Audiências 2005-2013 21121

21 de Dezembro de 2011: O Santo Natal

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Amados irmãos e irmãs,

Estou feliz por vos receber na Audiência geral a poucos dias da celebração do Natal do Senhor. A saudação que nestes dias está nos lábios de todos é: «Feliz Natal! Votos de boas festas natalícias!». Façamos com que, também na sociedade contemporânea, a troca dos bons votos não perca o seu profundo valor religioso, e a festa não seja absorvida pelos aspectos exteriores, que tocam as cordas do coração. Sem dúvida, os sinais externos são bonitos e importantes, contanto que não nos distraiam mas, ao contrário, nos ajudem a viver o Natal no seu sentido mais verdadeiro, o sagrado e cristão, de modo que também a nossa alegria não seja superficial, mas profunda.

Com a liturgia natalícia, a Igreja introduz-nos no grande Mistério da Encarnação. Com efeito, o Natal não é um simples aniversário do Nascimento de Jesus; é também isto, mas é mais, é celebração de um Mistério que marcou e continua a marcar a história do homem — o próprio Deus veio habitar no meio de nós (cf.
Jn 1,14), fez-se um de nós; um Mistério que diz respeito à nossa fé e à nossa existência; um Mistério que vivemos concretamente nas celebrações litúrgicas, em particular na Santa Missa. Alguém poderia perguntar-se: como é possível que eu viva agora um acontecimento tão distante no tempo? Como posso participar fecundamente no Nascimento do Filho de Deus, ocorrido há mais de dois mil anos? Na Santa Missa da Noite de Natal, repetiremos como refrão ao Salmo responsorial estas palavras: «Hoje nasceu para nós o Salvador». Este advérbio de tempo, «hoje», recorre várias vezes em todas as celebrações natalícias e refere-se ao acontecimento do Nascimento de Jesus e à salvação que a Encarnação do Filho de Deus vem trazer. Na Liturgia, este acontecimento ultrapassa os limites do espaço e do tempo e torna-se actual, presente; o seu efeito perdura, apesar do decorrer dos dias, dos anos e dos séculos. Indicando que Jesus nasce «hoje», a Liturgia não usa uma frase sem sentido, mas ressalta que este Nascimento envolve e permeia toda a história, permanece uma realidade também hoje, à qual podemos chegar precisamente na liturgia. Para nós, crentes, a celebração do Natal renova a certeza de que Deus está realmente presente connosco, é ainda «carne» e não está só distante: embora esteja com o Pai, está próximo de nós. Deus, naquele Menino nascido em Belém, aproximou-se do homem: podemos encontrá-lo agora, num «hoje» que não conhece ocaso.

Gostaria de insistir sobre este ponto, porque o homem contemporâneo, homem do «sensível», do experimentável empiricamente, tem cada vez mais dificuldade de abrir os horizontes e entrar no mundo de Deus. A redenção da humanidade realiza-se certamente num momento específico e identificável da história: no acontecimento de Jesus de Nazaré; mas Jesus é o Filho de Deus, é o próprio Deus, que não só falou ao homem, mostrou-lhe sinais admiráveis, guiou-o ao longo de toda uma história de salvação, mas fez-se homem e permaneceu homem. O Eterno entrou nos limites do tempo e do espaço, para tornar possível «hoje» o encontro com Ele. Os textos litúrgicos natalícios ajudam-nos a compreender que os acontecimentos da salvação realizada por Cristo são sempre actuais, dizem respeito a cada homem e a todos os homens. Quando ouvimos ou pronunciamos, nas celebrações litúrgicas, este «hoje nasceu para nós o Salvador», não usamos uma expressão convencional vazia, mas queremos dizer que Deus nos oferece «hoje», agora, para mim, para cada um de nós, a possibilidade de O reconhecer e acolher, como fizeram os pastores em Belém, para que Ele nasça inclusive na nossa vida e a renove, ilumine e transforme com a sua Graça, com a sua Presença.

Portanto, o Natal enquanto comemora o Nascimento de Jesus na carne, a partir da Virgem Maria — e numerosos textos litúrgicos fazem reviver aos nossos olhos este ou aquele episódio — é um acontecimento eficaz para nós. Apresentando o sentido profundo da Festa do Natal, o Papa são Leão Magno convidava os seus fiéis com estas palavras: «Exultemos no Senhor, meus amados, e abramos o nosso coração à alegria mais pura, porque surgiu o dia que para nós significa a nova redenção, a antiga preparação, a felicidade eterna. Com efeito, renova-se para nós no recorrente ciclo anual, o alto mistério da nossa salvação que, prometido no início e concedido no final dos tempos, está destinado a durar sem fim» (Sermo 22, In Nativitate Domini, 2, 1: PL 54, 193). E, ainda são Leão Magno, noutra sua Homilia de Natal, afirmava: «Hoje o Autor do mundo foi gerado do seio de uma virgem: Aquele que fez todas as coisas tornou-se filho de uma mulher, por Ele mesmo criada. Hoje, o Verbo de Deus apareceu revestido de carne e, embora nunca tivesse sido visível aos olhos humanos, tornou-se também visivelmente palpável. Hoje, os pastores ouviram da voz dos anjos que nasceu o Salvador, na substância do nosso corpo e da nossa alma» (Sermo 26, In Nativitate Domini, 6, 1: PL 54, 213).

Há um segundo aspecto, ao qual gostaria de me referir brevemente: o acontecimento de Belém deve ser considerado à luz do Mistério pascal: ambos fazem parte da única obra redentora de Cristo. A Encarnação e o Nascimento de Jesus já nos convidam a dirigir o olhar para a sua morte e ressurreição: Natal e Páscoa são ambos festas da redenção. A Páscoa celebra-a como vitória sobre o pecado e a morte: determina o momento final, quando a glória do Homem-Deus resplandece como a luz do dia; o Natal celebra-a como o entrar de Deus na história, fazendo-se homem para levar o homem a Deus: marca, por assim dizer, o momento inicial, quando se entrevê o clarão da alvorada. Mas precisamente como a aurora precede e já faz pressentir a luz do dia, assim o Natal já anuncia a Cruz e a glória da Ressurreição. Também os dois períodos do ano, em que estão inseridas estas duas grandes festas, pelo menos em certas regiões do mundo, podem ajudar a compreender este aspecto. Com efeito, enquanto a Páscoa se celebra no início da Primavera, quando o sol vence os nevoeiros densos e frios, e renova a face da terra, o Natal celebra-se precisamente no início do Inverno, quando a luz e o calor do sol não conseguem despertar a natureza, envolvida pelo frio, sob cujo manto, contudo, palpita a vida e recomeça a vitória do sol e do calor.

Os Padres da Igreja liam sempre o Nascimento de Cristo à luz de toda a obra redentora, que encontra o seu ápice no Mistério pascal. A Encarnação do Filho de Deus manifesta-se não só como o início e a condição da salvação, mas como a própria presença do Mistério da nossa salvação: Deus faz-se homem, nasce criança como nós, assume a nossa carne para derrotar a morte e o pecado. Dois textos significativos de são Basílio explicam-no bem. São Basílio dizia aos fiéis: «Deus assume a carne precisamente para destruir a morte nela escondida. Como os antídotos a um veneno, quando são ingeridos, anulam os seus efeitos, e como as trevas de uma casa se dissipam à luz do sol, assim a morte que predominava sobre a natureza humana foi destruída pela presença de Deus. E como o gelo que permanece sólido na água, enquanto dura a noite e reinam as trevas, mas derrete-se imediatamente ao calor do sol, assim a morte que reinara até à vinda de Cristo, logo que surgiu a graça de Deus Salvador e despontou o sol da justiça, “foi engolida pela vitória” (1Co 15,54), pois não podia coexistir com a Vida» (Homilia sobre o Nascimento de Cristo, 2: PG 31,1461). E ainda são Basílio, noutro texto, dirigia este convite: «Celebremos a salvação do mundo, o Natal do género humano. Hoje foi perdoada a culpa de Adão. Já não devemos dizer: “És pó e pó te hás-de tornar” (Gn 3,19), mas: unido Àquele que veio do Céu, serás admitido no Céu» (Homilia sobre o Nascimento de Cristo, 6: PG 31,1473).

No Natal encontramos a ternura e o amor de Deus que se inclina sobre os nossos limites, as nossas debilidades, os nossos pecados, e desce até nós. São Paulo afirma que Jesus Cristo, «embora fosse de condição divina... aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens» (Ph 2,6-7). Contemplemos a gruta de Belém: Deus abaixa-se a ponto de ser colocado numa manjedoura, que já é prelúdio da humilhação na hora da sua paixão. O ápice da história de amor entre Deus e o homem passa através da manjedoura de Belém e do sepulcro de Jerusalém.

Caros irmãos e irmãs, vivamos com alegria o Natal que se aproxima. Vivamos este acontecimento maravilhoso: o Filho de Deus nasce ainda «hoje», Deus está verdadeiramente próximo de cada um de nós e quer encontrar-nos, deseja levar-nos até Ele. Ele é a verdadeira luz, que dissipa e dissolve as trevas que envolvem a nossa vida e a humanidade. Vivamos o Natal do Senhor, contemplando o caminho do amor imenso de Deus, que nos elevou a Si através do Mistério da Encarnação, Paixão, Morte e Ressurreição do seu Filho, porque — como afirma santo Agostinho — «em [Cristo] a divindade do Unigénito fez-se partícipe da nossa mortalidade, a fim de que nós participássemos na sua imortalidade» (Epístola 187, 6, 20: pl 33, 839-840). Sobretudo, contemplemos e vivamos este Mistério na celebração da Eucaristia, centro do Santo Natal; ali torna-se presente de modo real Jesus, verdadeiro Pão que desceu do Céu, autêntico Cordeiro sacrificado pela nossa salvação.

Faço votos a todos vós e às vossas famílias, para que celebreis um Natal autenticamente cristão, de modo que também a troca de bons votos nesse dia seja expressão da alegria de saber que Deus está próximo de nós e quer percorrer connosco o caminho da vida. Obrigado!

Saudação

Queridos peregrinos de língua portuguesa, desejo a todos vós e às vossas famílias um Natal verdadeiramente cristão, de tal modo que os votos de «Boas Festas», que ides trocar uns com os outros, sejam expressão da alegria que sentis por saber que Deus está no meio de nós e deseja percorrer connosco o caminho da vida. Para todos, um santo Natal e um bom Ano Novo, repleto das bênçãos do Deus Menino!




Sala Paulo VI

28 de Dezembro de 2011: A oração e a Santa Família de Nazaré

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Queridos irmãos e irmãs,

O encontro de hoje tem lugar no clima de Natal, permeado de alegria íntima pelo nascimento do Salvador. Acabámos de celebrar este mistério, cujo eco se expande na liturgia de todos estes dias. É um mistério de luz que os homens de todas as épocas podem reviver na fé e na oração. Precisamente através da oração tornamo-nos capazes de nos aproximarmos de Deus com intimidade e profundidade. Por isso, tendo presente o tema da oração que estou a desenvolver neste período nas catequeses, hoje gostaria de vos convidar a reflectir sobre o modo como ela faz parte da vida da Sagrada Família de Nazaré. Com efeito, a casa de Nazaré é uma escola de oração, na qual se aprende a ouvir, a meditar, a compreender o significado profundo da manifestação do Filho de Deus, tendo como exemplo Maria, José e Jesus.

Permanece memorável o discurso do Servo de Deus Paulo VI na sua visita a Nazaré. Ele disse que na escola da Sagrada Família nós «compreendemos porque devemos ter uma disciplina espiritual, se quisermos seguir a doutrina do Evangelho e tornar-nos discípulos de Cristo». E acrescentava: «Em primeiro lugar ela ensina-nos o silêncio. Oh, se voltasse a nascer em nós a estima pelo silêncio, atmosfera admirável e indispensável do espírito: enquanto ainda estamos deslumbrados por tantos clamores, ruídos e vozes estrondosas na vida perturbada e tumultuosa do nosso tempo. Oh, silêncio de Nazaré, ensina-nos a permanecer firmes nos bons pensamentos, absorvidos na vida interior, prontos a sentir bem as inspirações secretas de Deus e as exortações dos verdadeiros mestres» (Discurso em Nazaré, 5 de Janeiro de 1964).

Das narrações evangélicas sobre a infância de Jesus podemos tirar alguns temas sobre a oração, sobre a relação com Deus, da Sagrada Família. Podemos começar a partir do episódio da apresentação de Jesus no templo. São Lucas narra que Maria e José, «quando se cumpriu o tempo da sua purificação, segundo a lei de Moisés, levaram-no a Jerusalém para O apresentar ao Senhor» (
Lc 2,22). Tal como qualquer família judia cumpridora da lei, os pais de Jesus foram ao templo para consagrar a Deus o primogénito e para oferecer o sacrifício. Movidos pela fidelidade às prescrições, partem de Belém rumo a Jerusalém com Jesus que tem apenas quarenta dias: em vez de um cordeiro de um ano apresentam a oferta das famílias simples, ou seja, duas pombas. A da Sagrada Família é a peregrinação da fé, da oferta dos dons, símbolo da oração, e do encontro com o Senhor, que Maria e José já vêem no filho Jesus.

A contemplação de Cristo tem em Maria o seu modelo insuperável. O rosto do Filho pertence-lhe a título especial, porque foi no seu seio que se formou, assumindo dela também um semblante humano. Ninguém se dedicou à contemplação de Jesus com tanta assiduidade como Maria. O olhar do seu coração concentra-se sobre Ele já no momento da Anunciação, quando O concebe por obra do Espírito Santo; nos meses seguintes sente pouco a pouco a sua presença, até ao dia do nascimento, quando os seus olhos podem fixar com ternura materna o rosto do Filho, enquanto o envolve em faixas e o coloca na manjedoura. As recordações de Jesus, gravadas na sua mente e no seu coração, marcaram cada momento da existência de Maria. Ela vive com os olhos postos em Cristo e valoriza cada uma das suas palavras. «Quanto a Maria, conservava todas estas coisas, ponderando-as no seu coração» (Lc 2,19), assim apresenta são Lucas a atitude de Maria diante do Mistério da Encarnação, atitude que se prolongará por toda a sua existência. Lucas é o evangelista que nos faz conhecer o Coração de Maria, a sua fé (cf. Lc 1,45), a sua esperança e obediência (cf. Lc 1,38), a sua interioridade e oração (cf. Lc 1,46-56), a sua adesão livre a Cristo (cf. Lc 1,55). E tudo isto procede do dom do Espírito Santo que desce sobre Ela (cf. Lc 1,35), como descerá sobre os Apóstolos segundo a promessa de Cristo (cf. Ac 1,8). Esta imagem de Maria apresenta-a como modelo de cada crente que conserva e confronta as palavras e as acções de Jesus, um confronto que é sempre um progredir no conhecimento d’Ele. Na esteira do beato João Paulo II (cf. Carta ap. Rosarium Virginis Mariae RVM 1) podemos dizer que a recitação do Rosário tem o seu modelo precisamente em Maria, porque consiste em contemplar os mistérios de Cristo em união espiritual com a Mãe do Senhor. A capacidade de Maria de viver do olhar de Deus é, por assim dizer, contagiosa. O primeiro que fez essa experiência foi são José. O seu amor humilde e sincero à sua noiva e a decisão de unir a sua vida à de Maria atraiu e introduziu também a ele, que já era um «homem justo» (Mt 1,19), numa intimidade singular com Deus. De facto, com Maria e depois, sobretudo, com Jesus, ele dá início a uma forma nova de se relacionar com Deus, de o acolher na própria vida, de entrar no seu projecto de salvação, cumprindo a sua vontade. Depois de ter seguido com confiança a indicação do Anjo — «não temas receber Maria, tua esposa» (Mt 1,20) — ele tomou consigo Maria e partilhou a sua vida com ela; entregou-se deveras totalmente a Maria e a Jesus, e isto conduziu-o à perfeição da resposta à vocação recebida. O Evangelho, como sabemos, não conservou palavra alguma de José: a sua presença é silenciosa mas fiel, constante, laboriosa. Podemos imaginar que também ele, como a sua esposa e em íntima consonância com ela, tenha vivido os anos da infância e da adolescência de Jesus deleitando-se, por assim dizer, com a sua presença na família. José cumpriu plenamente o seu papel paterno, sob todos os aspectos. Certamente educou Jesus na oração, juntamente com Maria. Ele, em particular, tê-lo-á levado consigo à sinagoga, aos ritos do sábado, assim como a Jerusalém, para as grandes festas do povo de Israel. José, segundo a tradição judaica, terá guiado a oração doméstica quer no dia-a-dia — de manhã, à noite, nas refeições — quer nas principais festas religiosas. Assim, no ritmo dos dias transcorridos em Nazaré, entre a casa simples e a oficina de José, Jesus aprendeu a alternar oração e trabalho, e a oferecer a Deus também a fadiga para ganhar o pão necessário para a família.

Há outro episódio que vê a Sagrada Família de Nazaré reunida num acontecimento de oração. Aos doze anos Jesus vai com os seus ao templo de Jerusalém. Este episódio insere-se no contexto da peregrinação, como ressalta são Lucas: «Seus pais iam todos os anos a Jerusalém pela festa de Páscoa. Quando chegou aos doze anos, subiram até lá, segundo o costume dos dias de festa» (Lc 2,41-42). A peregrinação é uma manifestação religiosa que se alimenta de oração e, ao mesmo tempo, a alimenta. Trata-se aqui da peregrinação pascal, e o Evangelista faz-nos observar que a família de Jesus a vive todos os anos, para participar nos ritos na Cidade santa. A família judia, como a cristã, reza na intimidade doméstica, mas reza também juntamente com a comunidade, reconhecendo-se parte do Povo de Deus a caminho. A Páscoa é o centro e o ápice de tudo isto, e envolve a dimensão familiar e a do culto litúrgico e público.

No episódio de Jesus com doze anos são registadas também as suas primeiras palavras: «Porque me procuráveis? Não sabíeis que devia estar em casa de Meu Pai»?» (Lc 2,49). Depois de três dias de procura, os seus pais encontraram-no no templo sentado entre os mestres enquanto os ouvia e lhes fazia perguntas (cf. Lc 2,46). À interrogação por que motivo fizera isto ao pai e à mãe, Ele responde que só fez o que o Filho deve fazer, ou seja, permanecer com o Pai. Assim, Ele indica quem é o verdadeiro Pai, qual é a verdadeira casa, que Ele não fez nada de estranho, de desobediente. Permanecer onde deve estar o Filho, ou seja com o Pai, e frisou quem é o seu Pai. A palavra «Pai» portanto predomina sobre a tonalidade desta resposta e manifesta-se todo o mistério cristológico. Por conseguinte, esta palavra abre o mistério, é a chave para o mistério de Cristo, que é o Filho, e abre também a chave para o nosso mistério de cristãos, pois nós somos filhos no Filho. Ao mesmo tempo, Jesus ensina-nos a ser filhos, precisamente no gesto de permanecer com o Pai na oração. O mistério cristológico, o mistério da existência cristã está intimamente ligado, fundado na oração. Um dia, Jesus ensinará os seus discípulos a rezar, dizendo-lhes: quando orardes, dizei «Pai». E, naturalmente, não o digais somente com as palavras, mas com a vossa existência, aprendai cada vez mais a dizer com a vossa existência: «Pai»; e assim sereis verdadeiramente filhos no Filho, autênticos cristãos.

Aqui, quando Jesus ainda está plenamente inserido na vida da Família de Nazaré, é importante observar a ressonância que pode ter tido nos corações de Maria e de José ouvir dos lábios de Jesus aquela palavra «Pai», e revelar, sublinhar quem é o pai, e ouvi-la dos seus lábios com a consciência do Filho Unigénito, que precisamente por isso quis permanecer três dias no templo, que é a «casa do Pai». A partir de então, a vida na Sagrada Família ficou ainda mais repleta de oração, porque do Coração de Jesus menino — e depois adolescente e jovem — jamais deixará de se difundir e reflectir nos corações de Maria e de José este sentido profundo da relação com Deus Pai. Este episódio mostra-nos a verdadeira situação, a atmosfera do estar com o pai. Assim, a Família de Nazaré é o primeiro modelo da Igreja no qual, em volta da presença de Jesus e graças à sua mediação, todos vivem a relação filial com Deus Pai, que transforma também as relações interpessoais, humanas.

Queridos amigos, sob estes diversos aspectos que, à luz do Evangelho, esbocei brevemente, a Sagrada Família é ícone da Igreja doméstica, chamada a rezar unida. A família é Igreja doméstica e deve ser a primeira escola de oração. Nela as crianças, desde a mais tenra idade, podem aprender a compreender o sentido de Deus, graças ao ensinamento e ao exemplo dos pais: viver numa atmosfera caracterizada pela presença de Deus. Uma educação autenticamente cristã não pode prescindir da experiência da oração. Se não se aprende a rezar em família, depois será difícil conseguir preencher este vazio. Por conseguinte, gostaria de convidar-vos a redescobrir a beleza de rezar juntos como família na escola da Sagrada Família de Nazaré, e assim a tornar-vos um só coração e uma só alma, uma verdadeira família. Obrigado!

Saudação

Amados peregrinos de língua portuguesa, a minha saudação amiga, vendo a vossa presença como a ocasião propícia para confiar ao Pai do Céu as vossas famílias e os sonhos de bem que abrigam no coração. Recebei, como penhor de paz e consolação, a minha Bênção Apostólica.





Sala Paulo VI

4 de janeiro de 2012: Natal do Senhor: Mistério de alegria e de luz

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Queridos irmãos e irmãs!

Estou feliz por vos acolher nesta primeira Audiência geral do ano novo e de todo o coração apresento a vós e às vossas famílias os meus votos afectuosos: Deus, que no nascimento de Cristo seu Filho inundou de alegria o mundo inteiro, disponha obras e dias na sua paz. Estamos no tempo litúrgico do Natal, que inicia na noite de 24 de Dezembro com a vigília e se conclui com a celebração do Baptismo do Senhor. O arco dos dias é breve, mas denso de celebrações e mistérios e concentra-se todo em volta de duas grandes solenidades do Senhor: Natal e Epifania. O próprio nome destas duas festas indica a sua respectiva fisionomia. O Natal celebra o acontecimento histórico do nascimento de Jesus em Belém. A Epifania, nascida como festa no Oriente, indica um facto, mas sobretudo um aspecto do Mistério: Deus revela-se na natureza humana de Cristo e é este o sentido do verbo grego epiphaino, tornar-se visível. Nesta perspectiva, a Epifania recorda uma pluralidade de acontecimentos que têm como objecto a manifestação do Senhor: de modo particular a adoração dos Magos, que reconhecem em Jesus o Messias esperado, mas também o Baptismo no rio Jordão com a sua teofania — a voz de Deus do alto — e o milagre nas Bodas de Caná, como primeiro «sinal» realizado por Cristo. Uma lindíssima antífona da Liturgia das Horas unifica estes três acontecimentos em volta do tema das núpcias entre Cristo e a Igreja: «Hoje a Igreja une-se ao seu Esposo celeste, porque no Jordão Cristo lavou os seus pecados; os Magos acorrem com dons às núpcias reais, e os convidados rejubilam ao ver a água transformada em vinho» (Antífona das Laudes). Podemos quase dizer que na festa do Natal se ressalta o escondimento de Deus na humanidade da condição humana, no Menino de Belém. Ao contrário, na Epifania evidencia-se o seu manifestar-se, o aparecer de Deus através desta mesma humanidade.

Nesta Catequese, gostaria de recordar brevemente alguns temas próprios da celebração do Natal do Senhor, para que cada um de nós possa beber na fonte inexaurível deste Mistério e dar frutos de vida.

Antes de tudo, perguntemo-nos: qual é a primeira reacção face a esta extraordinária acção de Deus que se faz menino, que se torna homem? Penso que a primeira reacção só pode ser a alegria. «Rejubilemos todos no Senhor, porque nasceu no mundo o Salvador»: assim começa a Missa da noite de Natal, e acabámos de ouvir as palavras do Anjo aos pastores: «Eis que vos anuncio uma grande alegria» (
Lc 2,10). É o tema que abre o Evangelho, e é o tema que o encerra porque Jesus Ressuscitado reprovará aos Apóstolos precisamente o facto de estarem tristes (cf. Lc 24,17 — incompatível com o facto de que Ele permanece Homem eternamente. Mas demos um passo em frente: de onde provém esta alegria? Diria que vem da admiração do coração ao ver como Deus está próximo de nós, como Deus pensa em nós, como Deus age na história; por conseguinte, é uma alegria que nasce da contemplação do rosto daquele menino humilde porque sabemos que é o Rosto de Deus presente para sempre na humanidade, para nós e connosco. O Natal é alegria porque vemos e finalmente temos a certeza de que Deus é o bem, a vida, a verdade do homem e se abaixa até ao homem, para o elevar a Si: Deus torna-se tão próximo que o podemos ver e tocar. A Igreja contempla este mistério inefável e os textos da liturgia deste tempo estão imbuídos da admiração e da alegria; todos os cânticos de Natal expressam esta alegria. O Natal é o ponto no qual Céu e terra se unem, e várias expressões que ouvimos nestes dias ressaltam a grandeza de quanto aconteceu: o distante — Deus parece muito longe — tornou-se próximo; «o inacessível quis ser alcançável, Ele que existe antes do tempo começou a estar no tempo, o Senhor do universo, ocultando a grandeza da sua majestade, assumiu a natureza de servo» — exclama são Leão Magno (Sermão 2 sobre o Natal, 2. 1). Naquele Menino, necessitado de tudo como as crianças, aquilo que Deus é: eternidade, força, santidade, vida e alegria, une-se ao que nós somos: debilidade, pecado, sofrimento e morte.

A teologia e a espiritualidade do Natal usam uma expressão para descrever este acontecimento, falando de admirabile commercium, ou seja, de um admirável intercâmbio entre a divindade e a humanidade. Santo Atanásio de Alexandria afirma: «O Filho de Deus fez-se homem para nos fazer Deus» (De Incarnatione, 54, 3: PG 25,192), mas é sobretudo com são Leão Magno e com as suas célebres Homilias sobre o Natal que esta realidade se torna objecto de profunda meditação. Com efeito, afirma o santo Pontífice: «Se nos apelamos à condescendência inefável da divina misericórdia que induziu o Criador dos homens a fazer-se homem, ela elevar-nos-á à natureza d’Aquele que adoramos na nossa» (Sermão 8 sobre o Natal: CCL 138, 139). O primeiro acto deste intercâmbio maravilhoso realiza-se na própria humanidade de Cristo. O Verbo assumiu a nossa humanidade e, em contrapartida, a natureza humana foi elevada à dignidade divina. O segundo acto do intercâmbio consiste na nossa participação real e íntima na natureza do Verbo. Diz São Paulo: «Quando veio a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher, sujeito à Lei, para resgatar os que estavam sob a Lei, para que recebêssemos a adopção de filhos» (Ga 4,4-5). O Natal é, por conseguinte, a festa na qual Deus se torna tão próximo do homem que partilha o seu próprio acto de nascer, para lhe revelar a sua dignidade mais profunda: ser filho de Deus. E assim o sonho da humanidade, começando no Paraíso — gostaríamos de ser como Deus — realiza-se de maneira inesperada não pela grandeza do homem que não se pode fazer Deus, mas pela humanidade de Deus que desce e assim entra em nós na sua humildade e nos eleva à verdadeira grandeza do seu ser. A este propósito o Concílio Vaticano II disse: «Na realidade, só no mistério do Verbo encarnado o mistério do homem encontra verdadeira luz» (Gaudium et spes GS 22); ao contrário, permanece um enigma: o que significa esta criatura, homem? Unicamente vendo que Deus está connosco podemos ver luz para o nosso ser, sentir-nos felizes por sermos homens e viver com confiança e alegria. E onde se torna presente de modo real este intercâmbio maravilhoso, para que aja na nossa vida e faça dela uma existência de verdadeiros filhos de Deus? Torna-se muito concreta na Eucaristia. Quando participamos na Santa Missa apresentamos a Deus o que é nosso: o pão e o vinho, fruto da terra, para que Ele os aceite e transforme doando-se a Si mesmo a nós e fazendo-se nosso alimento, para que recebendo o seu Corpo e o seu Sangue participemos da sua vida divina.

Por fim, gostaria de falar de outro aspecto do Natal. Quando o Anjo do Senhor se apresenta aos pastores na noite do Nascimento de Jesus, o Evangelista Lucas anota que «a glória do Senhor os envolveu de luz» (Lc 2,9); e o Prólogo do Evangelho de João fala do Verbo que se fez carne como da luz verdadeira que vem ao mundo, a luz capaz de iluminar todos os homens (cf. Jn 1,9). A liturgia de Natal está imbuída de luz. A vinda de Cristo dissipa as trevas do mundo, enche a Noite santa de um brilho celeste e difunde sobre o rosto dos homens o esplendor de Deus Pai. Também hoje. Envolvidos pela luz de Cristo, somos convidados com insistência pela liturgia de Natal a deixar-nos iluminar a mente e o coração pelo Deus que mostrou o esplendor do seu Rosto. O primeiro Prefácio de Natal proclama: «No mistério do Verbo encarnado apareceu aos olhos da nossa mente a luz nova do teu esplendor, para que conhecendo Deus visivelmente, por seu meio sejamos atraídos pelo amor das realidades invisíveis». No mistério da Encarnação Deus, depois de ter falado e agido na história mediante mensageiros e com sinais, «apareceu», saiu da sua luz inacessível para iluminar o mundo.

Na Solenidade da Epifania, 6 de Janeiro, que celebraremos daqui a poucos dias, a Igreja propõe um texto muito significativo do profeta Isaías: «Levanta-te e resplandece, chegou a tua luz; a glória do Senhor levanta-se sobre ti! Olha: a noite cobre a terra e a escuridão os povos; mas sobre ti levantar-se-á o Senhor, a sua glória te iluminará. As nações caminharão à tua luz, os reis, ao esplendor da tua aurora» (Is 60,1-3). É um convite dirigido à Igreja, mas também a cada um de nós, a tomar consciência ainda mais viva da missão e da responsabilidade em relação ao mundo ao testemunhar e levar a luz nova do Evangelho. No início da Constituição Lumen gentium do Concílio Vaticano II encontramos as seguintes palavras: «Sendo Cristo a luz das nações, este santo Concílio, reunido no Espírito Santo, deseja ardentemente com a luz d’Ele, resplandecer no rosto da Igreja, iluminar todos os homens anunciando o Evangelho a todas as criaturas» (LG 1). O Evangelho é a luz que não se deve esconder, que se deve pôr na candeia. A Igreja não é a luz, mas recebe a luz de Cristo, acolhe-a para ser por ela iluminada e para a difundir em todo o seu esplendor. E isto deve acontecer também na nossa vida pessoal. Mais uma vez cito são Leão Magno, que disse na Noite Santa: «Reconhece, cristão, a tua dignidade e, tornando-se partícipe da natureza divina, não pretendas voltar a cair na condição desprezível de outrora com um comportamento indigno. Recorda-te de quem é a tua Cabeça e de qual Corpo és membro. Recorda-te de que, arrancado ao poder das trevas, foste transferido para a luz e para o Reino de Deus» (Sermão I sobre o Natal, 3, 2: CCL 138, 88).

Amados irmãos e irmãs, o Natal é deter-se para contemplar aquele Menino, o Mistério de Deus que se faz homem na humildade e na pobreza, mas é sobretudo acolher de novo em nós próprios aquele Menino, que é Cristo Senhor, para viver da sua mesma vida, para fazer com que os seus sentimentos, os seus pensamentos e as suas acções, sejam os nossos sentimentos, os nossos pensamentos e as nossas acções. Celebrar o Natal é, por conseguinte, manifestar a alegria, a novidade, a luz que este Nascimento trouxe a toda a nossa existência, para sermos também nós portadores da alegria, da verdadeira novidade, da luz de Deus aos outros. Faço de novo a todos os bons votos de um tempo natalício abençoado pela presença de Deus!
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Queridos peregrinos de língua portuguesa, sede bem-vindos! O Natal é um convite a contemplar no Menino Jesus o Mistério de Deus que se faz homem na humildade e pobreza, e, sobretudo, a acolher em nós mesmos este Menino, que é o Cristo Senhor, para fazer com que os seus sentimentos, pensamentos e ações sejam também os nossos. Portanto, sede portadores da alegria, novidade e luz de Deus manifestadas no Natal. De todo o coração, desejo-vos um Ano Novo abençoado!




Sala Paulo VI

11 de Janeiro de 2012: A oração de Jesus na Última Ceia

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Queridos irmãos e irmãs

No nosso caminho de reflexão sobre a prece de Jesus, apresentada nos Evangelhos, gostaria de meditar hoje sobre o momento, particularmente solene, da sua oração na Última Ceia.

O cenário temporal e emocional do banquete no qual Jesus se despede dos seus amigos é a iminência da sua morte, que Ele já sente próxima. Havia muito tempo que Jesus tinha começado a falar da sua paixão, procurando também empenhar cada vez mais os seus discípulos nesta perspectiva. O Evangelho segundo Marcos narra que desde o início da viagem rumo a Jerusalém, nos povoados da longínqua Cesareia de Filipe, Jesus começara «a ensinar-lhes que era necessário que o Filho do homem padecesse muito, fosse rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos escribas, e fosse morto, mas ressuscitasse depois de três dias» (
Mc 8,31). Além disso, precisamente nos dias em que se preparava para dizer adeus aos discípulos, a vida do povo estava marcada pela aproximação da Páscoa, ou seja, do memorial da libertação de Israel do Egipto. Esta libertação, experimentada no passado e esperada de novo no presente e para o futuro, era revivida nas celebrações familiares da Páscoa. A Última Ceia insere-se neste contexto, mas com uma novidade de fundo. Jesus olha para a sua Paixão, Morte e Ressurreição, plenamente consciente delas. Ele quer viver esta Ceia com os seus discípulos, com um carácter totalmente especial e diferente dos outros banquetes; é a sua Ceia, na qual oferece Algo de totalmente novo: Ele mesmo. Deste modo, Jesus celebra a sua Páscoa, antecipa a sua Cruz e a sua Ressurreição.

Esta novidade é-nos evidenciada pela cronologia da Última Ceia no Evangelho de João, que não a descreve como a ceia pascal, precisamente porque Jesus tenciona inaugurar algo de novo, celebrar a sua Páscoa, certamente vinculada aos acontecimentos do Êxodo. E para João, Jesus morreu na Cruz precisamente no momento em que, no templo de Jerusalém, eram imolados os cordeiros pascais.

Então, qual é o núcleo desta Ceia? São os gestos da fracção do pão, da sua distribuição aos seus e da partilha do cálice do vinho, com as palavras que os acompanham e no contexto de oração em que se inserem: é a instituição da Eucaristia, é a grande oração de Jesus e da Igreja. Mas consideremos mais de perto este momento.

Antes de tudo, as tradições neotestamentárias da instituição da Eucaristia (cf. 1Co 11,23-25 Lc 22,14-20 Mc 14,22-25 Mt 26,26-29), indicando a oração que introduz os gestos e as palavras de Jesus sobre o pão e o vinho, utilizam dois verbos paralelos e complementares. Paulo e Lucas falam de eucaristia/acção de graças: «Tomou então o pão e, depois de dar graças, partiu-o e deu-lho» (Lc 22,19). Marcos e Mateus, ao contrário, sublinham o aspecto de eulogia/bênção: «Tomou o pão e, depois de o benzer, partiu-o e deu-lho» (Mc 14,22). Ambos os termos gregos eucaristein e eulogein remetem à berakha judaica, ou seja, para a grandiosa prece de acção de graças e de bênção da tradição de Israel, que inaugurava os grandes banquetes. Estas duas diferentes palavras gregas indicam as duas orientações intrínsecas e complementares desta oração. Com efeito, a berakha é antes de tudo acção de graças e louvor que se eleva a Deus pelo dom recebido: na Última Ceia de Jesus, trata-se do pão — feito com o trigo que Deus faz germinar e crescer da terra — e do vinho produzido pelo fruto amadurecido nas videiras. Esta oração de louvor e de acção de graças, que se eleva a Deus, retorna como bênção, que desce de Deus sobre o dom e o enriquece. Assim, a acção de graças e o louvor a Deus tornam-se bênção, e a oferenda doada a Deus volta para o homem abençoada pelo Todo-Poderoso. As palavras da instituição da Eucaristia inserem-se neste contexto de oração; nelas, o louvor e a bênção da berakha tornam-se bênção e transformação do pão e do vinho no Corpo e no Sangue de Jesus.

Antes das palavras da instituição há os gestos: o da fracção do pão e o da oferta do vinho. Quem parte o pão e oferece o cálice é, antes de tudo, o chefe de família, que recebe à sua mesa os familiares, mas estes gestos são também os da hospitalidade, do acolhimento na comunhão convival do estrangeiro, que não faz parte da casa. Estes mesmos gestos, na ceia com a qual Jesus se despede dos seus, adquirem uma profundidade totalmente nova: Ele oferece um sinal visível do acolhimento à mesa em que Deus se doa. No pão e no vinho, Jesus oferece-se e comunica-se a Si mesmo.

Mas como pode realizar-se tudo isto? Como pode Jesus doar-se, naquele momento, a Si mesmo? Jesus sabe que a vida está prestes a ser-lhe tirada através do suplício da cruz, a pena capital dos homens não livres, aquela que Cícero definia a mors turpissima crucis. Com o dom do pão e do vinho, que oferece na Última Ceia, Jesus antecipa a sua morte e a sua ressurreição, realizando aquilo que já tinha dito no discurso do Bom Pastor: «Dou a minha vida, para tornar a tomá-la. Ninguém ma tira; sou Eu que a dou por Mim mesmo. Tenho poder para a dar e para tornar a tomá-la; este mandamento recebi de Meu Pai» (Jn 10,17-18). Por conseguinte, Ele oferece antecipadamente a vida que lhe será tirada, e deste modo transforma a sua morte violenta num gesto livre de doação de Si mesmo pelos outros e aos outros. A violência padecida transforma-se num sacrifício concreto, livre e redentor.

Mais uma vez na oração, começada segundo as formas rituais da tradição bíblica, Jesus mostra a sua identidade e a determinação a cumprir até ao fim a sua missão de amor total, de oferta em obediência à vontade do Pai. A profunda originalidade do dom de Si mesmo aos seus, através do memorial eucarístico, é o ápice da oração que distingue a ceia de adeus com os seus. Contemplando os gestos e as palavras de Jesus naquela noite, vemos claramente que a relação íntima e constante com o Pai é o lugar em que Ele realiza o gesto de transmitir aos seus, e a cada um de nós, o Sacramento do amor, o «Sacramentum caritatis». Por duas vezes, no cenáculo, ressoam estas palavras: «Fazei isto em memória de Mim» (1Co 11,24 1Co 11,25). Com o dom de Si, Ele celebra a sua Páscoa, tornando-se o verdadeiro Cordeiro que leva a cumprimento todo o culto antigo. Por isso são Paulo, falando aos cristãos de Corinto, afirma: «Cristo, nossa Páscoa [o nosso Cordeiro pascal!], foi imolado! Celebremos, pois, a festa... com o fermento da pureza e da verdade» (1Co 5,7-8).

O evangelista Lucas conservou um ulterior elemento precioso dos acontecimentos da Última Ceia, que nos permite ver a profundidade comovedora da oração de Jesus pelos seus naquela noite, a sua atenção por cada um. Começando a partir da oração de acção de graças e de bênção, Jesus chega ao dom eucarístico, à entrega de Si mesmo e, enquanto oferece a realidade sacramental decisiva, dirige-se a Pedro. No final da ceia, Ele diz: «Simão, Simão, eis que Satanás vos reclamou para vos peneirar como o trigo; mas eu roguei por ti, para que a tua confiança não desfaleça; e tu, por tua vez, confirma os teus irmãos» (Lc 22,31-32). Quando se aproxima a provação também para os seus discípulos, a oração de Jesus sustenta a sua debilidade, a sua dificuldade de compreender que o caminho de Deus passa através do Mistério pascal de morte e ressurreição, antecipado na oferenda do pão e do vinho. A Eucaristia é alimento dos peregrinos, que se torna força também para aqueles que se sentem cansados, prostrados e desorientados. E a oração é particularmente para Pedro a fim de que, uma vez convertido, confirme os irmãos na fé. O evangelista Lucas recorda que foi precisamente o olhar de Jesus que procurou o rosto de Pedro no momento em que ele tinha acabado de consumir a sua tríplice negação, para lhe conferir a força de retomar o caminho no seu seguimento: «E naquele mesmo instante, quando ainda falava, o galo cantou. Voltando-se, o Senhor olhou para Pedro. Então Pedro lembrou-se das palavras do Senhor» (Lc 22,60-61).

Caros irmãos e irmãs, participando na Eucaristia, vivamos de modo extraordinário a oração que Jesus recitou, e recita continuamente, por cada um a fim de que o mal, que todos nós encontramos na vida, não prevaleça, e para que em nós aja a força transformadora da morte e da ressurreição de Cristo. Na Eucaristia, a Igreja responde ao mandato de Jesus: «Fazei isto em memória de mim» (Lc 22,19 cf. 1Co 11,24-26); repete a oração de acção de graças e de bênção e, com ela, as palavras da transubstanciação do pão e do vinho no Corpo e Sangue do Senhor. As nossas Eucaristias consistem em sermos atraídos para aquele momento de oração, em unir-nos sempre de novo à oração de Jesus. Desde o início, a Igreja compreendeu as palavras de consagração como parte da prece recitada juntamente com Jesus; como uma parte central do louvor cheio de gratidão, através da qual o fruto da terra e do trabalho do homem nos é novamente oferecido por Deus como Corpo e Sangue de Jesus, como autodoação do próprio Deus no amor acolhedor do Filho (cf. Jesus de Nazaré, II, pag. 146). Participando na Eucaristia, alimentando-nos da Carne e do Sangue do Filho de Deus, unamos a nossa oração à prece do Cordeiro pascal na sua noite suprema, a fim de que a nossa vida não se perca, apesar da nossa debilidade e das nossas infidelidades, mas seja transformada.

Estimados amigos, peçamos ao Senhor que, depois de nos prepararmos devidamente, também com o Sacramento da Penitência, a nossa participação na sua Eucaristia, indispensável para a vida cristã, seja sempre o ponto mais elevado de toda a nossa oração. Peçamos que, profundamente unidos na sua própria oferenda ao Pai, possamos também nós transformar as nossas cruzes em sacrifício livre e responsável de amor a Deus e aos irmãos. Obrigado!

Saudação

Saúdo cordialmente os peregrinos de língua portuguesa, desejando-vos que o ponto mais alto da vossa oração seja uma digna participação na Eucaristia para poderdes, também vós, transformar as cruzes da vossa vida em sacrifício livre de amor a Deus e aos irmãos. Obrigado pela vossa presença. Ide com Deus.


Sala Paulo VI

18 de Janeiro de 2012: Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos


Audiências 2005-2013 21121