Discursos Bento XVI 799

AO SENHOR VYTAUTAS ALISAUSKAS NOVO EMBAIXADOR DA REPÚBLICA DA LITUÂNIA JUNTO DA SANTA SÉ POR OCASIÃO DA APRESENTAÇÃO DAS CARTAS CREDENCIAIS


799
Sexta-feira, 7 de Novembro de 2008




Excelência

Estou feliz por lhe apresentar as boas-vindas no início da sua missão e aceitar as Cartas que o acreditam como Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário da República da Lituânia junto da Santa Sé. Agradeço-lhe as suas amáveis palavras e as saudações que me transmitiu da parte do Presidente, Senhor Valdas Adamkus. Peço-lhe que tenha a amabilidade de lhe comunicar os meus respeitosos bons votos e a certeza das minhas preces por todo o povo da sua nação.

Sinto-me particularmente encorajado pelos seus comentários a propósito da necessidade que a Europa moderna tem de haurir da tradição que deriva do ensinamento do Evangelho. O seu país tem uma longa e nobre história cristã, que remonta à época de São Casimiro e até antes. Nos séculos mais recentes, a fé do povo lituano amparou-o durante os períodos de dominação e de opressão estrangeiras, ajudando-o a perseverar e a consolidar a sua própria identidade. Agora que a República reconquistou a sua independência, pode oferecer um testemunho comovedor dos valores que tornaram o seu povo capaz de sobreviver durante aqueles anos difíceis. Como o meu predecessor João Paulo II sabia, por experiência pessoal, a fé compartilhada é um maravilhoso manancial de fortaleza e unidade no meio das adversidades. As comunidades que viveram em tais circunstâncias adquirem uma profunda convicção de que a verdadeira felicidade pode ser encontrada unicamente em Deus. Elas sabem que qualquer sociedade que nega o Criador, inevitavelmente começa a perder todo o seu sentido da beleza, da verdade e da bondade da vida humana.

No entanto, como Vossa Excelência observou, já cresceu uma nova geração nos países do ex-bloco oriental, uma geração que não viveu essa experiência de governo totalitário, e por conseguinte tende a dar por certa a sua liberdade política. Como consequência disto, existe o risco de que alguns dos frutos amadurecidos nos tempos de provação possam começar a perder-se. Vossa Excelência compreende bem os perigos que se apresentam à sociedade contemporânea que, embora seja livre, sofre cada vez mais por causa da fragmentação e da confusão moral. Neste contexto, é de fundamental importância que a Lituânia, assim como a Europa inteira, cultive a memória da história que a forjou, a fim de preservar a sua verdadeira identidade e, deste modo, sobreviver e prosperar no mundo do século XXI.

É um paradoxo e ao mesmo tempo uma tragédia o facto de que na actual era da globalização, quando as possibilidades da comunicação e da interacção com os outros aumentaram a ponto de atingir um grau que as gerações precedentes dificilmente poderiam ter imaginado, um número tão elevado de pessoas se sintam isoladas e excluídas. Isto dá origem a numerosos problemas sociais que não podem ser resolvidos unicamente no plano político, uma vez que até as melhores estruturas "só funcionam se numa comunidade subsistirem convicções que sejam capazes de motivar os homens para uma livre adesão ao ordenamento comunitário" (Spe salvi ). A Igreja tem um papel vital a desempenhar neste sector, através da mensagem de esperança que proclama. Ela procura construir uma civilização de amor, ensinando que "Deus é amor" e exortando as pessoas de boa vontade a estabelecerem um relacionamento de amor com Ele. Dado que "o amor para com Deus consegue a participação na justiça e na bondade de Deus para com os outros" (Ibid., n. 28), a prática da cristandade leva naturalmente à solidariedade para com os próprios condidadãos e, na realidade, para com toda a família humana. Ela impele à determinação de servir o bem comum e de assumir a responsabilidade pelos membros mais frágeis da sociedade, impedindo o desejo de acumular riquezas somente para si mesmo. A nossa sociedade tem necessidade de se elevar acima da ilusão dos bens materiais e, pelo contrário, deve concentrar-se nos valores que, verdadeiramente, promovem o bem da pessoa humana.

A Santa Sé valoriza os seus laços diplomáticos com o seu país, caracterizados como de facto são por séculos de testemunho cristão. Trabalhando em conjunto, nós podemos formar uma Europa em que se reserve a prioridade à defesa do matrimónio e da vida familiar, à salvaguarda da vida humana desde a concepção até à morte natural, e à promoção de sólidas práticas éticas na investigação médica e científica: práticas que sejam efectivamente respeitosas da dignidade da pessoa humana. Podemos promover uma solidariedade concreta para com os pobres, os enfermos, os mais vulneráveis e todos aqueles que vivem à margem da sociedade. Estes valores hão-de sensibilizar todas as pessoas, de maneira especial os jovens, que se colocam em busca de respostas para a sua profunda interrogação a respeito do significado e da finalidade da própria vida. Assim, entrarão em sintonia com todos aqueles que sentem o desejo de descobrir a verdade, tão frequentemente ofuscada pelas mensagens superficiais difundidas pela sociedade pós-moderna. E hão-de lançar um apelo a todos os indivíduos que são suficientemente judiciosos para rejeitar uma visão do mundo fundamentada no relativismo e no secularismo e que, pelo contrário, aspiram a viver de uma maneira adequada à genuína nobreza do espírito humano.

Excelência, rezo a fim de que a missão diplomática que o Senhor Embaixador começa no dia de hoje consiga fortalecer ainda mais os vínculos de amizade já existentes entre a Santa Sé e a República da Lituânia. Asseguro-lhe que os vários departamentos da Cúria Romana estarão sempre prontos para lhe oferecer ajuda e apoio no cumprimento dos seus deveres. Com os meus mais sinceros bons votos, invoco sobre Vossa Excelência, a sua família e todos os seus compatriotas, as abundantes bênçãos da paz e da prosperidade. Deus abençoe a Lituânia!




AOS PARTICIPANTES NO CONGRESSO INTERNACIONAL PROMOVIDO PELA PONTIFÍCIA ACADEMIA PARA A VIDA SOBRE O TEMA DA DOAÇÃO DE ÓRGÃOS Sexta-feira, 7 de Novembro de 2008



Venerados Irmãos no Episcopado
Ilustres Senhores e Senhoras!

800 A doação de órgãos é uma forma peculiar de testemunho da caridade. Numa época como a nossa, com frequência marcada por diversas formas de egoísmo, torna-se cada vez mais urgente compreender quanto é determinante para uma correcta concepção da vida entrar na lógica da gratuidade. De facto, existe uma responsabilidade do amor e da caridade que compromete a fazer da própria vida uma doação aos outros, se quisermos verdadeiramente realizar-nos a nós próprios. Como nos ensinou o Senhor Jesus, só aquele que doa a própria vida a poderá salvar (cf. Lc 9,24). Ao saudar todos os presentes, dirigindo um pensamento particular ao Senador Maurício Sacconi, Ministro do Trabalho, da Saúde e das Políticas Sociais, agradeço ao Arcebispo D. Rino Fisichella, Presidente da Pontifícia Academia para a Vida, as palavras que me dirigiu, ilustrando o profundo significado deste encontro e apresentando a síntese dos trabalhos congressuais. Juntamente com ele, agradeço também ao Presidente da International Federation of Catholic Medical Associations e ao Director do Centro Nacional de transplantes, ressaltando com apreço o valor da colaboração destes Organismos num âmbito como o do transplante dos órgãos que foi objecto, ilustres Senhores e Senhoras, dos vossos dias de estudo e de debate.

A história da medicina mostra com evidência os grandes progressos que se puderam realizar para permitir uma vida cada vez mais digna a cada pessoa que sofre. Os transplantes de tecidos e de órgãos representam uma grande conquista da ciência médica e certamente são um sinal de esperança para tantas pessoas que se encontram em graves, e por vezes extremas, situações clínicas. Se alargarmos o nosso olhar ao mundo inteiro é fácil encontrar os numerosos e complexos casos nos quais, graças à técnica do transplante de órgãos, muitas pessoas superaram fases altamente críticas e foi-lhes restituída a alegria de viver. Isto nunca se poderia ter realizado se o compromisso dos médicos e a competência dos pesquisadores não tivessem podido contar com a generosidade e com o altruísmo de quantos doaram os seus órgãos. O problema da disponibilidade de órgãos vitais para transplante, infelizmente, não é teórico, mas dramaticamente prático; ele é verificável na longa lista de espera de tantos doentes cujas únicas possibilidades de sobrevivência estão ligadas às escassas ofertas que não correspondem às necessidades objectivas.

É útil, sobretudo neste contexto hodierno, voltar a reflectir sobre esta conquista da ciência, para que não se verifique que o multiplicar-se dos pedidos de transplante subverta os princípios éticos que estão na sua base. Como disse na minha primeira Encíclica, o corpo nunca poderá ser considerado um mero objecto (cf. Deus caritas est ); desta forma prevaleceria a lógica do mercado. O corpo de cada pessoa, juntamente com o espírito que é dado a cada indivíduo, constitui uma unidade inseparável na qual está impressa a imagem do próprio Deus. Prescindir desta dimensão leva a perspectivas incapazes de captar a totalidade do mistério presente em cada um. É portanto necessário que em primeiro lugar sejam postos o respeito pela dignidade da pessoa e a tutela da sua identidade pessoal. No que se refere à técnica do transplante de órgãos, isto significa que se pode doar unicamente se não se dá origem um sério perigo para a própria saúde e identidade e sempre por um motivo moralmente válido e proporcionado. Eventuais lógicas de compra-venda dos órgãos, assim como a adopção de critérios discriminatórios ou utilitaristas, estariam totalmente em contraste com o significado subentendido da doação que sozinhos se poriam fora de questão, qualificando-se como actos moralmente ilícitos. Os abusos nos transplantes e o seu tráfico, que com frequência atingem pessoas inocentes como as crianças, devem encontrar a comunidade científica e médica imediatamente unidas na sua rejeição como práticas inaceitáveis. Elas devem ser portanto condenadas como abomináveis. O mesmo princípio ético deve ser recordado quando se quer chegar à criação ou destruição de embriões humanos destinados a finalidades terapêuticas. A simples ideia de considerar o embrião como "material terapêutico" contrasta com as bases culturais, civis e éticas sobre as quais se baseia a dignidade da pessoa. Acontece com frequência que a técnica do transplante de órgãos é feita por um gesto de total gratuidade da parte de familiares de doentes dos quais foi certificada a morte. Nestes casos, o consenso informado é condição prévia de liberdade, para que o transplante tenha a característica de uma doação e não seja interpretado como um acto coercitivo ou de exploração. Contudo, é útil recordar que cada órgão vital não pode ser extirpado a não ser ex cadavere, o qual aliás também possui uma sua dignidade que deve ser respeitada. A ciência, nestes anos, fez ulteriores progressos na certificação da morte do doente. É bom, portanto, que os resultados alcançados recebam o consenso de toda a comunidade científica de modo a favorecer a pesquisa de soluções que dêem a certeza a todos. Com efeito, num âmbito como este, não pode haver a mínima suspeita de arbítrio e onde a certeza ainda não for clara deve prevalecer o princípio de precaução. É útil, portanto, incrementar a pesquisa e a reflexão interdisciplinar, de tal modo que a própria opinião pública seja posta diante da verdade mais transparente sobre as implicações antropológicas, sociais, éticas e jurídicas da prática do transplante. Nestes casos, contudo, deve prevalecer sempre como critério principal o respeito pela vida do doador, de modo que a extracção de órgãos só seja consentida no caso da sua morte real (cf. Compêndio do Catecismo da Igreja Católica CEC 476). O acto de amor que é expresso com a doação dos próprios órgãos vitais permanece como um testemunho genuíno de caridade que sabe olhar além da morte para que vença sempre a vida. Do valor deste gesto deveria estar bem consciente quem o recebe; ele é destinatário de um dom que vai além do benefício terapêutico. O que recebe, de facto, ainda antes de ser um órgão é um testemunho de amor que deve suscitar uma resposta de igual modo generosa, a fim de incrementar a cultura da doação e da gratuidade.

A via-mestra que deve ser seguida, enquanto a ciência não descobrir eventuais novas formas e mais progredidas de terapia, deverá ser a formação e a difusão de uma cultura da solidariedade que se abra a todos e não exclua ninguém. Uma medicina dos transplantes que corresponda a uma ética da doação exige da parte de todos o compromisso para investir qualquer esforço possível na formação e na informação, de modo a sensibilizar cada vez mais as consciências para uma problemática que diz respeito directamente à vida de tantas pessoas. Será portanto necessário evitar preconceitos e incompreensões, afastar desconfianças e receios para os substituir com certezas e garantias a fim de permitir o incremento em todos de uma consciência cada vez mais difundida do grande dom da vida.

Com estes sentimentos, ao desejar que cada um prossiga o próprio compromisso com a devida competência e profissionalidade, invoco a ajuda de Deus sobre os trabalhos do Congresso e concedo a todos de coração a minha Bênção.




AO SENHOR WANG LARRY YU-YUAN NOVO EMBAIXADOR DA REPÚBLICA DA CHINA JUNTO DA SANTA SÉ Sábado, 8 de Novembro de 2008

Excelência

Estou feliz por lhe dar as boas-vindas no início da sua missão e por aceitar as Cartas mediante as quais Vossa Excelência é nomeado Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário da República da China junto da Santa Sé. Estou-lhe grato pelas gentis palavras de saudação que me comunicou da parte do Presidente, Senhor Ma Ying-jeou. Peço-lhe que tenha a cortesia de lhe transmitir os meus cordiais bons votos pela sua recente eleição, assim como a certeza das minhas orações por ele, o primeiro católico a ser eleito Presidente da República, assim como por todo o povo de Formosa.

O governo de Taipé tem um vigoroso sentido de pertença a uma comunidade mundial, a uma família humana global. E isto manifesta-se de muitas formas, mediante a generosidade com a qual oferece ajuda e socorro nas emergências às nações mais pobres. A este propósito, o seu país oferece uma contribuição inestimável para a construção de um mundo mais seguro e estável. A Santa Sé tem o prazer de trabalhar juntamente com todos aqueles que buscam a promoção da paz, da prosperidade e do desenvolvimento, e aprecia o compromisso assumido pela República da China nesta nobre causa.

Não obstante os católicos na República da China representem pouco mais de um por cento da população, eles aspiram a desempenhar a parte que lhes compete na edificação de uma sociedade que seja humana, justa e caracterizada por uma genuína solicitude pelo bem-estar dos membros mais vulneráveis da comunidade. Faz parte da missão da Igreja compartilhar com todas as pessoas de boa vontade o facto de ser "perita em humanidade", em vista de contribuir para o bem-estar da família humana. Distintamente, é nos campos da educação, da assistência à saúde e das obras caritativas que ela oferece esta contribuição. A firme convicção do seu governo em prol da liberdade de religião tem permitido à Igreja desempenhar a sua missão de amor e de serviço, e manifestar-se abertamente através do culto e da proclamação do Evangelho. Em nome de todos os católicos de Formosa, gostaria de expressar o meu apreço pela liberdade de que a Igreja goza.

Graças à sua "visão espiritual inata e à sua sabedoria moral" (Ecclesia in Asia ), existe uma grande vitalidade e capacidade religiosa de renovação entre os povos da Ásia. Por isso, o solo é particularmente fértil para que o diálogo inter-religioso lance raízes e prospere. Os asiáticos continuam a demonstrar uma "abertura natural ao enriquecimento mútuo dos povos no meio de uma pluralidade de religiões e de culturas" (Ibidem). Como é importante, no mundo contemporâneo, que diferentes povos sejam capazes de ouvir uns aos outros, numa atmosfera de respeito e de dignidade, conscientes de que a sua humanidade compartilhada constitui um vínculo muito mais profundo que as variações culturais que parecem dividi-los! Este crescimento na compreensão recíproca oferece um serviço extremamente necessário para a sociedade em geral. Dando claro testemunho "das verdades morais que têm em comum com todos os homens e mulheres de boa vontade, os grupos religiosos exercem uma influência positiva na cultura mais vasta" (Discurso aos representantes de outras religiões, Washington, 17 de Abril de 2008).

801 O diálogo franco e construtivo é também uma chave para a resolução dos conflitos que ameaçam a estabilidade do nosso mundo. A este propósito, a Santa Sé elogia os recentes desenvolvimentos positivos alcançados nas relações entre Formosa e a China continental. Com efeito, a Igreja católica deseja ardentemente promover soluções pacíficas para os debates de todos os tipos, "prestando atenção e encorajando até o mais fraco sinal de diálogo ou de desejo de reconciliação" (Discurso à Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, 18 de Abril de 2008). Deste modo, ela deseja apoiar os esforços dos governos em vista de se tornarem "incansáveis campeões de dignidade humana e intrépidos edificadores de paz" (Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2007, n. 16).

Excelência, asseguro-lhe os meus bons votos e as minhas orações pelo bom êxito da sua missão diplomática, que hoje tem início. Vossa Excelência receberá sempre da parte dos vários departamentos da Cúria Romana a disponibilidade a oferecer-lhe ajuda e apoio no cumprimento dos seus deveres. Com sentimentos de sincera estima, invoco as copiosas bênçãos de Deus sobre o Senhor Embaixador, a sua família e toda a população de Formosa.




AOS PARTICIPANTES NO CONGRESSO SOBRE "A HERANÇA DO MAGISTÉRIO DE PIO XII E O CONCÍLIO VATICANO II" PROMOVIDO PELAS UNIVERSIDADES LATERANENSE E GREGORIANA Sábado, 8 de Novembro de 2008

Senhores Cardeais
Venerados Irmãos
no Episcopado e no Sacerdócio
Amados irmãos e irmãs

Estou feliz por vos receber, por ocasião do Congresso sobre "A herança do magistério de Pio XII e o Concílio Vaticano II", promovido pela Pontifícia Universidade Lateranense, juntamente com a Pontifícia Universidade Gregoriana. Trata-se de um Congresso importante pelo tema que enfrenta e pelas pessoas eruditas, provenientes de várias nações, que nele participam. Ao dirigir a cada um de vós a minha cordial saudação, agradeço de modo particular a D. Rino Fisichella, Reitor da Universidade Lateranense, e ao Pe. Gianfranco Ghirlanda, Reitor da Universidade Gregoriana, as amáveis expressões com que interpretaram os sentimentos comuns.

Apreciei o tema exigente sobre o qual concentrastes a vossa atenção. Nos últimos anos, quando se falou de Pio XII, a atenção concentrou-se de modo excessivo numa única problemática, de resto abordada de maneira bastante unilateral. À parte qualquer outra consideração, isto impediu uma adequada aproximação de uma figura de grande consistência histórico-teológica, como é a do Papa Pio XII. O conjunto da imponente actividade levada a cabo por este Pontífice e, de modo totalmente especial, o seu magistério sobre o qual reflectistes durante estes dias, constituem uma prova eloquente daquilo que acabei de afirmar. Com efeito, o seu magistério qualifica-se pela vasta e benéfica amplidão, assim como pela sua extraordinária qualidade, de tal forma que se pode dizer que ele constitui uma preciosa herança que a Igreja valorizoue continua a valorizar.

Falei de "vasta e benéfica amplidão" deste magistério. É suficiente recordar, a este propósito, as Encíclicas e os numerosíssimos discursos e radiomensagens contidos nos vinte volumes dos seus "Ensinamentos?". Ele publicou mais de quarenta Encíclicas. Entre elas, sobressai a "Mystici Corporis", na qual o Papa enfrenta o tema da verdadeira e íntima natureza da Igreja. Com profundidade de investigação, ele esclarece a nossa íntima união ontológica com Cristo e nele, por Ele e com Ele com todos os outros fiéis animados pelo seu Espírito, que se alimentam do seu seu Corpo e, nele transformados, lhe permitem continuar a difundir pelo mundo a sua obra salvífica. Intimamente ligadas à "Mystici Corporis" há outras duas Encíclicas: a "Divino afflante Spiritu", sobre a Sagrada Escritura, e a "Mediator Dei", a respeito da sagrada Liturgia, nas quais são apresentadas as suas fontes nas quais devem sempre beber aqueles que pertencem a Cristo, Cabeça do Corpo místico que é a Igreja.

Neste contexto de grande profundidade, Pio XII abordou as várias categorias de pessoas que, por vontade do Senhor, fazem parte da Igreja, apesar das diferentes vocações e tarefas: os sacerdotes, os religiosos e os leigos. Deste modo, ele emanou sábias normas sobre a formação dos sacerdotes, que se devem distinguir pelo amor pessoal a Cristo, pela simplicidade e pela sobriedade de vida, bem como pela lealdade aos respectivos Bispos e pela disponibilidade àqueles que são confiados aos seus cuidados pastorais. Além disso, na Encíclica "Sacra Virginitas" e em outros documentos a respeito da vida religiosa, Pio XII esclareceu a excelência do "dom" que Deus concede a certas pessoas, convidando-as a consagrar-se totalmente ao seu serviço e ao do próximo na Igreja. Nesta perspectiva, o Papa insiste vigorosamente sobre o retorno ao Evangelho e ao carisma autêntico dos Fundadores e das Fundadoras das várias Ordens e Congregações religiosas, supondo também a necessidade de algumas reformas sadias. Depois, foram numerosas as ocasiões em que Pio XII discorreu sobre a responsabilidade dos leigos na Igreja, aproveitando em particular os importantes Congressos internacionais dedicados a estas temáticas. E enfrentava de bom grado os problemas de cada uma das profissões, indicando por exemplo os deveres dos juízes, dos advogados, dos agentes sociais e dos médicos: a estes últimos, o Sumo Pontífice dedicou numerosos discursos, explicando as normas deontológicas que eles devem respeitar na sua actividade. Além disso, na Encíclica "Miranda prorsus" o Papa reflectiu sobre a grande importância dos modernos meios de comunicação, que de modo cada vez mais determinante iam influenciando a opinião pública. Precisamente por isso o Sumo Pontífice, que valorizou ao máximo a nova invenção da Rádio, salientava o dever dos jornalistas de transmitir informações verdadeiras, e no respeito pelas normas morais.

802 Pio XII dirigiu a sua atenção também às ciências e aos extraordinários progressos por elas alcançados. Não obstante admirasse as conquistas atingidas em tais campos, o Papa não deixava de alertar contra os riscos que uma investigação não atenta aos valores morais podia comportar. É suficiente um só exemplo: permaneceu famoso o discurso por ele pronunciado a respeito da conquista da cisão dos átomos; porém, com extraordinária clarividência, o Papa admoestava acerca da necessidade de impedir a todo o custo que estes geniais progressos científicos fossem utilizados para a construção de armas mortíferas, que poderiam provocar catástrofes imanes e até a total destruição da humanidade. De resto, como deixar de recordar os longos e inspirados discursos relativos ao almejado ordenamento da sociedade civil, nacional e internacional, para o qual ele indicava como fundamento imprescindível a justiça, verdadeiro pressuposto para uma convivência pacífica entre os povos: "opus iustitiae pax!". Igualmente meritório de menção especial é o ensinamento mariológico de Pio XII, que alcançou o seu ápice na proclamação do dogma da Assunção de Maria Santíssima, através do qual o Santo Padre tencionava pôr em evidência a dimensão escatológica da nossa existência e, outrossim, exaltar a dignidade da mulher.

O que dizer da qualidade do ensinamento de Pio XII? Ele era contrário às improvisações: escrevia cada um dos seus discursos com a máxima atenção, reflectindo sobre cada frase e cada palavra, antes de a pronunciar em público. Estudava atentamente as várias questões e tinha o hábito de pedir conselho a especialistas eminentes, quando se tratava de temas que exigiam uma competência particular. Pela sua natureza e índole, Pio XII era um homem comedido e realista, alheio a optimismos fáceis, mas era igualmente ao perigo do pessimismo que se não condiz com o crente. Aborrecia as polémicas estéreis e tinha profunda desconfiança em relação ao fanatismo e ao sentimentalismo.

Estas suas atitudes interiores ilustram o valor e a profundidade, assim como a garantia do seu ensinamento, e explicam a adesão confiante que lhe era reservada não somente pelos fiéis, mas também por muitas pessoas que não pertenciam à Igreja. Considerando a grande amplidão e a elevada qualidade do magistério de Pio XII, é espontâneo perguntar como conseguiu ele realizar tanto, embora tivesse que se dedicar às numerosas tarefas ligadas ao seu ofício de Sumo Pontífice: o governo quotidiano da Igreja, as nomeações e as visitas dos Bispos, as visitas de Chefes de Estado e de diplomatas, as inúmeras audiências concedidas a pessoas particulares e a grupos muito diversificados.

Todos reconhecem a Pio XII uma inteligência ímpar, uma memória de ferro, uma singular familiaridade com as línguas estrangeiras e uma sensibilidade notável. Afirmava-se que ele era um diplomata completo, um jurista eminente e um teólogo excelente. Isto é verdade, mas isso não explica tudo. Nele havia, igualmente, o esforço contínuo e a vontade firme de se entregar a Deus sem se poupar e sem consideração pela sua saúde frágil. Esta foi a verdadeira razão do seu comportamento: tudo nascia do amor pelo seu Senhor Jesus Cristo e do amor pela sua Igreja e pela humanidade. Efectivamente, ele era antes de tudo um sacerdote em constante e íntima união com Deus, um sacerdote que encontrava a força para o seu enorme trabalho em longas pausas de oração diante do Santíssimo Sacramento, em diálogo silencioso com o seu Criador e Redentor. Era dali que hauria origem e impulso o seu magistério, bem como todas as suas outras actividades.

Portanto, não deve surpreender o facto de que ainda hoje o seu ensinamento continua a difundir luz na Igreja. Já transcorreram cinquenta anos da sua morte, mas o seu multiforme e fecundo magistério representa também para os cristãos de hoje um valor inestimável. Sem dúvida a Igreja, Corpo místico de Cristo, é um organismo vivo e vital, não entrincheirado de modo imóvel naquilo que era há cinquenta anos. Mas o desenvolvimento verifica-se na coerência. Por isso, a herança do magistério de Pio XII foi recolhida pelo Concílio Vaticano II e proposta novamente às sucessivas gerações cristãs. Sabe-se que nas intervenções orais e escritas, apresentadas pelos Padres do Concílio Vaticano II existem muito mais de mil referências ao magistério de Pio XII. Nem todos os documentos do Concílio contêm uma estrutura de Notas, mas nos documentos que a têm o nome de Pio XII aparece mais de duzentas vezes. Isto quer dizer que, com excepção da Sagrada Escritura, este Papa constitui a fonte mais influente citada com mais frequência. Além disso, sabe-se também que as notas acrescentadas a tais documentos não são, em geral, simples citações explicativas, mas não raro constituem verdadeiras partes integrantes dos textos conciliares; não oferecem apenas justificações que corroboram quanto se afirma no texto, mas oferecem uma sua chave interpretativa.

Por conseguinte, podemos dizer que, na pessoa do Sumo Pontífice Pio XII, o Senhor ofereceu à sua Igreja um dom extraordinário, pelo qual todos nós lhe devemos estar gratos. Portanto, renovo a expressão do meu apreço pelo importante trabalho por vós realizado na preparação e no desenvolvimento deste Congresso internacional sobre o magistério de Pio XII e faço votos para que se continue a reflectir sobre a preciosa herança deixada à Igreja pelo Pontífice imortal, em vista de tirar daí aplicações profícuas para as problemáticas hoje emergentes. Com estes bons votos, enquanto invoco sobre o vosso compromisso a ajuda do Senhor, de coração concedo a cada um a minha Bênção.






AOS BISPOS DA CONFERÊNCIA EPISCOPAL DA BOLÍVIA EM VISITA «AD LIMINA APOSTOLORUM» Segunda-feira, 10 de Novembro de 2008



Senhor Cardeal
Queridos Irmãos no Episcopado!

Tenho a alegria de vos receber, bispos da Bolívia, que viestes a Roma em visita ad Limina, para rezar diante dos túmulos dos Apóstolos Pedro e Paulo, e para renovar os vínculos de unidade, amor e paz com o Sucessor de Pedro (cf. Lumen gentium LG 22). Agradeço de coração ao Senhor Cardeal Julio Terrazas Sandoval, Arcebispo de Santa Cruz de la Sierra e Presidente da Conferência Episcopal, as amáveis palavras que me dirigiu em nome de todos. Desejo, antes de tudo, manifestar-vos o meu apreço e garantir-vos o meu estímulo no serviço generoso que prestais na grande tarefa de preservar e alimentar a fé do povo de Deus.

Conheço bem as difíceis circunstâncias que atingem os fiéis e cidadãos do vosso país desde há tempos, e que nestes momentos parecem agravar-se ainda mais. São certamente motivo de preocupação e de especial solicitude pastoral para a Igreja, que soube acompanhar muito de perto todos os bolivianos em situações delicadas, com a única finalidade de manter a esperança, reavivar a fé, fomentar a unidade, exortar à reconciliação e salvaguardar a paz. Com os seus esforços nesta tarefa, realizada de modo fraterno, unânime e coordenado, os Pastores recordam a parábola evangélica do semeador, que lança a semente abundante e incansavelmente, sem fazer cálculos antecipados sobre o fruto que poderá obter para si do seu trabalho (cf. Lc 8,4 ss.).

803 Não faltam também outras preocupações nas vossas canseiras pastorais, pois a fé plantada na terra boliviana precisa de ser sempre alimentada e fortalecida, sobretudo quando se percebem sinais de uma certa debilitação e da vida cristã por factores de vários tipos, uma alastrada incoerência entre a fé professada e os modelos de vida pessoal e social, ou uma formação superficial que deixa os baptizados expostos à influência de promessas deslumbrantes mas vazias.

Para enfrentar estes desafios, a Igreja na Bolívia conta com um meio poderoso, como a devoção popular, esse precioso tesouro acumulado durante séculos graças ao trabalho de missionários audaciosos e mantido com profunda fidelidade por gerações nas famílias bolivianas. Trata-se de um dom que deve ser certamente conservado e promovido hoje, como sei que está a ser feito com esmero e dedicação, mas isso exige um esforço constante para que o valor dos sinais atinja o fundo do coração, esteja sempre iluminado pela Palavra de Deus e se transforme em convicções firmes de fé, consolidada pelos sacramentos e pela fidelidade aos valores morais. De facto, é necessário cultivar uma fé madura e "uma firme esperança para viver de modo responsável e jubilosamente a fé e irradiá-la assim no próprio ambiente" (Discurso na sessão inaugural dos trabalhos da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, Aparecida, 13/5/2007).

Para alcançar esta finalidade é necessária uma catequese sistemática, generalizada e penetrante, que ensine clara e integralmente a fé católica. Este ano paulino que estamos a celebrar é uma ocasião privilegiada para imitar o vigor apostólico e missionário deste grande Apóstolo, que nunca hesitou no momento de anunciar em toda a sua integridade o desígnio de Deus, como diz aos Pastores de Mileto (cf.
Ac 20,27). De facto, um ensinamento parcial ou incompleto da mensagem evangélica não faz parte da missão própria da Igreja nem pode ser fecundo.

Também uma educação básica de qualidade, que inclua a dimensão espiritual e religiosa da pessoa, contribui poderosamente para lançar bases firmes para o crescimento da fé. A Igreja na Bolívia possui numerosas instituições educativas, algumas de grande prestígio, que devem continuar a contar com a atenção dos seus Pastores para que mantenham a sua identidade e nela sejam respeitadas. Contudo, não se deve esquecer que "todos os cristãos, uma vez que se tornaram novas criaturas mediante a regeneração pela água e pelo Espírito Santo e se chamam filhos de Deus, têm direito à educação cristã" (Gravissimum educationis GE 2).

Alegra-me constatar os vossos esforços para oferecer aos seminaristas uma sólida formação humana, intelectual e pastoral, proporcionando-lhes sacerdotes preparados para os acompanhar no seu discernimento vocacional e cuidar da sua idoneidade e competência. Este critério, sempre necessário, torna-se mais urgente no momento actual, propenso para a dispersão nas informações e para a dissipação da interioridade profunda, na qual o ser humano tem uma lei inscrita por Deus (cf. Gaudium et spes GS 16). Por isso é necessário também uma continuidade posterior para garantir a formação permanente do clero, assim como dos demais agentes pastorais, que alimente constantemente a sua vida espiritual e impeça que os seus afazeres quotidianos caiam na rotina ou na superficialidade. Eles estão chamados a mostrar aos fiéis, a partir da sua própria experiência, que as palavras de Jesus são espírito e vida (cf. Jn 6,63), "caso contrário, como podem anunciar uma mensagem cujos conteúdo e espírito não conhecem profundamente?" (Discurso, sessão inaugural, Aparecida).

Na recente Assembleia do Sínodo dos Bispos foi ressaltado precisamente que "a tarefa prioritária da Igreja, no início deste novo milénio, consiste antes de tudo em alimentar-se da Palavra de Deus, para tornar eficaz o compromisso da nova evangelização, o anúncio no nosso tempo" (Homilia,missa conclusiva, 26/10/2008). Recomendo-vos portanto vivamente que nas homilias, catequeses e celebrações nas paróquias e em tantas pequenas comunidades dispersas, mas com as suas significativas capelas, como se vê nas vossas terras, a proclamação fiel, a escuta e a meditação da Escritura estejam sempre em primeiro plano, pois nisto o povo de Deus encontra a sua razão de ser, a sua vocação e a sua identidade.

Da escuta dócil da Palavra divina nasce o amor ao próximo e, com ele, o serviço abnegado aos irmãos (cf. ibid.), um aspecto que ocupa um lugar muito relevante na acção pastoral na Bolívia, face à situação de pobreza, de marginalização ou de abandono em que vive grande parte da população. A comunidade eclesial deu provas de ter, como o bom Samaritano, um grande "coração que vê" o irmão em dificuldade e, através de numerosas obras e projectos, o socorre com solicitude. Sabe que "o amor, na sua pureza e gratuidade, é o melhor testemunho do Deus no qual cremos e que nos estimula a amar" (Deus caritas est ). Neste sentido é, por assim dizer, também um "coração que fala", que traz em si mesmo a Palavra que habita no fundo do seu ser e à qual não pode renunciar mesmo se por vezes deve permanecer em silêncio. Deste modo, se a fraternidade com os irmãos mais necessitados nos torna discípulos privilegiados do Mestre, a especial entrega e preocupação por eles converte-nos em missionários do Amor.

Ao terminar este encontro, desejo reiterar o meu encorajamento na missão que desempenhais como guias da Igreja na Bolívia, assim como no espírito de comunhão e concórdia entre vós. Uma comunhão enriquecida com os vínculos especiais de estreita fraternidade com as outras Igrejas particulares, algumas distantes, mas que desejam partilhar convosco as alegrias e as esperanças da evangelização no vosso país. Levai a minha saudação e gratidão aos bispos eméritos, aos sacerdotes e seminaristas, aos numerosos religiosos e religiosas que enriquecem e animam as vossas comunidades cristãs, aos catequistas e demais colaboradores na tarefa de levar a luz do Evangelho aos bolivianos.

Recomendo as vossas intenções à Santíssima Virgem Maria, tão venerada pelo povo boliviano em numerosos santuários marianos, e concedo-vos de coração a Bênção Apostólica.






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