Audiências 2005-2013 21111

2 de Novembro de 2011: Celebração dedicada aos fiéis falecidos

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Estimados irmãos e irmãs!

Depois de ter celebrado a Solenidade de Todos os Santos, hoje a Igreja convida-nos a comemorar todos os fiéis defuntos, a dirigir o nosso olhar para os numerosos rostos que nos precederam e que concluíram o caminho terreno. Na Audiência deste dia, então, gostaria de vos propor alguns pensamentos simples sobre a realidade da morte, que para nós cristãos é iluminada pela Ressurreição de Cristo, e para renovar a nossa fé na vida eterna.

Como disse ontem no Angelus, nestes dias vamos ao cemitério para rezar pelas pessoas queridas que nos deixaram, é quase como ir visitá-las para lhes manifestar, mais uma vez, o nosso carinho, para as sentir ainda próximas, recordando também, deste modo, um artigo do Credo: na comunhão dos Santos há um vínculo estreito entre nós que ainda caminhamos nesta terra e muitos irmãos e irmãs que já alcançaram a eternidade.

Desde sempre, o homem preocupou-se pelos seus mortos e procurou conferir-lhes uma espécie de segunda vida, através da atenção, do cuidado e do carinho. De certa maneira, deseja-se conservar a sua experiência de vida; e, paradoxalmente, como eles viveram, o que amaram, o que temeram e o que detestaram, nós descobrimo-lo precisamente a partir dos túmulos, diante dos quais se apinham recordações. Estas são como que um espelho do seu mundo.

Por que é assim? Porque, não obstante a morte seja com frequência um tema quase proibido na nossa sociedade, e haja a tentativa contínua de eliminar da nossa mente até o pensamento da morte, ela diz respeito a cada um de nós, refere-se ao homem de todos os tempos e de todos os espaços. E diante deste mistério todos, também inconscientemente, procuramos algo que nos convide a esperar, um sinal que nos dê consolação, que abra algum horizonte, que ofereça ainda um futuro. Na realidade, o caminho da morte é uma senda da esperança, e percorrer os nossos cemitérios, como também ler as inscrições sobre os túmulos é realizar um caminho marcado pela esperança de eternidade.

Mas perguntamo-nos: por que sentimos medo diante da morte? Por que motivo uma boa parte da humanidade nunca se resignou a acreditar que para além dela não existe simplesmente o nada? Diria que as respostas são múltiplas: temos medo diante da morte, porque temos medo do nada, este partir rumo a algo que não conhecemos, que nos é desconhecido. E então em nós existe um sentido de rejeição, porque não podemos aceitar que tudo quanto de belo e grande foi realizado durante uma existência inteira seja repentinamente eliminado e precipite no abismo no nada. Sobretudo, nós sentimos que o amor evoca e exige a eternidade, e não é possível aceitar que ele seja destruído pela morte num só instante.

Além disso, temos medo diante da morte porque, quando nos encontramos próximos do fim da existência, há a percepção de que existe um juízo sobre as nossas obras, sobre o modo como conduzimos a nossa vida, principalmente sobre aqueles pontos de sombra que, com habilidade, muitas vezes sabemos anular ou tentamos remover da nossa consciência. Diria que precisamente a questão do juízo está com frequência subjacente ao cuidado do homem de todos os tempos pelos finados, a atenção pelas pessoas que foram significativas para ele e que não estão mais ao seu lado no caminho da vida terrena. Num certo sentido, os gestos de carinho e de amor que circundam o defunto constituem um modo para o proteger, na convicção de que eles não permaneçam sem efeito na hora do juízo. Podemos ver isto na maior parte das culturas que caracterizam a história do homem.

Hoje o mundo tornou-se, pelo menos aparentemente, muito mais racional, ou melhor, difundiu-se a tendência a pensar que cada realidade deve ser enfrentada com os critérios da ciência experimental, e que também à grandiosa interrogação da morte é necessário responder não tanto com a fé, mas a partir de conhecimentos experimentais, empíricos. Porém, não nos damos conta de modo suficiente, de que precisamente desta maneira terminamos por cair em formas de espiritismo, na tentativa de manter algum contacto com o mundo para além da morte, quase imaginando que existe uma realidade que, no final, seria uma réplica da vida presente.

Caros amigos, a Solenidade de Todos os Santos e a Comemoração de todos os fiéis defuntos dizem-nos que somente quem pode reconhecer uma grande esperança na morte, pode também levar uma vida a partir da esperança. Se nós reduzirmos o homem exclusivamente à sua dimensão horizontal, àquilo que se pode sentir de forma empírica, a própria vida perde o seu profundo sentido. O homem tem necessidade de eternidade, e para ele qualquer outra esperança é demasiado breve, é demasiado limitada. O homem só é explicável, se existir um Amor que supere todo o isolamento, também o da morte, numa totalidade que transcenda até o espaço e o tempo. O homem só é explicável, só encontra o seu sentido mais profundo, se Deus existir. E nós sabemos que Deus saiu do seu afastamento e fez-se próximo, entrou na nossa vida e diz-nos: «Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, jamais morrerá» (
Jn 11,25-26).

Pensemos por um momento na cena do Calvário e voltemos a ouvir as palavras que Jesus, do alto da Cruz, dirige ao malfeitor crucificado à sua direita: «Em verdade te digo: hoje estarás comigo no Paraíso» (Lc 23,43). Pensemos nos dois discípulos no caminho de Emaús quando, depois de terem percorrido um trecho da estrada com Jesus Ressuscitado, O reconhecem e, sem hesitar, partem rumo a Jerusalém para anunciar a Ressurreição do Senhor (cf. Lc 24,13-35). Voltam à mente com clareza renovada as palavras do Mestre: «Não se turve o vosso coração: credes em Deus, crede também em mim. Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fora, ter-vo-lo-ia dito; pois vou preparar-vos um lugar?» (Jn 14,1-2). Deus revelou-se verdadeiramente, tornou-se acessível e amou de tal modo o mundo, «que lhe deu o seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna» (Jn 3,16), e no supremo gesto de amor da Cruz, mergulhando no abismo da morte, venceu-a, ressuscitou e abriu também para nós as portas da eternidade. Cristo sustém-nos através da noite da morte que Ele mesmo atravessou; é o Bom Pastor, a cuja guia podemos confiar sem qualquer temor, porque Ele conhece bem o caminho, até através da obscuridade.

Cada domingo, recitando o Credo, nós confirmamos esta verdade. E visitando os cemitérios para rezar com afecto e com amor pelos nossos defuntos, somos convidados, mais uma vez, a renovar com coragem e com força a nossa fé na vida eterna, aliás, a viver com esta grande esperança e testemunhá-la ao mundo: por detrás do presente não existe o nada. E é precisamente a fé na vida eterna que confere ao cristão a coragem de amar ainda mais intensamente esta nossa terra e de trabalhar para lhe construir um futuro, para lher dar uma esperança verdadeira e segura. Obrigado!

Saudação

Saúdo com afeto os peregrinos de língua portuguesa, em particular os brasileiros vindos de diversas cidades do Estado de São Paulo. Exorto-vos a construir a vossa vida aqui na terra trabalhando por um futuro marcado por uma esperança verdadeira e segura, que abra para a vida eterna. Que Deus vos abençoe!




Praça de São Pedro

9 de Novembro de 2011: Salmo 119 (118)

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Prezados irmãos e irmãs

Nas últimas catequeses reflectimos sobre alguns Salmos que são exemplos dos géneros típicos da oração: lamentação, confiança e louvor. Na catequese de hoje, gostaria de meditar sobre o Salmo 119 segundo a tradição judaica, e 118 segundo a tradição greco-latina: um Salmo muito particular, único do seu género. Antes de tudo, pelo seu comprimento: com efeito, é composto por 176 versículos, divididos em 22 estrofes de oito versículos cada uma. Além disso, tem a peculiaridade de ser um «acróstico alfabético»: ou seja, é construído segundo o alfabeto hebraico, que é composto por 22 letras. Cada estrofe corresponde a uma letra daquele alfabeto, e com tal letra começa a primeira palavra dos oito versículos da estrofe. Trata-se de uma construção literária original e muito difícil, em que o autor do Salmo teve de demonstrar toda a sua habilidade.

Mas aquilo que para nós é mais importante é a temática central deste Salmo: com efeito, trata-se de um imponente e solene canto sobre a Torah do Senhor, ou seja sobre a sua Lei, um termo que na sua acepção mais ampla e completa, deve ser compreendido como ensinamento, instrução, directriz de vida; a Torah é revelação, é Palavra de Deus que interpela o homem e suscita a sua resposta de obediência confiante e de amor generoso. E este salmo está inteiramente impregnado de amor pela Palavra de Deus, o qual celebra a sua beleza, a sua força salvífica, a sua capacidade de doar alegria e vida. Porque a Lei divina não é um jugo pesado de escravidão, mas um dom de graça que nos torna livres e nos leva para a felicidade. «Delicio-me com as vossas leis, jamais esquecerei as vossas palavras», afirma o Salmista (v.
Ps 119,16); e depois: «Dirigi-me pela senda dos vossos preceitos, porque neles me deleito» (v. Ps 119,35); e ainda: «Quanto amo a vossa lei! Nela medito todos os dias» (v. Ps 119,97). A Lei do Senhor, a sua Palavra, é o centro da vida do orante; aí encontra consolação, dela faz objecto de meditação e conserva-a no seu coração: «Guardo no meu coração as vossas promessas, para não pecar contra Vós» (v. Ps 119,11): este é o segredo da felicidade do Salmista; e depois ainda: «Os soberbos forjam mentiras contra mim, mas com toda a alma quero guardar os vossos mandamentos» (v. Ps 119,69).

A fidelidade do Salmista nasce da escuta da Palavra, a conservar no íntimo, meditando-a e amando-a, precisamente como Maria, que «conservava, poderando-as no seu coração», as palavras que lhe tinham sido dirigidas e os acontecimentos maravilhosos em que Deus se revelava, pedindo o seu consentimento de fé (cf. Lc 2,19 Lc 2,51). E se o nosso Salmo começa nos primeiros versículos, proclamando «feliz» «os que conduzem os seus passos na Lei do Senhor» (v. Ps 119,1b) e «quantos observam os seus preceitos» (v. Ps 119,2a), é ainda a Virgem Maria que completa a figura perfeita do crente, descrito pelo Salmista. Com efeito, Ela é a verdadeira «bem-aventurada», assim proclamada por Isabel, porque «acreditou que teriam cumprimento as coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor» (Lc 1,45), e é dela e da sua fé que o próprio Jesus dá testemunho quando, à mulher que tinha bradado: «Felizes as entranhas que te trouxeram», responde: «Felizes aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática!» (Lc 11,27-28). Sem dúvida, Maria é feliz porque o seu ventre trouxe o Salvador, mas principalmente porque acolheu o anúncio de Deus e foi guardiã atenta e amorosa da sua Palavra.

Por conseguinte, o Salmo 119 desenvolve-se inteiramente ao redor desta Palavra de vida e de bem-aventurança. Embora o seu tema central sejam a «Palavra» e a «Lei» do Senhor, ao lado destes termos recorrem em quase todos os versículos sinónimos como «preceitos», «decretos», «ordens», «ensinamentos», «promessa», «juízos»; e além disso muitos verbos a eles correlativos, como observar, guardar, compreender, conhecer, amar, meditar e viver. Todo o alfabeto se desenvolve através das 22 estrofes deste Salmo, e também todo o vocabulário da relação confiante do crente com Deus; aqui encontramos o louvor, a acção de graças, a confiança, mas inclusive a súplica e a lamentação, porém sempre imbuídos da certeza da graça divina e do poder da Palavra de Deus. Também os versículos mais marcados pela dor e pelo sentido de obscuridade permanecem abertos à esperança e são permeados de fé. «A minha alma está colada ao pó; dai-me a vida, segundo a vossa palavra» (v. Ps 119,25), reza confiante o Salmista; «Sou como odre exposto ao fumo, mas não esqueço os vossos preceitos» (v. Ps 119,83), é o seu clamor de crente. Mesmo sendo posta à prova, a sua fidelidade encontra força na Palavra do Senhor: «Assim, darei resposta àquele que me insulta, porque confio na vossa palavra» (v. Ps 119,42), diz ele com firmeza; e inclusive diante da perspectiva angustiante da morte, os decretos do Senhor constituem o seu ponto de referência e a esperança de vitória: «Por pouco não me eliminaram desta terra, mas eu nunca renego os vossos preceitos» (v. Ps 119,87).

A lei divina, objecto do amor apaixonado do Salmista e de cada crente, é fonte de vida. O desejo de a compreender, de a observar e de orientar para ela todo o seu ser é a característica do homem justo e fiel ao Senhor, que a «medita dia e noite», como recita o Salmo 1 (v. Ps 1,2); trata-se de uma lei, a de Deus, que devemos conservar «no coração», como reza o famoso texto do Shema no Deuteronómio:

Escuta, ó Israel... Estes mandamentos que hoje te imponho serão gravados no teu coração. Ensiná-los-ás aos teus filhos, e meditá-los-ás quer em tua casa, quer em viagem, quer ao deitar-te, ou ao levantar-te (Dt 6,4 Dt 6,6-7).

Centro da existência, a Lei de Deus exige a escuta do coração, uma escuta feita de obediência não servil, mas filial, confiante e consciente. A escuta da Palavra é encontro pessoal com o Senhor da vida, um encontro que deve traduzir-se em escolhas concretas e tornar-se caminho e seguimento. Quando se lhe pergunta o que é necessário fazer para alcançar a vida eterna, Jesus aponta o caminho da observância da Lei, mas indicando o modo de o fazer para lhe dar cumprimento: «Falta-te apenas uma coisa: vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me!» (Mc 10,21 e par.). O cumprimento da Lei consiste em seguir Jesus, percorrer o caminho de Jesus, em companhia de Jesus.

Portanto, o Salmo 119 leva-nos ao encontro com o Senhor e orienta-nos para o Evangelho. Ele contém um versículo sobre o qual agora gostaria de meditar: é o v. 57: «Eu declarei, Senhor, ser meu quinhão guardar os vossos mandamentos». Também noutros Salmos o orante afirma que o Senhor é o seu «quinhão», a sua herança: «Senhor, Vós sois a parte da minha herança e da minha taça», recita o Salmo 16 (v. Ps 16,5a), «O Senhor é para sempre a rocha do meu coração e a minha herança» é a proclamação do fiel no Salmo 73 (v. Ps 73,26 b), e ainda, no Salmo 142, o Salmista clama ao Senhor: «Vós sois o meu refúgio, Vós sois o meu quinhão na terra dos vivos» (v. Ps 142,6b).

Este termo, «quinhão», evoca o acontecimento da repartição da terra prometida entre as tribos de Israel, quando não foi atribuída aos levitas porção alguma de território, porque o seu «quinhão» era o próprio Senhor. Dois textos do Pentateuco são explícitos a este propósito, utilizando o termo em questão: «O Senhor disse a Aarão: “Nada possuirás na terra deles, e não terás parte alguma entre eles. Eu sou a tua parte e a tua herança no meio dos israelitas”», assim declara o Livro dos Números (Nb 18,20), e o Deuteronómio reitera: «Por isso, Levi não teve parte nem herança entre os seus irmãos: Deus é a sua herança, como lhe prometeu o Senhor, teu Deus» (Dt 10,9 cf. Dt 18,2 Gn 13,33 Ez 44,28).

Os sacerdotes, pertencentes à tribo de Levi, não podem ser proprietários de terras no país que Deus oferecia em herança ao seu povo, cumprindo a promessa feita a Abraão (cf. Gn 12,1-7). A posse da terra, elemento fundamental de estabilidade e de possibilidade de sobrevivência, era um sinal de bênção, porque implicava a possibilidade de construir uma casa, de aí crescer os próprios filhos, de cultivar os campos e de viver dos frutos da terra. Pois bem os levitas, mediadores do sagrado e da bênção divina, não podem ter, como os outros israelitas, este sinal exterior da bênção e esta fonte de subsistência. Inteiramente consagrados ao Senhor, devem viver apenas dele, abandonados ao seu amor providencial e à generosidade dos seus irmãos, sem dispor de uma herança porque Deus é o seu quinhão de herança, Deus é a sua terra, que os faz viver em plenitude.

E agora, o orante do Salmo 119 aplica a si mesmo esta realidade: «O Senhor é o meu quinhão». O seu amor a Deus e à sua Palavra leva-o à escolha radical de possuir o Senhor como único bem e também de conservar as suas palavras com um dom inestimável, mais precioso que toda a herança e toda a posse terrena. Com efeito, o nosso versículo tem a possibilidade de uma dupla tradução e poderia ser apresentado também do seguinte modo: «Eu declarei, Senhor, ser meu quinhão guardar as vossas palavras». As duas traduções não se contradizem mas, ao contrário, completam-se reciprocamente: o Salmista afirma que a sua parte é o Senhor, mas que também conservar as palavras divinas é a sua herança, como depois dirá no v. 111: «A minha herança serão sempre as vossas ordens, elas são a alegria da minha alma». Esta é a felicidade do Salmista: a ele, assim como aos levitas, foi confiada como porção de herança a Palavra de Deus.

Caríssimos irmãos e irmãs, estes versículos são de grande importância também hoje, para todos nós. Em primeiro lugar para os sacerdotes, chamados a viver unicamente do Senhor e da sua Palavra, sem outras seguranças, possuindo-O como único bem e única fonte de vida verdadeira. É nesta luz que se compreende a livre escolha do celibato pelo Reino dos céus, a ser redescoberto na sua beleza e força. Mas estes versículos são importantes também para todos os fiéis, povo de Deus pertencente unicamente a Ele, «reino de sacerdotes» pelo Senhor (cf. 1P 2,9 Ap 1,6 Ap 5,10), chamados à radicalidade do Evangelho, testemunhas da vida trazida por Cristo, novo e definitivo «Sumo Sacerdote», que se ofereceu em sacrifício pela salvação do mundo (cf. He 2,17 He 4,14-16 He 5,5-10 He 9,11 ss.). O Senhor e a sua Palavra: eis a nossa «terra», na qual viver na comunhão e alegria.

Portanto, deixemos que o Senhor grave no nosso coração este amor pela sua Palavra, e que nos conceda de O ter, bem como a sua santa vontade, sempre no centro da nossa existência. Peçamos que a nossa prece e toda a nossa vida sejam iluminadas pela Palavra de Deus, lâmpada para os nossos passos e luz para o nosso caminho, como diz o Salmo 119 (cf. v. Ps 119,105), de tal modo que o nosso caminhar seja seguro, na terra dos homens. E Maria, que acolheu e gerou a Palavra, seja a nossa guia e o nosso conforto, estrela polar que indica o caminho da felicidade.

Então, também nós poderemos alegrar-nos na nossa oração, como o orante do Salmo 16, pelos dons inesperados do Senhor e a herança imerecida que nos coube como sorte:

«Senhor, Vós sois a parte da minha herança e da minha taça...
As medidas caíram-me em lugares aprazíveis,
e agrada-me a minha herança» (Ps 16,5 Ps 16,6).

Saudação

Com cordial afecto, saúdo todos os peregrinos de língua portuguesa, em especial os brasileiros da paróquia de Nossa Senhora da Glória. Que o Senhor vos encha o coração de um grande amor pela sua Palavra, para poderdes colocar a sua vontade no centro da vossa vida, como a Virgem Maria. Ela que acolheu e gerou a Palavra divina, seja a vossa guia e conforto, o astro luminoso que aponta o caminho da felicidade. Em penhor do muito bem que vos quero, dou-vos a minha Bênção Apostólica.




Praça de São Pedro

16 de Novembro de 2011: O Rei Messias - Salmo 110 (109)

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Queridos irmãos e irmãs,

Gostaria de terminar hoje as minhas catequeses sobre a oração do Saltério meditando acerca de um dos mais famosos «Salmos reais», um Salmo que o próprio Jesus citou e que os autores do Novo Testamento retomaram e leram amplamente com referência ao Messias, a Cristo. Trata-se do Salmo 110 segundo a tradição judaica, 109 segundo a greco-latina: um Salmo muito amado pela Igreja antiga e pelos crentes de todos os tempos. Inicialmente esta oração talvez estivesse relacionada com a entronização de um rei davídico; contudo o seu sentido vai além da específica contingência do facto histórico abrindo-se a dimensões mais amplas e tornando-se assim celebração do Messias vitorioso, glorificado à direita de Deus.

O Salmo inicia com uma declaração solene:
Oráculo do Senhor ao meu senhor:
«Senta-te à minha direita, enquanto ponho os teus inimigos como escabelo dos teus pés» (v.
Ps 110,1).

O próprio Deus entroniza o rei na glória, fazendo-o sentar à sua direita, um sinal de grandíssima honra e de absoluto privilégio. O rei é admitido desta forma a participar do senhorio divino, do qual é mediador junto do povo. Este senhorio do rei concretiza-se também na vitória sobre os adversários, que são colocados aos seus pés pelo próprio Deus; a vitória sobre os inimigos é do Senhor, mas o rei é disso tornado partícipe e o seu triunfo torna-se testemunho e sinal do poder divino.

A glorificação real expressa neste início do Salmo foi assumida no Novo Testamento como profecia messiânica; por isso o versículo é um dos mais usados pelos autores neotestamentais, ou como citação explícita ou como alusão. O próprio Jesus mencionou este versículo a propósito do Messias para mostrar que o Messias é mais do que David, é o Senhor de David (cf. Mt 22,41-45 Mc 12,35-37 Lc 20,41-44). E Pedro retoma-o no seu sermão de Pentecostes, anunciando que com a ressurreição de Cristo se realiza esta entronização do rei e que a partir de agora Cristo está à direita do Pai, participa do Senhorio de Deus sobre o mundo (cf. Ac 2,29-35). De facto, é o Cristo, o Senhor entronizado, o Filho do homem sentado à direita de Deus que vem sobre as nuvens do céu, como o próprio Jesus se define durante o processo diante do Sinédrio (cf. Mt 26,63-64 Mc 14,61-62 cf. também Lc 22,66-69). É Ele o verdadeiro rei que com a sua ressurreição entrou na glória à direita do Pai (cf. Rm 8,34 Ep 2,5 Col 3,1 He 8,1 He 12,2), feito superior aos anjos, sentado no céu acima de qualquer poder e com todos os adversários aos seus pés, até quanto a última inimiga, a morte, for derrotada definitivamente por Ele (cf. 1Co 15,24-26 Ep 1,20-23 He 1,3-4 He 1,13 He 2,5-8 He 10,12-13 1P 3,22). E compreende-se imediatamente que este rei que está à direita de Deus e participa do seu Senhorio, não é um destes homens sucessores de David, mas só o novo David, o Filho de Deus que venceu a morte e participa realmente na glória de Deus. É o nosso rei, que nos dá também a vida eterna.

Existe, por conseguinte, uma relação inseparável entre o rei celebrado pelo nosso Salmo e Deus; os dois governam juntos um único governo, a tal ponto que o Salmista pode afirmar que é o próprio Deus quem estende o ceptro do soberano atribuindo-lhe a tarefa de dominar sobre os seus adversários, como recita o versículo 2:

O ceptro do teu poder ser-te-á enviado desde Sião pelo Senhor:
domina no meio dos teus inimigos!

O exercício do poder é um encargo que o rei recebe directamente do Senhor, uma responsabilidade que deve viver na dependência e na obediência, tornando-se assim sinal, no âmbito do povo, da presença poderosa e providente de Deus. O domínio sobre os inimigos, a glória e a vitória são dons recebidos, que fazem do soberano um mediador do triunfo divino sobre o mal. Ele domina sobre os inimigos transformando-os, e vencendo-os com o seu amor.

Por isso, no versículo seguinte, celebra-se a grandeza do rei. O versículo 3, na realidade, apresenta algumas dificuldades de interpretação. No texto original judaico faz-se referência à convocação do exército à qual o povo responde generosamente estreitando-se ao seu soberano no dia da sua coroação. A tradução grega dos LXX, que remonta aos séculos III-II antes de Cristo, ao contrário faz referência à filiação divina do rei, ao seu nascimento ou geração da parte do Senhor, e é esta a escolha interpretativa de toda a tradição da Igreja, pela qual o versículo ressoa do seguinte modo:

Desde o dia do teu nascimento receberás o principado,
no esplendor sagrado desde o seio materno,
desde a aurora da tua infância.

Este oráculo divino sobre o rei afirmaria portanto uma geração divina repleta de esplendor e de mistério, uma origem secreta e imperscrutável, ligada à beleza arcana da aurora e ao prodígio do orvalho que à luz do amanhecer brilha sobre os campos e os torna fecundos. Delineia-se assim, indissoluvelmente relacionada com a realidade celeste, a figura do rei que vem realmente de Deus, do Messias que leva ao povo a vida divina e é mediador de santidade e de salvação. Também aqui vemos que tudo isto não é realizado pela figura de um rei davídico, mas pelo Senhor Jesus Cristo, que provém realmente de Deus; Ele é a luz que traz a vida divina ao mundo.

Com esta sugestiva e enigmática imagem termina a primeira estrofe do Salmo, à qual se segue outro oráculo, que abre uma nova perspectiva, em sintonia com uma dimensão conexa com a realeza. O versículo 4 recita:

O Senhor jurou e não voltará atrás:
«Tu és sacerdote para sempre
segundo a ordem de Melquisedeque».

Melquisedeque era o sacerdote rei de Salém que tinha abençoado Abraão e oferecido pão e vinho depois da vitoriosa campanha militar guiada pelo patriarca para salvar o sobrinho Lot das mãos dos inimigos que o tinham capturado (cf. Gn 14). Na figura de Melquisedeque, poder real e sacerdotal convergem e são agora proclamados pelo Senhor numa declaração que promete eternidade: o rei celebrado pelo Salmo será sacerdote para sempre, mediador da presença divina no meio do seu povo, através da bênção que vem de Deus e que na acção litúrgica se encontra com a resposta bendizente do homem.

A Carta aos Hebreus faz referência explícita a este versículo (cf. He 5,5-6 He 5,10 He 6,19-20) e centra sobre ele todo o capítulo 7, elaborando a sua reflexão sobre o sacerdócio de Cristo. Jesus, assim nos diz a Carta aos Hebreus à luz do salmo 110(109), é o sacerdote verdadeiro e definitivo, que dá cumprimento às características do sacerdócio de Melquisedeque tornando-as perfeitas.

Melquisedeque, como diz a Carta aos Hebreus, não tinha «pai, nem mãe, nem genealogia» (He 7,3a), por conseguinte sacerdote não segundo as regras dinásticas do sacerdócio levítico. Por isso, ele «é sacerdote para sempre» (He 7,3c), prefiguração de Cristo, sumo sacerdote perfeito que «não se tornou tal segundo uma lei prescrita pelos homens, mas pelo poder de uma vida indestrutível» (He 7,16). No Senhor Jesus que ressuscitou e subiu ao céu, onde está sentado à direita do Pai, concretiza-se a profecia do nosso Salmo e o sacerdócio de Melquisedeque é levado a cumprimento, porque é absoluto e eterno, tendo-se tornado uma realidade que não conhece ocaso (cf. He 7,24). E a oferta do pão e do vinho, realizada por Melquisedeque no tempo de Abraão, tem o seu cumprimento no gesto eucarístico de Jesus, que no pão e no vinho se oferece a si mesmo e, uma vez vencida a morte, leva à vida todos os crentes. Sacerdote perene, «santo, inocente, sem mancha» (He 7,26), ele, como diz ainda a Carta os Hebreus, «pode salvar perfeitamente os que por Ele se aproximam de Deus, vivendo sempre para interceder em seu favor» (He 7,25).

Depois deste oráculo divino do versículo 4, com o seu juramento solene, o cenário do Salmo muda e o poeta, dirigindo-se directamente ao rei, proclama: «O Senhor está à tua direita!» (v. Ps 110,5a). Se no versículo 1 era o rei quem se sentava à direita de Deus em sinal de sumo prestígio e de honra, agora é o Senhor que se coloca à direita do soberano para o proteger com o escudo na batalha e para o salvar de qualquer perigo. O rei está protegido. Deus é o seu defensor e juntos combatem e vencem qualquer mal.

Abrem-se assim os versículos finais do Salmo com a visão do soberano triunfante que, apoiado pelo Senhor, tendo recebido d'Ele poder e glória (cf. v. Ps 110,2), se opõe aos inimigos dispersando os adversários e julgando as nações. A escolha é apresentada com fortes tonalidades, para significar a dramaticidade do combate e a plenitude da vitória real. O soberano, protegido pelo Senhor, abate qualquer obstáculo e procede seguro rumo à vitória. Diz-nos: sim, há tanto mal no mundo, há uma batalha permanente entre o bem e o mal, e parece que o mal é mais forte. Não, o Senhor é mais forte, o nosso verdadeiro rei e sacerdote Cristo, porque combate com toda a força de Deus e, apesar de todas as coisas que nos fazem ter dúvidas sobre o êxito positivo da história, vence Cristo e vence o bem, vence o amor e não o ódio.

Insere-se aqui a imagem sugestiva com a qual se conclui o nosso Salmo, que é também uma palavra enigmática.

Bebe da torrente no caminho
e, logo a seguir, ergue a cabeça (v. Ps 110,7).

No meio da descrição da batalha, sobressai a figura do rei que, num momento de trégua e de repouso, mata a sede na torrente de água, encontrando nela alívio e novo vigor, de modo a poder retomar o seu caminho triunfante, de cabeça levantada, em sinal de vitória definitiva. É óbvio que esta palavra muito enigmática era um desafio para os Padres da Igreja devido às diversas interpretações que se podiam dar. Assim, por exemplo, santo Agostinho diz: esta torrente é o ser humano, a humanidade, e Cristo bebeu desta torrente tornando-se homem, e desta forma, entrando na humanidade do ser humano, levantou a cabeça e agora é a cabeça do Corpo místico, é a nossa cabeça, é o vencedor definitivo (cf. Enarratio in Psalmum CIX, 20: PL 36, 1462).

Queridos amigos, seguindo a linha interpretativa do Novo Testamento, a tradição da Igreja teve em grande consideração este Salmo como um dos textos messiânicos mais significativos. E, de forma eminente, os Padres a ele fizeram referência contínua em chave cristológica: o rei cantado pelo Salmista é, definitivamente Cristo, o Messias que instaura o Reino de Deus e vence os poderes do mundo, é o Verbo gerado pelo Pai antes de todas as criaturas, antes da aurora, o Filho encarnado morto e ressuscitado e sentado no céu, o sacerdote eterno que, no mistério do pão e do vinho, concede a remissão dos pecados e a reconciliação com Deus, o rei que levanta a cabeça triunfando sobre a morte com a sua ressurreição. Seria suficiente recordar mais uma vez um trecho do comentário de santo Agostinho sobre este Salmo, quando escreve: «Era necessário conhecer o único Filho de Deus, que estava para vir entre os homens, para assumir o homem e para se tornar homem através da natureza assumida: ele morreu, ressuscitou, subiu ao céu, sentou-se à direita do Pai e realizou entre as nações quanto tinha prometido... Por conseguinte, tudo isto tinha que ser profetizado, tinha que ser prenunciado, tinha que ser indicado como destinado a acontecer, para que, tendo chegado imprevistamente, não amedrontasse. Mas fosse prenunciado, bastante aceite com fé, alegria e esperado. Insere-se no âmbito destas promessas este Salmo, o qual profetiza, com palavras tão certas quanto explícitas, o nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, que nós não podemos minimamente duvidar que ele seja realmente anunciado o Cristo» (cf. Enarratio in Psalmum CIX: PL 36, 1447).

O acontecimento pascal de Cristo torna-se assim a realidade para a qual nos convida a olhar o Salmo, a olhar para Cristo a fim de compreender o sentido da verdadeira realeza, que deve ser vivida no serviço e na doação de si, num caminho de obediência e de amor levado «até ao fim» (cf. Jn 13,1 e Jn 19,30). Por conseguinte, ao rezar com este Salmo, pedimos ao Senhor para poder andar também nós pelos seus caminhos, no seguimento de Cristo, o rei Messias, dispostos a subir com Ele ao monte da cruz para alcançar com Ele a glória, e para o contemplar sentado à direita do Pai, rei vitorioso e sacerdote misericordioso que concede o perdão e a salvação a todos os homens. E também nós, tornados, por graça de Deus, «estirpe eleita, sacerdócio real, nação santa» (cf. 1P 2,9), podemos beber com alegria da nascente da salvação (cf. Is 12,3) e proclamar a todo o mundo as maravilhas d'Aquele que nos «chamou das trevas para a luz maravilhosa» (cf. 1P 2,9).

Queridos amigos, nestas últimas catequeses quis apresentar-vos alguns Salmos, orações preciosas que encontramos na Bíblia e que reflectem as várias situações da vida e os diversos estados de ânimo que podemos ter em relação a Deus. Gostaria então de renovar a todos o convite a rezar com os Salmos, possivelmente habituando-se a utilizar a Liturgia das Horas da Igreja, as Laudes das manhã, as Vésperas da tarde, a Completa antes de adormecer. A nossa relação com Deus só poderá ser enriquecida no caminho quotidiano rumo a Ele e realizada com maior alegria e confiança. Obrigado.

Saudação

Queridos peregrinos de língua portuguesa, sede bem-vindos! Saúdo todos os fiéis brasileiros, particularmente, os grupos de São Paulo e Brasília. Ao concluir este ciclo de catequeses sobre a oração no Saltério, convido-vos a rezar sempre mais com os salmos, para assim enriquecerdes a vossa relação diária com Deus. E que as suas bênçãos desçam sobre vós e vossas famílias!




Sala Paulo VI

23 de Novembro de 2011: Viagem Apostólica ao Benim


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