Discursos Bento XVI 1065

A UMA DELEGAÇÃO ECUMÉNICA DA FINLÂNDIA Segunda-feira, 18 de Janeiro de 2010



Ilustres Amigos

1066 Saúdo carinhosamente todos os membros da vossa delegação ecuménica, que veio a Roma para a celebração da festividade de Santo Henrique. Esta ocasião marca o 25º aniversário das vossas visitas anuais a Roma. Por conseguinte, é com gratidão que recordo como estes encontros contribuíram de maneira significativa para fortalecer os relacionamentos entre os cristãos no vosso país.

O Concílio Vaticano II empenhou a Igreja católica, "de modo irreversível, a percorrer o caminho da busca ecuménica, colocando-se assim à escuta do Espírito do Senhor, que ensina a ler com atenção os "sinais dos tempos"" (Ut unum sint
UUS 3). Este é o caminho que a Igreja católica empreendeu sinceramente a partir daquele instante. As Igrejas do Oriente e do Ocidente, cujas tradições estão presentes no vosso país, partilham uma comunhão real, embora ainda imperfeita. Esta é uma razão para lastimar os problemas do passado, mas é sem dúvida também um motivo para nos estimular a realizar esforços cada vez maiores em vista da compreensão e da reconciliação, de tal maneira que a nossa amizade e o nosso diálogo fraterno ainda possa florescer numa unidade visível perfeita em Jesus Cristo.

No seu discurso, o senhor mencionou a Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação, emanada há 10 anos, que constitui um sinal concreto da fraternidade redescoberta entre luteranos e católicos. Neste contexto, é com prazer que observo o recente trabalho levado a cabo no diálogo luterano-católico na Finlândia e na Suécia, a propósito de questões que derivam da Declaração Conjunta. Espera-se enormemente que o texto produzido pelo diálogo venha a contribuir de maneira positiva para o caminho que leva ao restabelecimento da nossa unidade perdida.

Uma vez mais, estou feliz por manifestar a minha gratidão pela vossa perseverança ao longo destes 25 anos de peregrinação coral. Eles demonstram o vosso respeito pelo Sucessor de Pedro, assim como a vossa boa fé e a vossa aspiração à unidade através do diálogo fraterno. Rezo fervorosamente a fim de que as diversas Igrejas cristãs e comunidades eclesiais, por vós representadas, possam alicerçar-se em tal sentido de fraternidade, enquanto nós perseveramos na nossa peregrinação comum. Sobre vós e sobre todos aqueles que foram confiados aos vossos cuidados pastorais, tenho o prazer de invocar abundantes bênçãos de Deus Todo-Poderoso.




AOS PARTICIPANTES NA 14ª ASSEMBLEIA PÚBLICA DAS ACADEMIAS PONTIFÍCIAS Quinta-feira, 28 de Janeiro de 2010

Senhores Cardeais
Venerados Irmãos
no Episcopado e no Sacerdócio
Ilustres Presidentes e Académicos
Senhoras e Senhores

Estou feliz por vos receber e por me encontrar convosco, por ocasião da assembleia pública das Academias Pontifícias, momento culminante das múltiplas actividades do ano. Saúdo D. Gianfranco Ravasi, Presidente do Conselho de Coordenação entre as Academias Pontifícias, e agradeço-lhe as gentis palavras que me dirigiu. A minha saudação abrange também os Presidentes das Pontifícias Academias, os Académicos e os Membros presentes. A Assembleia Pública de hoje, durante a qual foi entregue, em meu nome, o Prémio das Pontifícias Academias, toca um tema que, no âmbito do Ano sacerdotal, assume uma importância particular: "A formação teológica do presbítero".

1067 Hoje, memória de S. Tomás de Aquino, grande Doutor da Igreja, desejo propor-vos algumas reflexões sobre as finalidades e a missão específica das beneméritas Instituições culturais da Santa Sé das quais fazeis parte e que se orgulham de uma variegada e rica tradição de pesquisa e de compromisso em diversos sectores. De facto, os anos de 2009-2010, para algumas delas, estão marcados por uma celebração específica, que constitui um ulterior motivo para dar graças ao Senhor. Em particular, a Pontifícia Academia Romana de Arqueologia recorda a Fundação ocorrida há dois séculos, em 1810, e a transformação em Academia Pontifícia, em 1829. A Pontifícia Academia de S. Tomás de Aquino e a Pontifícia Academia Cultorum Martyrum recordaram o 130º ano de vida, tendo sido ambas fundadas em 1879. A Pontifícia Academia Mariana Internacional celebrou, depois, o 50º da própria transformação em Academia Pontifícia. As Pontifícias Academias de S. Tomás de Aquino e de Teologia recordaram, por fim, o decénio da sua renovação institucional, realizado em 1999 com o Motu proprio Inter munera Academiarum, que tem precisamente a data de 28 de Janeiro.

Por conseguinte, muitas ocasiões para revisitar o passado, através da leitura dos pensamentos e das acções dos Fundadores e de quantos se prodigalizaram pelo progresso destas Instituições. Mas o olhar restrospectivo e a memória do glorioso passado não podem constituir a única abordagem destes acontecimentos, que recordam sobretudo a tarefa e a responsabilidade das Academias Pontifícias de servir fielmente a Igreja e a Santa Sé, renovando no presente o rico e diversificado compromisso, que já produziu frutos preciosos também no passado recente. De facto, a cultura contemporânea, e ainda mais os próprios crentes, solicitam continuamente a reflexão e a acção da Igreja nos vários âmbitos nos quais emergem novas problemáticas e que constituem também sectores nos quais trabalhais, como a investigação filosófica e teológica; a reflexão sobre a figura da Virgem Maria; o estudo da história, dos monumentos, dos testemunhos recebidos em herança pelos fiéis das primeiras gerações cristãs, começando pelos Mártires; o delicado e importante diálogo entre a fé cristã e a criatividade artística, ao qual eu quis dedicar o Encontro com personalidades do mundo da arte e da cultura, realizado na Capela Sistina no passado dia 21 de Novembro. Nestes delicados espaços de pesquisa e de compromisso, sois chamados a oferecer uma contribuição qualificada, competente e apaixonada, para que toda a Igreja, e em particular a Santa Sé, possa dispor de ocasiões, de linguagens e de meios adequados para dialogar com as culturas contemporâneas e responder eficazmente às questões e aos desafios que a interpelam nos vários âmbitos do saber da experiência humana.

Como afirmei várias vezes, a cultura actual sofre em grande medida o efeito de uma visão dominada pelo relativismo e pelo subjectivismo, quer de métodos e atitudes por vezes superficiais e até banais, que danificam a seriedade da investigação e da reflexão quer, por conseguinte, do diálogo, do confronto e da comunicação interpessoal. Portanto, é urgente e necessário recriar as condições no estudo e na pesquisa, para que dialoguemos de modo razoável e nos confrontemos eficazmente sobre as diversas problemáticas, na perspectiva de um crescimento comum e de uma formação que promova o homem na sua integridade e plenitude. À carência de pontos de referência ideais e morais, que penaliza particularmente a convivência civil e acima de tudo a formação das jovens gerações, deve corresponder uma oferta ideal e prática de valores e de verdade, de razões de vida fortes e de esperança, que possa e deve interessar todos, sobretudo os jovens. Este compromisso deve ser particularmente imprescindível no âmbito da formação dos candidatos ao ministério ordenado, como exige o Ano sacerdotal e como confirma a feliz opção de lhe dedicar a vossa Assembleia Pública anual.

Uma das Academias Pontifícias é intitulada a S. Tomás de Aquino, o Doctor Angelicus et Communis, um modelo sempre actual no qual inspirar a acção e o diálogo das Academias Pontifícias com as diversas culturas. De facto, ele conseguiu instaurar um confronto frutuoso quer com o pensamento árabe, quer com o judaico do seu tempo e, valorizando a tradição filosófica grega, produziu uma síntese teológica extraordinária, harmonizando plenamente a razão e a fé. Ele deixou já nos seus contemporâneos uma recordação profunda e indelével, precisamente pela extraordinária fineza e perspicácia da sua inteligência e pela grandeza e originalidade do seu génio, assim como pela luminosa santidade de vida. O seu primeiro biógrafo, Guilherme de Tocco, ressalta a extraordinária e penetrante originalidade pedagógica de S. Tomás, com expressões que podem inspirar também as vossas acções: Frei Tomás – escreveu ele – "nas suas lições introduzia novos artigos, levantava as questões de uma forma nova e mais clara com novos assuntos. Por conseguinte, quantos o ouviam ensinar teses novas e tratá-las com método novo, não podiam duvidar que Deus o tivesse iluminado com uma luz nova: de facto, podem-se porventura ensinar ou escrever opiniões novas, se não se recebeu de Deus uma nova inspiração?" (Vita Sancti Thomae Aquinates, em Fontes Vitae S.Thomae Aquinates notis historicis et criticis illustrati, ed.D. Prümmer M. H. Laurent, Toulouse, s.d., fasc.
2P 81).

O pensamento e o testemunho de S. Tomás de Aquino sugerem-nos que estudemos com grande atenção os problemas emergentes para oferecer respostas adequadas e criativas. Confiantes na possibilidade da "razão humana", em plena fidelidade ao imutável depositum fidei, é necessário – como fez o "Doctor Communis" – beber sempre das riquezas da Tradição, na busca constante da "verdade das coisas". Por isso, é necessário que as Academias Pontifícias sejam hoje mais do que nunca Instituições vitais e vivazes, capazes de compreender perspicazmente quer os questionamentos da sociedade e das culturas, quer as necessidades e as expectativas da Igreja, para oferecer uma contribuição adequada e válida e desta forma promover, com todas as energias e meios à disposição, um autentico humanismo cristão.

Por conseguinte, agradeço às Academias Pontifícias a generosa dedicação e o compromisso prodigalizado, desejo que todas enriqueçam cada uma das histórias e tradições com projectos novos e significativos através dos quais prosseguir, com renovado impulso, a própria missão. Garanto-vos uma recordação na oração e, ao invocar sobre vós e sobre as Instituições às quais pertenceis a intercessão da Mãe de Deus, Sedes Sapientiae, e de S. Tomás de Aquino, concedo-vos de coração a Bênção Apostólica.




AOS COMPONENTES DO TRIBUNAL DA ROTA ROMANA POR OCASIÃO DA INAUGURAÇÃO DO ANO JUDICIÁRIO Sala Clementina

Sexta-feira, 29 de Janeiro de 2010


Caros Componentes do Tribunal
da Rota Romana

Estou feliz por me encontrar mais uma vez convosco para a inauguração do Ano Judiciário. Saúdo cordialmente o Colégio dos Prelados Auditores, a começar pelo Decano, D. Antoni Stankiewicz, a quem agradeço as palavras que me dirigiu em nome dos presentes. Saúdo também os Promotores de Justiça, os Defensores do Vínculo, os outros Oficiais, os Advogados e todos os Colaboradores deste Tribunal Apostólico, assim como os Membros do Estudo da Rota. É de bom grado que aproveito o ensejo para vos renovar a expressão da minha profunda estima e sincera gratidão pelo vosso ministério eclesial, reiterando ao mesmo tempo a necessidade da vossa actividade judiciária. O precioso trabalho que os Prelados Auditores são chamados a desempenhar com diligência, em nome e por mandato desta Sé Apostólica, é sustentado pelas tradições autorizadas e consolidadas deste Tribunal, em cujo respeito cada um de vós deve sentir-se pessoalmente empenhado.

1068 Hoje desejo reflectir sobre o núcleo essencial do vosso ministério, procurando aprofundar as suas relações com a justiça, a caridade e a verdade. Farei referência sobretudo a algumas considerações expostas na Encíclica Caritas in veritate que, embora sejam consideradas no contexto da doutrina social da Igreja, podem iluminar também outros âmbitos eclesiais. É necessário considerar a tendência difundida e arraigada, embora nem sempre evidente, que leva a contrapor a justiça à caridade, como se uma excluísse a outra. Nesta linha, referindo-se mais especificamente à vida da Igreja, alguns consideram que a caridade pastoral poderia justificar cada passo rumo à declaração da nulidade do vínculo matrimonial para ir ao encontro das pessoas com uma situação matrimonial irregular. A própria verdade, mesmo invocada com palavras, tenderia assim a ser vista numa perspectiva instrumental, que a adaptaria vez por vez às diversas exigências que se apresentam.

Partindo da expressão "administração da justiça", gostaria de recordar antes de tudo que o vosso ministério é essencialmente obra de justiça: uma virtude – "que consiste na constante e firme vontade de dar a Deus e ao próximo o que lhes é devido" (
CIC 1807) – da qual é mais importante do que nunca redescobrir o valor humano e cristão, também no interior da Igreja. O Direito Canónico, às vezes, é subestimado, como se fosse um mero instrumento técnico ao serviço de qualquer interesse subjectivo, também não fundado na verdade. Ao contrário, é preciso que tal Direito seja sempre considerado na sua relação essencial com a justiça, na consciência de que na Igreja a actividade jurídica tem como finalidade a salvação das almas e "constitui uma peculiar participação na missão de Cristo Pastor... na actualização da ordem desejada pelo próprio Cristo" (João Paulo II, Alocução à Rota Romana, 18 de Janeiro de 1990, in AAS 82 [1990], pág. 874, n. 4). Nesta perspectiva há que ter presente, qualquer que seja a situação, que o processo e a sentença estão ligados de modo fundamental à justiça e que se põem ao seu serviço. O processo e a sentença têm uma grande relevância quer para as partes, quer para toda a assembleia eclesial, e isto adquire um valor totalmente singular quando se trata de se pronunciar sobre a nulidade de um matrimónio, que diz respeito directamente ao bem humano e sobrenatural dos cônjuges, e também ao bem público da Igreja. Além desta dimensão, que poderíamos definir "objectiva" da justiça, existe outra, inseparável dela, que diz respeito aos "promotores do direito", ou seja, aqueles que a tornam possível. Gostaria de sublinhar como eles devem ser caracterizados por um alto exercício das virtudes humanas e cristãs, em particular da prudência e da justiça, mas também da fortaleza. Esta última torna-se mais relevante, quando a injustiça parece a mais fácil de seguir, enquanto implica condescendência aos desejos e às expectativas das partes, ou então aos condicionamentos do ambiente social. Em tal contexto, o juiz que deseja ser justo e quer adaptar-se ao paradigma clássico da "justiça viva" (cf. Aristóteles, Ética a Nicómaco, v, 1132a), experimenta a grave responsabilidade diante de Deus e dos homens pela sua função, que inclui outrossim a devida tempestividade em cada fase do processo: "quam primum, salva iustitia" (Pontifício Conselho para os Textos Legislativos, Instrução Dignitas connubii, art. 72). Todos aqueles que trabalham no campo do Direito, cada um segundo a própria função, devem ser norteados pela justiça. Penso em particular nos advogados, que devem não somente prestar toda a atenção ao respeito pela verdade das provas, mas também evitar com cuidado de assumir, como advogados de confiança, o patrocínio de causas que, segundo a sua consciência, não sejam objectivamente defensáveis.

Depois, a acção de quem administra a justiça não pode prescindir da caridade. O amor a Deus e ao próximo deve informar toda a actividade, também aquela aparentemente mais técnica e burocrática. O olhar e a medida da caridade ajudará a não esquecer que se está sempre diante de pessoas marcadas por problemas e sofrimentos. Também no âmbito específico do serviço de promotores da justiça vale o princípio segundo o qual "a caridade supera a justiça" (Encíclica Caritas in veritate ). Por conseguinte, a aproximação às pessoas, mesmo tendo uma sua modalidade específica ligada ao processo, deve inserir-se no caso concreto para facilitar às partes, mediante a delicadeza e a solicitude, o contacto com o tribunal competente. Ao mesmo tempo, é importante esforçar-se efectivamente todas as vezes que se entrevê uma esperança de bom êxito, para induzir os cônjuges a validar eventualmente o matrimónio e a restabelecer a convivência conjugal (cf. CDC , CIC 1676). Além disso, não se deve abandonar o esforço de instaurar entre as partes um clima de disponibilidade humana e cristã, fundada na busca da verdade (cf. Instrução Dignitas connubii, art. § 2-3).

Todavia, é necessário reiterar que cada obra de caridade autêntica abrange a referência indispensável à justiça, ainda mais no nosso caso. "O amor – "caritas" – é uma força extraordinária, que impele as pessoas a comprometerem-se, com coragem e generosidade, nos campos da justiça e da paz" (Encíclica Caritas in veritate ). "Quem ama os outros com caridade é, antes de mais nada, justo para com eles. A justiça não só não é alheia à caridade, não só não é um caminho alternativo ou paralelo à caridade, mas é "inseparável da caridade" é-lhe intrínseca" (Ibid., n. ). A caridade sem justiça não é tal, mas somente uma contrafacção, porque a própria caridade exige aquela objectividade típica da justiça, que não deve ser confundida com insensibilidade desumana. A este propósito, como pôde afirmar o meu Predecessor, o venerável João Paulo II, na alocução dedicada às relações entre pastoral e direito: "O juiz [...] deve evitar sempre o risco de uma compaixão mal entendida que decairia em sentimentalismo, só aparentemente pastoral" (18 de Janeiro de 1990, in AAS, 82 [1990], pág. 875, n. 5).

É preciso evitar evocações pseudopastorais que situam as questões sobre um plano meramente horizontal, nas quais o que conta é satisfazer as exigências subjectivas para chegar à declaração de nulidade custe o que custar, com a finalidade de poder superar, de resto, os obstáculos à recepção dos sacramentos da Penitência e da Eucaristia. O bem altíssimo da readmissão à Comunhão eucarística depois da reconciliação sacramental exige, ao contrário, que se considere o bem autêntico das pessoas, inseparável da verdade da sua situação canónica. Seria um bem fictício e uma grave falta de justiça e de amor, aplainar-lhes de qualquer modo o caminho rumo à recepção dos sacramentos, com o perigo de os fazer viver em contraste objectivo com a verdade da própria condição pessoal.

Acerca da verdade, nas alocuções dirigidas a este Tribunal Apostólico, em 2006 e em 2007, confirmei a possibilidade de alcançar a verdade sobre a essência do matrimónio e sobre a realidade de cada situação pessoal que é submetida ao juízo do tribunal (28 de Janeiro de 2006, in AAS 98 [2006], págs. 135-138; e 27 de Janeiro de 2007, in AAS [2007], págs. 86-91); sobre a verdade nos processos matrimoniais cf. Instrução Dignitas connubii, arts. 65 §§1-2, 95 §1, 167, 177 e 178). Hoje gostaria de sublinhar como, quer a justiça quer a caridade, postulam o amor à verdade e comportam essencialmente a busca da verdade. Em particular, a caridade torna a referência à verdade ainda mais exigente. "Defender a verdade, propô-la com humildade e convicção e testemunhá-la na vida são formas exigentes e imprescindíveis de caridade. Esta, de facto, "rejubila com a verdade" (1Co 13,6)" (Encíclica Caritas in veritate ). "Só na verdade é que a caridade refulge e pode ser autenticamente vivida [...] Sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente. É o risco fatal do amor numa cultura sem verdade; acaba prisioneiro das emoções e opiniões contingentes dos indivíduos, uma palavra abusada e adulterada, chegando a significar o oposto do que é realmente" (Ibid., n. 3).

É necessário ter presente que um esvaziamento semelhante pode verificar-se não só na actividade prática do julgar, mas também nos delineamentos teóricos, que tanto influenciam depois os juízos concretos. O problema apresenta-se quando é mais ou menos ofuscada a própria essência do matrimónio, arraigada na natureza do homem e da mulher, que permite expressar juízos objectivos sobre cada matrimónio. Neste sentido, a consideração existencial, personalista e relacional da união conjugal nunca pode ser feita em detrimento da indissolubilidade, propriedade essencial que no matrimónio cristão alcança, com a unidade, uma estabilidade peculiar em virtude do sacramento (cf. CDC, CIC 1056). Também não se deve esquecer que o matrimónio goza do favor do direito. Portanto, em caso de dúvida, ele deve entender-se válido enquanto não for provado o contrário (cf. CDC, CIC 1060). Caso contrário, corre-se o grave risco de permanecer sem um ponto de referência objectiva para as declarações acerca da nulidade, transformando toda a dificuldade conjugal num sintoma de malograda actuação de uma união cujo núcleo essencial de justiça – o vínculo indissolúvel – é de facto negado.

Ilustres Prelados Auditores, Oficiais e Advogados, confio-vos estas reflexões, conhecendo bem o espírito de fidelidade que vos anima e o compromisso que assumis ao dardes plena actuação às normas da Igreja, na busca do verdadeiro bem do Povo de Deus. Como conforto para a vossa preciosa actividade, sobre cada um de vós e sobre o vosso trabalho quotidiano, invoco a protecção maternal de Maria Santíssima Speculum iustitiae e concedo com afecto a Bênção Apostólica.





Fevereiro de 2010




AOS PRELADOS DA CONFERÊNCIA

EPISCOPAL DA INGLATERRA E PAÍS DE GALES EM VISITA «AD LIMINA APOSTOLORUM» Sala do Consistório

Sexta-feira, 1 de Fevereiro de 2010


Queridos Irmãos Bispos

1069 Dou as boas-vindas a todos vós, por ocasião da vossa visita ad limina a Roma, aonde vós viestes para venerar os túmulos dos Apóstolos Pedro e Paulo. Estou-vos grato pelas amáveis palavras que o Arcebispo Vincent Nichols me dirigiu em vosso nome, e formulo-vos os meus mais calorosos bons votos e preces por vós mesmos e por todos os fiéis da Inglaterra e do País de Gales, confiados aos vossos cuidados pastorais. A vossa visita a Roma revigora os laços de comunhão entre a comunidade católica no vosso país e a Sé Apostólica, uma comunhão que fortaleceu a fé do vosso povo durante séculos, e hoje oferece energias revigoradas para a renovação e a evangelização. Mesmo no meio das pressões de uma era secular, existem muitos sinais de fé e devoção vivas entre os católicos da Inglaterra e do País de Gales. Penso, por exemplo, no entusiasmo gerado pela visita das relíquias de Santa Teresa, no interesse despertado pela perspectiva da beatificação do Cardeal Newman e no profundo desejo com que os jovens participam nas peregrinações e nas Jornadas Mundiais da Juventude. Por ocasião da minha próxima Visita Apostólica à Grã-Bretanha, terei a possibilidade de dar testemunho pessoal desta fé e, como Sucessor de Pedro, de a fortalecer e confirmar. Durante os meses de preparação que nos precedem, esforçai-vos por encorajar os católicos da Inglaterra e do País de Gales na sua devoção, assegurando-lhes que o Papa se recorda constantemente deles nas suas orações e os conserva no seu coração.

O vosso país é bem conhecido pelo seu compromisso firme na promoção de iguais oportunidades para todos os membros da sociedade. Não obstante, como vós justamente indicastes, o efeito de uma parte da legislação destinada a alcançar esta finalidade tem sido a imposição de limites injustos sobre a liberdade que as comunidades religiosas têm de agir em conformidade com os respectivos credos. Sob certos pontos de vista, isto viola na realidade a lei natural sobre a qual a igualdade de todos os seres humanos está alicerçada e mediante a qual ela é garantida. Exorto-vos, como pastores, a assegurar que o ensinamento moral da Igreja seja apresentado sempre na sua integridade e defendido de maneira convincente. A fidelidade ao Evangelho não limita de modo algum a liberdade dos outros pelo contrário, serve a sua liberdade, oferecendo-lhes a verdade. Continuai a insistir sobre o vosso direito de participar no debate nacional através do diálogo respeitoso com outros protagonistas da sociedade. Agindo assim, não apenas conservais as antigas tradições britânicas da liberdade de expressão e do intercâmbio honesto de opiniões, mas na realidade dais voz às convicções de muitas pessoas às quais faltam os instrumentos para as manifestar: dado que tantos membros da população afirmam ser cristãos, como pode haver quem contesta o direito de fazer ouvir o Evangelho?

Se a mensagem salvífica integral de Cristo tiver que ser anunciada ao mundo de maneira eficaz e convincente, a comunidade católica no vosso país deverá falar em uníssono. Isto exige não só que vós, Bispos, mas também os sacerdotes, professores, catequistas e escritores em síntese, todos aqueles que estão comprometidos na tarefa de anúncio do Evangelho prestem atenção às recomendações do Espírito, que orienta toda a Igreja na verdade, que a reúne na unidade e a inspira com zelo missionário.

Então, sede solícitos em haurir dos dons consideráveis dos fiéis leigos na Inglaterra e no País de Gales, procurando prepará-los para transmitir a fé às novas gerações de forma abrangente, atenta e com a profunda consciência de que, agindo assim, eles hão-de desempenhar o papel que lhes é próprio na missão da Igreja. Num ambiente social que encoraja a expressão de uma diversidade de opiniões a respeito de todas as questões que se apresentam, é importante reconhecer o dissenso como tal, sem o confundir como uma contribuição amadurecida para um debate equilibrado e mais vasto. É a verdade revelada através da Escritura e da Tradição, e articulada pelo Magistério da Igreja, que nos liberta. O Cardeal Newman compreendeu isto e transmitiu-nos um extraordinário exemplo de fidelidade à verdade, revelada mediante o seguimento daquela "luz suave", para onde quer que ela o orientasse, mesmo à custa de um considerável sacrifício pessoal. A Igreja contemporânea tem necessidade de grandes escritores e comunicadores desta estatura e integridade, e formulo votos a fim de que a devoção a ele venha a inspirar muitas pessoas a seguir os seus passos.

Justamente, tem-se dedicado muita atenção à cultura de Newman e aos seus escritos prolíficos, mas é importante que ele seja visto em primeiro lugar e principalmente como sacerdote. Neste Annus sacerdotalis, exorto-vos a mostrar aos vossos presbíteros o seu exemplo de dedicação à oração, de sensibilidade pastoral pelas necessidades do seu rebanho e de paixão pela pregação do Evangelho. Vós mesmos deveríeis dar um exemplo semelhante. Permanecei próximos dos vossos sacerdotes e reanimai o seu sentido do enorme privilégio e alegria de se pôr no meio do povo de Deus como alter Christus. Segundo as palavras de Newman, "os sacerdotes de Cristo não dispõem de outro sacerdócio, a não ser do Seu... fazem o que Ele faz; quando baptizam, é Ele quem baptiza; quando abençoam, é Ele quem abençoa" (Parochial and Plain Sermons, vi 242). Efectivamente, dado que o presbítero desempenha um papel insubstituível na vida da Igreja, não poupeis esforços para suscitar vocações sacerdotais e reiterar aos fiéis o verdadeiro significado e necessidade do sacerdócio. Encorajai os fiéis leigos a manifestar o seu apreço pelos sacerdotes que os servem e a reconhecer as dificuldades que por vezes eles enfrentam por causa do seu número que diminui e das pressões que aumentam. O apoio e a compreensão dos fiéis são particularmente necessários, quando as paróquias devem ser unificadas, ou os horários das Missas adaptados. Ajudai-os a evitar qualquer tentação de considerar os membros do clero como simples funcionários mas, ao contrário, a alegrar-se pelo dom do ministério sacerdotal, uma dádiva que nunca se pode dar por certa.

O diálogo ecuménico e inter-religioso adquire uma grande importância na Inglaterra e no País de Gales, se se considera o diversificado perfil demográfico da população. Enquanto vos encorajo no importante trabalho que estais a levar a cabo nestes sectores, pedir-vos-ia que fôsseis generosos na prática das indicações contidas na Constituição Apostólica Anglicanorum coetibus, em vista de assistir aqueles grupos de anglicanos que desejam entrar em plena comunhão com a Igreja católica. Estou persuadido de que, se lhes for reservada uma hospitalidade calorosa e sincera, tais grupos hão-de constituir uma bênção para a Igreja inteira.

Com estes pensamentos, confio o vosso ministério apostólico à intercessão de São David, de São Jorge e de todos os santos e mártires da Inglaterra e do País de Gales. Que Nossa Senhora de Walsingham vos oriente e salvaguarde sempre. A todos vós e aos sacerdotes, aos religiosos e aos fiéis leigos do vosso país, concedo do íntimo do coração a minha Bênção apostólica como penhor de paz e de alegria no Senhor Jesus Cristo.






AOS BISPOS DA ESCÓCIA POR OCASIÃO DA VISITA «AD LIMINA APOSTOLORUM» Sexta-feira, 5 de Fevereiro de 2010



Prezados Irmãos Bispos!

Dou calorosas boas-vindas a todos vós, por ocasião da vossa visita ad limina a Roma. Estou grato pelas amáveis palavras que o Cardeal Keith Patrick O'Brien me dirigiu em vosso nome, enquanto vos asseguro as minhas orações constantes por vós e pelos fiéis confiados aos vossos cuidados. A vossa presença aqui dá expressão a uma realidade que se encontra no coração de cada diocese católica a sua relação de communio com a Sé de Pedro e, por conseguinte, com a Igreja universal. Iniciativas pastorais que têm na devida consideração esta dimensão essencial promovem uma renovação autêntica: quando os vínculos de comunhão com a Igreja universal, e em particular com Roma, são acolhidos alegremente e vividos na sua plenitude, a fé do povo pode crescer livremente e produzir uma colheita de boas obras.

É uma feliz coincidência o facto de que o Ano sacerdotal, que actualmente a Igreja inteira está a celebrar, coincida com o 400º aniversário da ordenação sacerdotal do grande mártir escocês, São João Ogilvie. Justamente venerado como servo fiel do Evangelho, ele distinguiu-se verdadeiramente na sua dedicação a um ministério pastoral difícil e perigoso, chegando até a imolar a própria vida. Tomai-o como exemplo para os vossos sacerdotes hoje. É-me grato tomar conhecimento da ênfase que reservais à formação permanente do vosso clero, de maneira especial através da iniciativa "Sacerdotes para a Escócia". O testemunho de presbíteros que estão genuinamente comprometidos na oração e jubilosos no seu ministério produz frutos não só na vida espiritual dos fiéis, mas também nas novas vocações. No entanto, recordai que as vossas iniciativas louváveis em vista de promover vocações devem ser acompanhadas de uma catequese contínua no meio dos fiéis, a propósito do verdadeiro significado do sacerdócio. Salientai o papel indispensável do presbítero na vida da Igreja, principalmente na oferenda da Eucaristia mediante a qual a própria Igreja é vivificada. E encorajai as pessoas às quais foi confiada a tarefa da formação dos seminaristas, a fazerem tudo o que puderem para preparar uma nova geração de sacerdotes comprometidos e zelosos, bem dotados sob os pontos de vista humano, académico e espiritual para a tarefa do ministério no século XXI.

1070 Juntamente com o justo apreço pelo papel do sacerdote há também uma compreensão correcta da vocação específica dos leigos. Por vezes, uma certa tendência a confundir o apostolado laico com o ministério laico chegou a levar a um conceito introspectivo da sua função eclesial. No entanto, em conformidade com a visão do Concílio Vaticano II, onde quer que vivam a sua vocação baptismal na família, em casa ou no trabalho os fiéis leigos participam de forma concreta na missão da Igreja que consiste em santificar o mundo. Uma atenção renovada ao apostolado laico ajudará a esclarecer as funções do clero e dos leigos e, desta maneira, a dar um forte impulso à tarefa de evangelização da sociedade.

Esta tarefa exige a disponibilidade a enfrentar com determinação os desafios levantados pela crescente onda de secularismo no vosso país. A defesa da eutanásia atinge o próprio âmago da compreensão cristã acerca da dignidade da vida humana. Os recentes desenvolvimentos na ética médica e algumas das práticas defendidas no campo da embriologia são causa de grande preocupação. Se o ensinamento da Igreja estiver comprometido num sector como este, mesmo só ligeiramente, torna-se difícil defender a plenitude da doutrina católica de uma maneira integral. Por conseguinte, os Pastores da Igreja devem exortar incessantemente os fiéis à fidelidade completa ao Magistério da Igreja, fomentando e defendendo contemporaneamente o direito da Igreja a viver de modo livre na sociedade, segundo as suas próprias convicções.

A Igreja oferece ao mundo uma visão positiva e inspiradora da vida humana, da beleza do matrimónio e da alegria da genitorialidade. Ela está arraigada no amor infinito, transformador e enobrecedor de Deus por todos nós, que abre os nossos olhos para reconhecermos e amarmos a sua imagem no nosso próximo (cf. Deus caritas est et passim). Tende a certeza de apresentar este ensinamento, de tal maneira que seja reconhecido pela mensagem de esperança que ele é. Com demasiada frequência, a doutrina da Igreja é entendida como uma série de proibições e posições retrógradas, mas na realidade, como sabemos, ela é criativa e vivificadora e voltada para a realização mais completa possível da enorme potencialidade para o bem e para a felicidade, que Deus implantou em cada um de nós.

A Igreja que está no vosso país, como muitas no Norte da Europa, sofreu a tragédia da divisão. É lamentável recordar a grande ruptura com o passado católico da Escócia, ocorrido há quatrocentos e cinquenta anos. Dou graças a Deus pelo progresso que foi alcançado na cura das feridas que representavam a herança daquele período, especialmente o sectarismo que continuou a impor-se até nos tempos mais recentes. Através da vossa participação na Action of Churches Together in Scotland, vedes como a obra de reconstrução da unidade entre os seguidores de Cristo continua com constância e empenhamento. Enquanto resistis a qualquer pressão destinada a diluir a mensagem cristã, estabelecei como vosso objectivo a unidade plena e visível, pois nada que for menos do que isto poderá corresponder à vontade de Cristo.

Podeis sentir-vos orgulhosos da contribuição oferecida pelas escolas católicas da Escócia para a superação do sectarismo e o estabelecimento de boas relações entre as comunidades. As escolas de fé são uma força poderosa para a coesão social, e quando se apresenta a ocasião, fazeis bem em sublinhar esta questão. Enquanto encorajais os professores católicos na sua labuta, reservai uma ênfase especial à qualidade e à profundidade da educação religiosa, para preparar um laicado católico articulado e bem informado, capaz e desejoso de cumprir a sua missão "tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus" (Christifideles laici
CL 15). Uma forte presença católica nos mass media na política local e nacional, no campo judiciário, nas profissões e nas universidades servirá para enriquecer a vida nacional da Escócia, dado que as pessoas dão testemunho da verdade de maneira especial quando esta verdade é posta em dúvida.

Ainda este ano, terei a alegria de estar presente convosco e com os católicos da Escócia na vossa terra natal. Enquanto vos preparais para a Visita Apostólica, encorajai o vosso povo a rezar a fim de que ela seja um tempo de graça para toda a comunidade católica. Aproveitai a oportunidade para aprofundar a sua fé e para renovar o seu compromisso de dar testemunho do Evangelho. Como os monges de Iona, que proclamam a mensagem cristã de lés a lés a Escócia, permiti que eles sejam faróis de fé e de santidade para o povo escocês nos dias de hoje.

Com estes sentimentos, confio as vossas obras apostólicas à intercessão de Nossa Senhora, Santo André, Santa Margarida e todos os Santos da Escócia. A todos vós, ao vosso clero, aos religiosos, religiosas e fiéis leigos, concedo a Bênção apostólica como penhor de paz e de alegria no Senhor Jesus Cristo.







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