Discursos Bento XVI 910

AOS MEMBROS DA FAMÍLIA FRANCISCANA POR OCASIÃO DO CAPÍTULO INTERNACIONAL DAS ESTEIRAS Palácio Pontifício de Castel Gandolfo

Sábado, 18 de Abril de 2009


Amados irmãos e irmãs
da Família Franciscana!

Com grande alegria dou a todos vós as boas-vindas, nesta feliz e histórica circunstância que vos reuniu a todos: o oitavo centenário da aprovação da "protoregra" de São Francisco por parte do Papa Inocêncio III. Transcorreram oitocentos anos, e aquela dúzia de Frades tornou-se uma multidão, espalhada em todas as partes do mundo e hoje aqui, por vós, dignamente representada. Nos dias passados marcastes encontro em Assis para aquele que quisestes chamar "Capítulo das Esteiras", para reevocar as vossas origens. E no final desta extraordinária experiência viestes juntos encontrar o "Senhor Papa", como diria o vosso seráfico Fundador. Saúdo-vos a todos com afecto: os Frades Menores das três obediências, guiados pelos respectivos Ministros-Gerais, entre os quais agradeço ao Padre José Rodríguez Carballo as suas gentis palavras; os membros da Terceira Ordem, com o seu Ministro-Geral; as religiosas Franciscanas e os membros dos Institutos seculares franciscanos; e, sabendo que estão espiritualmente presentes, as Irmãs Clarissas, que constituem a "segunda Ordem". Sinto-me feliz por receber alguns Bispos franciscanos; e em particular saúdo o Bispo de Assis, D. Domenico Sorrentino, que representa a Igreja de Assis, pátria de Francisco e de Clara e, espiritualmente, de todos os franciscanos. Sabemos quanto foi importante para Francisco o vínculo com o Bispo de Assis da sua época, Guido, o qual reconheceu o seu carisma e o apoiou. Foi Guido quem apresentou Francisco ao Cardeal Giovanni di San Paolo, o qual o introduziu depois à presença do Papa favorecendo a aprovação da Regra. Carisma e Instituição são sempre complementares para a edificação da Igreja.

911 O que dizer, queridos amigos? Antes de tudo desejo unir-me a vós na acção de graças a Deus por todo o caminho que vos permitiu percorrer, enchendo-vos dos seus benefícios. E como Pastor de toda a Igreja, desejo agradecer-lhe o dom precioso que sois para todo o povo cristão. Do pequeno regato que brotou aos pés do Monte Subásio, formou-se um grande rio, que deu uma contribuição notável à difusão universal do Evangelho. Tudo teve início com a conversão de Francisco, o qual, a exemplo de Jesus, "se despojou a si mesmo" (cf. Ph 2,7) e, desposando Nossa Senhora Pobreza, tornou-se testemunha e arauto do Pai que está nos céus. Ao Pobrezinho podem ser literalmente aplicadas algumas expressões que o apóstolo Paulo refere a si mesmo e que me apraz recordar neste Ano Paulino: "Estou crucificado com Cristo! Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim; e a vida que agora vivo na carne. vivo-a na fé do Filho de Deus, que me amou e Se entregou a Si mesmo por mim" (Ga 2,19-20). E ainda: "Daqui em diante, ninguém me moleste, pois trago no meu corpo as marcas do Senhor Jesus" (Ga 6,17). Francisco recalca perfeitamente estas pegadas de Paulo e na realidade pode dizer com Ele: "Para mim o viver é Cristo" (Ph 1,21).Experimentou o poder da graça divina e está como que morto e ressuscitado. Todas as suas riquezas precendentes, qualquer motivo de orgulho e de segurança, tudo se torna uma "perda" a partir do momento do encontro com Jesus crucificado (cf. Ph 3,7-11). O deixar tudo torna-se aquele ponto quase necessário, para expressar a superabundância do dom recebido. Isto é tão grande, que exige um despojamento total, que contudo não é suficiente; merece uma vida inteira vivida "segundo a forma do santo Evangelho" (2 Test., 14; Fontes Franciscanas, 116).

E aqui chegamos ao ponto que certamente está no centro deste nosso encontro. Resumi-lo-ia assim: o Evangelho como regra de vida. "A Regra e a vida dos frades menores é esta, ou seja, observar o santo Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo": assim escreve Francisco no início da Regra selada (RS I, 1: FF, 75). Ele compreendeu-se a si mesmo totalmente à luz do Evangelho. É este o seu fascínio. É esta a sua perene actualidade. Tomás de Celano refere que o Pobrezinho "levava sempre Jesus no coração. Jesus nos lábios, Jesus nos ouvidos, Jesus nos olhos, Jesus nas mãos, Jesus em todos os outros membros... Aliás, encontrando-se muitas vezes em viagem e meditando ou cantando Jesus, esquecia-se de estar em viagem e detinha-se a convidar todas as criaturas a louvar Jesus" (1 Cel.,II 9, 115: FF, 115). Assim o Pobrezinho tornou-se um evangelho vivo, capaz de atrair para Cristo homens e mulheres de todos os tempos, sobretudo os jovens, que preferem a radicalidade e não as meias-medidas. O Bispo de Assis, Guido, e depois o Papa Inocêncio III reconheceram no propósito de Francisco e dos seus companheiros a autenticidade evangélica, e souberam encorajar o seu compromisso em vista também do bem da Igreja.

Vem aqui espontânea uma reflexão: Francisco teria podido não se encontrar com o Papa. Muitos grupos e movimentos religiosos se iam formando naquela época, e alguns deles contrapunham-se à Igreja como instituição, ou pelo menos não procuravam a sua aprovação. Certamente uma atitude polémica em relação à Hierarquia teria conquistado para Francisco não poucos seguidores. Ao contrário, ele pensou imediatamente em entregar o seu caminho e o dos seus companheiros nas mãos do Bispo de Roma, o Sucessor de Pedro. Este facto revela o seu autêntico espírito eclesial. O pequeno "nós" da Igreja una e universal. E o Papa reconheceu isto e apreciou-o. Também o Papa, de facto, por seu lado, teria podido não aprovar o projecto de vida de Francisco. Aliás, podemos imaginar que, entre os colaboradores de Inocêncio III, tenha havido quem o aconselhasse neste sentido, talvez precisamente temendo que aquele pequeno grupo de frades se assemelhasse com outras agregações heréticas e pauperistas do tempo. Ao contrário o Romano Pontífice, bem informado pelo Bispo de Assis e pelo Cardeal Giovanni di San Paolo, soube discernir a iniciativa do Espírito Santo e acolheu, abençoou e encorajou a comunidade nascente dos "frades menores".

Queridos irmãos e irmãs, transcorreram oito séculos, e hoje quisestes renovar o gesto do vosso Fundador. Todos vós sois filhos e herdeiros daquelas origens. Daquela "boa semente" que foi Francisco, conformado por sua vez com o "grão de mostarda" que é o Senhor Jesus, morto e ressuscitado para dar muito fruto (cf. Jn 12,24). Os Santos repropõem a fecundidade de Cristo. Como Francisco e Clara de Assis, também vós comprometei-vos a seguir sempre esta mesma lógica: perder a própria vida por causa de Jesus e do Evangelho, para a salvar e tornar fecunda de frutos abundantes. Enquanto louvais e agradeceis ao Senhor, que vos chamou para fazerdes parte de uma "família" tão grande e tão bela, permanecei à escuta do que o Espírito hoje lhe diz, em cada uma das suas componentes, para continuar a anunciar com paixão o Reino de Deus, nas pegadas do seráfico Padre. Cada irmão e cada irmã conserve sempre um ânimo contemplativo, simples e alegre: voltai a partir sempre de Cristo, como Francisco partiu do olhar do Crucifixo de São Damião e do encontro com o leproso, para ver o rosto de Cristo nos irmãos que sofrem e levar a todos a sua paz. Sede testemunhas da "beleza" de Deus, que Francisco soube cantar contemplando as maravilhas da criação, e que lhe fizeram exclamar dirigido para o Altíssimo: "Tu és beleza!" (Laudes a Deus altíssimo, 4.6; FF, 261).

Caríssimos, a última palavra que vos desejo dizer é a mesma que Jesus ressuscitado entregou aos seus discípulos: "Ide!" (cf. Mt 28,19 Mc 16,15). Ide e continuai a "consertar a casa" do Senhor Jesus Cristo, a sua Igreja. Nos dias passados, o terramoto que atingiu os Abruzos danificou gravemente muitas igrejas, e vós de Assis sabeis bem o que isto significa. Mas há outras "ruínas" muito mais graves: as das pessoas e das comunidades! Como Francisco, começai sempre por vós mesmos. Nós somos as primeiras casas que Deus quer restaurar. Se fordes sempre capazes de vos renovar no Espírito do Evangelho, continuareis a ajudar os Pastores no espírito do Evangelho, continuareis a ajudar os Pastores da Igreja a tornar cada vez mais belo o seu rosto de esposa de Cristo. É isto que o Papa, hoje como na origem, espera de vós. Obrigado por terdes vindo! Agora ide e levai a todos a paz e o amor de Cristo Salvador. Maria Imaculada, "Virgem feita Igreja" (cf. Saudação à Bem-Aventurada Virgem Maria, 1: FF, 259), vos acompanhe sempre. E ampare-vos também a Bênção Apostólica, que concedo de coração a todos vós, aqui presentes, e a toda a Família Franciscana.

Sinto-me feliz por receber de modo especial o Ministro-Geral juntamente com os Frades, irmãs e irmãos de toda a comunidade franciscana espalhados em todo o mundo, presentes nesta audiência. Na celebração do octingentésimo aniversário da aprovação da Regra de São Francisco, rezo para que através da intercessão do Pobrezinho, os franciscanos continuem em toda a parte a doar-se totalmente a si mesmos ao serviço dos outros, especialmente dos pobres. O Senhor vos abençoe nos vossos apostolados e encha as vossas comunidades de abundantes vocações.

Saúdo com afecto os queridos Irmãos e Irmãs da Família Franciscana, provenientes dos países de língua espanhola. Nesta significativa comemoração, animo-vos a apaixonar-vos cada vez mais de Cristo para que, seguindo o exemplo de Francisco de Assis, conformeis a vossa vida com o Evangelho do Senhor e deis um testemunho generoso de caridade, pobreza e humildade. Deus vos abençoe.

Dirijo uma cordial saudação à família franciscana polaca. Com ela abraço padres e frades, irmãs franciscanas e clarissas, e as outras congregações que se fundam na espiritualidade de São Francisco, assim como terciários e terciárias. No octingentésimo aniversário da aprovação da "protoregra", juntamente convosco agradeço a Deus por todo o bem que a Ordem deu à vida e ao desenvolvimento da Igreja. Agradeço-vos de modo particular o empenho missionário nos diversos continentes. A exemplo do vosso Fundador perseverai no amor de Cristo pobre e levai a alegria evangélica a todos os homens. Ampare-vos a bênção de Deus.



AOS PARTICIPANTES DA PLENÁRIA

DA PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA Sala dos Papas

Quinta-feira, 23 de Abril de 2009


Senhor Cardeal, Excelência
Queridos membros
912 da Pontifícia Comissão Bíblica

Sinto-me feliz por vos receber mais uma vez no final da vossa anual Assembleia plenária. Agradeço ao Senhor Cardeal William Levada a saudação que me dirigiu e a exposição concisa do tema que foi objecto de atenta reflexão durante a vossa assembleia. Reunistes-vos de novo para aprofundar um tema muito importante: a inspiração e a verdade da Bíblia. Trata-se de um tema que diz respeito não só à teologia, mas à própria Igreja, dado que a vida e a missão da Igreja se fundam necessariamente na Palavra de Deus, a qual é alma da teologia e, juntas, inspiradoras de toda a existência cristã. O tema que tratastes responde, ainda, a uma preocupação que me interessa de modo particular, porque a interpretação da Sagrada Escritura é de fundamental importância para a fé cristã e para a vida da Igreja.

Como Vossa Eminência recordou, Senhor Presidente, na Encíclica Providentissimus Deus o Papa Leão XIII oferecia aos exegetas católicos novos encorajamentos e directrizes em tema de inspiração, verdade e hermenêutica bíblica. Mais tarde Pio XII na sua Encíclica Divino afflante Spiritu recolhia e completava o precedente ensinamento, exortando os exegetas católicos a encontrar soluções em plena sintonia com a doutrina da Igreja, tendo devidamente em consideração as contribuições positivas dos novos métodos de interpretação que entretanto se desenvolveram. O impulso concreto dado por estes dois Pontífices aos estudos bíblicos, como Vossa Eminência também recordou, encontrou plena confirmação e foi ulteriormente desenvolvido no Concílio Vaticano II, de modo que toda a Igreja dele tirou e continua a tirar benefício. Em particular, a Constituição conciliar Dei Verbum ilumina ainda hoje a obra dos exegetas católicos e convida os Pastores e os fiéis a alimentar-se mais assiduamente na mesa da Palavra de Deus. O Concílio recorda, a propósito, antes de tudo que Deus é Autor da Sagrada Escritura: "As verdades reveladas por Deus, que se encontram escritas e manifestas na Sagrada Escritura, foram redigidas por inspiração do Espírito Santo. Com efeito, a Santa Mãe Igreja, por fé apostólica, tem como sagrados e canónicos os livros inteiros do Antigo e do Novo Testamento com todas as suas partes, porque, escritos por inspiração do Espírito Santo, têm Deus por autor e como tais foram confiados à própria Igreja" (Dei Verbum
DV 11). Portanto, dado que tudo o que os autores inspirados ou agiógrafos afirmam, deve ser considerado como confirmado pelo Espírito Santo, Autor invisível e transcendente, deve declarar-se por conseguinte, que "os Livros da Sagrada Escritura ensinam com firmeza, com fidelidade e sem erro a verdade que Deus, causa da nossa salvação, quis consignar nas Sagradas Letras" (ibid., 11).

Da correcta colocação do conceito de divina inspiração e verdade da Sagrada Escritura derivam algumas normas que dizem respeito directamente à sua interpretação. A mesma Constituição Dei Verbum, depois de ter afirmado que Deus é o autor da Bíblia, recorda-nos que na Sagrada Escritura Deus fala ao homem de modo humano. Deus fala realmente à maneira humana. E esta sinergia humano-divina é muito importante: Deus fala realmente aos homens de modo humano. Para uma recta interpretação da Sagrada Escritura é preciso portanto procurar com atenção o que os agiógrafos quiseram realmente afirmar e o que aprouve a Deus manifestar através das palavras humanas. "As palavras de Deus, expressas por línguas humanas, tornam-se semelhantes à palavra humana, como outrora o Verbo do Eterno Pai, tomada a carne da fraqueza humana, se tornou semelhante aos homens" (Dei Verbum DV 13). Estas indicações, muito necessárias para uma correcta interpretação de carácter histórico-literário como primeira dimensão de qualquer exegese, exigem depois uma ligação com as promessas da doutrina sobre a inspiração e a verdade da Sagrada Escritura. De facto, sendo a Escritura inspirada, há um sumo princípio de recta interpretação sem o qual os escritos sagrados permaneceriam letra morta, só do passado: a Sagrada Escritura deve "ser lida e interpretada com o mesmo Espírito com o qual foi escrita" (Dei Verbum DV 12).

A este propósito, o Concílio Vaticano II indica três critérios sempre válidos para uma interpretação da Sagrada Escritura conforme ao Espírito que a inspirou. Antes de tudo é preciso prestar grande atenção ao conteúdo e à unidade de toda a Escritura: só na sua unidade é Escritura. De facto, por muito diferentes que sejam os livros que a compõem, a Sagrada Escritura é una em virtude da unidade do desígnio de Deus, do qual Cristo Jesus é o centro e o coração (cf. Lc 24,25-27 Lc 24,44-46). Em segundo lugar é necessário ler a Escritura no contexto da tradição viva de toda a Igreja. Segundo um ditado de Orígenes, "Sacra Scriptura principalius est in corde Ecclesiae quam in materialibus instrumentis scripta", ou seja, "a Sagrada Escritura é escrita no coração da Igreja antes do que em instrumentos materiais". De facto, a Igreja leva na sua Tradição a memória viva da Palavra de Deus e é o Espírito Santo que lhe dá a interprepatação da mesma segundo o sentido espiritual (cf. Orígenes, Homiliae in Leviticum, 5, 5). Como terceiro critério é necessário prestar atenção à analogia da fé, ou seja, à unidade de cada uma das verdades da fé entre elas e com o plano integral da Revelação e a plenitude da divina economia nele encerrada.

A tarefa dos pesquisadores que estudam com diversos métodos a Sagrada Escritura é contribuir segundo os mencionados princípios para a mais profunda inteligência e exposição do sentido da Sagrada Escritura. O estudo científico dos textos sagrados é importante, mas sozinho não é suficiente porque diria respeito apenas à dimensão humana. Para respeitar a coerência da fé da Igreja o exegeta católico deve prestar atenção à compreensão da Palavra de Deus nestes textos, no âmbito da mesma fé da Igreja. Na falta deste imprescindível ponto de referência a busca exegética permaneceria incompleta, perdendo de vista a sua finalidade principal, com o perigo de ser reduzida a uma leitura puramente literária, na qual o verdadeiro Autor Deus já não comparece. Além disso, a interpretação das Sagradas Escrituras não pode ser apenas um esforço científico individual, mas deve ser sempre confrontada, inserida e autenticada pela tradição viva da Igreja. Esta norma é decisiva para esclarecer a correcta e recíproca relação entre a exegese e o Magistério da Igreja. O exegeta católico não se sente apenas membro da comunidade científica, mas também e sobretudo membro da comunidade dos crentes de todos os tempos. Na realidade estes textos não foram dados aos pesquisadores ou à comunidade científica "para satisfazer a sua curiosidade ou para lhes fornecer argumentos de estudo e pesquisa" (Divino afflante Spiritu, eb 566). Os textos inspirados por Deus foram confiados em primeiro lugar à comunidade dos crentes, à Igreja de Cristo, para alimentar a vida de fé e guiar a vida de caridade. O respeito desta finalidade condiciona a validez e a eficiência da hermenêutica bíblica. A Encíclica Providentissimus Deus recordou esta verdade fundamental e observou que, longe de impedir a pesquisa bíblica, o respeito deste dado favorece o seu autêntico progresso. Diria, uma hermenêutica da fé corresponde mais à realidade deste texto do que uma hermenêutica racionalista, que não conhece Deus.

De facto, ser fiéis à Igreja significa colocar-se na corrente da grande Tradição que, sob a guia do Magistério, reconheceu os escritos canónicos como palavra dirigida por Deus ao seu povo e nunca cessou de os meditar e expressar as suas riquezas inexauríveis. O Concílio Vaticano II reafirmou-o com grande clareza: "Todas estas coisas, referentes à interpretação da Escritura, estão sujeitas em última instância ao juízo da Igreja, que exerce o divino mandato e ministério de guardar e interpretar a Palavra de Deus" (Dei Verbum DV 12).

Como nos recorda a mencionada Constituição dogmática existe uma unidade inseparável entre Sagrada Escritura e Tradição, porque ambas provêm de uma mesma fonte: "A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura relacionam-se e comunicam-se intimamente entre si; porque, surgindo ambas da mesma fonte, de certo modo se fundem e tendem para o mesmo fim. Com efeito, a Sagrada Escritura é a palavra de Deus enquanto consignada por escrito sob a inspiração do Espírito Santo; a Sagrada Tradição, por seu lado, transmite integralmente aos sucessores dos Apóstolos a Palavra de Deus, confiada aos Apóstolos por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo, para que, com a luz do Espírito de Verdade, a guardem, exponham e difundam fielmente na sua pregação; donde se segue que a Igreja não tira somente da Sagrada Escritura a sua certeza de todas as coisas reveladas. Por isso, se devem receber e venerar ambas com igual afecto de piedade e reverência" (Dei Verbum DV 9). Como sabemos, esta palavra "pari pietatis affectu ac reverentia", criada por São Basílio, foi depois recebida no Decreto de Graciano, do qual entrou no Concílio de Trento e depois no Concílio Vaticano II. Ela expressa precisamente esta interpenetração entre Escritura e Tradição. Só o contexto eclesial permite que a Sagrada Escritura seja compreendida como autêntica Palavra de Deus que se torna guia, norma e regra para a vida da Igreja e o crescimento espiritual dos crentes. Isto, como já disse, não impede de modo algum uma interpretação séria, científica, mas abre além disso para o acesso às dimensões ulteriores de Cristo, inacessíveis a uma análise só literária, que permanece incapaz de acolher em si o sentido global que no decorrer dos séculos guiou a Tradição de todo o Povo de Deus.

Queridos Membros da Pontifícia Comissão Bíblica, desejo concluir a minha intervenção formulando a todos vós o meu pessoal agradecimento e encorajamento. Agradeço-vos cordialmente pelo trabalho empenhativo que realizais ao serviço da Palavra de Deus e da Igreja mediante a pesquisa, o ensinamento e a publicação dos vossos estudos. A isto acrescento os meus encorajamentos para o caminho que ainda falta percorrer. Num mundo no qual a pesquisa científica assume uma importância sempre crescente em numerosos campos é indispensável que a ciência exegética se situe a um nível adequado. É um dos aspectos da inculturação da fé que faz parte da missão da Igreja, em sintonia com o acolhimento do mistério da Encarnação. Queridos irmãos e irmãs, o Senhor Jesus Cristo, Verbo de Deus encarnado e divino Mestre que abriu o espírito dos seus discípulos à inteligência das Escrituras (cf. Lc 24,45), vos guie e vos ampare nas vossas reflexões. A Virgem Maria, modelo de docilidade e de obediência à Palavra de Deus, vos ensine a acolher cada vez mais a riqueza inexaurível da Sagrada Escritura, não só através da busca intelectual, mas também na vossa vida de crentes, para que o vosso trabalho e a vossa acção possam contribuir para fazer resplandecer sempre mais diante dos fiéis a luz da Sagrada Escritura. Ao garantir-vos o apoio da minha oração para a vossa fadiga, concedo-vos de coração, como penhor dos favores divinos, a Bênção Apostólica.



AOS PROFESSORES DE RELIGIÃO CATÓLICA

NAS ESCOLAS ITALIANAS Sala Paulo VI

Sábado, 25 de Abril de 2009




913 Queridos irmãos e irmãs!

Para mim é um verdadeiro prazer encontrar-vos hoje e partilhar convosco algumas reflexões sobre a vossa importante presença no panorama escolástico e cultural italiano, mas também no seio da comunidade cristã. Saúdo todos com afecto, começando pelo Cardeal Angelo Bagnasco, Presidente da Conferência Episcopal Italiana, ao qual agradeço as corteses palavras que me dirigiu, apresentando-me esta numerosa e vivaz assembleia. Dirijo igualmente uma cordial saudação a todas as autoridades presentes.

O ensinamento da religião católica é parte integrante da história da escola na Itália, e o professor de religião constitui uma figura muito importante no colégio dos docentes. É significativo que tantos jovens mantenham contacto com ele depois dos cursos terem terminado. O grandíssimo número de quantos escolhem servir-se desta disciplina é também sinal do valor insubstituível que ela tem no percurso formativo e indicativo dos elevados níveis de qualidade que atingiu. Numa sua recente mensagem a Presidência da CEI confirmou que "o ensinamento da religião católica favorece a reflexão sobre o sentido profundo da existência, ajudando a encontrar, para além das consciências individuais, um sentido unitário e uma instituição global. Isto é possível porque tal ensinamento coloca no centro a pessoa humana e a sua insuprimível dignidade, deixando-se iluminar pela vicissitude única de Jesus de Nazaré, de quem se tem o cuidado de investigar a identidade, que há dois mil anos não cessa de interrogar os homens".

Pôr no centro o homem criado à imagem de Deus (cf.
Jn 1,27) é, de facto, o que distingue quotidianamente o vosso trabalho, em unidade de objectivos com outros educadores e professores. Por ocasião do Congresso Eclesial de Verona, em Outubro de 2006, eu mesmo tive ocasião de tocar a "questão fundamental e decisiva" da educação, indicando a exigência de "ampliar os espaços da nossa racionalidade, reabri-la às grandes questões da verdade e do bem, unir entre si a teologia, a filosofia e as ciências, no pleno respeito pelos seus próprios métodos e pela sua autonomia recíproca, mas também na consciência da unidade intrínseca que as conserva unidas" (Discurso de 19 de Outubro de 2006: Insegnamenti di Benedetto XVI, II, 2 [2006], 473; 471). A dimensão religiosa, com efeito, é intrínseca ao facto cultural, contribui para a formação global da pessoa e permite transformar o conhecimento em sabedoria de vida.

O vosso serviço, queridos amigos, encontra-se precisamente nesta encruzilhada fundamental, na qual – sem invasões impróprias ou confusões de papéis – se encontram a tensão universal rumo à verdade e o testemunho bimilenário oferecido pelos crentes na luz da fé, os extraordinários vértices de conhecimento e de arte alcançados pelo espírito humano e a fecundidade da mensagem cristã que tão profundamente move a cultura e a vida do povo italiano. Com a plena e reconhecida dignidade escolástica do vosso ensinamento, vós contribuís, por um lado, para dar uma alma à escola e, por outro, para garantir à fé cristã plena cidadania nos lugares de educação e de cultura em geral. Por conseguinte, graças ao ensinamento da religião católica, a escola e a sociedade enriquecem-se de verdadeiros laboratórios de cultura e de humanidade, nos quais, decifrando a contribuição do cristianismo, habilita-se a pessoa a descobrir o bem e a crescer na responsabilidade, a procurar o confronto e a apurar o sentido crítico, a inspirar-se nos dons do passado para compreender melhor o presente e projectar-se conscientemente para o futuro.

O encontro de hoje coloca-se também no contexto do Ano Paulino. Grande é o fascínio que o Apóstolo das nações continua a exercitar sobre todos nós: nele reconhecemos o discípulo humilde e fiel, o corajoso anunciador, o genial mediador da Revelação. Convido-vos a olhar para estas características a fim de alimentar a vossa própria identidade de educadores e de testemunhas no mundo da escola. Foi Paulo, na primeira Carta aos Tessalonicenses (4, 9), que definiu os crentes com a bonita expressão de theodidaktoi, ou seja "instruídos por Deus", que tem Deus como mestre. Nesta palavra encontramos o próprio segredo da educação, como também nos lembra Santo Agostinho: "Nós que falamos e vós que ouvis reconhecemo-nos como fiéis discípulos de um único Mestre" (Serm. 23, 2).

Além disso, no ensinamento paulino a formação religiosa não está separada da formação humana. As últimas Cartas do seu epistulário, aquelas chamadas "pastorais", são cheias de referências significativas à vida social e civil que os discípulos de Cristo devem ter bem em mente. São Paulo é um verdadeiro "mestre" que leva a peito quer a salvação da pessoa educada numa mentalidade de fé, quer a sua formação humana e civil, para que o discípulo de Cristo possa exprimir plenamente uma personalidade livre, um viver humano "completo e bem preparado", que se manifesta também numa atenção pela cultura, na professionalidade e na competência nos vários campos do saber em benefício de todos. A dimensão religiosa não é portanto uma superstrutura; ela é parte integrante da pessoa, desde a primeiríssima infância; é abertura fundamental à alteridade e ao mistério que preside cada relação e cada encontro entre os seres humanos. A dimensão religiosa torna o homem mais homem. Possa o vosso ensinamento ser sempre capaz, como foi o de Paulo, de abrir os vossos estudantes a esta dimensão de liberdade e de plena apreciação do homem remido por Cristo segundo o projecto de Deus, exprimindo assim, na relação com tantos jovens e as suas famílias, uma verdadeira caridade intelectual.

Certamente um dos aspectos principais dos vosso ensinamento é a comunicação da verdade e da beleza da Palavra de Deus, e o conhecimento da Bíblia é um elemento essencial do programa de ensino escolar da religião católica. Existe um nexo que une o ensinamento escolar da religião e o aprofundamento existencial da fé, que se realiza nas paróquias e nas diversas realidades eclesiais. Este vínculo é constituído pela própria pessoa do professor de religião católica: a vós, com efeito, além do dever da competência humana, cultural e didáctica própria de cada docente, pertence a vocação em deixar transparecer que aquele Deus de que falais nas salas de aula constitui a referência essencial da vossa vida. Longe de constituir uma interferência ou uma limitação da liberdade, a vossa presença é aliás uma exemplo válido daquele espírito positivo de laicidade que permite promover uma convivência civil construtiva, fundada no respeito recíproco e no diálogo leal, valores dos quais o país tem sempre necessidade.

Como sugerem as palavras do apóstolo Paulo que dão o título a este vosso encontro, desejo que o Senhor vos doe a todos a alegria de nunca vos envergonhardes do seu Evangelho, a graça de o viver, a paixão de partilhar e cultivar a novidade que dele emana para a vida do mundo. Com estes sentimentos abençou-vos a vós e às vossas famílias, juntamente com todos aqueles – estudantes e professores – que cada dia encontrais na comunidade de pessoas e de vida que é a escola.



VISITA À REGIÃO DOS ABRUZOS ATINGIDA PELO TERRAMOTO

PALAVRAS DE SAUDAÇÃO

E ORAÇÃO PELAS VÍTIMAS Onna, Abruzos, 28 de Abril de 2009

Queridos amigos!

914 Vim pessoalmente a esta vossa terra maravilhosa e ferida, que está a viver dias de grande dor e precariedade, para vos expressar do modo mais directo a minha cordial proximidade. Estou ao vosso lado desde o primeiro momento, desde quando tomei conhecimento daquele violento abalo do terramoto que, na noite do passado dia 6 de Abril, provocou quase 300 vítimas, numerosos feridos e ingentes danos materiais às vossas casas. Segui com apreensão as notícias partilhando o vosso pavor e as vossas lágrimas pelos defuntos, juntamente com as vossas trepidantes preocupações por quanto num instante perdestes. Agora estou aqui, entre vós: gostaria de vos abraçar um por um com afecto. Toda a Igreja está aqui comigo, ao lado dos vossos sofrimentos, partícipe do vosso sofrimento pela perda de familiares e amigos, desejosa de vos ajudar na reconstrução de casas, igrejas, empresas desabadas ou gravemente danificadas pelo sismo. Admirei e admiro a coragem, a dignidade e a fé com que enfrentastes também esta dura prova, manifestando grande vontade de não ceder às adversidades. De facto, não é o primeiro terramoto que a vossa região vive, e agora, como no passado, não vos rendestes; não desanimastes. Há em vós uma força interior que suscita esperança. Muito significativo, a este propósito, é um ditado querido aos vossos idosos: "Ainda há muitos dias por detrás do Gran Sasso".

Ao vir aqui, a Onna, um dos centros que pagou um alto preço em termos de vidas humanas, posso imaginar toda a tristeza e sofrimento que suportastes nestas semanas. Se tivesse sido possível, teria desejado visitar cada cidade e bairro, ir a todos os acampamentos e encontrar todos. Dou-me conta de que, apesar do empenho de solidariedade manifestado por todas as partes, são tantas e quotidianas as dificuldades causadas pelo viver sem uma casa, viver nos automóveis, ou nas tendas, o que é agravado pelo frio e pela chuva. Depois, penso em tantos jovens obrigados bruscamente a confrontarem-se com uma dura realidade, nos jovens que tiveram que interromper a escola com as suas relações, nos idosos privados dos seus hábitos.

Poder-se-ia dizer, queridos amigos, que vos encontrais, de certo modo, no estado de espírito dos dois discípulos de Emaús, dos quais fala o evangelista Lucas. Depois do acontecimento trágico da cruz, regressavam a casa desiludidos e amargurados, pelo "fim" de Jesus. Parecia que já não existia esperança, que Deus se tivesse escondido e já não estivesse presente no mundo. Mas, ao longo do caminho, Ele aproximou-se e pôs-se a falar com eles. Embora não o tivessem reconhecido com o olhar, algo despertou nos seus corações: as palavras daquele "Desconhecido" reacenderam neles aquele ardor e confiança que a experiência do Calvário tinha feito esmorecer.

Eis, queridos amigos: a minha pobre presença entre vós pretende ser um sinal evidente do facto que o Senhor crucificado vive, que está connosco, que ressuscitou realmente e não nos esquece, não nos abandona; não deixa desatendidos os vossos pedidos sobre o futuro, não é surdo ao grito preocupado de tantas famílias que perderam tudo: casas, poupanças, trabalho e por vezes também vidas humanas. Certamente, a sua resposta concreta passa através da nossa solidariedade, que não pode limitar-se à emergência inicial, mas deve tornar-se um projecto estável e concreto no tempo. Encorajo todos, instituições e empresas, para que esta cidade e esta terra ressurjam.

O Papa está hoje aqui, entre vós, para vos dizer também uma palavra de conforto sobre os vossos mortos: eles estão vivos em Deus e esperam de vós um testemunho de coragem e de esperança. Esperam ver renascer esta sua terra, que deve voltar a ornamentar-se de casas e de igrejas, bonitas e sólidas. É precisamente em nome destes irmãos e irmãs que nos devemos comprometer de novo a viver recorrendo ao que não morre e que o terramoto não destruiu e não pode destruir: o amor. O amor permanece também para além da passagem desta nossa precária existência terrena, porque o Amor verdadeiro é Deus. Quem ama vence, em Deus, a morte e sabe que não perde quantos amou.

Gostaria de concluir estas minhas palavras dirigindo ao Senhor uma particular oração pelas vítimas do terramoto.

Confiamos estes nossos queridos a Ti, Senhor, sabendo
que aos teus fiéis Tu não tiras a vida mas a transformas,
e no mesmo momento em que é destruída
a morada deste nosso exílio na terra,
Te preocupas por preparar outra eterna e imortal no Paraíso.

915 Pai Santo, Senhor do céu e da terra,
ouve o grito de dor e de esperança,
que se eleva desta comunidade duramente provada pelo terramoto!

É o grito silencioso do sangue de mães, pais, jovens
e também de pequeninos inocentes que se eleva desta terra.

Foram arrancados ao afecto dos seus queridos,
acolhe-os a todos na tua paz, Senhor, que és o Deus-connosco,
o Amor capaz de doar a vida sem fim.

Precisamos de ti e da Tua força,
porque nos sentimos pequeninos e frágeis face à morte;
Pedimos-Te, ajuda-nos, porque só o teu apoio
916 nos pode fazer reerguer de novo e induzir-nos a retomar juntos,
dando-nos confiantes uns aos outros a mão, o caminho da vida.

Isto Te pedimos por Jesus Cristo, nosso Salvador,
no qual resplandece a esperança da bem-aventurada ressurreição.

Amém!

Rezemos agora com a oração que o Senhor nos ensinou: "Pai nosso...".

A minha oração está convosco; estamos unidos e o Senhor ajudar-nos-á. Obrigado pela vossa coragem, fé e esperança.

Discursos Bento XVI 910