Discursos Bento XVI 10108

AOS ADMINISTRADORES DE ROMA E DO LÁCIO NO TRADICIONAL ENCONTRO NO INÍCIO DO ANO Quinta-feira, 10 de Janeiro de 2008

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Ilustres Senhores
Gentis Senhoras

Estou feliz por vos receber no início do novo ano, para a tradicional troca dos bons votos. Agradeço-vos a vossa presença aqui, enquanto transmito a minha deferente e cordial saudação ao Presidente da Junta regional do Lácio, Senhor Pietro Marrazzo, ao Presidente da Câmara Municipal de Roma, Deputado Walter Veltroni, e ao Presidente da Província de Roma, Senhor Enrico Gasbarra, aos quais desejo manifestar os meus sentimentos de profunda gratidão pelas amáveis palavras que me dirigiram também em nome das Administrações por eles geridas. Juntamente com eles, saúdo os Presidentes das respectivas Assembleias do Conselho e todos vós aqui congregados.

Este encontro anual oferece-nos a oportunidade para reflectir sobre algumas matérias de comum interesse e de grande importância e actualidade, que dizem respeito directamente à vida das populações de Roma e do Lácio. A eles, a cada uma das pessoas e famílias, dirijo através de vós um pensamento de carinho, de encorajamento e de atenção pastoral, fazendo-me intérprete dos sentimentos e dos vínculos que, ao longo dos séculos, uniram os Sucessores do Apóstolo Pedro à cidade de Roma, à sua Província e a toda a Região do Lácio. Mudaram-se os tempos e as situações, mas não se debilitam nem se atenuam o amor e a solicitude do Papa por todos aqueles que vivem nestas terras, tão profundamente assinaladas pela grande e viva herança do cristianismo.
Um critério fundamental, sobre o qual facilmente podemos estar de acordo no cumprimento dos nossos diversos deveres, é o da centralidade da pessoa humana. Como afirma o Concílio Vaticano II, na terra o homem é "a única criatura... que Deus quis por si mesma" (Gaudium et spes
GS 24). Por sua vez, o meu amado predecessor, o Servo de Deus João Paulo II, na Carta Encíclica Centesimus annus escrevia justamente que "o principal recurso do homem... é o próprio homem" (n. 32). Uma consequência evidente de tudo isto é a importância da pessoa, sobretudo na primeira parte da vida, mas também ao longo de todo o arco da sua existência. Porém, se considerarmos a realidade da nossa situação, não podemos negar que nos encontramos diante de uma verdadeira e grande "emergência educativa", como eu sublinhava no dia 11 de Junho do ano passado, falando no Congresso da Diocese de Roma. Com efeito, parece cada vez mais difícil propor de maneira convincente às novas gerações sólidas certezas e critérios sobre os quais construir a própria vida. Sabem-no bem tanto os pais como os professores, que também por este motivo são muitas vezes tentados a abdicar das tarefas educativas que lhes são próprias. De resto, no actual contexto social e cultural, impregnado de relativismo e inclusivamente de niilismo, eles mesmos dificilmente conseguem encontrar pontos de referência seguros, que os possam ajudar e orientar na sua missão de educadores, assim como em todas as suas atitudes de vida.

Ilustres representantes das Administrações de Roma e do Lácio, uma emergência semelhante não pode deixar indiferentes a Igreja, nem as vossas respectivas Administrações. Com efeito, estão claramente em jogo, com a formação das pessoas, as próprias bases da convivência e o futuro da sociedade. Por sua vez, a Diocese de Roma está a dedicar a esta tarefa difícil uma atenção verdadeiramente peculiar, exercida nos vários âmbitos educativos, da família e da escola às paróquias, associações e movimentos, aos oratórios, às iniciativas culturais, ao desporto e ao tempo livre. Neste contexto, manifesto a minha profunda gratidão à Região do Lácio pelo apoio oferecido aos oratórios e aos centros para a infância, promovidos pelas paróquias e comunidades eclesiais, assim como pelas contribuições em vista da realização de novos centros paroquiais nas regiões do Lácio que ainda não dispõem dos mesmos. No entanto, gostaria sobretudo de encorajar a um um compromisso convergente e em vasta escala, através do qual as instituições civis, cada uma em conformidade com as próprias competências, multipliquem os esforços para enfrentar nos vários planos a actual emergência no campo da educação, inspirando-se constantemente no critério-guia da centralidade da pessoa humana.

Aqui têm claramente uma importância prioritária o respeito e o apoio à família fundada no matrimónio. Como pude escrever na recente Mensagem para o Dia Mundial da Paz, "a família natural, enquanto íntima comunhão de vida e de amor fundada sobre o matrimónio entre um homem e uma mulher, constitui "o lugar primário da humanização da pessoa e da sociedade", o "berço da vida e do amor"" (n. 2). Infelizmente, hoje em dia vemos como são insistentes e ameaçadores os ataques e as incompreensões a respeito desta realidade humana e social fundamental. Por conseguinte, é necessário como nunca que as administrações públicas não favoreçam semelhantes tendências negativas mas, ao contrário, ofereçam às famílias um apoio convicto e concreto, na certeza de trabalhar deste modo pelo bem comum.

Outra emergência que se agrava é a da pobreza: ela aumenta sobretudo nas grandes periferias urbanas, mas começa a estar presente também em outros contextos e situações, que pareciam protegidas. A Igreja participa de todo o coração no esforço em vista de aliviá-la, colaborando de bom grado com as instituições civis, mas o aumento do custo da vida, em particular o preço dos alojamentos, as persistentes "bolsas" de falta de trabalho e também os salários e as pensões muitas vezes inadequados tornam verdadeiramente difíceis as condições de vida de muitas pessoas e famílias.

De resto, um acontecimento trágico como o assassínio de Giovanna Reggiani, em Tor de Quinto, pôs bruscamente os nossos cidadãos diante do problema não apenas da segurança, mas também da gravíssima degradação de algumas áreas de Roma: especialmente aqui é necessária, muito além da emoção do momento, uma obra constante e concreta, que tenha a dúplice e inseparável finalidade de garantir a segurança dos cidadãos e de assegurar a todos, de forma particular aos imigrados, pelo menos o mínimo indispensável para uma vida honesta e digna. Através da Cáritas e de numerosas outras realidades de voluntariado, animadas por leigos, por religiosos e religiosas, a Igreja prodigaliza-se nesta difícil fronteira, onde permanecem evidentemente insubstituíveis as responsabilidades e possibilidades de intervenção dos poderes públicos.

Outra solicitude que diz respeito tanto à Igreja como às vossas administrações, é relativa aos enfermos. Sabemos muito bem como são graves as dificuldades que a Região do Lácio deve enfrentar no âmbito da saúde, mas temos que constatar igualmente quão dramática é, não raro, a situação das estruturas católicas de assistência à saúde, também bastante prestigiosas e de reconhecida excelência nacional. Portanto, não posso deixar de pedir que na distribuição dos recursos, elas não venham a ser penalizadas, e não por causa de um interesse da Igreja, mas para não comprometer um serviço indispensável às nossas populações.

Ilustres Autoridades, enquanto ainda vos agradeço a vossa amável e apreciada visita, asseguro-vos a minha cordial proximidade e a minha oração, tanto por vós como pelas altas responsabilidades que vos são confiadas. O Senhor sustente o vosso compromisso e ilumine os vossos propósitos de bem. Com estes sentimentos, concedo de coração a cada um de vós a Bênção Apostólica, que de bom grado faço extensiva às vossas famílias e a quantos vivem e trabalham em Roma, na sua Província e em todo o Lácio.



AO INSPECTORADO GERAL DE SEGURANÇA PÚBLICA NO VATICANO Sexta-feira, 11 de Janeiro de 2008

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Prezados amigos

O encontro convosco, que fazeis parte do Inspectorado geral de segurança pública no Vaticano, já se tornou uma reunião esperada e desejada no início do novo ano. Enquanto vos recebo com prazer e vos saúdo com afecto, aproveito a ocasião para vos renovar a expressão da minha estima e do meu reconhecimento pelo serviço que prestais quotidianamente. Saúdo em primeiro lugar o Prefeito Salvatore Festa, o Comandante da Polícia de Roma, Marcello Fulvi, e o Dr. Vincenzo Caso, a quem agradeço as amáveis palavras que me foram dirigidas, e a quem manifesto a minha gratidão pelo trabalho realizado ao longo destes anos como Dirigente do Inspectorado. Dirijo um pensamento especial e deferente também ao Chefe da Polícia, Prefeito Antonio Manganelli. Além disso, dirijo-me com amizade aos outros componentes do Inspectorado da Polícia de Estado na Cidade do Vaticano que no dia de hoje não puderam estar aqui connosco, mas que se unem a nós espiritualmente nesta sentida circunstância. A todos e a cada um, estou feliz por formular, para o ano que há pouco teve início, todos os meus melhores votos, extensivos também às respectivas famílias.

No corrente ano pensei precisamente nas famílias, quando preparei a Mensagem para o Dia Mundial da Paz, que se celebra precisamente no dia 1 de Janeiro. Neste texto, que tem por tema: "Família humana, comunidade de paz", recordei que "a família natural, enquanto íntima comunhão de vida e de amor fundada sobre o matrimónio entre um homem e uma mulher, constitui "o lugar primário da humanização da pessoa e da sociedade", o "berço da vida e do amor". Por isso, a família é justamente designada como a primeira sociedade natural, "uma instituição divina colocada como fundamento da vida das pessoas, como protótipo de todo o ordenamento social"" (n. 2).

Vós, estimados funcionários e agentes, nas tarefas de vigilância que desempenhais diariamente, encontrais não poucas famílias. Elas chegam aqui de todas as regiões do mundo, para prestar homenagem aos Apóstolos e de modo particular a São Pedro, sobre cuja fé Cristo fundou a Igreja; elas vêm para renovar em conjunto a profissão desta fé, para visitar e entrar em contacto com as várias realidades do Vaticano, mas também para participar nas audiências e nas celebrações presididas pelo Sucessor do Apóstolo Pedro. Estou-vos grato pelo serviço que prestais, caracterizado pela diligência e pela profissionalidade, por uma atenção constante às pessoas e às finalidades que as animam, e também pela disponibilidade, pela paciência e pelo espírito de sacrifício. Desta forma, com a colaboração das autoridades que têm o cuidado de tornar a cidade de Roma cada vez mais bonita e hospitaleira, também vós contribuís para o encontro fecundo e para a convivência serena entre os cidadãos de Roma e os hóspedes provenientes dos vários países do mundo!

Como são numerosos os peregrinos que encontrais durante o ano! Gostaria de vos convidar a ver em cada um deles o rosto de um irmão ou de uma irmã, que Deus coloca no vosso caminho, uma pessoa amiga, ainda que desconhecida, que deve ser acolhida e ajudada na escuta paciente, consciente de que todos nós fazemos parte de uma única e grande família humana. Não é porventura verdade, como escrevi na Mensagem supramencionada, que nós não vivemos uns ao lado dos outros por acaso? Não estamos todos, talvez, a percorrer o mesmo caminho como homens e, por conseguinte, como irmãos e irmãs? Eis por que motivo, então, é essencial que cada um se comprometa a viver a sua própria vida em atitude de responsabilidade perante Deus, reconhecendo nele o manancial originário tanto da sua existência, como da dos outros. Com efeito, precisamente remontando a este supremo Princípio é possível compreender o valor incondicionado de cada ser humano; é graças a esta consciência que podem ser lançadas as premissas para a edificação de uma humanidade pacificada. Que seja bem claro: sem o fundamento transcendente, que é Deus, a sociedade corre o risco de se tornar uma mera agregação de vizinhos, deixando de ser uma comunidade de irmãos e de irmãs, chamados a formar uma grande família (cf. n. 6).

Queridos amigos, o Senhor vos ajude a desempenhar a vossa profissão, permanecendo sempre fiéis àqueles ideais que devem inspirá-la constantemente. A sociedade tem necessidade de pessoas que cumpram o seu dever, conscientes de que cada trabalho, todo o serviço levado a cabo com consciência, contribui para a construção de uma sociedade mais justa e verdadeiramente livre. Confio-vos à Virgem Santa e, enquanto renovo a cada um o meu sincero agradecimento pela vossa amável visita, é de bom grado que vos concedo, assim como às pessoas que vos são queridas, uma especial Bênção.



PARA O ENCONTRO NA UNIVERSIDADE DE ROMA "LA SAPIENZA"

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O texto que o Papa Bento XVI teria lido durante a visita à Universidade de Roma "La Sapienza", prevista para o dia 17 de Janeiro, depois anulada em 15 de Janeiro de 2008:

Magnífico Reitor
Excelentíssimas Autoridades
políticas e civis
Ilustres professores
e pessoal técnico-administrativo,
Queridos jovens estudantes!

É para mim motivo de profunda alegria encontrar-me com a comunidade da "Sapienza Universidade de Roma", por ocasião da inauguração do ano académico. Há séculos que esta Universidade marca o caminho e a vida da cidade de Roma, fazendo frutificar as melhores energias intelectuais em cada campo do saber. Depois da fundação querida pelo Papa Bonifácio VIII, a instituição, quer no período em que dependia directamente da Autoridade eclesiástica, quer sucessivamente, quando o Studium Urbis se desenvolveu como instituição do Estado Italiano, a vossa comunidade académica manteve um grande nível científico e cultural, que a coloca entre as mais prestigiosas universidades do mundo. Desde sempre, a Igreja de Roma tem olhado com simpatia e admiração para este centro universitário, reconhecendo o seu empenho, por vezes árduo e cansativo, de investigação e de formação das novas gerações. Nestes últimos anos, não faltaram momentos significativos de colaboração e diálogo. Apraz-me recordar, de modo particular, o Encontro Mundial dos Reitores, por ocasião do Jubileu das Universidades, que viu a vossa comunidade ocupar-se não apenas do acolhimento e da organização, mas também e sobretudo da proposta profética e complexa que era a elaboração de um "novo humanismo para o terceiro milénio".

Nesta circunstância, começo por expressar a minha gratidão pelo convite que me foi dirigido para falar à vossa universidade. Com esta perspectiva em mente, pus-me antes de tudo esta pergunta: O que é que pode e deve dizer um Papa numa ocasião como esta? Na minha prelecção em Ratisbona, falei certamente como Papa mas fi-lo sobretudo enquanto ex-professor daquela minha universidade, procurando unir lembranças e actualidade. Mas, à universidade "Sapienza", a antiga universidade de Roma, fui convidado a vir precisamente como Bispo de Roma e, por isso, devo falar enquanto tal. Sem dúvida, outrora a "Sapienza" era a universidade do Papa, mas hoje é uma universidade laica com aquela autonomia que, na base do seu próprio conceito constituinte, sempre fez parte da natureza da universidade, que deve estar vinculada exclusivamente à autoridade da verdade. Na sua liberdade de autoridades políticas e eclesiásticas, a universidade encontra a sua função particular, nomeadamente na sociedade moderna, que tem necessidade de uma instituição deste género.

Volto à minha pergunta inicial: O que é que pode e deve dizer o Papa no encontro com a universidade da sua cidade? Reflectindo sobre esta questão, pareceu-me que a mesma incluísse outras duas, cujo esclarecimento por si mesmo havia de levar à resposta. Com efeito, é necessário interrogar-se: Qual é a natureza e a missão do Papado? E ainda: Qual é a natureza e a missão da universidade? Não quero aqui demorar-vos, a vós e a mim, com prolongadas indagações sobre a natureza do Papado. Uma breve menção é suficiente. O Papa é primariamente Bispo de Roma e como tal, em virtude da sucessão do Apóstolo Pedro, detém uma responsabilidade episcopal por toda a Igreja Católica. A palavra "bispo" - episkopos, cujo significado imediato é o de "sentinela", já no Novo Testamento se fundiu com o conceito bíblico de Pastor: é alguém que olha o conjunto de um ponto de observação mais elevado, cuidando do recto caminho e da coesão da totalidade. Neste sentido, tal designação da sua missão aponta antes de mais para o interior da comunidade crente. O Bispo o Pastor é o homem que tem cuidado desta comunidade; é aquele que a conserva unida, mantendo-a no caminho para Deus, que foi indicado, segundo a fé cristã, por Jesus e não somente indicado: Ele mesmo é, para nós, o caminho. Mas, esta comunidade da qual o Bispo se ocupa seja ela grande ou pequena vive no mundo; as suas condições, o seu caminho, o seu exemplo e a sua palavra influem, inevitavelmente, sobre o resto da comunidade humana inteira. Quanto maior ela for, mais a sua condição salutar ou então uma eventual degradação se repercute no conjunto da humanidade. Salta hoje aos nossos olhos, com grande clareza, como as condições das religiões e como a situação da Igreja as suas crises e as suas renovações influem no conjunto da humanidade. Assim o Papa, precisamente como Pastor da sua comunidade, foi-se tornando cada vez mais também uma voz da razão ética da humanidade.

Porém, aqui levanta-se imediatamente uma objecção, ou seja, que o Papa, de facto, não falaria verdadeiramente com base na razão ética, mas tiraria as suas conclusões da fé e, por isso, não poderia pretender a validade das mesmas para quantos não partilham desta fé. Havemos ainda de voltar a este tema, deixando-o por agora porque se levanta aqui a questão absolutamente fundamental: O que é a razão? Como pode uma afirmação sobretudo uma norma moral demonstrar-se "razoável"? Aqui gostaria, brevemente apenas, de relevar que John Rawls, embora negando às doutrinas religiosas compreensivas o carácter da razão "pública", todavia vê na sua razão "não pública" pelo menos uma razão que não poderia, em nome de uma racionalidade secularizadamente insensível, ser simplesmente desconhecida por aqueles que a defendem. Para além do mais, ele vê um critério desta razoabilidade no facto de tais doutrinas derivarem de uma tradição responsável e motivada, tendo sido durante um longo período desenvolvidas argumentações suficientemente boas em defesa da respectiva doutrina. Nesta afirmação, parece-me importante o reconhecimento de que a experiência e a demonstração ao longo das gerações a base histórica da sabedoria humana constituem também um sinal da sua razoabilidade e do seu significado duradouro. Diante duma razão não histórica que procura autoconstruir-se somente numa racionalidade não histórica, a sabedoria da humanidade como tal a sabedoria das grandes tradições religiosas deve ser valorizada como realidade que não se pode impunemente lançar para o cesto da história das ideias.

Voltemos à pergunta inicial. O Papa fala como representante de uma comunidade crente, na qual, durante os séculos da sua existência, amadureceu uma determinada sabedoria da vida; fala como representante de uma comunidade que guarda em si um tesouro de conhecimento e de experiência ética, que se revela importante para toda a humanidade: neste sentido, fala como representante de uma razão ética.

Mas agora devemos interrogar-nos: O que é a universidade? Qual é a sua missão? É uma questão colossal, à qual mais uma vez me é possível tentar responder, em estilo quase telegráfico, com algumas observações. Penso que se possa afirmar que a verdadeira e íntima origem da universidade esteja na sede de conhecimento, que é própria do homem. Este quer saber o que é tudo aquilo que o circunda. Quer a verdade. Neste sentido, podemos ver o questionar-se de Sócrates como o impulso do qual nasceu a universidade ocidental. Penso, por exemplo para mencionar somente um texto na disputa com Eutifrone, que diante de Sócrates defende a religião mítica e a sua devoção. A isto, Sócrates contrapõe a pergunta: "Tu acreditas que entre os deuses exista realmente uma guerra recíproca e terríveis inimizades e combates... Teremos nós, Eutifrone, de afirmar que tudo isto é verdade?" (6 b-c). Nesta pergunta, aparentemente pouco devota mas que, em Sócrates, derivava de uma religiosidade mais profunda e mais pura, ou seja, da busca do Deus verdadeiramente divino , os cristãos dos primeiros séculos reconheceram-se a si mesmos e ao seu caminho. Acolheram a sua fé não de forma positivista, ou como a via de fuga de desejos não realizados; compreenderam-na como uma diluição da neblina da religião mitológica para deixar espaço à descoberta daquele Deus que é Razão criadora e, ao mesmo tempo, Razão-Amor. Por isso, o interrogar-se da razão sobre o Deus maior e também sobre a verdadeira natureza e o autêntico sentido do ser humano era, para eles, não uma forma problemática de falta de religiosidade, mas fazia parte da essência do seu modo de ser religiosos. Por conseguinte, eles não tinham necessidade de diluir ou abandonar o questionar-se socrático, mas podiam, aliás deviam, acolhê-lo e reconhecer como parte da sua própria identidade a árdua busca da razão para alcançar o conhecimento da verdade inteira. Assim podia, aliás devia, no âmbito da fé cristã, no mundo cristão, nascer a universidade.

É necessário dar mais um passo. O homem quer conhecer; quer a verdade. Esta é primariamente algo que diz respeito ao ver, ao compreender, à theoría, como a denomina a tradição grega. Mas, a verdade nunca é apenas teórica. Agostinho, ao estabelecer uma correlação entre as Bem-Aventuranças do Sermão da Montanha e os dons do Espírito mencionados no capítulo 11 de Isaías, notou uma reciprocidade entre "scientia" e "tristitia": o simples saber disse deixa-nos tristes. E realmente quem se limita a ver e apreender tudo aquilo que acontece no mundo, acaba por ficar triste. Mas, verdade significa mais do que saber: o conhecimento da verdade tem como finalidade o conhecimento do bem. Este é também o sentido do questionar-se socrático: Qual é o bem que nos torna verdadeiros? A verdade torna-nos bons, e a bondade é verdadeira: tal é o optimismo que vive na fé cristã, porque a esta foi concedida a visão do Logos, da Razão criadora que, na encarnação de Deus, se revelou conjuntamente como o Bem, como a própria Bondade.

Na teologia medieval, houve uma disputa profunda sobre a relação entre teoria e prática, sobre a justa relação entre conhecer e agir uma disputa que não cabe aqui desenvolver. Com efeito, a universidade medieval com as suas quatro Faculdades apresenta esta correlação. Comecemos pela Faculdade que, segundo a compreensão da época, era a quarta: a de Medicina. Não obstante fosse considerada mais como "arte" do que como ciência, todavia a sua inserção no cosmos da universitas significava claramente que estava colocada no âmbito da racionalidade, que a arte de curar se encontrava sob a guia da razão, subtraindo-se ao âmbito da magia. Curar é uma missão que exige sempre mais do que a simples razão, mas por isso mesmo precisa da conexão entre saber e poder, tem necessidade de pertencer ao campo da ratio. Inevitavelmente levanta-se a questão da relação entre prática e teoria, entre conhecimento e agir, na Faculdade de Jurisprudência. Trata-se de atribuir a justa forma à liberdade humana, que é sempre liberdade na comunhão recíproca: o direito é o pressuposto da liberdade, e não o seu antagonista. Mas aqui levanta-se a questão: Como se individualizam os critérios de justiça que tornam possível uma liberdade vivida em conjunto e favorecem o ser bom do homem? Nesta altura, impõe-se dar um salto ao presente: É a questão do modo como se pode encontrar uma normativa jurídica que constitua um ordenamento da liberdade, da dignidade humana e dos direitos do homem. É a questão que nos ocupa hoje nos processos democráticos de formação da opinião e que, ao mesmo tempo, nos angustia porque problemática para o porvir da humanidade. Na minha opinião, Jürgen Habermas exprime um vasto consenso do pensamento contemporâneo, quando afirma que a legitimidade de uma carta constitucional, como pressuposto da legalidade, derivaria de duas fontes: da participação política igualitária de todos os cidadãos e da forma razoável como são resolvidos os contrastes políticos. A propósito da referida "forma razoável", observa ele que a mesma não pode ser somente uma luta por maiorias aritméticas, mas há-de caracterizar-se como um "processo de argumentação sensível à verdade" (wahrheitssensibles Argumentationsverfahren). É uma afirmação correcta, mas muito difícil de transformar em prática política. Os representantes daquele público "processo de argumentação" são predominantemente como sabemos os partidos enquanto responsáveis pela formação da vontade política. Com efeito, estes terão infalivelmente em vista sobretudo a consecução de maiorias e, por conseguinte, olharão de maneira quase inevitável pelos interesses que prometem satisfazer; mas, tais interesses muitas vezes são particulares e não favorecem verdadeiramente a comunidade. A sensibilidade pela verdade acaba incessantemente subjugada à sensibilidade pelos interesses. Julgo significativo o facto de que Habermas fale da sensibilidade pela verdade como de um elemento necessário no processo de argumentação política, voltando assim a inserir o conceito de verdade no debate filosófico e político.

Mas, então, torna-se inevitável a pergunta de Pilatos: O que é a verdade? E como a reconhecemos? Se para isso se remete para a "razão pública", como faz Rawls, segue-se necessariamente a questão: O que é razoável? Como é que uma razão se demonstra verdadeira? De qualquer maneira, sobre esta base torna-se evidente que, na busca do direito da liberdade, da verdade da justa convivência, devem ser ouvidas outras instâncias diversas dos partidos e grupos de interesse, sem com isto querer minimamente contestar a importância destes. Voltamos assim à estrutura da universidade medieval. Ao lado da Faculdade de Jurisprudência, havia as Faculdades de Filosofia e de Teologia, às quais estava confiada a investigação sobre o ser homem na sua totalidade e, consequentemente, a missão de conservar viva a sensibilidade pela verdade. Poder-se-ia mesmo afirmar que o sentido permanente e autêntico das duas Faculdades é este: serem guardiães da sensibilidade pela verdade, não permitirem que o homem seja afastado da busca da verdade. Mas como é que elas podem corresponder a esta missão? Trata-se aqui de uma questão pela qual é necessário lutar incessantemente sem nunca estar posta e resolvida de maneira definitiva. Estando assim as coisas, nem sequer eu posso oferecer propriamente uma resposta, mas simplesmente um convite para continuarem a caminhar com esta interrogação a caminhar com os grandes que, ao longo de toda a história, lutaram e procuraram com as suas respostas e com a sua inquietude pela verdade, que remete continuamente para além de cada uma das respostas individuais.

Teologia e filosofia formam nisto um par de gémeos peculiar, não podendo nenhuma das duas desligar-se totalmente da outra e, todavia, cada uma deve conservar a própria tarefa e identidade. É mérito histórico de S. Tomás de Aquino face às diferentes respostas dos Padres, em virtude do seu contexto histórico ter evidenciado a autonomia da filosofia e, juntamente com ela, o direito e a responsabilidade própria da razão de se interrogar com base nas suas forças. Diferenciando-se das filosofias neoplatónicas, onde religião e filosofia se encontravam inseparavelmente entrelaçadas, os Padres tinham apresentado a fé cristã como a verdadeira filosofia, ressaltando ainda que esta fé corresponde às exigências da razão na sua busca da verdade; que a fé é o "sim" à verdade, comparativamente às religiões míticas que se tinham tornado uma simples rotina. Sucessivamente, porém, na época do nascimento da universidade, no Ocidente já não existiam aquelas religiões mas somente o cristianismo, e assim era necessário ressaltar novamente a responsabilidade própria da razão, de modo que não fosse absorvida pela fé. S. Tomás interveio num momento privilegiado: pela primeira vez, os escritos filosóficos de Aristóteles tornaram-se acessíveis na sua integridade; estavam presentes as filosofias hebraicas e árabes enquanto específicas apropriações e prolongamentos da filosofia grega. Assim o cristianismo, num novo diálogo com a razão dos outros que ia encontrando, teve que lutar em favor da sua própria razoabilidade. Designada "Faculdade dos Artistas", a Faculdade de Filosofia, que até então tinha sido somente propedêutica à teologia, tornou-se agora uma verdadeira e própria Faculdade, um parceiro autónomo da teologia e da fé nela reflectida. Não é possível aqui demorarmo-nos sobre o fascinante confronto que daí resultou. Diria que a ideia de S. Tomás acerca da relação entre filosofia e teologia poderia ser expressa pela fórmula encontrada pelo Concílio de Calcedónia para a cristologia: filosofia e teologia devem relacionar-se entre si "sem confusão e sem separação". "Sem confusão" significa que cada uma delas deve conservar a própria identidade. A filosofia deve permanecer verdadeiramente uma busca da razão na própria liberdade e na própria responsabilidade; deve ver os seus limites e, precisamente deste modo, também a sua grandeza e vastidão. A teologia deve continuar a beber num tesouro de conhecimento que não foi inventado por ela, que sempre a supera e que, não podendo jamais ser totalmente esgotado mediante a reflexão, por isso mesmo leva o pensamento a começar sempre de novo. Mas, a par do dado "sem confusão", vigora também o dado "sem separação": a filosofia não recomeça cada vez do ponto zero do sujeito individual que pensa, mas vive no grande diálogo da sabedoria histórica, que ela, crítica e ao mesmo tempo docilmente, acolhe e desenvolve sempre de novo; mas também não deve fechar-se diante daquilo que as religiões e, de modo particular, a fé cristã receberam e transmitiram à humanidade como indicação do caminho. Várias coisas, ditas por teólogos ao longo da história ou mesmo traduzidas na prática pelas autoridades eclesiais, foram demonstradas como falsas pela história, e hoje confundem-nos. Mas, simultaneamente, é verdade que a história dos santos, a história do humanismo desenvolvido sobre a base da fé cristã demonstra a verdade desta fé no seu núcleo essencial, tornando-a desta forma também um paradigma para a razão pública. Sem dúvida, muito do que dizem a teologia e a fé só pode ser assumido no âmbito da fé e, portanto, não pode apresentar-se como exigência para aqueles a quem esta fé permanece inacessível. Ao mesmo tempo, porém, resta verdadeiro que a mensagem da fé cristã nunca é somente uma "comprehensive religious doctrine", no sentido de Rawls, mas uma força purificadora para a própria razão, que a ajuda a ser cada vez mais ela mesma. Com base na sua origem, a mensagem cristã deveria ser sempre um encorajamento à verdade e, consequentemente, uma força contra a pressão do poder e dos interesses.

Pois bem, até agora falei somente da universidade medieval, procurando contudo deixar transparecer a natureza permanente da universidade e da sua missão. Nos tempos modernos, abriram-se novas dimensões do saber, que, na universidade, são valorizadas sobretudo em dois grandes âmbitos: em primeiro lugar, nas ciências naturais, que se desenvolveram com fundamento na conexão de experiência com a pressuposta racionalidade da matéria; em segundo lugar, nas ciências históricas e humanistas, nas quais o homem, perscrutando o espelho da sua história e esclarecendo as dimensões da sua natureza, procura compreender-se melhor a si mesmo. Neste desenvolvimento, abriu-se à humanidade não apenas uma medida imensa de saber e poder; mas aumentaram também o conhecimento e o reconhecimento dos direitos e da dignidade do homem, e disto podemos apenas sentir-nos gratos. No entanto, o caminho do homem jamais pode dizer-se completo, e o perigo de cair na desumanidade nunca está esconjurado de todo: como se vê no panorama da história actual! O perigo do mundo ocidental para falar somente dele é que o homem hoje, precisamente à vista da grandeza do seu saber e do seu poder, desista diante da questão da verdade; significando isto ao mesmo tempo que, no fim de contas, a razão cede face à pressão dos interesses e à atracção da utilidade, obrigada a reconhecê-la como critério derradeiro. Dito do ponto de vista da estrutura da universidade: existe o perigo de que a filosofia, deixando de se sentir à altura da sua autêntica missão, se degrade em positivismo; que a teologia, com a sua mensagem dirigida à razão, seja confinada na esfera privada de um grupo mais ou menos numeroso. Mas, se a razão ciosa da sua presumida pureza se torna surda à grande mensagem que lhe chega da fé cristã e da sua sabedoria, seca como uma árvore cujas raízes já não chegam às águas que lhes dão vida. Perde a coragem pela verdade; e deste modo não fica maior, mas menor. Aplicado à nossa cultura europeia, isto significa: se ela quiser autoconstruir-se unicamente com base no círculo das suas próprias argumentações e naquilo que de momento a convence e preocupada com a sua laicidade se separa das raízes de que vive, então não se torna mais razoável nem mais pura, mas desagrega-se e fragmenta-se.

Assim, volto ao ponto de partida. O que é que o Papa tem a fazer ou a dizer na universidade? Seguramente, não deve procurar impor de modo autoritário aos outros a fé, a qual pode ser dada somente em liberdade. Para além do seu ministério de Pastor na Igreja e com base na natureza intrínseca deste ministério pastoral, é sua missão manter desperta a sensibilidade pela verdade; convidar sempre de novo a razão a pôr-se à procura da verdade, do bem, de Deus e, neste caminho, estimulá-la a entrever as luzes úteis que foram surgindo ao longo da história da fé cristã e, assim, sentir Jesus Cristo como a Luz que ilumina a história e ajuda a encontrar o caminho rumo ao futuro.

Vaticano, 17 de Janeiro de 2008.

BENEDICTUS XVI




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