Audiências 2005-2013 12101

Quarta-feira, 12 de Outubro de 2011: Salmo 126

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Prezados irmãos e irmãs

Nas catequeses precedentes meditámos sobre alguns Salmos de lamentação e confiança. Hoje gostaria de reflectir convosco sobre um Salmo com características alegres, uma prece que, no júbilo, canta as maravilhas de Deus. É o Salmo 126 — 125 segundo a numeração greco-latina — que celebra as grandes obras que o Senhor realizou com o seu povo e que, continuamente, faz com cada crente.

O Salmista, em nome de Israel inteiro, começa a sua oração, recordando a experiência exaltante da salvação:

«Quando o Senhor restaurar o destino de Sião,
será para nós como um sonho.
A nossa boca encher-se-á de alegria,e os nossos lábios, de canções» (vv.
Ps 126,1-2a).

O Salmo fala de um «destino restaurado», ou seja, restituído ao estado originário, em toda a sua positividade precedente. Isto é, começa-se a partir de uma situação de sofrimento e necessidade, à qual Deus responde realizando a salvação e levando o orante à condição precedente, aliás, enriquecida e melhorada. É quanto acontece com Job, quando o Senhor lhe restitui tudo aquilo que ele tinha perdido, duplicando-o e concedendo-lhe uma bênção ainda maior (cf. Jb 42,10-13), e é isto que experimenta o povo de Israel, quando volta para a pátria do exílio babilónico. É precisamente em relação ao fim da deportação para a terra estrangeira que este Salmo é interpretato: a expressão «restaurar o destino de Sião» é lida a entendida pela tradição como «fazer voltar os cativos de Sião». Com efeito, o regresso do exílio é o paradigma de cada intervenção divina de salvação, porque a queda de Jerusalém e a deportação para a Babilónia foram uma experiência devastadora para o povo eleito, não só nos planos político e social, mas inclusive e sobretudo nos planos religioso e espiritual. A perda da terra, o fim da monarquia davídica e a destruição do Templo parecem como uma negação das promessas divinas, e o povo da aliança, disperso entre os pagãos, interroga-se dolorosamente sobre um Deus que parece tê-lo abandonado. Por isso, o fim da deportação e o regresso à pátria são experimentados como uma volta maravilhosa à fé, à confiança e à comunhão com o Senhor; é um «restabelecimento do destino», que implica também conversão do coração, perdão, amizade reencontrada com Deus, consciência da sua misericórdia e possibilidade renovada de O louvar (cf. Jr 29,12-14 Jr 30,18-20 Jr 33,6-11 Ez 39,25-29). Trata-se de uma experiência de alegria transbordante, de sorrisos e gritos de júbilo, tão exaltante que «parece um sonho». As intervenções divinas têm com frequência formas inesperadas, que vão além do que o homem possa imaginar; eis, então, a maravilha e a alegria que expressam no louvor: «O Senhor fez maravilhas». É quanto dizem as nações, e é aquilo que proclama Israel:

«Então, dir-se-á entre os povos:
“O Senhor faz maravilhas com eles!”.
O Senhor faz maravilhas connosco;
em nós, tudo é alegria» (vv. Ps 126,2-3).

Deus faz grandes obras na história dos homens. Realizando a salvação, revela-se a todos como Senhor poderoso e misericordioso, refúgio do oprimido, que não se esquece do clamor dos pobres (cf. Ps 9,10 Ps 9,13), que ama a justiça e o direito, e de cujo amor a terra está cheia (cf. Ps 33,5). Por isso, diante da libertação do povo de Israel, todos os povos reconhecem as grandes obras e as maravilhas que Deus faz pelo seu povo e celebram o Senhor na sua realidade de Salvador. E Israel faz eco à proclamação das nações, e retoma-a repetindo-a, mas como protagonista, como destinatário directo da obra divina: «O Senhor faz maravilhas connosco»; «por nós», ou ainda mais precisamente, «connosco», em hebraico ‘immanû, confirmando assim aquela relação privilegiada que o Senhor mantém com os seus eleitos e que encontrará no nome Emanuel, «Deus connosco», com que é chamado Jesus, o seu ápice e a sua plena manifestação (cf. Mt 1,23).

Caros irmãos e irmãs, na nossa oração deveríamos considerar mais frequentemente o modo como, nas vicissitudes da nossa vida, o Senhor nos protegeu, guiou e ajudou, e louvá-lo por aquilo que fez e faz por nós. Temos que prestar mais atenção às coisas boas que o Senhor nos concede. Estamos sempre atentos aos problemas e dificuldades, e quase não queremos ver que existem maravilhas que derivam do Senhor. Esta atenção, que se torna gratidão, é muito importante para nós e cria em nós uma memória do bem que nos ajuda também nas horas obscuras. Deus realiza maravilhas, e quem as experimenta — atento à bondade do Senhor com a atenção do coração — sente-se cheio de alegria. Com esta característica de alegria conclui-se a primeira parte do Salmo. Ser salvo e regressar à pátria do exílio é como voltar à vida: a libertação abre ao sorriso, mas juntamente com a expectativa, a um cumprimento que se deve desejar e pedir. Esta é a segunda parte do nosso Salmo que reza assim:

«Restabelecei, Senhor, o nosso destino, como as torrentes do Negueb.
Os que semeiam com lágrimas, recolhem entre cânticos.
Na partida vai chorando,
o que leva a semente;
no regresso vem cantando,
o que transporta os feixes das espigas» (vv. Ps 126,4-6).

Se no início da sua oração, o Salmista celebrava a alegria de um destino já restaurado pelo Senhor, agora pede-a como algo ainda a realizar-se. Se aplicarmos este Salmo ao regresso do exílio, esta aparente contradição explicar-se-ia com a experiência histórica, feita por Israel, de um regresso difícil à pátria, só parcial, que induz o orante a pedir uma nova intervenção divina para completar o restabelecimento do povo.

Mas o Salmo vai além do dado puramente histórico, abrindo-se a dimensões mais amplas, de tipo teológico. Contudo, a experiência consoladora da libertação da Babilónia ainda está incompleta, «já» ocorrida, mas «ainda não» distinta pela plenitude definitiva. Assim, enquanto na alegria celebra a salvação recebida, a prece abre-se à expectativa da realização plena. Por isso, o Salmo utiliza imagens especiais que, com a sua complexidade, remetem para a realidade misteriosa da redenção, em que se entrelaçam dom recebido e esperado, vida e morte, júbilo de sonho e lágrimas de dor. A primeira imagem refere-se aos rios secos do deserto de Negueb que, com as chuvas, se enchem de água impetuosa que dá nova vida ao terreno árido, fazendo-o reflorescer. Portanto, o pedido do Salmista é que o restabelecimento do destino do povo e o regresso do exílio sejam como aquela água, impetuosa e incessante, e capaz de transformar o deserto num imenso campo de relva verde e de flores.

A segunda imagem passa das colinas áridas e rochosas de Negueb para os campos que os camponeses cultivam para dali tirar o alimento. Para falar da salvação, evoca-se aqui a experiência que cada ano se renova no mundo agrícola: o momento difícil e cansativo da sementeira e depois a alegria transbordante da colheita. Uma sementeira que é acompanhada pelas lágrimas, porque se lança o que ainda poderia tornar-se pão, expondo-se a uma expectativa cheia de incertezas: o camponês trabalha, prepara o terreno, lança a semente mas, como explica bem a parábola do semeador, não sabe onde esta semente cai, se os pássaros a comerão, se brotará, se lançará raízes, se chegará a tornar-se espiga (cf. Mt 13,3-9 Mc 4,2-9 Lc 8,4-8). Semear é um gesto de confiança e esperança; é necessária a diligência do homem, mas depois deve-se entrar numa expectativa impotente, consciente de que muitos factores serão determinantes para o bom êxito da colheita e que o risco de uma falência está sempre à espreita. E no entanto, ano após ano, o camponês repete o seu gesto e lança a sua semente. E quando ela se torna espiga, e os campos se enchem de searas, eis a alegria de quem se encontra diante de um prodígio extraordinário. Jesus conhecia bem esta experiência, e falava dela com os seus: «Dizia: “O Reino de Deus é como um homem que lança a semente à terra. Quer esteja a dormir, quer se levante, de noite e de dia, a semente germina e cresce, sem ele saber como”» (Mc 4,26-27). É o mistério escondido da vida, são as grandes «maravilhas» da salvação que o Senhor realiza na história dos homens, e cujo segredo os homens ignoram. A intervenção divina, quando se manifesta plenamente, demonstra uma dimensão impetuosa, como os rios do Negueb e como o trigo nos campos, este último evocador também de uma desproporção típica das realidades de Deus: desproporção entre o cansaço da sementeira e a imensa alegria da colheita, entre a ansiedade da espera e a visão tranquilizadora dos celeiros cheios, entre as pequenas sementes lançadas à terra e as grandes quantidades de feixes dourados pelo sol. Com a ceifa, tudo se transforma, o pranto termina, deixando lugar aos gritos de alegria exultante.

A tudo isto faz referência o Salmista para falar da salvação, da libertação, do restabelecimento do destino, da volta do exílio. A deportação para a Babilónia, como todas as outras situações de sofrimento e de crise, com a sua escuridão dolorosa, feita de dúvidas e de aparente distância de Deus, na realidade — diz o nosso Salmo — é como uma sementeira. No Mistério de Cristo, à luz do Novo Testamento, a mensagem faz-se ainda mais explícita e clara: o crente que atravessa a escuridão é como o grão de trigo que cai à terra e morre, mas para dar muito fruto (cf. Jn 12,24); ou então, retomando outra imagem querida a Jesus, é como a mulher que sofre as dores de parto para poder chegar à alegria de dar à luz uma nova vida (cf. Jn 16,21).

Amados irmãos e irmãs, este Salmo ensina-nos que, na nossa oração, devemos permanecer sempre abertos à esperança e firmes na fé em Deus. A nossa história, mesmo marcada muitas vezes pela dor, por incertezas e por momentos de crise, é uma história de salvação e de «restabelecimento do destino». Em Jesus, todos os nossos exílios terminam, e toda a lágrima é enxugada, no mistério da sua Cruz, da morte transformada em vida, como grão de trigo que se abre na terra, tornando-se espiga. Também para nós esta descoberta de Jesus Cristo é o grande júbilo do «sim» de Deus, do restabelecimento do nosso destino. Mas como aqueles que — tendo voltado da Babilónia cheios de alegria — encontraram uma terra depauperada e devastada, assim como a dificuldade da sementeira, e sofreram chorando pois não sabiam se realmente no fim haveria a colheita, do mesmo modo nós, após a grande descoberta de Jesus Cristo — a nossa vida, a verdade e o caminho — entrando no terreno da fé, na «terra da fé», encontramos com frequência uma vida obscura, dura, difícil, uma sementeira com lágrimas, mas temos a certeza de que a luz de Cristo nos concede no final, realmente, a grande colheita. E devemos aprender isto também nas noites escuras, sem esquecer que a há a luz, que Deus já está no meio da nossa vida e que podemos semear com grande confiança, porque o «sim» de Deus é mais forte que todos nós. É importante não perder esta recordação da presença de Deus na nossa vida, esta alegria profunda que Deus entrou na nossa vida, libertando-nos: é a gratidão pela descoberta de Jesus Cristo, que veio entre nós. E esta gratidão transforma-se em esperança, é estrela da esperança que nos dá a confiança, é a luz, porque precisamente as dores da sementeira são o início da vida nova, da grande e definitiva alegria de Deus.

Saudação

Saúdo os diversos grupos de peregrinos vindos do Brasil e demais participantes de língua portuguesa, cujos passos e intenções confio à Virgem Maria. Este mês de Outubro convida-nos a perseverar na reza diária do terço; que, desta forma, as vossas famílias se reúnam com a nossa Mãe do Céu, para cooperarem plenamente com os desígnios de salvação que Deus tem sobre vós. Com afecto concedo-vos, a vós e aos vossos familiares, a minha Bênção Apostólica.



Apelo

Sinto-me profundamente entristecido pelos episódios de violência que se verificaram no Cairo no domingo passado. Uno-me ao sofrimento das famílias das vítimas e de todo o povo egípcio, dilacerado pelas tentativas de insidiar a coexistência pacífica entre as suas comunidades, que ao contrário é essencial salvaguardar, sobretudo neste momento de transição. Exorto os fiéis a rezar para que aquela sociedade goze de uma paz verdadeira, baseada na justiça, no respeito da liberdade e da dignidade de cada cidadão. Além disso, apoio os esforços das autoridades egípcias, civis e religiosas, a favor de uma sociedade na qual sejam respeitados os direitos humanos de todos e, em particular, das minorias, em benefício da unidade nacional.





Praça de São Pedro

Quarta-feira, 19 de Outubro de 2011: O “Grande Hallel”: Salmo 136 (135)

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Estimados irmãos e irmãs

Hoje gostaria de meditar convosco sobre um Salmo que resume toda a história da salvação, da qual o Antigo Testamento nos dá testemunho. Trata-se de um grande hino de louvor que celebra o Senhor nas múltiplas e repetidas manifestações da sua bondade ao longo da história dos homens; é o Salmo 136 — ou 135, segundo a tradição greco-latina.

Solene oração de acção de graças, conhecido como o «Grande Hallel», este Salmo é tradicionalmente cantado no final da ceia pascal judaica e provavelmente foi rezado também por Jesus na última Páscoa, celebrada com os discípulos; com efeito, é a ele que parece aludir a anotação dos Evangelistas: «Depois de cantar os Salmos, saíram para o horto das Oliveiras» (cf.
Mt 26,30 Mc 14,26). O horizonte do louvor ilumina assim o caminho difícil do Gólgota. Todo o Salmo 136 se desenvolve em forma de ladainha, ritmado pela repetição da antífona, «porque o seu amor é para sempre». Ao longo da composição são citados os numerosos prodígios de Deus na história dos homens e as suas intervenções contínuas a favor do seu povo; e a cada proclamação da obra salvífica do Senhor, responde a antífona com a motivação fundamental do louvor: o amor eterno de Deus, um amor que, segundo o termo hebraico utilizado, exige fidelidade, misericórdia, bondade, graça e ternura. Este é o motivo unificador de todo o Salmo, repetido de forma sempre igual, enquanto mudam as suas manifestações pontuais e paradigmáticas: a criação, a libertação do êxodo, o dom da terra, a ajuda providente e constante do Senhor pelo seu povo e por todas as criaturas.

Depois de um tríplice convite à acção de graças ao Deus soberano (cf. vv. Ps 136,1-3), celebra-se o Senhor como Aquele que realiza «maravilhas» (v. Ps 136,4), a primeira das quais é a criação: o céu, a terra e os astros (cf. vv. Ps 136,5-9). O mundo criado não é um simples cenário no qual se insere o agir salvífico de Deus, mas é o próprio início daquele agir maravilhoso. Com a criação, o Senhor manifesta-se em toda a sua bondade e beleza, compromete-se com a vida, revelando uma vontade de bem da qual brotam todas as outras obras de salvação. E no nosso Salmo, evocando o primeiro capítulo do Génesis, o mundo criado é resumido nos seus elementos principais, insistindo em particular sobre os astros, o sol, a lua e as estrelas, criaturas magníficas que governam o dia e a noite. Aqui não se fala da criação do ser humano, mas ele está sempre presente; o sol e a lua servem para ele — para o homem — cadenciar o tempo da humanidade, pondo-a em relação com o Criador, sobretudo através da indicação dos tempos litúrgicos.

E é precisamente a festa da Páscoa que é evocada logo depois quando, passando à manifestação de Deus na história, começa o grande evento da libertação da escravidão egípcia, do êxodo traçado nos seus elementos mais significativos: a libertação do Egipto com o flagelo dos primogénitos egípcios, a saída do Egipto, a passagem do mar Vermelho, o caminho no deserto, até à entrada na Terra prometida (cf. vv. Ps 136,10-20). Estamos no momento originário da história de Israel. Deus interveio poderosamente para levar o seu povo à liberdade; através de Moisés, seu enviado, impôs-se ao faraó, revelando-se em toda a sua grandeza e, enfim, dominou a resistência dos Egípcios com o terrível flagelo da morte dos primogénitos. Assim Israel pode deixar o país da escravidão com o ouro dos seus opressores (cf. Ex 12,35-36), «de cabeça erguida» (Ex 14,8), no sinal exultante da vitória. Inclusive no mar Vermelho o Senhor age com poder misericordioso. Diante de um Israel assustado à vista dos Egípcios que o perseguem, a ponto de se arrepender de ter deixado o Egipto (cf. Ex 14,10-12) Deus, como diz o nosso Salmo, «dividiu em duas partes o mar Vermelho [...] fez passar Israel pelo meio [...] fazendo precipitar o faraó e o seu exército» (vv. Ps 136,13-15). A imagem do mar Vermelho «dividido» em dois parece evocar a ideia do mar como um grande monstro que é cortado em duas partes, tornando-se assim inofensivo. O poder do Senhor derrota o perigo das forças da natureza e militares postas em campo diante dos homens: o mar, que parecia impedir o caminho ao povo de Deus, deixa Israel passar por terra seca e depois volta a fechar-se sobre os Egípcios, arrasando-os. «A mão poderosa e o braço estendido» do Senhor (cf. Dt 5,15 Dt 7,19 Dt 26,8) mostram-se assim em toda a sua força salvífica: o opressor injusto foi derrotado, engolido pelas águas, enquanto o povo de Deus «passa pelo meio» para continuar o seu caminho rumo à liberdade.

Agora o nosso Salmo faz referência a este caminho, recordando com uma frase muito breve o longo peregrinar de Israel rumo à Terra prometida: «Guiou o seu povo pelo deserto, porque o seu amor é eterno» (v. Ps 136,16). Estas palavras encerram uma experiência de quarenta anos, um tempo decisivo para Israel que, deixando-se guiar pelo Senhor, aprende a viver de fé, na obediência e na docilidade à lei de Deus. São anos difíceis, marcados pela dureza da vida no deserto, mas também anos felizes, de confiança no Senhor, de confiança filial; é o tempo da «juventude», como o define o profeta Jeremias, falando a Israel, em nome do Senhor, com expressões cheias de ternura e de saudade: «Lembro-me da tua fidelidade, no tempo da tua mocidade, do amor dos teus desposórios, quando me seguias no deserto, naquela terra que não se semeia» (Jr 2,2). Como o pastor do Salmo 23, que pudemos contemplar numa catequese, por quarenta anos o Senhor guiou o seu povo, educou-o e amou-o, conduzindo-o até à Terra prometida, vencendo a resistência e hostilidade de povos inimigos que queriam impedir o seu caminho de salvação (cf. vv. Ps 136,17-20).

Na sucessão das «maravilhas» que o nosso Salmo enumera, chega-se assim ao momento do dom conclusivo, ao cumprimento da promessa divina feita aos Pais: «Entregou as suas terras como herança, porque o seu amor é eterno. Como património de Israel, seu servo, porque o seu amor é eterno!» (vv. Ps 136,21-22). Agora, na celebração do amor eterno do Senhor, faz-se memória do dom da terra, um dom que o povo deve receber sem nunca se apoderar dele, vivendo continuamente numa atitude de acolhimento reconhecido e grato. Israel recebe o território onde habitar como «herança», um termo que de modo genérico designa a posse de um bem recebido de outrem, um direito de propriedade que, de modo específico, faz referência ao património paterno. Uma das prerrogativas de Deus é «doar»; e agora, no fim do caminho do êxodo, Israel, destinatário do dom, como um filho, entra na Terra da promessa cumprida. Terminou o tempo da vadiagem, debaixo das tendas, numa vida caracterizada pela precariedade. Agora começou o tempo feliz da estabilidade, da alegria de construir as casas, de plantar as vinhas e de viver com segurança (cf. Dt 8,7-13). Mas é também o tempo da tentação idolátrica, da contaminação com os pagãos e da auto-suficiência que leva a esquecer a Origem do dom. Por isso, o Salmista menciona a humilhação e os inimigos, uma realidade de morte em que o Senhor, mais uma vez, se revela como Salvador: «No nosso abatimento ele lembrou-se de nós, porque a sua misericórdia é eterna. E livrou-nos dos nossos inimigos, porque a sua misericórdia é eterna» (vv. Ps 136,23-24).

Nesta altura surge a pergunta: como podemos fazer deste Salmo uma nossa oração, como podemos fazer nosso este Salmo para a nossa prece? A moldura do Salmo é importante, no início e no fim: é a criação. Voltaremos a este ponto: a criação como o grande dom de Deus do qual vivemos, no qual Ele se revela na sua bondade e grandeza. Portanto, ter presente a criação como dádiva de Deus é um ponto comum para todos nós. Depois, segue-se a história da salvação. Naturalmente, nós podemos dizer: esta libertação do Egipto, o tempo do deserto, a entrada na Terra Santa e depois os demais problemas, estão muito distantes de nós, não são a nossa história. Mas temos que prestar atenção à estrutura fundamental desta oração. A estrutura fundamental é que Israel se recorda da bondade do Senhor. Nesta história existem muitos vales obscuros, há numerosas passagens de dificuldade e de morte, mas Israel recorda-se que Deus era bom e pode sobreviver neste vale obscuro, neste vale da morte, porque se recorda. Tem a memória da bondade do Senhor, do seu poder; a sua misericórdia é válida eternamente. E isto é importante também para nós: ter uma memória da bondade do Senhor. A memória torna-se força da esperança. A memória diz-nos: Deus existe, Deus é bom, a sua misericórdia é eterna. E assim a memória abre, mesmo na obscuridade de um dia, de um tempo, o caminho rumo ao futuro: é luz e estrela que nos guia. Também nós temos uma memória do bem, do amor misericordioso e eterno de Deus. A história de Israel já é uma memória também para nós, do modo como Deus se manifestou e criou para Si um povo. Depois, Deus fez-se homem, um de nós: viveu connosco, sofreu connosco e morreu por nós. E permanece connosco no Sacramento e na Palavra. É uma história, uma memória da bondade de Deus que nos garante a sua bondade: o seu amor é eterno. E depois, também nestes dois mil anos da história da Igreja, há sempre de novo a bondade do Senhor. Após o período obscuro da perseguição nazista e comunista, Deus libertou-nos, demonstrou-nos que é bom, que é forte, que a sua misericórdia é válida para sempre. E, assim como na história comum, colectiva, está presente esta memória da bondade de Deus, ajuda-nos, torna-se para nós a estrela da esperança, também cada um tem a sua história pessoal de salvação, e realmente temos que valorizar esta história, ter sempre presente a memória das maravilhas que Ele fez inclusive na minha vida, para ter confiança: a sua misericórdia é eterna. E se hoje estou na noite obscura, amanhã Ele libertar-me-á, porque a sua misericórdia é eterna.

Voltemos ao Salmo, porque no final retorna à criação. O Senhor — diz assim — «dá o alimento a todos os seres vivos, porque a sua misericórdia é eterna» (v. Ps 136,25). A oração do Salmo conclui-se com um convite ao louvor: «Louvai o Deus do céu, porque a sua misericórdia é eterna». O Senhor é Pai bom e providente, que dá a herança aos próprios filhos e concede a todos o alimento para viver. O Deus que criou os céus, a terra e as grandes luzes celestes, que entra na história dos homens para levar à salvação todos os seus filhos é o Deus que enche o universo com a sua presença de bem, cuidando da vida e doando o pão. O poder invisível do Criador e Senhor, cantado no Salmo, revela-se na pequena visibilidade do pão que nos oferece, com o qual nos faz viver. E assim, este pão quotidiano simboliza e sintetiza o amor de Deus como Pai, e abre-nos ao cumprimento neotestamentário, àquele «pão de vida», a Eucaristia, que nos acompanha na nossa existência de crentes, antecipando a alegria definitiva do banquete messiânico no Céu.

Irmãos e irmãs, o louvor de bênção do Salmo 136 fez-nos repercorrer as etapas mais importantes da história da salvação, até chegar ao mistério pascal, em que a acção salvífica de Deus alcança o seu ápice. Portanto, é com alegria reconhecida que celebramos o Criador, Salvador e Pai fiel, que «Deus amou de tal modo o mundo, que lhe deu o seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna» (Jn 3,16). Na plenitude dos tempos, o Filho de Deus faz-se homem para dar a vida, para a salvação de cada um de nós, e oferece-se como pão no mistério eucarístico para nos fazer entrar na sua aliança, que nos torna filhos. A este ponto chegam a bondade misericordiosa de Deus e a sublimidade do seu «amor para sempre».

Por isso, quero concluir esta catequese, fazendo minhas as palavras que são João escreve na sua Primeira Carta e que deveríamos ter sempre presentes na nossa oração: «Vede com que amor nos amou o Pai, para que fôssemos chamados filhos de Deus. E de facto nós o somos» (1Jn 3,1). Obrigado!

Saudações

Amados peregrinos de língua portuguesa, sede bem-vindos! A todos saúdo com grande afeto e alegria, de modo especial a quantos vieram do Brasil com o desejo de encontrar o Sucessor de Pedro. “Vede que grande presente de amor o Pai nos deu: sermos chamados filhos de Deus! E nós o somos!” Possa Ele sempre vos abençoar a vós e as vossas famílias! Ide em paz!



Sala Paulo VI

26 de Outubro de 2011: Oração para preparação do Encontro de Assis

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Peregrinos da verdade, peregrinos da paz

Com alegria, vos acolho na Basílica de São Pedro e dou as minhas cordiais boas-vindas a todos vós que não conseguistes lugar na Aula Paulo VI. Vivei sempre unidos a Cristo e testemunhai com alegria o Evangelho. De coração, concedo a todos vós a minha Bênção.
* * *


Prezados irmãos e irmãs

Hoje, o encontro tradicional da Audiência geral assume um carácter particular, porque estamos na vigília do Dia de reflexão, diálogo e oração pela paz e a justiça no mundo, que terá lugar amanhã em Assis, vinte e cinco anos depois do primeiro encontro histórico convocado pelo Beato João Paulo II. Desejei dar a este Dia o título «Peregrinos da verdade, peregrinos da paz», para significar o compromisso que queremos renovar solenemente, com os membros de diversas religiões, e também com homens não crentes mas sinceramente em busca da verdade, na promoção do verdadeiro bem da humanidade e na construção da paz. Como já tive a oportunidade de recordar, «quem está a caminho de Deus não pode deixar de transmitir a paz; quem constrói a paz não pode deixar de se aproximar de Deus».

Como cristãos, estamos convictos de que a contribuição mais preciosa que podemos oferecer para a causa da paz é a oração. É por este motivo que, hoje, nos encontramos como Igreja de Roma, juntamente com os peregrinos presentes na Urbe, à escuta da Palavra de Deus, para invocar com fé o dom da paz. O Senhor pode iluminar a nossa mente e o nosso coração, e levar-nos a ser construtores de justiça e de reconciliação nas nossas realidades diárias e no mundo.

No trecho do profeta Zacarias, que há pouco ouvimos, ressoou um anúncio cheio de esperança e de luz (cf.
Za 9,10). Deus promete a salvação, convida a «soltar gritos de júbilo» porque esta salvação está a realizar-se. Fala-se de um rei: «Eis que o teu rei vem a ti; ele é justo e vitorioso» (v. Za 9,9), mas aquele que é anunciado não é um rei que se apresenta com o poder humano, com a força das armas; não é um rei que domina com o poder político e militar; é um rei manso, que reina com a humildade e a mansidão diante de Deus e dos homens, um rei diferente em relação aos grandes soberanos do mundo: «montado num jumento, um jumentinho, filho de uma jumenta», diz o profeta (Ibidem Za 9,9). Ele manifesta-se cavalgando o animal das pessoas comuns, do pobre, em contraste com os carros de guerra dos exércitos dos poderosos da terra. Aliás, é um rei que fará desaparecer tais carros, romperá os arcos de batalha e anunciará a paz às nações (cf. v. Za 9,10).

Mas quem é este rei de quem fala o profeta Zacarias? Vamos por um momento a Belém e voltemos a ouvir o que o Anjo diz aos pastores que vigiam de noite sobre o seu próprio rebanho. O Anjo anuncia uma alegria que será de todo o povo, ligada a um sinal pobre: um menino envolvido em panos, colocado numa manjedoura (cf. Lc 2,8-12). E a multidão celeste canta: «Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens do seu agrado» (v. Lc 2,14), aos homens de boa vontade. O nascimento daquele menino, que é Jesus, traz um anúncio de paz para o mundo inteiro. Mas vamos também aos momentos finais da vida de Cristo, quando Ele entra em Jerusalém e é recebido por uma multidão em festa. O anúncio do profeta Zacarias sobre a vinda de um rei humilde e manso voltou à mente dos discípulos de Jesus de modo particular depois dos acontecimentos da paixão, morte e ressurreição, do Mistério pascal, quando voltaram com os olhos da fé àquele ingresso jubiloso do Mestre na Cidade Santa. Ele cavalga uma jumenta emprestada (cf. Mt 21,2-7): não está numa carroça rica, nem a cavalo, como os grandes. Não entra em Jerusalém acompanhado por um poderoso exército de carros e de cavaleiros. Ele é um rei pobre, o rei daqueles que são os pobres de Deus. No texto grego aparece o termo praeîs, que significa os mansos, os pacíficos; Jesus é o rei dos anawim, daqueles que têm o coração livre da ambição de poder e de riqueza material, de vontade e de busca de domínio sobre o próximo. Jesus é o rei de quantos têm aquela liberdade interior que os torna capazes de superar a avidez e o egoísmo que existem no mundo, e sabem que só Deus é a sua riqueza. Jesus é rei pobre entre os pobres, manso entre aqueles que querem ser mansos. Deste modo, Ele é rei de paz, graças ao poder de Deus, que é o poder do bem, o poder do amor. É um rei que fará desaparecer os carros e os cavalos de batalha, que romperá os arcos de guerra; um rei que realiza a paz na Cruz, unindo a terra e o céu, e lançando uma ponte fraterna entre todos os homens. A Cruz é o novo arco de paz, sinal e instrumento de reconciliação, de perdão, de compreensão, sinal de que o amor é mais forte que toda a violência e toda a opressão, mais vigoroso que a morte: o mal vence-se com o bem, com o amor.

Este é o novo reino de paz, em que Cristo é o rei; e é um reino que se estende sobre toda a terra. O profeta Zacarias anuncia que este rei manso e pacífico dominará «de um mar a outro, e do Rio às extremidades da terra» (Za 9,10). O reino que Cristo inaugura tem dimensões universais. O horizonte deste rei pobre e manso não é de um território, de um Estado, mas são os confins do mundo; para além de toda a barreira de raça, língua e cultura, Ele cria comunhão e unidade. E onde vemos realizar-se hoje este anúncio? A profecia de Zacarias, na grande rede das comunidades eucarísticas que se estende por toda a terra, sobressai luminosa. É um grande mosaico de comunidades em que se torna presente o sacrifício de amor deste rei manso e pacífico; é o grande mosaico que constitui o «Reino de paz» de Jesus, de mar a mar, até aos confins do mundo; é uma multidão de «ilhas de paz», que irradiam a paz. Em toda a parte, em cada realidade e cultura, das grandes cidades com os seus edifícios, aos pequenos povoados com as moradas humildes, das catedrais poderosas às pequenas capelas Ele vem e torna-se presente; e ao entrarem em comunhão com Ele, também os homens permanecem unidos entre si num único corpo, superando divisão, rivalidades e rancores. O Senhor vem na Eucaristia para nos tirar do nosso individualismo, dos nossos particularismos que excluem os outros, para formar de nós um só corpo, um único reino de paz num mundo dividido.

Mas como podemos construir este reino de paz do qual Cristo é o rei? A exortação que Ele deixa aos seus Apóstolos e, através deles, a todos nós, é: «Ide, pois, e ensinai todas as nações... Eis que Eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo» (Mt 28,19). Como Jesus, os mensageiros de paz do seu reino devem pôr-se a caminho, devem responder ao seu convite. Devem partir, mas não com o poder da guerra, nem com a força do poder. No trecho do Evangelho que ouvimos, Jesus envia setenta e dois discípulos para a grande messe que é o mundo, convidando-os a pedir ao Senhor da messe, a fim de que nunca faltem trabalhadores para a sua messe (cf. Lc 10,1-3); e não os envia com meios poderosos, mas sim «como cordeiros para o meio de lobos» (v. Lc 10,3), sem bolsa, nem alforje, nem sandálias (cf. v. Lc 10,4). Numa das suas Homilias, são João Crisóstomo comenta: «Enquanto formos cordeiros, venceremos e, mesmo que sejamos circundados por numerosos lobos, conseguiremos superá-los. Mas se nos tornarmos lobos, seremos derrotados, porque ficaremos desprovidos da ajuda do pastor» (Homilia 33, 1: PG 57,389). Os cristãos jamais devem ceder à tentação de se tornar lobos no meio dos lobos; não é com o poder, com a força e a violência que o reino de paz de Cristo se difunde, mas com o dom de si, com o amor levado ao extremo, também aos inimigos. Jesus não vence o mundo com a força das armas, mas com a força da Cruz, que é a verdadeira garantia da vitória. E isto, para quem quer ser discípulo do Senhor, seu enviado, tem como consequência o estar pronto também à paixão e ao martírio, a perder a própria vida por Ele, para que no mundo triunfem o bem, o amor e a paz. Esta é a condição para poder dizer, entrando em cada realidade: «A paz esteja nesta casa!» (Lc 10,5).

Diante da Basílica de São Pedro encontram-se duas estátuas grandes dos santos Pedro e Paulo, facilmente identificáveis: são Pedro está com as chaves na mão, e são Paulo, ao contrário, tem nas mãos uma espada. Para quem não conhece a história deste último, poderia pensar que se trata de um grande comandante que guiou exércitos poderosos e com a espada submeteu povos e nações, alcançando fama e riqueza com o sangue dos outros. No entanto, é exactamente o contrário: a espada que ele tem nas mãos é o instrumento com que Paulo foi morto, com que padeceu o martírio e derramou o seu próprio sangue. A sua batalha não foi a da violência, da guerra, mas a do martírio por Cristo. A sua única arma foi precisamente o anúncio de «Jesus Cristo, e Cristo crucificado» (1Co 2,2). A sua pregação não se fundou «em discursos persuasivos da sabedoria humana, mas na manifestação do Espírito e do poder divino» (v. 1Co 2,4). Dedicou a sua vida ao anúncio da mensagem de reconciliação e de paz do Evangelho, despendendo todas as suas energias para o fazer ressoar até aos confins da terra. E esta foi a sua força: não procurou uma vida sossegada, cómoda, longe das dificuldades e das contrariedades, mas consumiu-se pelo Evangelho, entregou-se inteiramente a si mesmo sem reservas, e assim tornou-se o grande mensageiro da paz e da reconciliação de Cristo. A espada que são Paulo tem nas mãos evoca o poder da verdade, que muitas vezes pode ferir, pode fazer mal; o Apóstolo permaneceu fiel a esta verdade até ao fim, serviu-a, sofreu por ela e dedicou-lhe a sua vida. Esta mesma lógica é válida também para nós, se quisermos ser portadores do reino de paz anunciado pelo profeta Zacarias e realizado por Cristo: devemos estar dispostos a pagar pessoalmente, a padecer em primeira pessoa a incompreensão, a rejeição e a perseguição. Não é a espada do conquistador que constrói a paz, mas a espada do sofredor, de quem sabe entregar a própria vida.

Caros irmãos e irmãs, como cristãos queremos invocar de Deus o dom da paz, desejamos pedir-lhe que nos torne instrumentos da sua paz num mundo ainda dilacerado pelo ódio, por divisões, egoísmos e guerras, queremos pedir-lhe que o encontro de amanhã em Assis favoreça o diálogo entre pessoas de diferentes pertenças religiosas e traga um raio de luz capaz de iluminar a mente e o coração de todos os homens, para que o rancor ceda o lugar ao perdão, a divisão à reconciliação, o ódio ao amor e a violência à mansidão, e para que no mundo reine a paz. Amém!

Saudação

Uma saudação amiga e encorajadora para todos os peregrinos de língua portuguesa, com menção especial dos grupos brasileiros de Aracajú, Cachoeira Paulista, Gama, Recife e Rio de Janeiro. Conto com a vossa oração pelos Representantes das várias Religiões que amanhã se reúnem em Assis, a bem da justiça e da paz sobre a terra. Sobre vós e vossos familiares, desça a minha Bênção.



Sala Paulo VI

2 de Novembro de 2011: Celebração dedicada aos fiéis falecidos


Audiências 2005-2013 12101