: «Na verdade, Vós me tirastes do ventre materno, confiastes-me aos seios de minha mãe. Pertenço-vos desde o ventre materno» (vv. Ps 22,10-11a). O Senhor é o Deus da vida, que faz nascer e acolher o recém-nascido, e cuida dele com carinho paterno. E se antes recordara a fidelidade de Deus na história do povo, agora o orante volta a evocar a própria história pessoal de relação com o Senhor, remontando ao momento particularmente significativo do início da sua vida. E ali, não obstante a desolação do presente, o Salmista reconhece uma proximidade e um amor divinos tão radicais que agora pode exclamar, numa confissão cheia de fé e geradora de esperança: «Desde o seio de minha mãe, Vós sois o meu Deus» (v. Ps 22,11b).

Agora, a lamentação torna-se uma súplica intensa: «Não vos afasteis de mim, porque estou atribulado; não há quem me ajude» (v. Ps 22,12). A única proximidade que o Salmista sente e que o amedronta é a dos seus inimigos. Portanto, é necessário que Deus se aproxime e que o socorra, porque os inimigos circundam e rodeiam o orante, e são como touros poderosos, como leões que abrem as fauces para rugir e despedaçar (cf. vv. Ps 22,13-14). A angústia altera a percepção do perigo, aumentando-o. Os adversários parecem invencíveis, tornaram-se animais ferozes e extremamente perigosos, enquanto o Salmista é como um pequeno verme, impotente, sem qualquer defesa. Mas estas imagens utilizadas no Salmo servem também para dizer que quando o homem se torna brutal e agride o irmão, algo de animalesco prevalece sobre ele, que parece perder qualquer semblante humano; a violência tem sempre em si algo de bestial, e só a intervenção salvífica de Deus pode restituir o homem à sua humanidade. Agora, para o Salmista, objecto de uma agressão tão feroz, parece que não existe mais salvação, e a morte começa a tomar posse dele: «Sou como água que se derrama, todos os meus ossos se desconjuntam [...] A minha garganta secou-se como barro cozido; a minha língua pegou-se ao meu paladar [...] repartem entre si as minhas vestes, e lançam sorte sobre a minha túnica» (vv. Ps 22,15 Ps 22,16 Ps 22,19). Com imagens dramáticas, que voltamos a encontrar nas narrações da Paixão de Cristo, descreve-se a decomposição do corpo do condenado, o calor insuportável que atormenta o moribundo e que encontra eco no pedido de Jesus: «Tenho sede» (cf. Jn 19,28), para chegar ao gesto definitivo dos algozes que, como os soldados aos pés da Cruz, repartem entre si as vestes da vítima, já considerada morta (cf. Mt 27,35 Mc 15,24 Lc 23,34 Jn 19,23-24).

Eis então, imperioso, novamente o pedido de socorro: «Mas Vós, Senhor, não vos afasteis de mim; sois o meu auxílio, apressai-vos a ajudar-me [...] Salvai-me!» (vv. Ps 22,20 Ps 22,22a). Trata-se de um grito que descerra os céus, porque proclama uma fé, uma certeza que vai mais além de toda a dúvida, de toda a escuridão e de toda a desolação. E a lamentação transforma-se, deixando espaço ao louvor no acolhimento da salvação: «Vós respondestes-me. Então, anunciarei o vosso Nome aos meus irmãos, e louvar-vos-ei no meio da assembleia» (vv. Ps 22,22-23). Assim, o Salmo abre-se à acção de graças, ao grande hino final que abrange todo o povo, os fiéis do Senhor, a assembleia litúrgica e as gerações vindouras (cf. vv. Ps 22,24-32). O Senhor acorreu em ajuda, salvou o pobre e mostrou o seu rosto de misericórdia. Morte e vida cruzaram-se num mistério inseparável, e a vida triunfou; o Deus da salvação manifestou-se como Senhor incontestado, que todos os confins da terra celebrarão e diante do qual todas as famílias dos povos se prostrarão. É a vitória da fé, que pode transformar a morte em dom da vida, o abismo da dor em fonte de esperança.

Caríssimos irmãos e irmãs, este Salmo levou-nos ao Gólgota, aos pés da Cruz de Jesus, para reviver a sua paixão e compartilhar a alegria fecunda da Ressurreição. Portanto, deixemo-nos invadir pela luz do mistério pascal, mesmo na aparente ausência de Deus, também no silêncio de Deus e, como os discípulos de Emaús, aprendamos a discernir a verdadeira realidade, para além das aparências, reconhecendo o caminho da exaltação precisamente na humilhação, e a plena manifestação da vida na morte, na cruz. Assim, depositando toda a nossa confiança e a nossa esperança em Deus Pai, em cada angústia também nós O poderemos suplicar com fé, e o nosso grito de ajuda transformar-se-á em cântico de louvor. Obrigado!

Saudação

Dirijo a minha saudação amiga aos membros da União Missionária Franciscana, vindos de Portugal, aos brasileiros do Grupo Vocacional e a todos os demais peregrinos lusófonos aqui presentes. Neste dia da Exaltação da Santa Cruz, deixemo-nos invadir pela luz do mistério pascal, para reconhecermos o caminho da exaltação precisamente na humilhação, colocando toda a nossa esperança em Deus, e assim o nosso grito de ajuda transformar-se-á em cântico de louvor. E que a bênção de Deus desça sobre vós e vossas famílias!

Praça de São Pedro

Quarta-feira, 28 de Setembro de 2011: Viagem Apostólica à Alemanha

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Queridos irmãos e irmãs,

Como sabeis, de quinta-feira a domingo passados, realizei uma Visita Pastoral na Alemanha; por isso, como de costume estou feliz por aproveitar a ocasião da Audiência hodierna para repercorrer juntamente convosco os dias intensos e maravilhosos que passei no meu país natal. Atravessei a Alemanha de norte a sul, de leste a oeste: da capital Berlim a Erfurt e a Eichsfeld e enfim a Friburgo, cidade próxima da fronteira com a França e a Suíça. Dou graças antes de tudo ao Senhor pela possibilidade que me ofereceu, de me encontrar com o povo e de lhe falar de Deus, de rezar juntos e de confirmar os irmãos e as irmãs na fé, segundo o especial mandato que o Senhor confiou a Pedro e aos seus sucessores. Esta visita, realizada sob o lema: «Onde há Deus, há futuro», foi realmente uma grande festa da fé: nos vários encontros e diálogos e nas celebrações, mas especialmente nas solenes Missas com o povo de Deus. Estes momentos foram um dom precioso que nos levou a compreender de novo que é Deus quem confere à nossa vida o sentido mais profundo, a verdadeira plenitude, aliás, que só Ele nos doa a todos um futuro.

Com profunda gratidão recordo a hospitalidade, calorosa e entusiasta, assim como a atenção e o carinho que me foram demonstrados nos vários lugares que visitei. Agradeço de coração aos Bispos alemães, de modo especial das Dioceses que me hospedaram, o convite e quanto levaram a cabo, juntamente com muitos colaboradores, para preparar esta viagem. Dirijo um profundo agradecimento igualmente ao Presidente Federal e a todas as Autoridades políticas e civis, nos planos federal e regional. Estou profundamente grato a quantos contribuíram de vários modos para o bom êxito da Visita, sobretudo aos numerosos voluntários. Assim, ela foi um grande dom para mim e para todos nós e suscitou alegria, esperança e um novo impulso de fé e de compromisso para o futuro.

Na capital federal, Berlim, o Presidente Federal recebeu-me na sua residência e deu-me as boas-vindas em seu nome e no dos meus compatriotas, manifestando a estima e o afecto por um Papa natural da terra alemã. Quanto a mim, pude traçar um breve pensamento sobre a relação recíproca entre religião e liberdade, recordando uma frase do grande Bispo e reformador social Wilhelm von Ketteler: «Assim como a religião tem necessidade da liberdade, também a liberdade precisa da religião».

Foi de bom grado que aceitei o convite a visitar o Bundestag, aquele que certamente foi um dos momentos de maior alcance da minha viagem. Pela primeira vez um Papa proferiu um discurso diante dos membros do Parlamento alemão. Em tal ocasião desejei expor o fundamento do direito e do livre Estado de direito, ou seja, a medida de cada direito, inscrito pelo Criador no próprio ser da sua criação. Por isso, é necessário ampliar o nosso conceito de natureza, compreendendo-a não apenas como um conjunto de funções, mas inclusive como linguagem do Criador para nos ajudar a discernir o bem do mal. Sucessivamente, teve lugar também um encontro com alguns representantes da comunidade judaica na Alemanha. Recordando as nossas comuns raízes na fé no Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob, pudemos salientar os frutos alcançados até agora no diálogo entre a Igreja católica e o judaísmo na Alemanha. Também pude encontrar-me com alguns membros da comunidade muçulmana, discorrendo com eles acerca da importância da liberdade religiosa para um desenvolvimento pacífico da humanidade.

A Santa Missa no estádio olímpico em Berlim, no encerramento do primeiro dia da Visita, foi uma das grandiosas celebrações litúrgicas que me ofereceram a possibilidade de rezar juntamente com os fiéis e de os animar na fé. Alegrei-me muito com a numerosa participação do povo! Naquele momento festivo e impressionante pudemos meditar sobre a imagem evangélica da videira e dos ramos, ou seja, sobre a importância de estar unidos a Cristo para a nossa vida pessoal de fiéis e para o nosso ser Igreja, seu Corpo místico.

A segunda etapa da minha Visita foi a Turíngia. A Alemanha, e a Turíngia de modo especial, é a terra da reforma protestante. Portanto, desde o início eu quis ardentemente dar relevo particular ao ecumenismo no contexto desta viagem, e desejei viver de modo intenso um momento ecuménico em Erfurt, porque foi precisamente nessa cidade que Martinho Lutero entrou na comunidade dos Agostinianos e ali recebeu a ordenação sacerdotal. Por isso, fiquei muito feliz pelo encontro com os membros do Conselho da Igreja Evangélica na Alemanha e pela celebração ecuménica no ex-convento dos Agostinianos: um encontro cordial que, no diálogo e na oração, nos levou de modo mais profundo a Cristo. Vimos de novo como é importante o nosso comum testemunho da fé em Jesus Cristo no mundo de hoje, que muitas vezes ignora Deus ou não se interessa por Ele. É preciso o nosso esforço comum no caminho rumo à plena unidade, mas estamos sempre bem conscientes de que não podemos «fazer» a fé nem a unidade tão almejada. Uma fé criada por nós mesmos não tem valor algum, e a verdadeira unidade é sobretudo uma dádiva do Senhor, que rezou e reza sempre pela unidade dos seus discípulos. Só Cristo pode conceder-nos esta unidade, e estaremos cada vez mais unidos, na medida em que voltarmos para Ele e nos deixarmos transformar por Ele.

Um momento particularmente emocionante para mim foi a celebração das Vésperas marianas diante do Santuário de Etzelsbach, onde fui recebido por uma multidão de peregrinos. Já quando eu era jovem tinha ouvido falar da região de Eichsfeld — uma faixa de terra que permaneceu sempre católica ao longo das várias vicissitudes da história — e dos seus habitantes que se opuseram corajosamente às ditaduras do nazismo e do comunismo. Assim, fiquei muito feliz por visitar Eichsfeld e o seu povo nesta peregrinação à imagem milagrosa da Virgem das Dores de Etzelsbach, onde durante séculos os fiéis confiaram a Maria os seus pedidos, preocupações e sofrimentos, recebendo conforto, graças e bênçãos. Igualmente emocionante foi a Missa celebrada na magnífica praça da Catedral em Erfurt. Recordando os santos padroeiros da Turíngia — Santa Isabel, São Bonifácio e São Kilian — e o exemplo luminoso dos fiéis que deram testemunho do Evangelho durante os sistemas totalitários, convidei os fiéis a serem os santos de hoje, válidas testemunhas de Cristo, e a contribuírem para construir a nossa sociedade. Com efeito, foram sempre os santos e as pessoas imbuídas do amor a Cristo que transformaram verdadeiramente o mundo. Foi comovedor inclusive o breve encontro com Monsenhor Hermann Scheipers, o último sacerdote alemão sobrevivente ao campo de concentração de Dachau. Em Erfurt tive a oportunidade de me encontrar com algumas vítimas de abuso sexual da parte de religiosos, às quais desejei assegurar o meu pesar e a minha proximidade no seu sofrimento.

A última etapa da minha viagem levou-me ao sudoeste da Alemanha, à Arquidiocese de Friburgo. Os habitantes dessa bonita cidade, os fiéis da Arquidiocese e os numerosos peregrinos vindos das vizinhas Suíça e França e de outros países, reservaram-me um acolhimento particularmente festivo. Pude experimentá-lo também na vigília de oração com milhares de jovens. Senti-me feliz por ver que, na minha pátria alemã, a fé tem um rosto jovem, é viva e tem um futuro. No sugestivo rito da luz, transmiti aos jovens a chama do círio pascal, símbolo da luz que é Cristo, exortando-os: «Vós sois a luz do mundo». Repeti-lhes que o Papa confia na colaboração concreta dos jovens: com a graça de Cristo, eles são capazes de transmitir ao mundo o fogo do amor de Deus.

Um momento singular foi o encontro com os seminaristas, no Seminário de Friburgo. Respondendo num certo sentido à emocionante missiva que eles me tinham enviado algumas semanas antes, desejei mostrar a estes jovens a beleza e a grandeza da sua chamada por parte do Senhor e oferecer-lhes alguma ajuda para continuar o caminho do seguimento, com alegria e em profunda comunhão com Cristo. Ainda no mesmo Seminário pude encontrar-me, numa atmosfera fraterna, inclusive com alguns representantes das Igrejas ortodoxas e ortodoxas orientais, às quais nós católicos nos sentimos muito próximos. Precisamente desta ampla comunhão deriva também a tarefa conjunta de ser fermento para a renovação da nossa sociedade. Uma reunião amigável com alguns representantes do laicado católico alemão concluiu a série de encontros no Seminário.

A grande Celebração eucarística dominical no aeroporto turístico de Friburgo foi outro momento culminante da Visita Pastoral, e a ocasião para agradecer a quantos trabalham nos vários âmbitos da vida eclesial, principalmente os numerosos voluntários e os colaboradores das iniciativas caritativas. São eles que tornam possíveis as múltiplas ajudas que a Igreja alemã oferece à Igreja universal, de modo especial nas terras de missão. Recordei também que o seu serviço precioso será sempre fecundo, se derivar de uma fé autêntica e viva, em união com os Bispos e o Papa, em comunhão com a Igreja. Enfim, antes do meu retorno, falei a cerca de mil católicos que desempenham funções na Igreja e na sociedade, sugerindo algumas reflexões sobre a obra da Igreja numa sociedade secularizada, sobre o convite a libertar-se de fardos materiais e políticos, para ser mais transparente a Deus.

Caros irmãos e irmãs, esta Viagem Apostólica à Alemanha ofereceu-me uma ocasião propícia para me encontrar com os fiéis da minha pátria alemã, para os confirmar na fé, na esperança e no amor, e para compartilhar com eles a alegria de sermos católicos. Mas a minha mensagem dirigia-se a todo o povo alemão, para convidar todos a olhar com confiança para o futuro. É verdade, «Onde há Deus, há futuro». Agradeço mais uma vez a todos aqueles que tornaram possível esta Visita e a quantos me acompanharam com a oração. O Senhor abençoe o povo de Deus na Alemanha e abençoe todos vós. Obrigado!

Saudações

Amados peregrinos de língua portuguesa, cordiais saudações para todos vós, de modo especial para os fiéis de Piracicaba e Belo Horizonte, de Bauru e Apucarana: convido-vos a olhar com confiança o vosso futuro em Deus. Com a graça de Cristo, sois capazes de levar ao mundo o fogo do amor de Deus. Sobre vós e vossas famílias desça a minha Bênção.





Praça de São Pedro

Quarta-feira, 5 de Outubro de 2011: Salmo 23

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Queridos irmãos e irmãs,

Dirigir-se ao Senhor na oração exige um gesto de confiança radical, com a consciência de nos confiarmos a Deus que é bom, «misericordioso e clemente, vagaroso em encolerizar-se, cheio de bondade e de fidelidade» (
Ex 34,6-7 Ps 86,15 cf. Gl Ps 2,13 Gn 4,2 Ps 103,8 Ps 145,8 Ne 9,17). Por isso, hoje gostaria de meditar convosco sobre um Salmo inteiramente imbuído de confiança, em que o Salmista exprime a sua certeza tranquila de que é guiado e protegido, salvaguardado de todo o perigo, porque o Senhor é o seu pastor. Trata-se do Salmo 23 — segundo os dados greco-latinos, 22 — um texto familiar para todos e amado por todos.

«O Senhor é o meu pastor: nada me falta»: assim começa esta linda oração, evocando o ambiente nómade da pastorícia e a experiência de conhecimento recíproco que se estabelece entre o pastor e as ovelhas que compõem o seu pequeno rebanho. A imagem evoca uma atmosfera de confiança, intimidade e ternura: o pastor conhece as suas ovelhas uma por uma, chama-as pelo nome e elas seguem-no porque o reconhecem e confiam nele (cf. Jn 10,2-4). Ele cuida delas, conserva-as como bens preciosos, pronto a defendê-las, a garantir o seu bem-estar e a fazer com que vivam em tranquilidade. Nada lhes pode faltar, se o pastor estiver com elas. A esta experiência faz referência o Salmista, chamando Deus seu pastor e deixando-se orientar por Ele para pastagens seguras:

«Em verdes prados me faz descansar,
e conduz-me a águas refrescantes.
Reconforta a minha alma
e guia-me pelos caminhos rectos,
por amor do seu nome» (vv. Ps 23,2-3).

A visão que se abre aos nossos olhos é de verdes prados e águas refrescantes, oásis de paz rumo aos quais o pastor acompanha o rebanho, símbolos dos lugares de vida para os quais o Senhor conduz o Salmista, que se sente como as ovelhas deitadas na relva ao lado de uma nascente, numa situação de descanso, não em tensão nem em estado de alarme, mas confiantes e tranquilas, porque o lugar é seguro, a água é fresca e o pastor vela sobre elas. E não esqueçamos aqui que a cena evocada do Salmo é ambientada numa terra em boa parte desértica, atingida pelo sol ardente, onde o pastor seminómade médio-oriental vive com o seu rebanho nas estepes que se estendem ao redor dos povoados. Mas o pastor sabe onde encontrar erva e água fresca, essenciais para a vida, sabe conduzir ao oásis em que a alma «se restabelece» e é possível retomar as forças e novas energias para se pôr novamente a caminho.

Como diz o Salmista, Deus guia-o rumo a «verdes prados» e «águas refrescantes», onde tudo é superabundante, tudo é concedido abundantemente. Se o Senhor é o pastor, também no deserto, lugar de ausência e de morte, não esmorece a certeza de uma presença de vida radical, a ponto de poder dizer: «Nada me falta». Com efeito, o pastor tem a peito o bem do seu rebanho, adapta os próprios ritmos e as suas exigências aos das suas ovelhas, caminha e vive com elas, guiando-as por caminhos «rectos», ou seja adequados, com atenção às necessidades delas, e não às suas. A segurança do seu rebanho é a sua prioridade, e a ela obedece ao guiá-lo.

Prezados irmãos e irmãs, também nós, como o Salmista, se caminharmos atrás do «Bom Pastor», por mais difíceis, sinuosos ou longos que possam parecer os percursos da nossa vida, com frequência inclusive em regiões espiritualmente desérticas, sem água e com um sol de racionalismo ardente, sob a guia do Bom Pastor, Cristo, temos a certeza de caminhar pelas estradas «rectas», e que o Senhor nos orienta e está sempre próximo de nós, e nada nos faltará.

Por isso, o Salmista pode declarar uma tranquilidade e uma segurança, sem incertezas nem temores:

«Mesmo que atravesse os vales sombrios,
nenhum mal temerei, porque estais comigo.
O vosso bastão e o vosso cajado dão-me conforto» (v. Ps 23,4).

Quem atravessa com o Senhor mesmo os vales sombrios do sofrimento, da incerteza e de todos os problemas humanos, sente-se seguro. Tu estás comigo: esta é a nossa certeza, aquela que nos sustém. A escuridão da noite causa medo, com as suas sombras mutáveis, a dificuldade de distinguir os perigos, o seu silêncio cheio de ruídos indecifráveis. Se o rebanho se move depois do pôr-do-sol, quando a visibilidade se faz incerta, é normal que as ovelhas se sintam inquietas, pois há o risco de tropeçar, ou então de se afastar e de se perder, e há ainda o temor de possíveis agressores que se escondam na obscuridade. Para falar do vale «sombrio», o Salmista usa uma expressão hebraica que evoca as trevas da morte, pelo que o vale a atravessar é um lugar de angústia, de ameaças terríveis, de perigo de morte. E no entanto, o orante procede seguro, sem medo, porque sabe que o Senhor está com ele. Aquele «Tu estás comigo» é uma proclamação de confiança inabalável e resume a experiência de fé radical; a proximidade de Deus transforma a realidade, o vale sombrio deixa de ser perigoso, esvaziando-se de qualquer ameaça. Agora, o rebanho pode caminhar tranquilo, acompanhado pelo barulho familiar do bastão que bate no terreno e denota a presença tranquilizadora do pastor.

Esta imagem confortadora encerra a primeira parte do Salmo, e deixa o lugar a um cenário diverso. Ainda estamos no deserto, onde o pastor vive com o seu rebanho, mas agora somos transportados para a sua tenda, que se abre para oferecer hospitalidade:

«Preparais-me um banquete
diante dos meus adversários.
Ungis com óleo a minha cabeça;
e a minha taça transborda» (v. Ps 23,5).

Agora o Senhor é apresentado como Aquele que recebe o orante, com os sinais de uma hospitalidade generosa e cheia de atenções. O anfitrião divino prepara o alimento na «mesa», um termo que em hebraico indica, no seu sentido primitivo, a pele de animal que era estendida no chão, e sobre a qual eram postos os alimentos para a refeição em comum. Trata-se de um gesto de partilha não só da comida, mas também da vida, numa oferenda de comunhão e de amizade que cria vínculos e exprime solidariedade. E depois há ainda o dom magnânimo do óleo perfumado sobre a cabeça, que dá alívio ao calor do sol do deserto, refresca e cura a pele, e alegra o espírito com a sua fragrância. Enfim, a taça transbordante acrescenta uma nota de festa, com o seu vinho delicioso, compartilhado com generosidade superabundante. Alimento, óleo e vinho: são os dons que fazem viver e dão alegria porque vão além do que é estritamente necessário e expressam a gratuidade e a abundância do amor. Celebrando a bondade providente do Senhor, o Salmo 104 proclama: «Fazeis brotar a relva para o gado, e plantas úteis para o homem, a fim de que da terra possa extrair o pão e o vinho que alegra o coração do homem, o óleo que lhe faz brilhar o rosto e o pão que lhe sustenta as forças» (vv. Ps 104,14-15). O Salmista torna-se objecto de muitas atenções, pelo que se vê como um viandante que encontra salvaguarda numa tenda hospitaleira, enquanto os seus adversários devem parar para olhar, sem poder intervir, porque aquele que consideravam sua presa encontrou refúgio, tornou-se hóspede sagrado, intocável. E o Salmista somos nós, se formos realmente crentes em comunhão com Cristo. Quando Deus abre a sua tenda para nos receber, nada nos pode ferir.

Depois, quando o viandante volta a partir, a salvaguarda divina prolonga-se e acompanha-o durante a sua viagem:

«A graça e a bondade hão-de acompanhar-me
todos os dias da minha vida.
A minha morada será a casa do Senhor
ao longo dos dias» (v. Ps 23,6).

A bondade e a fidelidade de Deus são a escolta que acompanha o Salmista que sai da tenda e se põe novamente a caminho. Mas é um caminho que adquire um novo sentido e se torna peregrinação rumo ao Templo do Senhor, o lugar santo em que o orante quer «habitar» para sempre e para o qual também deseja «voltar». O verbo hebraico aqui utilizado tem o sentido de «voltar», mas com uma pequena modificação vocálica, pode ser entendido como «habitar», e é assim citado pelas antigas versões e pela maior parte das traduções modernas. Ambos os sentidos podem ser conservados: voltar ao Templo e ali habitar é o desejo de cada israelita, e habitar perto de Deus na sua proximidade e bondade é o anseio e a saudade de cada crente: poder habitar realmente onde está Deus, perto de Deus. O seguimento do Pastor conduz à sua casa; esta é a meta de cada caminho, oásis almejado no deserto, tenda de refúgio na fuga dos inimigos, lugar de paz onde experimentar a bondade e o amor fiel de Deus, dia após dia, na alegria serena de um tempo sem fim.

As imagens deste Salmo, com a sua riqueza e profundidade, acompanharam toda a história e a experiência religiosa do povo de Israel e acompanham os cristãos. A figura do pastor, em particular, evoca o tempo originário do Êxodo, o longo caminho no deserto, como um rebanho sob a guia do Pastor divino (cf. Is 63,11-14 Ps 77,20-21 Ps 78,52-54). E na Terra prometida o rei tinha a tarefa de apascentar a grei do Senhor, como David, pastor escolhido por Deus e figura do Messias (cf. 2S 5,1-2 2S 7,8 Ps 78,70-72). Depois, após o exílio da Babilónia, como que num novo Êxodo (cf. Is 40,3-5 Is 40,9-11 Is 43,16-21), Israel é reconduzido à sua pátria como uma ovelha tresmalhada que volotu a ser encontrada, reconduzida por Deus para verdes prados e lugares de descanso (cf. Ez 34,11-16 Ez 34,23-31). Mas é no Senhor Jesus que toda a força evocativa do nosso Salmo alcança a sua totalidade, encontra a sua plenitude de significado: Jesus é o «Bom Pastor» que vai à procura da ovelha tresmalhada, que conhece as suas ovelhas e que dá a própria vida por elas (cf. Mt 18,12-14 Lc 15,4-7 Jn 10,2-4 Jn 10,11-18); Ele é a vereda, o caminho recto que nos leva à vida (cf. Jn 14,6), a luz que ilumina o vale sombrio e vence todo o nosso medo (cf. Jn 1,9 Jn 8,12 Jn 9,5 Jn 12,46). Ele é o anfitrião generoso que nos recebe e nos protege dos inimigos, preparando-nos a mesa do seu Corpo e do seu Sangue (cf. Mt 26,26-29 Mc 14,22-25 Lc 22,19-20), e a mesa definitiva do banquete messiânico no Céu (cf. Lc 14,15 ss.; Ap 3,20 Ap 19,9). Ele é o Pastor real, rei na mansidão e no perdão, entronizado no madeiro glorioso da Cruz (cf. Jn 3,13-15 Jn 12,32 Jn 17,4-5).

Caros irmãos e irmãs, o Salmo 23 convida-nos a renovar a nossa confiança em Deus, abandonando-nos totalmente nas suas mãos. Portanto, peçamos com fé ao Senhor que nos conceda, também através das estradas difíceis do nosso tempo, caminhar sempre pelas suas sendas como um rebanho dócil e obediente, nos receba na sua casa, à sua mesa e nos conduza a «águas refrescantes» para que, no acolhimento do dom do seu Espírito, possamos saciar-nos nas suas nascentes, fontes daquela água viva «que jorra para a vida eterna» (Jn 4,14 cf. Jn 7,37-39). Obrigado!

Saudação

Saúdo cordialmente todos os peregrinos de língua portuguesa presentes nesta Audiência, nomeadamente o grupo de diáconos permanentes vindos de Lisboa e os sacerdotes da Arquidiocese de Diamantina, acompanhados de seu bispo. Possa cada um de vós, guiado pelo Bom Pastor, ser por todo o lado um zeloso mensageiro do amor de Deus e uma testemunha corajosa da fé. Que Deus vos abençoe!

Apelo

Não deixam de chegar notícias dramáticas sobre a carestia que atingiu a região do Corno de África. Saúdo o Cardeal Robert Sarah, Presidente do Pontifício Conselho «Cor Unum» e D. Giorgio Bertin, Administrador Apostólico de Mogadíscio, presentes nesta audiência juntamente com alguns representantes de organizações caritativas católicas, que se encontrarão para verificar e dar ulterior estímulo às iniciativas destinadas a fazer face a esta emergência humanitária. Participará no encontro também um representante do Arcebispo de Canterbury, o qual lançou até um apelo a favor das populações atingidas. Renovo o meu convite premente à Comunidade internacional para que continue o seu compromisso em relação àqueles povos e peço a todos que ofereçam orações e ajuda concreta a tantos irmãos e irmãs tão duramente provados, sobretudo às crianças que todos os dias morrem naquela região devido a doenças e à falta de água e de alimento.



Praça de São Pedro

Quarta-feira, 12 de Outubro de 2011: Salmo 126


Audiências 2005-2013 7911