Discursos Bento XVI 17408

ENCONTRO COM OS EDUCADORES CATÓLICOS Sala de Conferências da Catholic University of America, Quinta-feira, 17 de Abril de 2008

17408
Washington, D.C.


Estimados Cardeais
Queridos Irmãos Bispos
Ilustres Professores
Docentes e Educadores

"Que formosos são os pés dos que anunciam boas novas" (
Rm 10,15-17). Com estas palavras de Isaías, citadas por São Paulo, saúdo calorosamente cada um de vós anunciadores de sabedoria e através de vós todo o pessoal, os estudantes e as famílias das numerosas e variadas instituições formativas que representais. É um verdadeiro prazer para mim encontrar-me convosco e partilhar algumas reflexões sobre a natureza e identidade da educação católica hoje. Desejo em particular agradecer ao Pe. Davide O'Connell, Presidente e Reitor da Catholic University of America. Apreciei muito, estimado Presidente, as suas gentis palavras de boas-vindas. Peço-lhe que transmita a minha cordial gratidão a toda a comunidade faculdade, pessoal e estudantes desta Universidade.

A tarefa educativa é parte integrante da missão que a Igreja tem de proclamar a Boa Nova. Antes de mais e sobretudo cada instituição educativa católica é um lugar no qual encontrar o Deus vivo, o qual em Jesus Cristo revela a força transformadora do seu amor e da sua verdade (cf. Spe salvi ). Esta relação suscita o desejo de crescer no conhecimento e na compreensão de Cristo e do seu ensinamento. Deste modo quantos o encontram são levados pelo poder do Evangelho a levar uma vida caracterizada por quanto é belo, bom e verdadeiro; uma vida de testemunho cristão alimentada e fortalecida dentro da comunidade dos discípulos de nosso Senhor, a Igreja.

A dinâmica entre encontro pessoal, conhecimento e testemunho cristão é parte integrante da diakonia da verdade que a Igreja exerce no meio da humanidade. A revelação de Deus oferece a cada geração a possibilidade de descobrir a verdade última sobre a própria vida e sobre o fim da história. Esta tarefa nunca é fácil: envolve toda a comunidade cristã e motiva cada geração de educadores cristãos a garantir que o poder da verdade de Deus permeie todas as dimensões das instituições que eles servem. Desta forma, a Boa Nova de Cristo é posta em condições de agir, guiando quer o professor quer o estudante para uma verdade objectiva que, transcendendo o particular e o subjectivo, remete para o universal e o absoluto que nos habilita a proclamar com confiança a esperança que não desilude (cf. Rm 5,5). Contra os conflitos pessoais, a confusão moral e a fragmentação do conhecimento, as nobres finalidades da formação académica e da educação, fundadas sobre a unidade da verdade e sobre o serviço à pessoa e à comunidade, tornam-se um instrumento de esperança poderoso e especial.

Queridos amigos, a história desta Nação oferece numerosos exemplos do compromisso da Igreja a este propósito. De facto, a comunidade católica neste país fez da educação uma das suas prioridades mais importantes. Este empreendimento não se realizou sem grandes sacrifícios. Figuras eminentes como Santa Isabel Ann Seton e outros fundadores e fundadoras, com grande tenacidade e clarividência guiaram a instituição do que constitui hoje uma distinta rede de escolas paroquiais que contribuem para o bem-estar da Igreja e da Nação. Alguns, como Santa Katharine Drexel, dedicaram a sua vida à educação de todos aqueles que outros tinham descuidado no seu caso, afro-americanos e americanos nativos. Numerosos Religiosos, Religiosas e Sacerdotes, juntamente com pais altruístas, ajudaram através das Escolas católicas, gerações de imigrantes a sair da miséria e a ocupar o seu lugar na sociedade hodierna.

Este sacrifício continua também hoje. É um excelente apostolado da esperança procurar ocupar-se das necessidades materiais, intelectuais e espirituais de mais de três milhões de jovens estudantes. Isto oferece também a toda a comunidade católica uma oportunidade muito louvável de contribuir generosamente para as necessidades financeiras das nossas instituições. É preciso garantir-lhes a possibilidade de perdurar a longo prazo. De facto, deve ser feito o possível, em colaboração com a comunidade mais vasta, para garantir que elas sejam acessíveis a pessoas de todas as camadas sociais e económicas. Não deve ser negada a criança alguma o direito de uma educação na fé que, como resultado, alimenta o espírito da nação.

Há quem ponha em questão hoje o compromisso da Igreja na educação, perguntando-se se os seus recursos não poderiam ser melhor empregues noutras partes. Certamente, numa nação como esta, o Estado predispõe amplas oportunidades para a educação e atrai mulheres e homens dedicados e generosos para esta honrada profissão. Portanto, é oportuno reflectir, sobre o que é específico das nossas instituições católicas. Como podem elas contribuir para o bem da sociedade através da missão primária da Igreja, que é evangelizar?

Todas as actividades da Igreja brotam da sua consciência de ser portadora de uma mensagem que tem a sua origem no próprio Deus: na sua bondade e sabedoria, Deus escolheu revelar-Se a Si mesmo e fazer conhecer o propósito escondido da sua vontade (cf. Ef Ep 1,9 Dei Verbum DV 2). O desejo de Deus de Se fazer conhecer e o desejo inato de cada ser humano de conhecer a verdade fornecem o contexto da busca humana sobre o significado da vida. Este encontro único é apoiado dentro da nossa comunidade cristã: quem procura a verdade torna-se alguém que vive de fé (cf. Fides et ratio FR 31). Isto pode ser descrito como um movimento do "eu" para o "nós", que leva o indivíduo a ser incluído no povo de Deus.

A mesma dinâmica de identidade comunitária a quem pertenço? vivifica o ethos das nossas instituições católicas. A identidade de uma Universidade ou de uma Escola católica não é simplesmente uma questão de número de estudantes católicos. É uma questão de convicção pensamos verdadeiramente que só no mistério do Verbo feito carne se torna deveras claro o mistério do homem (cf. Gaudium et spes GS 22)? Estamos verdadeiramente prontos para confiar o nosso eu total intelecto e vontade mente e coração a Deus? Aceitamos a verdade que Cristo revela? Nas nossas universidades e escolas a fé é "tangível"? É-lhe dada expressão fervorosa na liturgia, nos sacramentos, mediante a oração, os actos de caridade, a solicitude pela justiça e o respeito pela criação de Deus? Só deste modo damos realmente testemunho de quem somos e daquilo que afirmamos.

Desta perspectiva pode-se reconhecer que a contemporânea "crise de verdade" está radicada numa "crise de fé". Só mediante a fé podemos dar livremente o nosso consentimento ao testemunho de Deus e reconhecê-lo como o garante transcendente da verdade que ele revela. Mais uma vez, vemos por que promover a intimidade pessoal com Jesus Cristo e o testemunho comunitário da sua verdade que é amor é indispensável nas instituições formativas católicas. De facto, todos nós vemos, e observamos com preocupação, a dificuldade ou a renitência que muitas pessoas hoje têm em confiar-se a Deus. Trata-se de um fenómeno complexo, sobre o qual reflicto continuamente. Enquanto procurámos com diligência envolver a inteligência dos nossos jovens, talvez tenhamos descuidado a sua vontade. Por conseguinte, observamos com ansiedade que a noção de liberdade é deturpada. A liberdade não é faculdade de libertar-se de uma obrigação; é faculdade de empenhar-se por uma participação no próprio Ser. Por conseguinte, a autêntica liberdade nunca pode ser alcançada no afastamento de Deus. Uma semelhante opção significaria por último descuidar a verdade genuína de que precisamos para nos compreendermos a nós próprios. Por isso, uma particular responsabilidade para cada um de vós, e para os vossos colegas, é suscitar entre os vossos jovens o desejo de um acto de fé, encorajando-os a confiar-se à vida eclesial que flui deste acto de fé. É aqui que a liberdade alcança a certeza da verdade. Na escolha de viver segundo tal verdade, abraçamos a plenitude da vida de fé que nos é dada na Igreja.

Portanto, claramente a identidade católica não depende das estatísticas. Nem pode ser simplesmente equiparada com a ortodoxia naturalmente contida. Isto exige e inspira muito mais: ou seja, que cada aspecto das vossas comunidades de estudo se reflicta na vida eclesial de fé. Só na fé a verdade se pode encarnar e a razão tornar-se verdadeiramente humana, capaz de orientar a vontade pelo caminho da liberdade (cf. Spe salvi ). Deste modo as nossas instituições oferecem uma contribuição vital para a missão da Igreja e servem eficazmente a sociedade. Elas tornam-se lugares nos quais a presença activa de Deus nos assuntos humanos é reconhecida e cada jovem descobre a alegria de entrar no "ser para os outros" de Cristo (cf. ibid., 28).

A missão, primária na Igreja, de evangelizar, na qual as instituições educativas desempenham um papel fundamental, está em sintonia com a aspiração fundamental da nação de desenvolver uma sociedade verdadeiramente elevada à dignidade da pessoa humana. Mas por vezes o valor da contribuição da Igreja para o debate público é posto em questão. Por isso é importante recordar que a verdade da fé e a da razão nunca se contradizem entre si (cf. Concílio Ecuménico Vaticano I, Constituição dogmática sobre a Fé católica Dei Filius, IV; DS 3017 Santo Agostinho, Contra Academicos, III, 20, 43). A missão da Igreja, de facto, envolve-a na luta que a humanidade enfrenta para alcançar a verdade. Ao expressar a verdade revelada ela serve todos os membros da sociedade purificando a razão, garantindo que ela permaneça aberta à consideração das verdades últimas. Haurindo da sabedoria divina, ela ilumina a fundação da moralidade e da ética humana, e recorda a todos os grupos na sociedade que não é a prática que cria a verdade mas é a verdade que deve servir como base da prática. Longe de ameaçar a tolerância da legítima diversidade, uma tal contribuição ilumina a própria verdade que torna alcançável o consentimento, e ajuda a manter o debate público razoável, honesto e fiável. De modo semelhante a Igreja nunca se cansa de apoiar as categorias morais essenciais do justo e do injusto, sem as quais a esperança só pode esvaecer, abrindo o caminho a frios cálculos pragmáticos utilitaristas que reduzem a pessoa a pouco mais do que um boneco num jogo fictício.

Em relação ao forum educativo, a diakonia da verdade assume um elevado significado nas sociedades nas quais a ideologia secularista levanta uma barreira entre verdade e fé. Esta divisão levou à tendência de igualar verdade e conhecimento e adoptar uma mentalidade positivista que, rejeitando a metafísica, nega os fundamentos da fé e recusa a necessidade de uma visão moral. Verdade significa mais do que conhecimento: conhecer a verdade leva-nos a descobrir o bem. A verdade fala ao indivíduo na sua integridade, convidando-nos a responder com todo o nosso ser. Esta visão optimista funda-se na nossa fé cristã, porque nesta fé é doada a visão do Logos, a Razão criadora de Deus, que na Encarnação se revelou, ela mesma, como Divindade. Longe de ser apenas uma comunicação de dados factuais "informativa" a verdade amante do Evangelho é criadora e capaz de mudar a vida é "performativa" (cf. Spe salvi ). Com confiança, os educadores cristãos podem libertar os jovens dos limites do positivismo e despertar a sua receptividade em relação à verdade, a Deus e à sua bondade. Deste modo vós ajudareis também a formar a sua consciência de que, enriquecida pela fé, abre um caminho seguro para a paz interior e para o respeito pelo próximo.

Contudo, não é uma surpresa se não tanto as nossas próprias comunidades eclesiais mas a sociedade em geral tem intensas expectativas de educadores católicos. Isto confere-vos uma responsabilidade e oferece-vos uma oportunidade. Um número cada vez maior de pessoas sobretudo de pais reconhece a necessidade de excelência na formação humana dos seus filhos. Como Mater et Magistra, a Igreja partilha a sua preocupação. Quando nada além do indivíduo é reconhecido como definitivo, o critério último de juízo torna-se o eu e a satisfação dos desejos imediatos do indivíduo. A objectividade e a perspectiva, que derivam apenas do reconhecimento da essencial dimensão transcendente da pessoa humana, podem perder-se. No âmbito de um semelhante horizonte relativista as finalidades da educação são inevitavelmente reduzidas. Afirma-se lentamente uma queda dos níveis. Observamos hoje uma certa timidez face à categoria do bem e uma irreflectida caça à novidade do momento como realização da liberdade. Somos testemunhas da convicção de que qualquer experiência seja de igual valor e da relutância em admitir imperfeições e erros. E particularmente preocupante é a redução da área preciosa e delicada da educação sexual à gestão do "risco", privado de qualquer referência à beleza do amor conjugal.

Como podem responder os educadores cristãos? Estes perigosos desenvolvimentos põem em evidência a urgência particular daquilo a que poderíamos chamar "caridade intelectual". Este aspecto da caridade exige que o educador reconheça que a profunda responsabilidade de guiar os jovens à verdade é unicamente um acto de amor. Na realidade, a dignidade da educação reside na promoção da verdadeira perfeição e a alegria de quantos devem ser guiados. Na prática, a "caridade intelectual" apoia a essencial unidade do conhecimento contra a fragmentação que deriva quando a razão está separada da perseguição da verdade. Isto guia os jovens para a profunda satisfação de exercer a liberdade em relação à verdade, e leva a formular a relação entre a fé e os vários aspectos da vida familiar e civil. Quando a paixão pela plenitude e pela unidade da verdade for despertada, os jovens certamente apreciarão a descoberta que a questão sobre o que eles podem conhecer os abre para a vasta aventura do que eles deveriam fazer. Então eles experimentarão "em quem" e "no que" é possível esperar e sentir-se-ão inspirados a dar a sua contribuição à sociedade de uma forma que gera esperança nos outros.

Queridos amigos, desejo concluir chamando a atenção especificamente sobre a importância eminente da vossa competência e do vosso testemunho no interior das nossas Universidades e Escolas católicas. Em primeiro lugar, permiti que eu vos agradeça pela vossa dedicação e generosidade. Conheço desde os tempos em que eu era professor e depois ouvi dos vossos Bispos e Oficiais da Congregação para a Educação Católica que a fama das Instituições educativas no vosso país é amplamente devida a vós a aos vossos predecessores. As vossas abnegadas contribuições da pesquisa externa à dedicação de quantos trabalham no âmbito das Instituições escolares servem quer o vosso país quer a Igreja. Por isso manifesto-vos a minha profunda gratidão.

Em relação aos membros das Faculdades nos Colégios universitários católicos, desejo reafirmar o grande valor da liberdade académica. Em virtude desta liberdade vós estais chamados a procurar a verdade onde quer que a análise atenta da evidência vos conduza. Contudo, é também o caso de recordar que qualquer apelo ao princípio da liberdade académica para justificar posições que contradizem a fé e o ensinamento da Igreja obstaria ou até trairia a identidade e a missão da Universidade, uma missão que está no coração do munus docendi da Igreja e não é de qualquer forma autónoma ou independente dela.

Professores e administradores, quer nas Universidades quer nas Escolas, têm o dever e o privilégio de garantir que os estudantes recebam uma instrução na doutrina e na prática católica. Isto exige que o testemunho público do modo de ser de Cristo, como resulta do Evangelho e é proposto pelo Magistério da Igreja, modele todos os aspectos da vida institucional quer no interior quer no exterior das salas de aulas. Afastar-se desta visão enfraquece a identidade católica e, longe de fazer progredir a liberdade, inevitavelmente conduz à confusão quer moral quer intelectual e espiritual.

Desejo expressar também uma particular palavra de encorajamento aos professores de catequese tanto leigos como religiosos, os quais se batem por garantir que os jovens se tornem quotidianamente mais capazes de apreciar o dom da fé. A educação religiosa é um apostolado estimulante e existem muitos sinais de um desejo entre os jovens de conhecer melhor a fé e de a praticar com determinação. Se queremos que este despertar aumente, é necessário que os professores tenham uma compreensão clara e determinada da natureza específica e do papel da educação católica. Eles devem estar prontos também para guiar o compromisso assumido por toda a comunidade escolar na assistência aos nossos jovens e às suas famílias e experimentar a harmonia entre fé, vida e cultura.

A este ponto, desejo fazer um especial apelo aos religiosos, às religiosas e aos sacerdotes: não abandoneis o apostolado escolar; aliás, renovai a vossa dedicação às escolas, especialmente às que se encontram nas áreas mais pobres. Nos lugares onde existem muitas promessas falazes que atraem os jovens para longe do caminho da verdade e da liberdade genuína, o testemunho dos conselhos evangélicos dado pela pessoa consagrada é um dom insubstituível. Encorajo os religiosos presentes a dedicar renovado entusiasmo na promoção das vocações. Sabei que o vosso testemunho em favor do ideal da consagração e da missão no meio dos jovens é uma fonte de grande inspiração na fé para eles e para as suas famílias.

A todos vós digo: sede testemunhas de esperança! Alimentai o vosso testemunho com a oração. Dizei a razão da esperança que caracteriza as vossas vidas (cf. 1P 3,15), vivendo a verdade que propondes aos vossos estudantes. Ajudai-os a conhecer e a amar aquele Um que encontrastes, cuja verdade e bondade vós conhecestes com alegria. Com Santo Agostinho digamos: "Nós que falamos e vós que ouvis reconheçamo-nos como fiéis discípulos de um único Mestre" (Serm.,23, 2). Com estes sentimentos de comunhão concedo de bom grado a vós, aos vossos colegas e estudantes e às vossas famílias a Bênção Apostólica.



ENCONTRO COM OS REPRESENTANTES DE OUTRAS RELIGIÕES Quinta-feira, 17 de Abril de 2008

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Centro Cultural "Pope John Paul II" em Washington, D.C.



Caros amigos

Estou feliz por ter a ocasião de me encontrar hoje convosco. Agradeço ao Bispo Sklba as suas gentis palavras de boas-vindas e saúdo cordialmente todos vós aqui reunidos em representação das diversas religiões presentes nos Estados Unidos da América. Muitos de vós aceitaram gentilmente o convite a compor as reflexões contidas no programa de hoje. Estou-vos particularmente grato pelas vossas palavras sobre o modo como cada uma das vossas tradições dá testemunho da paz. Obrigado a todos vós!

Este país tem uma longa história de colaboração entre as diversas religiões, em muitos campos da vida pública. Serviços de oração inter-religiosa no decurso da festa nacional de acção de graças, iniciativas corais em actividades caritativas e uma voz comum sobre importantes questões públicas: estes são alguns dos modos como os membros de várias religiões se encontram, para melhorar a compreensão recíproca e promover o bem comum. Encorajo todos os grupos religiosos na América a perseverar na sua colaboração e enriquecer assim a vida pública com os valores espirituais que animam a vossa acção no mundo.

O lugar onde agora nos encontramos congregados foi fundado especialmente para a promoção deste tipo de colaboração. Com efeito, o Centro cultural Pope John Paul II propõe-se oferecer uma voz cristã à "busca humana de significado e de finalidade na vida" num mundo de "diversas comunidade religiosas, étnicas e culturais" (Mission Statement). Esta instituição recorda-nos a convicção desta nação de que todos os homens deveriam ser livres para perseguir a felicidade de um modo compatível com a sua natureza de criaturas dotadas de razão e de livre vontade.
Os americanos sempre apreciaram a possibilidade de prestar um culto livre e em conformidade com a sua própria consciência. Alexis de Tocqueville, o historiador francês e observador das realidades norte-americanas, fascinou-se por este aspecto da nação. Ele ressaltou que este é um país onde a religião e a liberdade estão "intimamente vinculadas" em vista de contribuir para uma democracia estável que favoreça as virtudes sociais e a participação na vida comunitária de todos os seus cidadãos. Nas áreas urbanas, é normal que as pessoas provenientes de diversas tradições culturais e religiosas se comprometam todos os dias, umas ao lado das outras, nos âmbitos comerciais, sociais e educativos. Hoje jovens cristãos, judeus, muçulmanos, hindus e budistas, bem como crianças de todas as religiões nas salas de aula de todo o país sentam-se lado a lado, aprendendo umas com e das outras. Esta diversidade dá lugar a novos desafios que suscitam uma reflexão mais profunda sobre os princípios fundamentais de uma sociedade democrática. Possam outros haurir coragem da vossa experiência, dando-se conta de que uma sociedade unida pode originar de uma pluralidade de povos "E pluribus unum, de muitos, um só" sob a condição de que todos reconheçam a liberdade religiosa como um direito civil fundamental (cf. Dignitatis humanae
DH 2).

A tarefa de defender a liberdade religiosa nunca está completa. Novas situações e desafios exortam os cidadãos e os líderes a reflectir sobre o modo como as respectivas decisões respeitam este direito humano fundamental. Tutelar a liberdade religiosa segundo a norma da lei não garante que aos povos, de modo particular as minorias, sejam poupadas formas injustas de discriminação e de preconceito. Isto exige um esforço constante da parte de todos os membros da sociedade a fim de que aos cidadãos seja oferecida a oportunidade de praticar o culto pacificamente e de transmitir o seu património religioso aos próprios filhos.

A transmissão das tradições religiosas às gerações que se sucedem não só ajuda a preservar um património, mas também apoia e alimenta no presente a cultura que as circunda. O mesmo é válido para o diálogo entre as religiões; enriquecem-se tanto aqueles que nele participam como a sociedade em geral. Na medida em que crescemos na compreensão recíproca, vemos que compartilhamos uma estima pelos valores éticos alcançáveis pela razão humana, que são respeitados por todas as pessoas de boa vontade. O mundo pede insistentemente um testemunho comum destes valores. Portanto, convido todas as pessoas religiosas a considerar o diálogo não somente como um meio para reforçar a compreensão mútua, mas inclusive como um modo para servir de maneira ampla a sociedade. Dando testemunho das verdades morais que têm em comum com todos os homens e mulheres de boa vontade, os grupos religiosos hão-de exercer uma influência positiva na cultura mais vasta e inspirar os vizinhos, os colegas de trabalho e os compatriotas a unir-se na tarefa de revigorar laços de solidariedade. Citando as palavras do Presidente Franklin Delano Roosevelt, "à nossa terra hoje não poderia acontecer algo maior que um renascimento do espírito de fé".

Um exemplo concreto da contribuição que as comunidades religiosas podem oferecer à sociedade civil são as escolas confessionais. Estas instituições enriquecem as crianças, quer intelectual quer espiritualmente. Orientados pelos seus professores a descobrir a dignidade conferida por Deus a cada ser humano, os jovens aprendem a respeitar os credos e as práticas religiosas dos outros, enriquecendo a vida civil de uma nação.

Que enorme responsabilidade têm os chefes religiosos! Eles devem imbuir a sociedade com um profundo temor e respeito pela vida humana e liberdade; garantir que a dignidade do homem seja reconhecida e apreciada; facilitar a paz e a justiça; e ensinar às crianças o que é justo, bom e sensato!

Há outro ponto sobre o qual desejo reflectir aqui. Observei um crescente interesse entre os governos em patrocinar programas destinados a promover o diálogo inter-religioso e intercultural. Trata-se de iniciativas louváveis. Ao mesmo tempo, a liberdade religiosa, o diálogo inter-religioso e a fé visam algo mais que um consenso em vista de descobrir caminhos para pôr em prática estratégias concretas para fazer progredir a paz. A finalidade mais ampla do diálogo consiste em descobrir a verdade. Qual é a origem e o destino do género humano? O que são o bem e o mal? O que nos espera no final da nossa existência? Somente enfrentando estas problemáticas mais profundas poderemos construir uma sólida base para a paz e a segurança da família humana: "Onde e quando se deixa iluminar pelo esplendor da verdade, o homem empreende quase naturalmente o caminho da paz" (Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2006, n.3).

Vivemos numa época em que estas interrogações são muitas vezes postas de lado. No entanto, elas nunca poderão ser eliminadas do coração humano. Ao longo da história, os homens e as mulheres procuraram encontrar um nexo entre a sua inquietação e este mundo passageiro. Na tradição judaico-cristã, os Salmos estão cheios destas expressões: "O meu espírito desfalece dentro de mim" (Ps 143,4 cf. Sl Ps 6,7 Ps 31,11 Ps 32,4 Ps 38,8 Ps 77,3); "Por que estás triste, minha alma, e por que te perturbas?" (Ps 42,6). A resposta é sempre de fé: "Confia em Deus: ainda O hei-de louvar. Ele é o meu Deus e o meu Salvador" (Ibidem; cf. Sl Ps 62,6). Os chefes espirituais têm um dever particular, e poderíamos dizer uma competência especial, que consiste em pôr em primeiro plano as questões mais profundas da consciência do homem, em despertar a humanidade diante do mistério da existência humana e, num mundo frenético, em reservar espaço à reflexão e à prece.

Colocados diante destas interrogações mais profundas, relativas à origem e ao destino do género humano, os cristãos propõem Jesus de Nazaré. Ele é esta é a nossa fé o Logos eterno, que se fez carne para reconciliar o homem com Deus e revelar a razão que se encontra na base de todas as realidades. É Ele que hoje anunciamos no foro do diálogo inter-religioso. A ardente aspiração de seguir os seus passos impele os cristãos a abrir a sua mente e o seu coração ao diálogo (cf. Lc 10,25-37 Jn 4,7-26).

Estimados amigos, na nossa tentativa de descobrir os pontos comuns, talvez tenhamos evitado a responsabilidade de debater com calma e clarividência acerca das nossas diferenças. Enquanto unimos sempre os nossos corações e mentes na busca da paz, temos que ouvir também com atenção a voz da verdade. Deste modo, o nosso diálogo não se limita a encontrar um conjunto comum de valores, mas vai mais além, para indagar sobre o seu fundamento último. Não temos qualquer motivo para temer, porque a verdade nos revela a relação essencial entre o mundo e Deus. Conseguimos compreender que a paz é um "dom celestial", que nos exorta a conformar a história humana com a ordem divina. Nisto consiste a "verdade da paz" (cf. Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2006).

Então como vimos, o objectivo mais importante do diálogo inter-religioso exige uma clara exposição das nossas respectivas doutrinas religiosas. A este propósito, os colegas, as universidades e os centros de estudo constituem importantes âmbitos para um sincero intercâmbio de ideias religiosas. Por sua vez, a Santa Sé procura dar continuidade a este importante trabalho através do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso, o Pontifício Instituto de Estudos Árabes e de Islamística, além de várias Universidades Pontifícias.

Dilectos amigos, permiti que o nosso diálogo sincero e a nossa cooperação inspirem todas as pessoas a meditar sobre as interrogações mais profundas relativas à sua origem e ao seu destino. Possam os seguidores de todas as religiões permanecer unidos na defesa e na promoção da vida e da liberdade religiosa no mundo inteiro. Dedicando-nos generosamente a esta sagrada função através do diálogo e de inúmeros pequenos gestos de amor, de compreensão e de compaixão sejamos instrumentos de paz para toda a família humana. A paz esteja com todos vós!



ENCONTRO COM A COMUNIDADE JUDAICA

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Queridos amigos

Transmito uma especial saudação de paz à comunidade judaica dos Estados Unidos e de todo o mundo, no momento em que vos preparais para celebrar a festa anual de Pesah. A minha visita a este país coincide com esta festa e permite-me encontrar-vos pessoalmente e garantir-vos a minha oração enquanto fazeis memória dos sinais e prodígios que Deus realizou para libertar o seu povo eleito. Em virtude da nossa comum herança espiritual, apraz-me entregar-vos esta mensagem como sinal da nossa esperança que se funda no Omnipotente e na sua misericórdia.



ENCONTRO COM OS MEMBROS DA ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS, Nova Iorque Sexta-feira, 18 de Abril de 2008

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Senhor Presidente
Senhoras e Senhores!

Ao dar início ao meu discurso nesta Assembleia, desejo antes de mais expressar-lhe, Senhor Presidente, a minha sincera gratidão pelas gentis palavras que me dirigiu. Dirijo igual sentimento ao Secretário-Geral, Senhor Ban Ki-moon, por me ter convidado para visitar os escritórios centrais da Organização e pelas boas-vindas que me dirigiu. Saúdo os Embaixadores e os Diplomatas dos Estados-Membros e quantos estão presentes: através de vós, saúdo os povos que aqui representais. Eles esperam que esta Instituição dê continuidade à inspiração que guiou a sua fundação, a de um "centro para a harmonização dos actos das Nações no perseguimento das finalidades comuns", a paz e o progresso (cf. Carta das Nações Unidas, art. 1.2-1.4). Como disse o Papa João Paulo II em 1995, a Organização deveria ser "centro moral, no qual todas as nações do mundo se sintam na própria casa, desenvolvendo a consciência comum de ser, por assim dizer, uma "família de nações"" (Mensagem à Assembleia Geral das Nações Unidas, no cinquentenário da fundação, Nova Iorque, 5 de Outubro de 1995, 14).

Através das Nações Unidas, os Estados deram vida a objectivos universais que, mesmo se não coincidem com o bem comum total da família humana, sem dúvida representam uma parte fundamental daquele próprio bem. Os princípios fundadores da Organização o desejo da paz, a busca da justiça, o respeito da dignidade da pessoa, a cooperação humanitária e a assistência expressam as justas aspirações do espírito humano e constituem os ideais que deveriam estar subjacentes às relações internacionais. Como os meus predecessores Paulo VI e João Paulo II observaram deste mesmo pódio, trata-se de assuntos que a Igreja Católica e a Santa Sé seguem com atenção e com interesse, porque vêem na vossa actividade como problemas e conflitos relativos à comunidade mundial podem ser submetidos a uma comum regulamentação. As Nações Unidas encarnam a aspiração a "um grau superior de orientação internacional" (João Paulo II, Sollicitudo rei socialis
SRS 43), inspirado e governado pelo princípio de subsidiariedade, e portanto capaz de responder às perguntas da família humana através de regras internacionais vinculantes e mediante estruturas capazes de harmonizar o desenvolvimento quotidiano da vida dos povos. Isto é ainda mais necessário numa época em que experimentamos o óbvio paradoxo de um consentimento multilateral que continua a estar em crise devido à sua subordinação às decisões de poucos, enquanto os problemas do mundo exigem intervenções em forma de acção colectiva da parte da comunidade internacional.

Sem dúvida, questões de segurança, objectivos de desenvolvimento, redução das desigualdades locais e globais, protecção do ambiente, dos recursos e do clima, exigem que todos os responsáveis internacionais ajam conjuntamente e demonstrem uma rapidez no agir em boa fé, no respeito da lei e na promoção da solidariedade em relação às regiões mais débeis do planeta. Penso de modo especial naqueles países da África e de outras partes do mundo que permanecem na margem de um autêntico progresso integral, e por isso correm o risco de experimentar apenas os efeitos negativos da globalização. No contexto das relações internacionais, é necessário reconhecer o papel superior desempenhado pelas regras e estruturas intrinsecamente ordenadas para promover o bem comum, e portanto para defender a liberdade humana. Tais regras não limitam a liberdade; ao contrário, promovem-na, quando proíbem comportamentos e actos que vão contra o bem comum, obstam à sua prática efectiva e por isso comprometem a dignidade de cada pessoa humana. No nome da liberdade deve haver uma co-relação entre direitos e deveres, com os quais cada pessoa está chamada a assumir a responsabilidade das próprias opções, feitas como consequência da entrada em relação com os outros.

Aqui o nosso pensamento dirige-se ao modo como os resultados das descobertas da pesquisa científica e tecnológica por vezes foram aplicados. Não obstante os enormes benefícios que a humanidade pode receber deles, alguns aspectos de tal aplicação representam uma clara violação da ordem da criação, até ao ponto em que não só é contrastado o carácter sagrado da vida, mas a própria pessoa humana e a família são privadas da sua identidade natural. De igual modo, a acção internacional destinada a preservar o ambiente e a proteger as várias formas de vida sobre a terra não deve garantir apenas um uso racional da tecnologia e da ciência, mas deve também redescobrir a imagem autêntica da criação. Isto nunca exige uma opção a ser feita entre ciência e ética: antes, trata-se de adoptar um método científico que seja verdadeiramente respeitador dos imperativos éticos.

O reconhecimento da unidade da família humana e a atenção pela dignidade inata de cada homem e mulher encontram hoje uma renovada acentuação no princípio da responsabilidade de proteger. Só recentemente este princípio foi definido, mas já estava implicitamente presente nas origens das Nações Unidas e agora tornou-se cada vez mais uma característica da actividade da Organização. Cada Estado tem o dever primário de proteger a própria população de violações graves e contínuas dos direitos humanos, assim como das consequências das crises humanitárias, provocadas quer pela natureza quer pelo homem. Se os Estados não são capazes de garantir semelhante protecção, a comunidade internacional deve intervir com os meios jurídicos previstos pela Carta das Nações Unidas e por outros instrumentos internacionais. A acção da comunidade internacional e das suas instituições, suposto o respeito dos princípios que estão na base da ordem internacional, nunca deve ser interpretada como uma imposição indesejada e uma limitação de soberania. Ao contrário, é a indiferença ou a falta de intervenção que causam danos reais. Aquilo de que há necessidade é de uma pesquisa mais profunda de modos de prevenir e controlar os conflitos, explorando todas as possíveis vias diplomáticas e prestando atenção e encorajamento também aos mais débeis sinais de diálogo ou de desejo de reconciliação.

O princípio da "responsabilidade de proteger" era considerado pelo antigo ius gentium como fundamento de qualquer acção empreendida pelos governantes em relação aos governados: no tempo em que o conceito de Estados nacionais soberanos se ia desenvolvendo, o frade dominicano Francisco de Vitoria, justamente considerado precursor da ideia das Nações Unidas, tinha descrito esta responsabilidade como um aspecto da razão natural partilhada por todas as Nações, e como resultado de uma ordem internacional cuja tarefa era regular as relações entre os povos. Agora, como então, este princípio deve invocar a ideia da pessoa como imagem do Criador, o desejo de uma liberdade absoluta e essencial. A fundação das Nações Unidas, como sabemos, coincidiu com a profunda indignação sentida pela humanidade quando foi abandonada a referência ao significado da transcendência e da razão natural, e como consequência foram gravemente violadas a liberdade e a dignidade do homem. Quando isto acontece, estão ameaçados os fundamentos objectivos dos valores que inspiram e governam a ordem internacional e são minados na base aqueles princípios improrrogáveis e invioláveis formulados e consolidados pelas Nações Unidas. Quando se está diante de desafios novos e insistentes, é um erro retroceder a uma abordagem pragmática, limitada a determinar "um terreno comum", mínimo nos conteúdos e frágil nos seus efeitos.

A referência à dignidade humana, que é o fundamento e o objectivo da responsabilidade de proteger, leva-nos ao tema sobre o qual somos convidados a concentrar-nos este ano, no qual se celebra o sexagésimo da Declaração Universal dos Direitos do Homem. O documento foi o resultado de uma convergência de tradições religiosas e culturais, todas motivadas pelo comum desejo de colocar a pessoa humana no centro das instituições, leis e intervenções da sociedade, e de considerar a pessoa humana essencial para o mundo da cultura, da religião e da ciência. Os direitos humanos estão cada vez mais presentes como linguagem comum e substracto ético das relações internacionais. Ao mesmo tempo, a universalidade, a indivisibilidade e a interdependência dos direitos humanos servem todas de garantias para a salvaguarda da dignidade humana. Contudo, é evidente que os direitos reconhecidos e traçados na Declaração se aplicam a todos em virtude da comum origem da pessoa, a qual permanece o ponto de referência mais alto do desígnio criador de Deus para o mundo e para a história. Tais direitos estão baseados na lei natural inscrita no coração do homem e presente nas diversas culturas e civilizações. Remover os direitos humanos deste contexto significaria limitar o seu âmbito e ceder a uma concepção relativista, segundo a qual o significado e a interpretação dos direitos poderia variar e a sua universalidade seria negada em nome de contextos culturais, políticos, sociais e até religiosos diferentes. Contudo não se deve permitir que esta ampla variedade de pontos de vista obscureça o facto de que não só os direitos são universais, mas também o é a pessoa humana, sujeito destes direitos.

A vida da comunidade, a nível quer interno quer internacional, mostra claramente como o respeito dos direitos e as garantias que deles derivam sejam medidas do bem comum que servem para avaliar a relação entre justiça e injustiça, desenvolvimento e pobreza, segurança e conflito. A promoção dos direitos humanos permanece a estrategia mais eficaz para eliminar as desigualdades entre Países e grupos sociais, assim como para um aumento da segurança. Certamente, as vítimas das privações e do desespero, cuja dignidade humana é violada impunemente, são presa fácil da chamada à violência e podem tornar-se em primeira pessoa violadoras da paz. Contudo o bem comum que os direitos humanos ajudam a alcançar não se pode realizar simplesmente com a aplicação de procedimentos correctos nem sequer mediante um simples equilíbrio entre direitos contrastantes. O mérito da Declaração Universal consiste em ter permitido que diferentes culturas, expressões jurídicas e modelos institucionais convirjam em volta de um núcleo fundamental de valores e, portanto, de direitos. Contudo hoje é necessário duplicar os esforços face às pressões para reinterpretar os fundamentos da Declaração e de comprometer a sua unidade íntima, de modo a facilitar um afastamento da protecção da dignidade humana para satisfazer simples interesses, muitas vezes interesses particulares. A Declaração foi adoptada como "comum concepção a ser perseguida" (preâmbulo) e não pode ser aplicada por partes destacadas, segundo tendências ou opções selectivas que simplesmente correm o risco de contradizer a unidade da pessoa humana e portanto a indivisibilidade dos direitos humanos.

A experiência ensina-nos que com frequência a legalidade prevalece sobre a justiça quando a insistência sobre os direitos humanos os faz sobressair como o resultado exclusivo de resoluções legislativas ou de decisões normativas tomadas pelas várias agências dos que estão no poder. Quando são apresentados simplesmente em termos de legalidade, os direitos correm o risco de se tornarem débeis proposições separadas da dimensão ética e racional, que é o seu fundamento e finalidade. Ao contrário, a Declaração Universal fortaleceu a convicção de que o respeito dos direitos humanos está radicado principalmente na justiça que não muda, sobre a qual se baseia também a força vinculante das proclamações internacionais. Este aspecto muitas vezes é desatendido quando se procura privar os direitos da sua verdadeira função em nome de uma mesquinha perspectiva utilitarista. Dado que os direitos e os consequentes deveres surgem naturalmente da interação humana, é fácil esquecer que eles são o fruto de um sentido comum da justiça, baseado primariamente na solidariedade entre os membros da sociedade e por isso válidos para todos os tempos e para todos os povos. Esta intuição foi expressa desde o quinto século por Agostinho de Hipona, um dos mestres da nossa herança intelectual, o qual disse em relação ao Não faças aos outros o que não queres que seja feito a ti que esta máxima "não pode de modo algum variar segundo as diversas compreensões presentes no mundo" (De doctrina christiana, III, 14). Por isso, os direitos humanos devem ser respeitados como expressão de justiça e não simplesmente porque podem ser feitos respeitar mediante a vontade dos legisladores.

Senhoras e Senhores, enquanto a história procede, surgem novas situações e tenta-se relacioná-las com novos direitos. O discernimento, isto é, a capacidade de distinguir o bem do mal, torna-se ainda mais fundamental no contexto de exigências que se referem às próprias vidas e aos comportamentos das pessoas, das comunidades e dos povos. Enfrentando o tema dos direitos, dado que estão envolvidas situações importantes e realidades profundas, o discernimento é ao mesmo tempo uma virtude indispensável e frutuosa.

Portanto, o discernimento mostra como o confiar de modo exclusivo aos Estados individualmente, com as suas leis e instituições, a responsabilidade última de ir ao encontro das aspirações de pessoas, comunidades e povos inteiros por vezes pode ter consequências que excluem a possibilidade de uma ordem social respeitadora da dignidade e dos direitos da pessoa. Por outro lado, uma visão da vida firmemente ancorada na dimensão religiosa pode ajudar a obter tais finalidades, dado que o reconhecimento do valor transcendente de cada homem e mulher favorece a conversão do coração, que leva depois a um compromisso de resistir à violência, ao terrorismo e à guerra e de promover a justiça e a paz. Isto fornece ainda o contexto próprio para o diálogo inter-religioso que as Nações Unidas estão chamadas a defender, do mesmo modo com que defendem o diálogo noutros campos da actividade humana. O diálogo deveria ser reconhecido como meio mediante o qual as várias componentes da sociedade podem articular o próprio ponto de vista e construir o consenso em volta da verdade relativa aos valores e objectivos particulares. É característico da natureza das religiões, livremente praticadas, o facto que possam autonomamente conduzir um diálogo de pensamento e de vida. Se também a este nível a esfera religiosa é mantida separada da acção política, obtêm-se grandes benefícios para os indivíduos e para as comunidades. Por outro lado, as Nações Unidas podem contar com os resultados do diálogo entre religiões e tirar frutos da disponibilidade dos crentes de colocarem as próprias experiências ao serviço do bem comum. Compete-lhes propor uma visão da fé não em termos de intolerância, de discriminação e de conflito, mas em termos de respeito total da verdade, da coexistência, dos direitos e da reconciliação.

Obviamente os direitos humanos devem incluir o direito de liberdade religiosa, compreendido como expressão de uma dimensão que é ao mesmo tempo individual e comunitária, uma visão que manifesta a unidade da pessoa, mesmo distinguindo claramente entre a dimensão de cidadão e a de crente. A actividade das Nações Unidas nos anos recentes garantiu que o debate público ofereça espaço a pontos de vista inspirados numa visão religiosa em todas as suas dimensões, incluída a ritual, de culto, de educação, de difusão de informações, assim como a liberdade de professar ou de escolher uma religião. Por isso é inconcebível que crentes devam suprimir uma parte de si mesmos a sua fé para serem cidadãos activos; nunca deveria ser necessário renegar Deus para poder gozar dos próprios direitos. Os direitos relacionados com a religião necessitam como nunca de serem protegidos se forem considerados em conflito com a ideologia secular prevalecente ou com posições de uma maioria religiosa de natureza exclusiva. Não se pode limitar a plena garantia da liberdade religiosa à prática livre de culto; ao contrário, deve ser tida em justa consideração a dimensão pública da religião e portanto a possibilidade dos crentes desempenharem a sua parte na construção da ordem social. Na verdade, já o fazem, por exemplo, através do seu envolvimento influente e generoso numa vasta rede de iniciativas, que vão das universidades, às instituições científicas, às escolas, às agências de assistência médica e a organizações caritativas ao serviço dos mais pobres e dos mais marginalizados. A recusa de reconhecer a contribuição à sociedade que está redicada na dimensão religiosa e na busca do Absoluto por sua própria natureza, expressão da comunhão entre pessoas privilegiaria indubitavelmente uma abordagem individualista e fragmentaria a unidade da pessoa.

A minha presença nesta Assembleia é um sinal de estima pelas Nações Unidas e é entendida como expressão da esperança de que a Organização possa servir cada vez mais como sinal de unidade entre Estados e como instrumento de serviço para toda a família humana. Ela mostra também a vontade da Igreja Católica de oferecer a contribuição que lhe é própria para a construção de relações internacionais de uma forma que permita que cada pessoa e a cada povo sinta que pode diferenciar-se. A Igreja trabalha também para a realização de tais objectivos através da actividade internacional da Santa Sé, de modo coerente com a própria contribuição na esfera ética e moral e com a livre actividade dos próprios fiéis. Indubitavelmente a Santa Sé teve sempre um lugar nas assembleias das Nações, manifestando assim o próprio carácter específico como sujeito no âmbito internacional. Como confirmaram recentemente as Nações Unidas, a Santa Sé oferece assim a sua contribuição segundo as disposições da lei internacional, ajuda a defini-la e a ela faz referência.

As Nações Unidas permanecem um lugar privilegiado no qual a Igreja está comprometida a levar a própria experiência "em humanidade", desenvolvida ao longo dos séculos entre povos de todas as raças e culturas, e a pô-la à disposição de todos os membros da comunidade internacional. Esta experiência e actividade, destinadas a obter a liberdade para cada crente, procuram além disso aumentar a protecção oferecida aos direitos da pessoa. Tais direitos estão baseados e modelados sobre a natureza transcendente da pessoa, que permite a homens e mulheres percorrerem o seu caminho de fé e a sua busca de Deus neste mundo. O reconhecimento desta dimensão deve ser fortalecido se quisermos apoiar a esperança da humanidade num mundo melhor, e se quisermos criar as condições para a paz, o desenvolvimento, a cooperação e a garantia dos direitos das gerações futuras.

Na minha recente Encíclica Spe salvi, ressaltei "que é tarefa de todas as gerações a sempre nova fadigosa busca de ordenamentos rectos para as coisas humanas" (n. 25). Para os cristãos esta tarefa é motivada pela esperança que brota da obra salvífica de Jesus Cristo. Eis por que a Igreja se sente feliz por estar associada à actividade desta ilustre Organização, à qual está confiada a responsabilidade de promover a paz e a boa vontade em todo o mundo. Queridos amigos, agradeço-vos pela oportunidade que me destes hoje de me dirigir a vós e prometo o apoio das minhas orações pelo prosseguimento da vossa nobre tarefa.

Muito obrigado!




Discursos Bento XVI 17408