Discursos Bento XVI 131

À PEREGRINAÇÃO DA ÁUSTRIA PARA AGRADECER O DOM DA ÁRVORE DE NATAL Sábado, 17 de Dezembro de 2005


Queridos amigos

Sede bem-vindos! Sinto-me feliz por vos receber com grande amizade, por ocasião da apresentação do pinheiro colocado na Praça de São Pedro, que provém dos bosques de Eferding, na Alta Áustria. Dirijo a cada um de vós a minha cordial saudação, começando pelo Presidente da Alta Áustria, Dr. Püringher, a quem agradeço as amáveis palavras que há pouco me dirigiu em nome dos presentes. Além disso, saúdo as Autoridades civis da Região, com um pensamento particular aos Administradores do Município de Eferding. Saúdo depois com afecto fraterno o Bispo de Linz, D. Ludwig Schwartz, e o Bispo Emérito, D. Maximilian Aichern. Dirijo uma sentida saudação aos membros do coro e da capela ("Stadtkapelle") de Eferding, assim como ao grupo folclórico feminino "Goldhaubenfrauen".

Hoje à tarde, no final da cerimónia de entrega oficial, serão acesas as luzes que embelezam a árvore de Natal. Este pinheiro majestoso permanecerá ao lado do Presépio até ao final das festas de Natal, e será admirado pelos numerosos peregrinos que vêm ao Vaticano de todas as partes do mundo. Obrigado, queridos amigos, por esta grande árvore e pelas outras menores, que irão ornamentar o Palácio Apostólico e os vários ambientes do Vaticano. Com estes vossos dons, tão apreciados, quisestes manifestar a vossa proximidade espiritual e a amizade que há muito tempo liga a Áustria à Santa Sé, em continuidade com a nobre tradição cristã, que fecundou com os seus valores espirituais a cultura, a literatura e a arte da vossa Nação e de toda a Europa. Desejo garantir-vos que o Papa está próximo de vós e acompanha o caminho das comunidades cristãs e de todo o povo da Áustria com a sua oração.

Além disso, esta ocasião oferece-me também a oportunidade para desejar de coração a todos vós aqui presentes que transcorrais com serenidade o Natal do Senhor. Faço estes votos extensivos aos vossos concidadãos que permaneceram na Pátria e aos habitantes da vossa Região, que por vários motivos se encontram a viver fora do País. No Natal ressoa em todas as partes do planeta a boa notícia do anúncio do nascimento do Redentor: o Messias esperado fez-se homem e veio entre nós. Com a sua luminosa presença, Jesus dissipou as trevas do erro e do pecado, e trouxe à humanidade a alegria da resplandecente luz divina, da qual a árvore de Natal é sinal e chamada.

Desejo que acolhais no vosso coração o dom da sua alegria, da sua paz e do seu amor. Crer em Cristo significa deixar-se envolver pela luz da sua verdade, que dá pleno significado, valor e sentido à nossa existência, porque ao revelar-nos o mistério do Pai e do seu amor Ele revela também plenamente o homem a si mesmo e manifesta-lhe a sua excelsa vocação (cf. Gaudium et spes GS 22).

Formulo-vos de coração os mais ardentes votos de Natal, e peço-vos que os transmitais às vossas famílias e a todos os vossos compatriotas. Garanto-vos a minha oração por vós e pelos vossos entes queridos e a todos vós concedo de bom grado uma especial Bênção.




AO SENHOR BERNARD KESSEDJIAN NOVO EMBAIXADOR DA FRANÇA JUNTO À SANTA SÉ Segunda-feira, 19 de Dezembro de 2005

Senhor Embaixador

132 É com alegria que recebo das suas mãos as Cartas que o acreditam como Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário da França junto da Santa Sé. Ao agradecer-lhe as gentis palavras que teve a amabilidade de me dirigir, dou-lhe cordiais boas-vindas por ocasião deste encontro solene que inaugura a missão que lhe foi confiada. Sensibilizaram-me os votos enviados por Sua Ex.cia o Sr. Jacques Chirac, Presidente da República francesa, e peço que lhe transmita os meus votos mais cordiais para ele e para todo o povo da França.

Vossa Excelência conhece a atenção particular que a Igreja Católica e a Santa Sé dedica à nação francesa. Conhece também o empenho da Igreja Católica na sociedade, a todos os níveis. Por seu intermédio, permita que dirija as minhas saudações fraternas aos Pastores e aos fiéis católicos do seu País, encorajando-os a prosseguir a sua missão apostólica e as suas acções de solidariedade fraterna nas paróquias, nos movimentos e nas associações; são atitudes que pertencem à tradição cristã e encontram o seu fundamento no amor de Cristo por todas as pessoas, dignas de serem amadas por si mesmas.

O seu País celebra este ano o centenário da lei de separação das Igrejas e do Estado. Como recordou o meu predecessor, o Papa João Paulo II, na carta enviada a 11 de Fevereiro passado aos Bispos da França, o princípio de laicidade consiste numa sadia distinção dos poderes, que não consiste numa oposição e não impede minimamente à Igreja de "desempenhar uma parte cada vez mais activa na vida da sociedade, no respeito das competências de cada um" (cf. n. 2). Esta concepção deve também permitir que se promova antes de tudo a autonomia da Igreja, quer na sua organização quer na sua missão. A este propósito, congratulo-me pela existência dos encontros dos órgãos de diálogo entre a Igreja e as Autoridades civis, a todos os níveis. Estou certo de que isto permitirá fazer concorrer para o bem dos cidadãos todas as forças que se põem em prática e dará frutos na vida social.

Como Vossa Excelência recordou, o seu País acaba de viver um período difícil a nível social, mostrando a profunda insatisfação de uma parte da juventude; esta situação parece ter atingido não só os bairros das grandes cidades, mas mais profundamente todas as camadas da população. As violências que marcam as sociedades e que não podemos deixar de condenar constituem contudo uma mensagem, sobretudo da parte da juventude, que nos convida a considerar as exigências dos jovens e a dar, como recordava D. Jean-Pierre Ricard, Arcebispo de Bordéus e Presidente da Conferência dos Bispos da França no final da Assembleia de Lourdes no passado mês de Novembro, "uma resposta adequada a estas tensões dramáticas da nossa sociedade". Permita-me, Senhor Embaixador, que agradeça a todos os que estão empenhados, sobretudo mediante o diálogo e a proximidade fraterna com os jovens, a fazer com que o clima social seja de novo pacífico, pois trata-se de uma responsabilidade de todos os cidadãos.

O seu País acolheu numerosos trabalhadores estrangeiros e as suas famílias, que contribuíram em grande medida para o progresso da Nação depois do final da Segunda Guerra Mundial. É importante hoje agradecer, a eles e aos seus descendentes, esta riqueza económica, cultural e social na qual eles participaram. A maior parte deles tornaram-se também cidadãos franceses de pleno direito. Hoje o desafio consiste em viver os valores de igualdade e de fraternidade, que fazem parte dos valores gravados no mote da França, preocupando-se por que todos os cidadãos possam concretizar, no respeito pelas diferenças legítimas, uma verdadeira cultura comum, portadora dos valores morais e espirituais fundamentais. É importante propor também aos jovens um ideal de sociedade e um ideal pessoal, para que eles tenham motivos para viver e ter esperança e, antes de tudo, confiança num futuro melhor, permitindo-lhe edificar a sua existência, encontrar um trabalho para satisfazer as suas necessidades e das suas famílias, para lhes permitir um bem-estar ao qual têm naturalmente direito. Por conseguinte, o seu País é convidado a dar um passo suplementar para a integração de todos na sociedade, assim como outras Nações do Continente, em nome da dignidade intrínseca de todas as pessoas e do seu carácter central na sociedade, como recordava o Concílio Ecuménico VaticanoII (cf. Gaudium et spes
GS 9), como Vossa Excelência frisou. É a este preço que se obtém a paz social.

É necessário também dedicar uma atenção especial à instituição conjugal e familiar, à qual nenhuma outra forma de organização relacional pode ser comparada. De facto, ela é o fundamento da vida social e desempenha um papel insubstituível na educação da juventude, unindo autoridade e apoio afectivo, transmitindo a todos os jovens os valores indispensáveis para a sua maturação pessoal e o sentido do bem comum, assim como as orientações necessárias para a vida na sociedade. Para esta finalidade, ela deve ser ajudada e apoiada, para não a privar da sua missão educativa, deixando assim os jovens abandonados a si mesmos. Desejo saudar os educadores, o ambiente escolar e todos os movimentos que se dedicam a apoiar os pais na sua tarefa educativa, ajudando-os a formar a consciência dos jovens, para que possam ser no futuro adultos responsáveis não só por si mesmos mas também pelos seus irmãos em humanidade e pelo bom andamento da sociedade. Todos saibam que a Igreja, que se dedica em toda a parte à defesa da família, deseja ajudá-los na sua tarefa.

Por outro lado, é fundamental que os jovens sejam acompanhados, para poderem assumir a sua vida e sentir-se membros de pleno direito da sociedade. Tudo isto contribuirá em grande medida para a unidade nacional entre as gerações e para a criação de um tecido social mais forte. Neste mesmo espírito, desejo chamar a atenção de todos os homens de boa vontade para as decisões e as acções em matéria de bioética, que mostram que existe cada vez mais a tendência a considerar o ser humano, sobretudo nos primeiros momentos da sua existência, como um simples objecto de pesquisa. É preciso enfrentar as questões éticas não só sob o ponto de vista da ciência, mas do humano, que deve obrigatoriamente ser respeitado. Sem a aceitação deste critério moral fundamental, será difícil criar uma sociedade verdadeiramente humana, respeitadora de todos os seres que a compõem, sem distinção alguma.

Por numerosos motivos, o seu País está atento aos países emergentes e aos que têm dificuldade em empreender um verdadeiro desenvolvimento económico e social. A recente Cimeira África-França, realizada no Mali, é uma expressão disto. Os países ricos têm uma grande responsabilidade no crescimento das sociedades e no desenvolvimento dos cidadãos das nações em dificuldade, não só para lhes fornecer as ajudas financeiras, mas também para formar tecnicamente as categorias e o pessoal que tornarão estas nações cada vez mais autónomas e protagonistas na economia mundial.

Eles estão chamados a participar sobretudo no estabelecimento de estruturas locais auto-suficientes, consentindo que os habitantes tenham os recursos necessários para a sua subsistência.

De facto, é mais urgente do que nunca que sejam prosseguidas e intensificadas as acções mais concretas possíveis, baseando-se nas populações locais, sobretudo nas mulheres e nos jovens que, sobretudo nas sociedades africanas, ocupam um lugar primordial e podem dar em grande medida um novo impulso à economia e à vida social.

No final do nosso encontro dirijo-lhe, Excelência, os meus votos mais cordiais pela missão que hoje inicia. Tenha a certeza de que encontrará sempre junto dos meus colaboradores a atenção e a ajuda de que poderá precisar.

133 Ao confiar o povo da França e as suas Autoridades à protecção de Nossa Senhora de Lourdes e aos numerosos santos e santas da sua terra, tão queridos a um grande número dos seus compatriotas, peço ao Senhor que ampare todos, para que, haurindo do património e da longa tradição espiritual que lhes pertence, possam edificar uma sociedade de paz e de justiça, e contribuir para uma solidariedade cada vez maior entre as pessoas e entre os povos. Excelência, concedo-lhe de bom grado, assim como aos seus colaboradores e familiares, a Bênção Apostólica




AOS JOVENS DA ACÇÃO CATÓLICA ITALIANA Segunda-feira, 19 de Dezembro de 2005


Caríssimos rapazes e moças
da Acção Católica Italiana

Desde há muitos anos, as crianças e os jovens da ACR vêm transmitir os seus bons votos ao Papa. Trata-se de um encontro outrora desejado pelo Papa Paulo VI e vivido todos os anos com grande alegria pelo meu Predecessor, João Paulo II, que todos vós conhecestes. Também eu vos recebo com o mesmo júbilo. Saúdo com afecto cada um de vós, juntamente com o vosso Assistente-Geral, Mons. Francesco Lambiasi, e o Presidente, Prof. Luigi Alici, e agradeço-vos sentidamente os bons votos que me transmitistes para o próximo Santo Natal.

Na Natividade de Jesus, nós celebramos o amor infinito de Deus por todos os homens: "Tanto amou Deus o mundo, que lhe entregou o seu Filho unigénito" (Jn 3,16), e uniu-se tão intimamente à nossa humanidade que desejou compartilhá-la, a ponto de se tornar homem entre os homens, um de nós. No Menino de Belém, a pequenez de Deus feito homem revela-nos a grandeza do homem e a beleza da nossa dignidade de filhos de Deus, de irmãos de Jesus. Contemplando este Menino, vemos como é grande a confiança que Deus deposita em cada um de nós, e como é ampla a possibilidade que se nos oferece, de realizar coisas bonitas e grandes nos nossos dias, vivendo com Jesus e como Jesus.

No corrente ano, o vosso caminho formativo é acompanhado pelo slogan: "Estás connosco". Queridos jovens, o Senhor Jesus está sempre connosco e caminha sempre com a sua Igreja, acompanhando-a e velando sobre ela. Nunca tenhais dúvida da sua presença! Aquele que vem ao nosso encontro como o Emanuel, o "Deus connosco", assegura-nos que está sempre no meio dos seus: "E sabei que Eu estarei sempre convosco, até ao fim dos tempos" (Mt 28,20). Procurai sempre o Senhor Jesus, crescei na amizade com Ele, aprendei a ouvi-lo, a conhecer a sua palavra e a reconhecê-lo nos pobres presentes nas vossas comunidades. Vivei a vossa existência com alegria e entusiasmo, convictos da sua presença e da sua amizade gratuita, generosa e fiel, até à morte de cruz.

"Estás connosco": o Senhor Jesus está verdadeiramente connosco. Dai testemunho da alegria desta sua presença vigorosa e dócil a todos, a começar pelos vossos coetâneos. Dizei-lhes que é belo ser amigo de Jesus e que vale a pena segui-lo. Com o vosso entusiasmo, mostrai que entre os numerosos modos de viver, que o mundo de hoje parece oferecer-nos, todos aparentemente no mesmo plano, só no seguimento de Jesus se encontra o verdadeiro sentido da vida e, portanto, a alegria autêntica e duradoura. E assim também este compromisso pela paz, que assumis com os irmãos de Sarajevo, é verdadeiramente um sinal da vossa amizade com Jesus, que nas Escrituras é chamado "Príncipe da paz". Os vossos grupos da ACR sejam a semente da alegria nas vossas paróquias, nas vossas famílias e nas escolas que frequentais. Caríssimos, digo-vos mais uma vez obrigado pela vossa visita. Abençoo-vos com carinho, juntamente com os vossos entes queridos, os educadores, os assistentes e todos os amigos da ACR.

Feliz Natal!




DURANTE A APRESENTAÇÃO DA CAPELA MUSICAL PONTIFÍCIA "SISTINA" Terça-feira, 20 de Dezembro de 2005


Caro Maestro, Mons. Liberto
134 Queridos meninos da Capela Sistina
Caros cantores, professores
colaboradores e colaboradoras

Não encontrei tempo para preparar um discurso, embora a minha ideia fosse muito simples: dizer, neste período antes do Natal, que são dias de acção de graças pelos dons; dizer, nestes dias, obrigado a vós, pelo que ofereceis durante todo o ano, por esta grande contribuição para a glória de Deus e para a alegria dos homens na terra.

Na noite da natividade do Salvador os anjos anunciaram aos pastores o nascimento de Cristo com as palavras "Gloria in excelsis Deo et in terra pax hominibus". Desde sempre a tradição crê firmemente que os anjos não falaram simplesmente como fazem os homens, mas cantaram e que era um canto de uma beleza celestial, o qual revelava a beleza do Céu. A tradição está convicta também de que os coros das vozes brancas podem fazer-nos ouvir uma ressonância do canto angélico. E é verdade que no canto da Capela Sistina, durante as solenes liturgias, nós podemos sentir a presença da liturgia celeste, um pouco da beleza na qual o Senhor quer comunicar-nos a sua alegria.

Na realidade, o louvor a Deus exige o canto. Por conseguinte, em todo o Antigo Testamento com Moisés e David até ao Novo Testamento no Apocalipse ouvimos de novo os cantos da liturgia celeste, a qual oferece um ensinamento para a nossa liturgia na Igreja de Deus. Por isso, a vossa contribuição é essencial para a liturgia: não é um ornamento marginal, mas a liturgia como tal exige esta beleza, exige o canto para louvar a Deus e dar alegria aos participantes.

Por este grande contributo, gostaria de vos agradecer de todo o meu coração. A liturgia do Papa, a liturgia em São Pedro, deve ser a liturgia exemplar para o mundo. Vós sabeis que através da televisão, da rádio, hoje em todas as partes do mundo muitas pessoas participam nesta liturgia. Daqui, aprendem ou não, o que é a liturgia, como deve ser celebrada. Por isso, é tão importante, não só que os nossos mestres-de-cerimónia ensinem ao Papa como celebrar bem a liturgia, mas também que a Capela Sistina seja um exemplo de como se deve dar beleza ao canto de louvor a Deus.

O meu irmão fez-me experimentar de perto a beleza de um coro de vozes brancas sei que esta beleza exige muito empenho e também muitos sacrifícios. Vós, meninos, deveis levantar-vos cedo para chegar à escola; conheço o trânsito romano e posso, portanto, adivinhar como muitas vezes é difícil chegar a tempo. Depois, deve-se trabalhar duramente até ao fundo, a fim de que seja realizada esta perfeição, com a competência que agora acabámos de ouvir.

Por tudo isto, agradeço-vos. Também porque nestas festas, enquanto os vossos amigos fazem grandes passeios, vós deveis permanecer na Basílica para cantar e, às vezes, esperar quase uma hora sem poder cantar. E, no entanto, estais sempre prontos a dar a vossa contribuição.

Sinto esta gratidão com frequência e, nesta oportunidade, queria comunicá-la a vós.

O Natal é a festa dos dons. Foi exactamente Deus que nos fez o dom maior. Doou-se a si mesmo.

135 Encarnou, fez-se menino. Deus deu-nos o dom verdadeiro e, desse modo, convida também a nós a doar, a doar com o coração; a doar a Deus e ao próximo um pouco de nós mesmos. E a doar ainda os sinais desta nossa bondade, da vontade de oferecer alegria as outros.

Assim, também eu tentei tornar visível a minha gratidão através dos dons, que agora serão entregues, como expressão da gratidão, pela qual me faltam as palavras.




AOS CARDEAIS, ARCEBISPOS E PRELADOS DA CÚRIA ROMANA NA APRESENTAÇÃO DOS VOTOS DE NATAL Quinta-feira, 22 de Dezembro de 2005


Senhores Cardeais
Venerados Irmãos
no Episcopado e no Presbiterado
Queridos irmãos e irmãs

"Expergiscere, homo: quia pro te Deus factus est homo Desperta, homem, porque por ti Deus se fez homem" (Santo Agostinho, Sermões, 185). Com este convite de Santo Agostinho, a captar o sentido autêntico do Natal de Cristo, dou início ao meu encontro convosco, prezados colaboradores da Cúria Romana, já em proximidade das festividades natalícias. Dirijo a cada um a minha saudação mais cordial, agradecendo-vos os sentimentos de devoção e de afecto, de que se fez intérprete eficaz o Cardeal Decano, a quem dirijo o meu pensamento reconhecido. Deus fez-se homem por nós: esta é a mensagem que todos os anos, da silenciosa gruta de Belém, se difunde até aos recantos mais longínquos da terra. O Natal é festa de luz e de paz, é dia de enlevo interior e de alegria que se propaga no universo, porque "Deus se fez homem". Da humilde gruta de Belém, o Filho eterno de Deus, que se tornou Criancinha, dirige-se a cada um de nós: interpela-nos, convida-nos a renascer nele para que, com Ele, possamos viver eternamente na comunhão da Santíssima Trindade.

Com o coração repleto da alegria que deriva desta consciência, voltemos com o pensamento às vicissitudes do ano que chegou ao seu ocaso. Precedem-nos grandes acontecimentos, que assinalaram profundamente a vida da Igreja. Em primeiro lugar, penso na partida do nosso amado Santo Padre João Paulo II, precedida por um longo caminho de sofrimento e de gradual perda da palavra. Nenhum Papa nos deixou uma quantidade de textos igual à que ele nos legou; precedentemente, nenhum Papa pôde visitar, como ele, o mundo inteiro e falar de modo directo aos homens de todos os continentes. Mas no final coube-lhe um caminho de sofrimento e de silêncio. Permanecem inesquecíveis para nós as imagens do Domingo de Ramos quando, com um ramo de oliveira na mão e marcado pela dor, ele estava à janela e nos dava a bênção do Senhor, prestes a encaminhar-se rumo à Cruz. Depois, a imagem do momento em que, na sua capela particular, com o Crucifixo na mão, participava na Via-Sacra no Coliseu, onde muitas vezes tinha presidido à procissão, carregando ele mesmo a Cruz. Enfim, a bênção silenciosa do Domingo de Páscoa em que, através da dor, víamos resplandecer a promessa da ressurreição, da vida eterna.

O Santo Padre, com as suas palavras e as suas obras, deu-nos grandes coisas; mas não menos importante é a lição que nos deu da cátedra do sofrimento e do silêncio. No seu último livro "Memória e Identidade" (Rizzoli, 2005), deixou-nos uma interpretação do sofrimento que não é uma teoria teológica ou filosófica, mas um fruto amadurecido ao longo do seu caminho pessoal de sofrimento, por ele percorrido com a ajuda da fé no Senhor crucificado. Esta interpretação, que ele tinha elaborado na fé e que dava sentido ao seu sofrimento vivido em comunhão com o do Senhor, falava através da sua dor silenciosa, transformando-a numa grande mensagem. Tanto no início, como uma vez mais no final do mencionado livro, o Papa mostra-se profundamente sensibilizado pelo espectáculo do poder do mal que, no século recém-terminado, nos é concedido experimentar de modo dramático. Diz textualmente: "Não foi um mal de pequenas dimensões... Foi um mal de proporções gigantescas, um mal que se valeu das estruturas estatais para realizar uma obra nefasta, um mal edificado como sistema" (pág. 198). O mal é porventura invencível? É a última verdadeira potência da história? Por causa da experiência do mal, para o Papa Wojtyla a questão da redenção tornou-se a interrogação essencial e central da sua vida e do seu pensar como cristão. Existe um limite contra o qual o poder do mal se infrange? Sim, existe, responde o Papa neste seu livro, como também na sua Encíclica sobre a redenção. O poder que põe um limite ao mal é a misericórdia divina. À violência, à ostentação do mal, opõe-se na história como "o totalmente outro" de Deus, como o próprio poder de Deus a misericórdia divina. O cordeiro é mais forte do que o dragão, poderíamos dizer com o Apocalipse.

No final do livro, na consideração retrospectiva do atentado de 13 de Maio de 1981 e também com base na experiência do seu caminho com Deus e com o mundo, João Paulo II aprofundou ulteriormente esta resposta. O limite do poder do mal, a potência que, em última análise, o derrota é assim ele nos diz o sofrimento de Deus, o sofrimento do Filho na Cruz: "O sofrimento de Deus crucificado não é apenas uma forma de sofrimento ao lado das demais... Cristo, sofrendo por todos nós, conferiu um novo sentido ao sofrimento, introduziu-o numa nova dimensão, numa nova ordem: a do amor... A paixão de Cristo na Cruz deu um sentido radicalmente novo ao sofrimento, transformou-o a partir de dentro... É o sofrimento que arde e consome o mal com a chama do amor... Cada sofrimento humano, cada dor, cada enfermidade encerra uma promessa de salvação... O mal... existe no mundo também para despertar em nós o amor, que é dom de si... a quem é visitado pelo sofrimento... Cristo é o Redentor do mundo: "Fomos curados pelas suas chagas" (Is 53,5)" (pág. 198 ss.). Tudo isto não é simplesmente douta teologia, mas expressão de uma fé vivida e amadurecida no sofrimento. Certamente, nós devemos fazer tudo para atenuar o sofrimento e impedir a injustiça que provoca o sofrimento dos inocentes. Todavia, devemos também fazer tudo para que os homens possam descobrir o sentido do sofrimento, para serem assim capazes de aceitar o próprio sofrimento e de o unir ao sofrimento de Cristo. Deste modo, ele funde-se juntamente com o amor redentor e, por conseguinte, torna-se uma força contra o mal do mundo. A resposta que o mundo inteiro deu à morte do Papa foi uma impressionante manifestação de reconhecimento pelo facto de que ele, no seu ministério, se ofereceu totalmente a Deus pelo mundo; um agradecimento pelo facto de que ele, num mundo repleto de ódio e de violência, nos ensinou novamente o amar e o sofrer ao serviço dos outros; mostrou-nos, por assim dizer, ao vivo o Redentor, a redenção, e deu-nos a certeza de que, de facto, o mal não tem a última palavra no mundo.

136 Agora gostaria de mencionar, embora brevemente, outros dois acontecimentos, começados ainda pelo Papa João Paulo II: trata-se da Jornada Mundial da Juventude em Colónia e do Sínodo dos Bispos sobre a Eucaristia, que encerrou também o Ano da Eucaristia, inaugurado pelo Papa João Paulo II.

A Jornada Mundial da Juventude permaneceu, na memória de todos aqueles que estavam presentes, como um grande dom. Mais de um milhão de jovens reuniram-se na Cidade de Colónia, situada às margens do rio Reno, e nas cidades vizinhas para juntos ouvir a Palavra de Deus e rezar, para receber os sacramentos da Reconciliação e da Eucaristia, para juntos cantar e festejar, para rejubilar pela existência e para adorar e receber o Senhor eucarístico durante os grandes encontros do sábado à noite e do domingo. Durante todos aqueles dias reinava simplesmente a alegria.

Prescindindo dos serviços de ordem, a polícia nada teve para fazer o Senhor tinha reunido a sua família, superando sensivelmente todas as fronteiras e barreiras e, na grande comunhão entre nós, nos tinha feito experimentar a sua presença. O mote escolhido para aquelas jornadas "Viemos adorá-lo" continha duas grandes imagens que, desde o início, favoreceram a justa abordagem. Em primeiro lugar, havia a imagem da peregrinação, a imagem do homem que, olhando para além dos seus interesses e da sua vida quotidiana, se coloca em busca do seu destino essencial, da verdade, da vida justa, de Deus. Esta imagem do homem a caminho rumo à meta da vida encerrava em si mais duas indicações claras. Antes de mais, havia o convite a não ver o mundo que nos circunda, somente como a matéria-prima com que nós podemos fazer algo, mas a procurar descobrir nele a "caligrafia do Criador", a razão criadora e o amor de que o mundo nasceu e de que o universo nos fala, se nos tornamos atentos, se os nossos sentidos interiores despertam e adquirem perceptividade para as dimensões mais profundas da realidade. Como segundo elemento acrescentava-se, depois, o convite a colocarmo-nos à escuta da revelação histórica, a única que nos pode oferecer a chave de leitura para o mistério silencioso da criação, indicando-nos concretamente o caminho rumo ao verdadeiro Senhor do mundo e da história, que se esconde na pobreza do estábulo de Belém. A outra imagem contida no mote da Jornada Mundial da Juventude era o homem em adoração: "Viemos adorá-lo". Antes de cada actividade e de cada mudança do mundo deve haver a adoração. Só ela nos torna verdadeiramente livres; somente ela nos oferece os critérios para o nosso agir. Precisamente num mundo em que, de modo progressivo, definham os critérios de orientação e existe a ameaça que cada um faça de si mesmo o próprio critério, é fundamental ressaltar a adoração. Para todos aqueles que estavam presentes, permanece inesquecível o silêncio intenso daquele milhão de jovens, um silêncio que unia e confortava todos nós, quando o Senhor no Sacramento era colocado sobre o altar. Conservemos no coração as imagens de Colónia: elas são uma indicação que continua a agir. Sem mencionar nomes individuais, nesta ocasião gostaria de agradecer a todos aqueles que tornaram possível a Jornada Mundial da Juventude; mas sobretudo, juntos, demos graças ao Senhor, porque em última análise somente Ele podia conceder-nos tais jornadas do modo como as vivemos.

A palavra "adoração" leva-nos ao segundo grande acontecimento, sobre o qual gostaria de falar: o Sínodo dos Bispos e o Ano da Eucaristia. O Papa João Paulo II, com a Encíclica Ecclesia de Eucharistia com a Carta Apostólica Mane nobiscum Domine, já nos tinha oferecido as indicações essenciais e, ao mesmo tempo, com a sua experiência pessoal da fé eucarística, tinha concretizado o ensinamento da Igreja. Além disso, a Congregação para o Culto Divino, em estreita ligação com a Encíclica, tinha publicado a Instrução Redemptionis sacramentum, como ajuda prática para a justa realização da Constituição conciliar sobre a liturgia e da reforma litúrgica. Para além de tudo isto, era verdadeiramente possível dizer algo de novo, desenvolver ulteriormente o conjunto da doutrina? Foi precisamente esta a grande experiência do Sínodo quando, nas contribuições dos Padres, se viu reflectir a riqueza da vida eucarística da Igreja de hoje e se manifestou a inexauribilidade da sua fé eucarística. Aquilo que os Padres pensaram e expressaram deverá ser apresentado, em estreita ligação com as Propositiones do Sínodo, num documento pós-sinodal. Aqui, gostaria apenas de salientar mais uma vez aquele ponto que, há pouco, já recordámos no contexto da Jornada Mundial da Juventude: a adoração do Senhor ressuscitado, presente na Eucaristia com a carne e o sangue, com o corpo e a alma, com a divindade e a humanidade. É comovedor para mim, ver como em toda a parte na Igreja se está a despertar a alegria da adoração eucarística e como se manifestam os seus frutos. No período da reforma litúrgica, muitas vezes a Missa e a adoração fora dela eram vistas como que em contraste entre si: o Pão eucarístico não nos teria sido dado para ser contemplado, mas para ser comido, segundo uma objecção então difusa. Na experiência de oração da Igreja já se manifestou a falta de sentido de tal contraposição. Já Agostinho disse: "...nemo autem illam carnem manducat, nisi prius adoraverit;... peccemus non adorando Ninguém come esta carne, sem antes a adorar;... pecaríamos, se não a adorássemos" (cf. Enarr. in
Ps 98, 9, CCL XXXIX, 1385). De facto, não é que na Eucaristia nós simplesmente recebemos uma coisa qualquer. Ela é o encontro e a unificação de pessoas; porém a pessoa que vem ao nosso encontro e deseja unir-se a nós é o Filho de Deus.

Tal unificação somente pode realizar-se segundo o modo de adoração. Receber a Eucaristia significa adorar Aquele que recebemos. Precisamente assim e somente assim nos tornamos um só com Ele. Por isso, o desenvolvimento da adoração eucarística, como se formou durante a Idade Média, era a consequência mais coerente do próprio mistério eucarístico: somente na adoração pode amadurecer um acolhimento profundo e verdadeiro. E é precisamente neste acto pessoal de encontro com o Senhor que, depois, amadurece também a missão social que está encerrada na Eucaristia e que deseja romper as barreiras não apenas entre o Senhor e nós, mas inclusive e sobretudo as barreiras que nos separam uns dos outros.

O último acontecimento deste ano, sobre o qual gostaria de me deter nesta ocasião, é a celebração do encerramento do Concílio Vaticano II, há quarenta anos. Tal memória suscita a interrogação: qual foi o resultado do Concílio? Foi recebido de modo correcto? O que, na recepção do Concílio, foi bom, o que foi insuficiente ou errado? O que ainda deve ser feito? Ninguém pode negar que, em vastas partes da Igreja, a recepção do Concílio teve lugar de modo bastante difícil, mesmo que não se deseje aplicar àquilo que aconteceu nestes anos a descrição que o grande Doutor da Igreja, São Basílio, faz da situação da Igreja depois do Concílio de Niceia: ele compara-a com uma batalha naval na escuridão da tempestade, dizendo entre outras coisas: "O grito rouco daqueles que, pela discórdia, se levantam uns contra os outros, os palavreados incompreensíveis e o ruído confuso dos clamores ininterruptos já encheram quase toda a Igreja falsificando, por excesso ou por defeito, a recta doutrina da fé..." (De Spiritu Sancto, XXX, 77; PG 32,213 A; Sch 17 bis, pág. 524). Não queremos aplicar exactamente esta descrição dramática à situação do pós-Concílio, todavia alguma coisa do que aconteceu se reflecte nele. Surge a pergunta: por que a recepção do Concílio, em grandes partes da Igreja, até agora teve lugar de modo tão difícil? Pois bem, tudo depende da justa interpretação do Concílio ou como diríamos hoje da sua correcta hermenêutica, da justa chave de leitura e de aplicação. Os problemas da recepção derivaram do facto de que duas hermenêuticas contrárias se embateram e disputaram entre si. Uma causou confusão, a outra, silenciosamente mas de modo cada vez mais visível, produziu e produz frutos. Por um lado, existe uma interpretação que gostaria de definir "hermenêutica da descontinuidade e da ruptura"; não raro, ela pôde valer-se da simpatia dos mass media e também de uma parte da teologia moderna. Por outro lado, há a "hermenêutica da reforma", da renovação na continuidade do único sujeito-Igreja, que o Senhor nos concedeu; é um sujeito que cresce no tempo e se desenvolve, permanecendo porém sempre o mesmo, único sujeito do Povo de Deus a caminho. A hermenêutica da descontinuidade corre o risco de terminar numa ruptura entre a Igreja pré-conciliar e a Igreja pós-conciliar. Ela afirma que os textos do Concílio como tais ainda não seriam a verdadeira expressão do espírito do Concílio.

Seriam o resultado de compromissos em que, para alcançar a unanimidade, foi necessário arrastar atrás de si e confirmar muitas coisas antigas, já inúteis. Contudo, não é nestes compromissos que se revelaria o verdadeiro espírito do Concílio mas, ao contrário, nos impulsos rumo ao novo, subjacentes aos textos: somente eles representariam o verdadeiro espírito do Concílio, e partindo deles e em conformidade com eles, seria necessário progredir. Precisamente porque os textos reflectiriam apenas de modo imperfeito o verdadeiro espírito do Concílio e a sua novidade, seria preciso ir corajosamente para além dos textos, deixando espaço à novidade em que se expressaria a intenção mais profunda, embora ainda indistinta, do Concílio. Em síntese: seria necessário seguir não os textos do Concílio, mas o seu espírito. Deste modo, obviamente, permanece uma vasta margem para a pergunta sobre o modo como, então, se define este espírito e, por conseguinte, se concede espaço a toda a inconstância. Assim, porém, confunde-se na origem a natureza de um Concílio como tal. Deste modo, ele é considerado como uma espécie de Constituinte, que elimina uma constituição velha e cria outra nova. Mas a Constituinte tem necessidade de um mandante e, depois, de uma confirmação por parte do mandante, ou seja, do povo ao qual a constituição deve servir.

Os Padres não tinham tal mandato e ninguém lhos tinha dado; ninguém, afinal, podia dá-lo porque a constituição essencial da Igreja vem do Senhor e nos foi dada para que pudéssemos chegar à vida eterna e, partindo desta perspectiva, conseguimos iluminar também a vida no tempo e o próprio tempo. Os Bispos, pelo Sacramento que receberam, são fiduciários do dom do Senhor. Somos "administradores dos mistérios de Deus" (1Co 4,1); como tais devem ser encontrados "fiéis e sábios" (cf. Lc 12,41-48). Isto significa que devem administrar o dom do Senhor de modo justo, para que não fiquem ocultos no esconderijo, para que tragam frutos e o Senhor, no final, possa dizer ao administrador: "Porque foste fiel no pouco, dar-te-ei autoridade no muito" (cf. Mt 25,14-30 Lc 19,11-27). Nestas parábolas evangélicas exprime-se a dinâmica da fidelidade, que interessa no serviço do Senhor, e nelas também se torna evidente, como num Concílio dinâmica e fidelidade devam tornar-se uma só coisa.

À hermenêutica da descontinuidade opõe-se a hermenêutica da reforma, como antes as apresentou o Papa João XXIII no seu discurso de abertura do Concílio em 11 de Outubro de 1962 e, posteriormente o Papa Paulo VI no discurso de encerramento a 7 de Dezembro de 1965. Desejo citar aqui somente as palavras tão conhecidas de João XXIII, nas quais esta hermenêutica é expressa inequivocavelmente quando diz que o Concílio "quer transmitir a doutrina pura e íntegra sem atenuações nem desvios" e continua: "O nosso dever não é somente guardar este tesouro precioso, como se nos preocupássemos unicamente pela antiguidade, mas dedicar-nos com diligente vontade e sem temor a esta obra, que a nossa época exige... É necessário que esta doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e apresentada de modo que corresponda às exigências do nosso tempo. De facto, uma coisa é o depósito da fé, isto é, as verdades contidas na nossa veneranda doutrina, e outra coisa é o modo com o qual elas são enunciadas, conservando nelas, porém, o mesmo sentido e o mesmo resultado" (S. Oec. Conc. Vat. II Constitutiones Decreta Declarationes, 1974, pp. 863-865). É claro que este cuidado de exprimir no modo novo uma determinada verdade exige uma nova reflexão sobre ela e uma nova relação vital com a mesma; é claro também que a nova palavra pode maturar somente se nasce de uma compreensão consciente da verdade expressa e que, por outro lado, a reflexão sobre a fé exige igualmente que se viva esta fé. Neste sentido o programa proposto pelo Papa João XXIII era extremamente exigente, como também é exigente e dinâmica a síntese de fidelidade. Porém, onde quer que esta interpretação tenha sido a orientação que guiou a recepção do Concílio, cresceu uma nova vida e amadureceram novos frutos. Quarenta anos depois do Concílio podemos realçar que o positivo é muito maior e mais vivo do que não podia parecer na agitação por volta do ano de 1968. Hoje vemos que a boa semente, mesmo desenvolvendo-se lentamente, cresce todavia, e cresce também assim a nossa profunda gratidão pela obra realizada pelo Concílio.

Paulo VI, no seu discurso de conclusão do Concílio, indicou ainda uma específica motivação pela qual uma hermenêutica da descontinuidade poderia parecer convincente. No grande debate sobre o homem, que distingue o tempo moderno, o Concílio devia dedicar-se de modo particular ao tema da antropologia. Devia interrogar-se sobre a relação entre a Igreja e a sua fé, de um lado, e o homem e o mundo de hoje, de outro (ibid., pp. 1066ss.). A questão torna-se ainda mais clara, se em vez do termo genérico de "mundo de hoje" escolhêssemos outro mais exacto: o Concílio devia determinar de modo novo a relação entre a Igreja e a era moderna. Esta relação tinha tido um início muito problemático com o processo a Galileu. Rompeu-se depois totalmente, quando Kant definou a "religião no contexto da pura razão" e quando, na fase radical da revolução francesa, se difundiu uma imagem do Estado e do homem que para a Igreja e para a fé praticamente não desejava conceder qualquer espaço. O conflito da fé da Igreja com o liberalismo radical e também com as ciências naturais que pretendiam envolver com os seus conhecimentos toda a realidade até aos seus extremos, propondo-se insistentemente de tornar supérflua a "hipótese de Deus", tinha provocado no Século XIX, sob Pio IX, por parte da Igreja ásperas e radicais condenações de tal espírito da era moderna. Portanto, aparentemente não havia mais qualquer espaço aberto para uma compreensão positiva e frutuosa, e eram igualmente drásticas as rejeições por parte daqueles que se sentiam os representantes da era moderna. Enquanto isso, porém, também a era moderna conheceu desdobramentos. Percebia-se que a revolução americana tinha oferecido um modelo de Estado moderno diferente daquele teorizado pelas tendências radicais originadas na segunda fase da revolução francesa. As ciências naturais começavam, de modo sempre mais claro, a reflectir sobre o próprio limite, imposto pelo seu próprio método que, mesmo realizando coisas grandiosas, todavia não era capaz de compreender a globalidade da realidade. Assim ambas as partes começavam progressivamente a abrir-se uma à outra. No período entre as duas guerras mundiais, e ainda mais depois da segunda guerra mundial, homens de Estado católicos demonstraram que pode existir um Estado laico moderno, que porém não é neutro em relação aos valores, mas vive haurindo das grandes fontes éticas abertas pelo cristianismo. A doutrina social católica, pouco a pouco desenvolveu-se e tornou-se um modelo importante entre o liberalismo radical e a teoria marxista do Estado. As ciências naturais, que sem reserva professaram um método próprio no qual Deus não tinha acesso, percebiam cada vez mais claramente que este método não compreendia a totalidade da realidade e abriam portanto novamente as portas a Deus, sabendo que a realidade é maior do que o método naturalista e daquilo que ele possa abranger. Poder-se-ia dizer que se formaram três círculos de perguntas, que agora no momento do Vaticano II, esperavam uma resposta. Antes de mais, era preciso definir de modo novo a relação entre fé e ciências modernas; isto dizia respeito, finalmente, não apenas às ciências naturais mas também à ciência histórica pois numa determinada escola, o método histórico-crítico reclamava para si a última palavra na interpretação da Bíblia e, pretendendo a plena exclusividade para a sua compreensão das Sagradas Escrituras, opunha-se em pontos importantes da interpretação que a fé da Igreja tinha elaborado. Em segundo lugar, era preciso definir de modo novo a relação entre a Igreja e o Estado moderno, que abria espaço aos cidadãos de várias religiões e ideologias, comportando-se em relação a estas religiões de modo imparcial e assumindo simplesmente a responsabilidade por uma convivência ordenada e tolerante entre os cidadãos e pela sua liberdade de exercer a própria religião. A isto, em terceiro lugar, estava ligado de modo geral o problema da tolerância religiosa uma questão que exigia uma nova definição sobre a relação entre a fé cristã e as religiões do mundo. Em particular, diante dos recentes crimes do regime nacional-socialista e, em geral, num olhar retrospectivo a uma longa e difícil história, era preciso avaliar e definir de modo novo a relação entre a Igreja e a fé de Israel.

São todos temas de grande importância eram os grandes temas da segunda parte do Concílio sobre os quais não é possível deter-se mais amplamente neste contexto. É claro que em todos estes sectores, que no seu conjunto formam um único problema, podia emergir alguma forma de descontinuidade que, de certo modo, se tinha manifestado, de facto uma descontinuidade, na qual todavia, feitas as diversas distinções entre as situações históricas concretas e as suas exigências, resultava não abandonada a continuidade nos princípios facto que facilmente escapa a uma primeira percepção. É exactamente neste conjunto de continuidade e descontinuidade a diversos níveis que consiste a natureza da verdadeira reforma. Neste processo de novidade na continuidade devíamos aprender a compreender mais concretamente do que antes que as decisões da Igreja em relação às coisas contingentes por exemplo, certas formas concretas de liberalismo ou de interpretação liberal da Bíblia deviam necessariamente ser essas mesmas acidentais, justamente porque referidas a uma determinada realidade em si mesma mutável. Era preciso aprender a reconhecer que, em tais decisões, somente os princípios exprimem o aspecto duradouro, permanecendo subjacente e motivando a decisão a partir de dentro. Não são, por sua vez, igualmente permanentes as formas concretas, que dependem da situação histórica e podem portanto ser submetidas a mutações.

137 Assim as decisões de fundo podem permanecer válidas, enquanto as formas da sua aplicação a estes novos podem mudar. Assim, por exemplo, se a liberdade religiosa for considerada como expressão da incapacidade do homem para encontrar a verdade e, consequentemente, se torna canonização do relativismo, consequentemente ela, por necessidade social, foi elevada de modo impróprio a nível metafísico e está privada do seu verdadeiro sentido, com a consequência de não poder ser aceite por quem crê que o homem é capaz de conhecer a verdade de Deus e, com base na dignidade interior da verdade, está ligado a tal conhecimento. Uma coisa completamente diversa é, porém, considerar a liberdade de religião como uma necessidade derivante da convivência humana, aliás, como uma consequência intrínseca da verdade que não pode ser imposta do exterior, mas deve ser feita pelo próprio homem somente mediante o processo do convencimento.

O Concílio Vaticano II, com o Decreto sobre a liberdade religiosa, reconhecendo e fazendo seu um princípio essencial do Estado moderno, recuperou novamente o património mais profundo da Igreja. Ela pode ser consciente de encontrar-se assim em plena sintonia com o ensinamento do próprio Jesus (cf.
Mt 22,21) como também com a Igreja dos mártires, com os mártires de todos os tempos. A Igreja antiga, com naturalidade, rezou pelos imperadores e pelos responsáveis políticos considerando isso seu dever (cf. 1Tm 2,2); porém, enquanto rezava pelos imperadores, recusou-se adorá-los, e com isto rejeitou claramente a religião do Estado. Os mártires da Igreja primitiva morreram pela sua fé naquele Deus que se revelou em Jesus Cristo, e exactamente por isso, morreram também pela liberdade de consciência e pela liberdade de profissão da própria fé uma profissão que por nenhum Estado pode ser imposta, porém pode ser realizada somente com a graça de Deus, na liberdade da consciência. Uma Igreja missionária que, como se sabe, insiste em anunciar a sua mensagem a todos os povos, deve empenhar-se pela liberdade da fé. Ela deseja transmitir o dom da verdade que existe para todos e, enquanto isso, assegura aos povos e aos seus governos que não quer destruir a sua identidade e as suas culturas, mas leva-lhes uma resposta que, no seu íntimo, esperam uma resposta com que a multiplicidade das culturas não se perde, ao contrário crescem a unidade entre os homens e também a paz entre os povos.

O Concílio Vaticano II, com a nova definição da relação entre a fé da Igreja e determinados elementos essenciais do pensamento moderno, reviu ou melhor corrigiu algumas decisões históricas, mas nesta aparente descontinuidade, manteve e aprofundou a sua íntima natureza e a sua verdadeira identidade. A Igreja, quer antes quer depois do Concílio, é a mesma Igreja una, santa, católica e apostólica peregrina nos tempos; ela prossegue "a sua peregrinação entre as perseguições do mundo e as consolações de Deus", anunciando a morte do Senhor até que Ele venha (cf. Lumen gentium LG 8). Quem pensava que com este "sim" fundamental para a era moderna se dissipassem todas as tensões e a "abertura ao mundo" assim realizada transformasse tudo em pura harmonia, tinha subestimado as tensões internas e também as contradições da mesma era moderna; tinha subestimado a perigosa fragilidade da natureza humana que em todos os períodos da história e em cada constelação histórica é uma ameaça para o caminho do homem. Estes perigos, com as novas possibilidades e com o novo poder do homem sobre a matéria e sobre si mesmo, não desapareceram, mas assumem novas dimensões: um olhar sobre a história actual demonstra-o claramente. Também no nosso tempo a Igreja permanece um "sinal de contradição" (Lc 2,34) não sem motivo o Papa João Paulo II, ainda Cardeal, tinha dado este título aos Exercícios Espirituais pregados em 1976 ao Papa Paulo VI e à Cúria Romana. Não podia ser intenção do Concílio abolir esta contradição do Evangelho em relação aos perigos e aos erros do homem. Era, porém realmente a sua intenção deixar de lado contradições erróneas ou supérfluas, para apresentar a este nosso mundo a exigência do Evangelho em toda a sua grandeza e pureza. O passo dado pelo Concílio em direcção à era moderna, que de modo tão impreciso foi apresentado como "abertura ao mundo" pertence definitivamente ao perene problema da relação entre fé e razão, que se apresenta sempre de novas formas. A situação que o Concílio devia enfrentar é comparável aos acontecimentos das épocas precedentes. São Pedro, na sua primeira Carta, tinha exortado os cristãos a estar sempre prontos a responder (apo-logia) a quem quer que perguntasse o logos, a razão da sua esperança (3, 15). Isto significava que a fé bíblica devia entrar em debate e em relação com a cultura grega e aprender a reconhecer mediante a interpretação a linha de distinção, mas igualmente o contacto e a afinidade entre elas na única razão dada por Deus.

Quando no século XIII, através dos filósofos judeus e árabes, o pensamento aristotélico entrou em contacto com a cristandade medieval formada na tradição platónica, e que fé e razão correram o risco de entrar em contradição inconciliável, foi sobretuto S. Tomás de Aquino a mediar o novo encontro entre fé e filosofia aristotélica, colocando assim a fé em uma relação positiva com a forma de razão dominante no seu tempo. O difícil debate entre a razão moderna e a fé cristã que, num primeiro momento, com o processo a Galileu, iniciou de modo negativo, certamente conheceu muitas fases, mas com o Concílio Vaticano II chegou a hora em que se requeria uma ampla reflexão. O seu conteúdo, nos textos conciliares, foi traçado seguramente em linhas gerais, mas com isto determinou a direcção essencial, de modo que o diálogo entre razão e fé, hoje particularmente importante, com base no Vaticano II encontrou a sua orientação. Agora este diálogo precisa desenvolver-se com grande abertura mental, mas igualmente com aquela clareza de discernimento dos espíritos que o mundo justificadamente espera de nós neste exacto momento. Assim podemos hoje, com gratidão, dirigir o nosso olhar ao Concílio Vaticano II: se o lemos e recebemos guiados por uma justa hermenêutica, ele pode ser e tornar-se cada vez mais uma grande força para a sempre necessária renovação da Igreja.

Finalmente, devo talvez ainda recordar o dia 19 de Abril deste ano, em que o Colégio Cardinalício com o meu susto não pequeno, me elegeu sucessor do Papa João Paulo II, sucessor de São Pedro na cátedra de Bispo de Roma? Uma tarefa assim estava totalmente fora daquilo que eu jamais poderia imaginar como minha vocação. Assim, foi somente com um grande acto de confiança em Deus que pude dizer na obediência o meu "sim" a esta escolha. Como então, hoje peço igualmente a todos vós a oração, com cuja força e apoio eu conto. Ao mesmo tempo, desejo agradecer de coração neste momento a todos aqueles que me acolheram e me acolhem sempre com grande confiança, bondade e compreensão, acompanhando-me dia-a-dia com a sua oração.

O Natal já está perto. O Senhor Deus diante das ameaças da história não se opôs com o poder exterior, como nós homens, segundo as perspectivas deste nosso mundo, teríamos esperado. A sua arma é a bondade. Revelou-se como criança, nasceu numa estalagem. É exactamente assim que contrapõe o seu poder completamente diverso das potências destrutivas da violência. Ele salva-nos precisamente assim. Mostra-nos exactamente assim o que salva. Queremos, nestes dias natalícios, ir ao seu encontro cheios de confiança, como os pastores, como os sábios do oriente. Peçamos a Maria para nos conduzir ao Senhor. Peçamos-lhe para vencer Ele mesmo a violência no mundo e para nos fazer experimentar o poder da sua bondade. Com estes sentimentos, concedo-vos a todos a Benção Apostólica.





Discursos Bento XVI 131