Discursos Bento XVI 1076

1076 Mas sucessivamente, a história concreta é uma história de infidelidade: em vez de uva preciosa, são produzidas só pequenas "coisas não comestíveis", não chega a resposta deste grande amor, não nasce esta unidade, esta união incondicional entre o homem e Deus, na comunhão do amor. O homem retira-se em si próprio, quer dispor de si mesmo unicamente para si, quer ter Deus para si mesmo, quer ter o mundo para si próprio. E assim, a vinha é devastada, vêm o javali do bosque e todos os inimigos, e a vinha torna-se um deserto.

No entanto, Deus não se rende: Deus encontra um novo modo para chegar a um amor livre, irrevogável, ao fruto de tal amor, à verdadeira uva: Deus faz-se homem, e desta maneira torna-se Ele mesmo raiz da videira, torna-se Ele próprio a videira, e assim a videira faz-se indestrutível. Este povo de Deus não pode ser destruído, porque o próprio Deus entrou nele, implantando-se nesta terra. O novo povo de Deus está realmente fundamentado no próprio Deus, que se faz homem e deste modo nos chama a ser n'Ele a nova videira, e chama-nos a estar, a permanecer n'Ele.

Além disso, tenhamos presente o facto de que, no capítulo 6 do Evangelho de João, encontramos o discurso a respeito do pão, que se torna o grande discurso acerca do mistério eucarístico. Neste capítulo 15, encontramos o discurso sobre o vinho: o Senhor não fala de maneira explícita da Eucaristia mas, naturalmente, por detrás do mistério do vinho encontra-se a realidade de que Ele se fez fruto e vinho para nós, que o seu sangue é o fruto do amor que nasce da terra para sempre e, na Eucaristia, o seu sangue torna-se o nosso sangue, e nós somos renovados, recebemos uma nova identidade, porque o sangue de Cristo se torna o nosso sangue. Assim, tornamo-nos parentes de Deus no Filho e, na Eucaristia, torna-se realidade esta grande efectividade da videira, em que nós somos ramos unidos ao Filho e desta forma unidos com o amor eterno.

"Permanecei": permanecer neste grande mistério, permanecer neste novo dom do Senhor, que fez de nós um povo em si mesmo, no seu Corpo e com o seu Sangue. Parece-me que temos de meditar muito a respeito deste mistério, ou seja, sobre o facto de que o próprio Deus se torna Corpo, um connosco; Sangue, um connosco; que nós podemos permanecer – permanecendo neste mistério – na comunhão com o próprio Deus, nesta grande história de amor, que é a história da verdadeira felicidade. Meditando acerca desta dádiva – Deus fez-se um com todos nós e, ao mesmo tempo, faz de todos nós um só, uma videira – também temos que começar a rezar, a fim de que este mistério penetre cada vez mais na nossa mente e no nosso coração, e assim tornamo-nos cada vez mais capazes de ver e de viver a grandeza do mistério, e deste modo de começar a pôr em prática este imperativo: "Permanecei".

Se continuarmos a ler atentamente este trecho do Evangelho de João, encontraremos também um segundo imperativo: "Permanecei" e "Observai os meus mandamentos". "Observai" é apenas o segundo nível; o primeiro é o do "permanecer", o nível ontológico, ou seja, o facto de que estamos unidos a Ele, que se nos doou antecipadamente a si mesmo, entregando-nos o seu amor, o fruto. Não somos nós que temos de produzir o grande fruto; o cristianismo não é um moralismo, não somos nós que temos de realizar aquilo que Deus espera do mundo, mas em primeiro lugar temos que entrar neste mistério ontológico: Deus entrega-se a si mesmo. O seu ser, o seu amar precede o nosso agir e, no contexto do seu Corpo, no âmbito do estar com Ele, identificados com Ele, enobrecidos com o seu Sangue, também nós podemos agir com Cristo.

A ética é consequência do ser: primeiro, o Senhor confere-nos um novo ser, esta é a grande dádiva; o ser precede o agir e a partir dele segue-se, depois, o agir, como uma realidade orgânica, porque o que somos, podemos sê-lo também na nossa actividade. E deste modo damos graças ao Senhor porque nos tirou do puro moralismo; não podemos obedecer a uma lei que está diante de nós, mas simplesmente temos que agir em conformidade com a nossa nova identidade. Por conseguinte, não é mais uma obediência, algo exterior, mas sim uma realização do dom do novo ser.

Digo-o mais uma vez: demos graças ao Senhor, porque Ele nos precede, nos dá aquilo que nós mesmos temos que doar, e sucessivamente nós podemos ser, na verdade e na força do nosso novo ser, protagonistas da sua realidade. Permanecer e observar: o observar é o sinal do permanecer, e o permanecer constitui o dom que Ele nos oferece, mas que deve ser renovado todos os dias na nossa vida.

Depois, segue-se este novo mandamento: "Amai-vos uns aos outros, como Eu vos amei". Não existe amor maior do que este: "Dar a vida pelos próprios amigos". Que significa? Também aqui, não se trata de um moralismo. Poder-se-ia dizer: "Não é um novo mandamento; o mandamento de amar o próximo como a nós mesmos já existe no Antigo Testamento". Alguns afirmam: "Este amor deve ser ainda mais radicalizado; este amar o outro deve imitar Cristo, que se entregou por nós; deve ser um amar heróico, até ao dom de si mesmo". Porém, neste caso o cristianismo seria um moralismo heróico. É verdade que temos de chegar até a esta radicalidade do amor, que Cristo nos manifestou e concedeu, mas também aqui a verdadeira novidade não é aquilo que nós levamos a cabo, a verdadeira novidade é o que Ele realizou: o Senhor entregou-se a si mesmo, o Senhor conferiu-nos a verdadeira novidade de sermos seus membros no seu corpo, de sermos ramos da videira, que é Ele. Por conseguinte, a novidade é a dádiva, o dom grandioso, e é do dom, da novidade do dom que provém inclusive, como eu disse, o novo agir.

S. Tomás de Aquino di-lo de maneira muito específica, quando escreve: "A nova lei é a graça do Espírito Santo" (Summa theologiae, i-iiae, q. 106, a. 1). A nova lei não é outro mandamento, mais difícil do que os demais: a nova lei é um dom, a nova lei é a presença do Espírito Santo que nos foi concedido no Sacramento do Baptismo, na Crisma, e que nos é oferecido cada dia na Santíssima Eucaristia. Aqui, os Padres distinguiram entre "sacramentum" e "exemplum". "Sacramentum" é o dom do novo ser, e este dom torna-se também exemplo para o nosso agir, mas o "sacramentum" vem antes, e nós vivemos a partir do sacramento. Aqui vemos a centralidade do sacramento, que é centralidade da dádiva.

Continuemos a nossa reflexão. O Senhor diz: "Já não vos chamo servos, pois o servo não sabe o que faz o seu senhor. Chamei-vos amigos, porque tudo quanto ouvi do Pai vo-lo dei a conhecer a vós". Já não sois servos, que obedecem ao mandamento, mas amigos que conhecem, que estão unidos na mesma vontade, no mesmo amor. Portanto, a novidade é que Deus se fez conhecer, que Deus se manifestou, que Deus não é mais o Deus desconhecido, procurado mas não encontrado, ou apenas adivinhado à distância. Deus fez-se ver: vemos Deus no rosto de Cristo, Deus fez-se "conhecido", e deste modo tornou-nos amigos. Pensemos na história da humanidade, em todas as religiões arcaicas, as pessoas sabem que existe um Deus. Este é um conhecimento imerso no coração do homem, que Deus é um só, e os deuses não são "o" Deus. Mas este Deus permanece muito distante, parece que não se deixa conhecer, não se deixa amar, não é amigo, mas está distante. Por este motivo, as religiões ocupam-se pouco deste Deus, a vida concreta ocupa-se dos espíritos, das realidades concretas que encontramos todos os dias, e as quais temos que avaliar diariamente. Deus permanece distante.

Em seguida, vemos o grande movimento da filosofia: pensemos em Platão, Aristóteles, que começam a intuir como este Deus é o agathón, a própria bondade, é o eros que move o mundo, e todavia este permanece um pensamento humano, constitui uma ideia de Deus que se aproxima da verdade, mas é uma ideia nossa e Deus permanece o Deus escondido.

1077 Há pouco tempo, escreveu-me um professor de Regensburg, um docente de física, que tinha lido com grande atraso o meu discurso na Universidade de Regensburg, para me dizer que não podia estar de acordo com a minha lógica, ou só podia parcialmente. Ele disse: "Sem dúvida, convence-me a ideia de que a estrutura racional do mundo exige uma razão criadora, a qual realizou esta racionalidade que não se explica por si mesma". Depois, continuava: "Mas se pode existir um demiurgo assim se exprime um demiurgo parece-me garantido a partir daquilo que o senhor diz, mas não me parece que exista um Deus amor, bom, justo e misericordioso. Posso ver que existe uma razão, que precede a racionalidade do cosmos, mas não o restante". E assim Deus permanece-lhe escondido. Trata-se de uma razão que precede as nossas razões, a nossa racionalidade, a racionalidade do ser, mas não existe um amor eterno, não há a grande misericórdia que nos permite viver.

E eis que, em Cristo, Deus se manifestou na sua verdade total, mostrou que é razão e amor, que a razão eterna é amor e assim cria. Infelizmente, também hoje muitos vivem distantes de Cristo, não conhecem o seu rosto e deste modo a eterna tentação do dualismo, que se esconde também na missiva deste professor, renova-se sempre, ou seja, que talvez não haja unicamente um princípio bom, mas também um princípio perverso, um princípio do mal; que o mundo está dividido, e são duas realidades igualmente fortes: e que o Deus bom é apenas uma parte da realidade. Também na teologia, compreendida a católica, difunde-se actualmente esta tese: Deus não seria omnipotente. Deste modo procura-se uma apologia de Deus, que assim não seria responsável pelo mal que encontramos amplamente no mundo. Mas que pobre apologia! Um Deus não omnipotente! O mal não está nas suas mãos! E como é que poderíamos confiar-nos a este Deus? Como poderíamos ter a certeza do seu amor, se este amor termina onde começa o poder do mal?

Mas Deus já não é desconhecido: no rosto de Cristo Crucificado vemos Deus, e vemos a verdadeira omnipotência, não o mito da omnipotência. Para nós homens, a potência, o poder é sempre idêntico à capacidade de destruir, de cometer o mal. Todavia, o verdadeiro conceito de omnipotência que se manifesta em Cristo é precisamente o contrário: nele, a verdadeira omnipotência consiste em amar até ao ponto em que Deus pode sofrer: aqui aparece a sua verdadeira omnipotência, que pode chegar ao ponto de um amor que sofre por nós. E desde modo vemos que Ele é o Deus verdadeiro, e o Deus verdadeiro que é amor, poder: o poder do amor. E nós podemos confiar-nos ao seu amor todo-poderoso e viver nele, com este amor omnipotente.

Penso que temos de meditar novamente sobre esta realidade, dar graças a Deus porque Ele se manifestou, porque lhe conhecemos o rosto, face à face; não é mais como Moisés, que só podia ver o Senhor de costas. Também esta é uma bonita ideia, da qual São Gregório de Nissa diz: "Ver só as costas quer dizer que temos de caminhar sempre atrás de Cristo". Mas ao mesmo tempo, através de Cristo, Deus mostrou a sua face, o seu rosto. O véu do templo rasgou-se, abriu-se, o mistério de Deus é visível. O primeiro mandamento que exclui imagens de Deus, porque elas só poderiam diminuir a realidade, mudou, renovou-se, adquiriu uma outra forma. Agora, no homem Cristo, podemos ver o rosto de Deus; podemos ver o ícone de Cristo e assim ver quem é Deus.


Penso que quem compreendeu isto, quem se deixou sensibilizar por este mistério, que Deus se revelou, rasgou o véu do templo e mostrou o seu rosto, encontra uma fonte de alegria permanente. Só podemos dizer: "Obrigado! Sim, agora sabemos quem és Tu, quem é Deus e como Lhe devemos responder". E penso que esta alegria de conhecer Deus que se mostrou, que se manifestou até ao íntimo do seu ser, implica inclusive a alegria do comunicar: quem compreendeu isto, vive sensibilizado por esta realidade, deve fazer como fizeram os primeiros discípulos, que vão ter com os seus amigos e irmãos, dizendo: "Encontrámos aquele de quem falam os Profetas. Agora, Ele está presente". A missionariedade não é algo exteriormente acrescentado à fé, mas constitui o dinamismo da própria fé. Quem viu, quem encontrou Jesus, deve ir ter com os próprios amigos e dizer-lhes: "Nós encontrámo-lo, é Jesus, o Crucificado por nós".

Em seguida, continuando, o texto acrescenta: "Constituí-vos para irdes e dardes fruto, e para que o vosso fruto permaneça". Deste modo, voltamos ao início, à imagem, à parábola da videira: ela é criada para dar fruto. E qual é o fruto? Como já dissemos, o fruto é o amor. No Antigo Testamento, com a Torah como primeira etapa da auto-revelação de Deus, o fruto era compreendido como justiça, ou seja, viver em conformidade com a Palavra de Deus, viver segundo a vontade de Deus, e assim viver bem.

Isto permanece, mas ao mesmo tempo é ultrapassado: a verdadeira justiça não consiste numa obediência a algumas normas, mas é amor, amor criativo, que encontra sozinho a riqueza, a abundância do bem. Abundância é uma das palavras-chave do Novo Testamento, pois é o próprio Deus quem dá sempre em abundância. Para criar o homem, cria esta abundância de um cosmos imenso; para redimir o homem, Ele entrega-se a si mesmo, na Eucaristia dá-se a si próprio. E quem está unido a Cristo, quem é um ramo da videira, vive desta lei, e não pergunta: "Ainda posso fazer isto, ou não?", "Devo fazer isto, ou não?", mas vive no entusiasmo do amor que não questiona: "Isto ainda é necessário, ou proibido?", mas simplesmente na criatividade do amor, quer viver com Cristo e por Cristo, e entregar-se inteiramente a si mesmo por Ele, e deste modo entrar na alegria do ser fecundo. Tenhamos também em mente o que o Senhor diz: "Constituí-vos para irdes": trata-se do dinamismo que vive no amor de Cristo; ir, ou seja, não permanecer somente para mim, ver a minha perfeição, garantir para mim a felicidade eterna, mas esquecer-se de mim mesmo, ir como fez Cristo, ir como fez Deus, a partir da sua imensa majestade até à nossa pobreza, para encontrar o fruto, para nos ajudar, para nos conceder a possibilidade de produzir o verdadeiro fruto do amor. Quanto mais repletos estivermos desta alegria de ter descoberto o rosto de Deus, tanto mais o entusiasmo do amor será autêntico em nós e produzirá fruto.

E finalmente chegamos à última palavra deste trecho: "Eis quanto vos digo: "Tudo aquilo que pedirdes ao meu Pai em meu Nome, Ele vo-lo concederá"". Uma breve catequese sobre a oração, que nos supreende sempre de novo. Duas vezes, neste capítulo 15, o Senhor diz: "Aquilo que pedirdes, vo-lo concederei", e mais uma vez no capítulo 16. Quanto a nós, gostaríamos de dizer: "Mas não, Senhor, não é verdade". Quantas orações boas e profundas de mães que rezam pelo filho que está a morrer, e não são atendidas, muitas preces para que aconteça algo de bom e o Senhor não responde. O que significa esta promessa? No capítulo 16, o Senhor oferece-nos a chave para compreender: Ele diz-nos quanto nos oferece, o que é tudo isto, a chará, a alegria: se alguém encontrou a alegria, encontrou tudo, e vê tudo à luz do amor divino. Como São Francisco, que compôs a grandiosa poesia a propósito da criação numa situação desolada, e no entanto precisamente ali, próximo do Senhor que sofre, voltou a descobrir a beleza do ser, a bondade de Deus, e então compôs esta grande poesia.

É útil recordar, ao mesmo tempo, também alguns versículos do Evangelho de Lucas, onde o Senhor, numa parábola, fala da oração dizendo: "Se já vós, que sois maus, sabeis oferecer coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o vosso Pai que está nos Céus vos concederá o Espírito Santo, a vós que sois seus filhos". O Espírito Santo no Evangelho de Lucas é alegria, e no Evangelho de João é a própria realidade: a alegria é o Espírito Santo, e o Espírito Santo é a alegria ou, por outras palavras, a Deus não peçamos algo pequeno ou grande, mas de Deus invoquemos o dom divino, o próprio Deus; esta é a grandiosa dádiva que Deus nos concede: o próprio Deus. Neste sentido, temos que aprender a rezar, a orar pela grande realidade, pela realidade divina, para que Ele se conceda a si mesmo a nós, nos ofereça o seu Espírito, e assim possamos corresponder às exigências da vida e ajudar os outros nos seus sofrimentos. Naturalmente, é o Pai-Nosso que no-lo ensina. Podemos rezar por muitas coisas; em todas as nossas necessidades podemos orar: "Ajuda-me!". Isto é muito humano e, como vimos, Deus é humano; por conseguinte, é justo rezar a Deus também pelas pequenas coisas da nossa vida de todos os dias.

Mas ao mesmo tempo, rezar é um caminho, diria uma escada: temos que aprender cada vez mais pelo que podemos rezar e pelo que não o podemos fazer, porque tais coisas constituem expressões do meu egoísmo. Não posso rezar por coisas que são nocivas para os outros, não posso orar por coisas que contribuem para o meu egoísmo, a minha soberba. Assim rezar, diante dos olhos de Deus, torna-se um processo de purificação dos nossos pensamentos, dos nossos desejos. Como diz o Senhor na parábola da videira: temos que ser podados, purificados todos os dias; viver com Cristo, em Cristo, permanecer em Cristo, é um processo de purificação, e só neste processo de lenta purificação, de libertação de nós mesmos e da vontade de termos apenas a nós próprios, está o verdadeiro caminho da vida, abre-se a vereda da alegria.

Como já pude mencionar, todas estas palavras do Senhor têm uma base sacramental. A base fundamental para a parábola da videira é o Baptismo: somos implantados em Cristo; e a Eucaristia: somos um pão, um corpo, um sangue, uma vida com Cristo. E assim, também este processo de purificação tem uma base sacramental: o sacramento da Penitência, da Reconciliação, em que aceitamos esta pedagogia divina que, dia após dia, ao longo de uma vida, nos purifica e nos torna cada vez mais membros do seu corpo. Deste modo podemos aprender que Deus responde às nossas preces, responde frequentemente com a sua bondade também às orações pequenas, mas muitas vezes também as corrige, transforma e orienta, para podermos ser final e realmente ramos do seu Filho, da videira autêntica, membros do seu Corpo.

1078 Demos graças a Deus pela grandeza do seu amor, oremos a fim de que nos ajude a crescer no seu amor, a permanecer realmente no seu amor.




AOS PARTICIPANTES NA ASSEMBLEIA GERAL DA PONTIFÍCIA ACADEMIA PARA A VIDA Sábado, 13 de Fevereiro de 2010

Queridos irmãos
no Episcopado e no Sacerdócio
Ilustres Membros
da Pontifícia Academia pro Vita
Gentis Senhoras e Senhores!

Sinto-me feliz por vos receber e saudar cordialmente por ocasião da Assembleia geral da Pontifícia Academia para a Vida, chamada a reflectir sobre temas relativos à relação entre bioética e lei moral natural, que se apresentam cada vez mais relevantes no actual contexto devido aos constantes progressos neste âmbito científico. Dirijo uma particular saudação a D. Rino Fisichella, Presidente desta Academia, agradecendo-lhe as gentis palavras que amavelmente me dirigiu em nome dos presentes. De igual modo desejo fazer chegar o meu agradecimento pessoal a cada um de vós pelo precioso e insubstituível empenho que desempenhais em favor da vida, nos vários contextos de proveniência.

As problemáticas que estão relacionadas com o tema da bioética permitem verificar quanto as questões que com ela estão implicadas ponham em primeiro plano a questão antropológica. Como afirmo na minha última Carta encíclica Caritas in veritate: "um campo primário e crucial da luta cultural entre o absolutismo da técnica e a responsabilidade moral do homem é o da bioética, onde se joga radicalmente a própria possibilidade de um desenvolvimento humano integral. Trata-se de um âmbito delicadíssimo e decisivo, onde irrompe, com dramática intensidade, a questão fundamental de saber se o homem se produziu por si mesmo ou depende de Deus. As descobertas científicas neste campo e as possibilidades de intervenção técnica parecem tão avançadas que impõem a escolha entre estas duas concepções: a da razão aberta à transcendência ou a da razão fechada na imanência" (n. 74). Face a semelhantes questões, que concernem de modo tão decisivo a vida humana na sua perene tensão entre imanência e transcendência, e que têm grande relevância para a cultura das futuras gerações, é necessário elaborar um projecto pedagógico integral, que permita enfrentar tais temáticas numa visão positiva, equilibrada e construtiva, sobretudo na relação entre a fé e a razão.

As questões de bioética realçam com frequência a dignidade da pessoa, um princípio fundamental que a fé em Jesus Cristo Crucificado e Ressuscitado sempre defendeu, sobretudo quando não é respeitado em relação aos sujeitos mais simples e indefesos: Deus ama cada ser humano de maneira única e profunda. Também a bioética, como qualquer disciplina, precisa de uma chamada capaz de garantir uma leitura coerente das questões éticas que, inevitavelmente, emergem diante de possíveis conflitos interpretativos. Neste espaço abre-se a chamada normativa à lei moral natural. De facto, o reconhecimento da dignidade humana como direito inalienável encontra o seu fundamento primário naquela lei não escrita pela mão do homem, mas inscrita por Deus Criador no coração do homem, que qualquer ordenamento jurídico está chamado a reconhecer como inviolável e cada pessoa tem o dever de respeitar (cf. Catecismo da Igreja Católica CEC 1954-1960). Sem o princípio fundador da dignidade humana seria difícil encontrar uma fonte para os direitos da pessoa e impossível chegar a um juízo ético em relação às conquistas da ciência que intervêm directamente na vida humana. É necessário, por conseguinte, repetir com firmeza que não existe uma compreensão da dignidade humana ligada apenas a elementos externos como o progresso da ciência, a gradualidade na formação da vida humana ou o fácil pietismo face a situações-limite. Quando se invoca o respeito pela dignidade da pessoa é fundamental que ele seja pleno, total e sem vínculos, excepto o de reconhecer que nos encontramos sempre perante uma vida humana. Sem dúvida a vida humana conhece um próprio desenvolvimento e o horizonte de investigação da ciência e da bioética é aberto, mas é necessário reafirmar que quando se trata de âmbitos relativos ao ser humano, os cientistas nunca podem pensar que têm nas mãos só a matéria inanimada e manipulável. De facto, desde o primeiro instante, a vida do homem é caracterizada pelo ser vida humana e por isto sempre portadora, em toda a parte e apesar de tudo, de dignidade própria (cf. Cong. para a Doutrina da Fé, Instrução Dignitas personae sobre algumas questões de bioética, n. 5). Contrariamente, estaríamos sempre na presença do perigo de um uso instrumental da ciência, com a inevitável consequência de cair facilmente no arbítrio, na discriminação e no interesse económico do mais forte.

Conjugar bioética e lei moral natural permite verificar do melhor modo a chamada necessária e inalienável à dignidade que a vida humana possui intrinsecamente desde o seu primeiro instante até ao seu fim natural. Ao contrário, no contexto actual, mesmo emergindo com insistência cada vez maior a justa referência aos direitos que garantem a dignidade da pessoa, observa-se que nem sempre estes direitos são reconhecidos à vida humana no seu natural desenvolvimento e nos estádios de maior debilidade. Uma contradição semelhante torna evidente o compromisso que deve ser assumido nos diversos âmbitos da sociedade e da cultura para que a vida humana seja reconhecida sempre como sujeito inalienável de direito e nunca objecto submetido ao arbítrio do mais forte. A história demonstrou quanto possa ser perigoso e deletério um Estado que proceda a legislar sobre questões que dizem respeito à pessoa e à sociedade, pretendendo ser ele mesmo fonte e princípio da ética. Sem princípios universais que consintam verificar um denominador comum para a humanidade inteira, o risco de uma deriva relativista a nível legislativo não deve ser minimamente subestimado (cf. Catecismo da Igreja Católica CEC 1959). A lei moral natural, fortalecida pelo seu carácter universal, permite esconjurar este perigo e sobretudo oferece ao legislador a garantia para um autêntico respeito quer da pessoa, quer de toda a ordem criatural. Ele coloca-se como fonte catalizadora de consenso entre pessoas de culturas e religiões diversas e permite superar as diferenças, porque afirma a existência de uma ordem impressa na natureza do Criador e reconhecida como instância de verdadeiro juízo ético racional para perseguir o bem e evitar o mal. A lei moral natural "pertence ao grande património da sabedoria humana, que a Revelação, com a sua luz, contribuiu para purificar e desenvolver ulteriormente" (cf. João Paulo II, Discurso à Plenária da Congregação para a Doutrina da Fé, 6 de Fevereiro de 2004).

1079 Ilustres Membros da Pontifícia Academia para a Vida, no actual contexto o vosso compromisso revela-se cada vez mais delicado e difícil, mas a crescente sensibilidade em relação à vida humana encoraja a prosseguir com impulso e coragem sempre maiores este importante serviço à vida e à educação para os valores evangélicos das futuras gerações. Desejo que todos vós prossigais o estudo e a pesquisa, para que a obra de promoção e de defesa da vida seja cada vez mais eficaz e fecunda. Acompanho-vos com a Bênção Apostólica, que de bom grado faço extensiva a quantos partilham convosco este compromisso quotidiano.



VISITA AO ALBERGUE DA CÁRITAS DA DIOCESE DE ROMA

SAUDAÇÃO

Estação Termini de Roma

Domingo, 14 de Fevereiro de 2010




Queridos amigos!

Foi com alegria que aceitei o convite para visitar este albergue intitulado "Don Luigi Di Liegro", primeiro Director da Caritas diocesana de Roma, que foi fundado há trinta anos. Agradeço de coração ao Cardeal Vigário Agostino Vallini e ao Administrador Delegado das Ferrovias do Estado, Engenheiro Mauro Moretti, as palavras que tiveram a amabilidade de me dirigir. É com particular afecto que manifesto a minha gratidão a todos vós, que frequentais este albergue, e através da voz da Senhora Giovanna Cataldo quisestes dirigir-me uma calorosa saudação, acompanhada pelo precioso dom do Crucifixo de Onna, sinal luminoso de esperança. Saúdo D. Giuseppe Merisi, Presidente da Caritas italiana, o Bispo Auxiliar, D. Guerino Di Tora, e o Director da Caritas de Roma, Mons. Enrico Feroci. É-me grato saudar as Autoridades presentes, de modo particular o Ministro das Infra-Estruturas e dos Transportes, Deputado Altero Matteoli, o Presidente da Câmara Municipal de Roma, Deputado Gianni Alemanno, a quem agradeço a ajuda concreta e constante oferecida pelo Município de Roma às actividades deste albergue. Saúdo os voluntários e todos os presentes. Obrigado pela vossa hospitalidade!

Já transcorreram 23 anos desde o dia em que esta estrutura, realizada com a colaboração das Ferrovias do Estado, que generosamente puseram à disposição os locais, e apoio económico do Município de Roma, começou a receber os primeiros hóspedes. Ao longo dos anos, à oferta de um abrigo para quem não tinha onde dormir, acrescentaram-se outros serviços, como o poliambulatório e o refeitório social, e aos primeiros doadores uniram-se outros, como a ENEL, a Fundação Roma, o Engenheiro Agostini Maggini, a Fundação Telecom e o Ministério dos Bens Culturais-Arcis Spa, um testemunho da força agregadora do amor. Deste modo, o albergue tornou-se um lugar onde, graças ao serviço generoso de muitos agentes e voluntários, se realizam todos os dias as palavras de Jesus: "Tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber; era forasteiro e recebestes-me, estava nu e destes-me de vestir, adoeci e vistastes-me" (Mt 25,35-36).

Prezados irmãos e amigos que aqui encontrais hospitalidade, sabei que a Igreja vos ama profundamente e não vos abandona, porque reconhece no rosto de cada um de vós o de Jesus. Ele quis identificar-se de maneira totalmente particular com aqueles que se encontravam na pobreza e na indigência. O testemunho da caridade, que neste lugar encontra uma realização especial, pertence à missão da Igreja, juntamente com o anúncio da verdade do Evangelho. O homem não tem apenas necessidade de ser alimentado materialmente, ou ajudado a superar os momentos de dificuldade, mas também precisa de saber quem ele é e de conhecer a verdade a respeito de si mesmo e da sua dignidade. Como recordei na Encíclica Caritas in veritate, "sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente" (n. 3).

Por conseguinte, mediante o seu serviço em benefício dos pobres, a Igreja está comprometida a anunciar a todos a verdade sobre o homem, que é amado por Deus, criado à sua imagem, redimido por Cristo e chamado à comunhão eterna com Ele. Assim, muitas pessoas conseguiram redescobrir, e até agora redescobrem, a própria dignidade, perdida às vezes por causa de acontecimentos trágicos, e readquirem nova confiança em si mesmos e esperança no futuro. Através dos gestos, dos olhares e das palavras daqueles que aqui prestam o seu serviço, numerosos homens e mulheres sentem directamente que as suas vidas são tuteladas pelo Amor, que é Deus, e graças a ele têm um sentido e uma importância singulares (cf. Carta Encíclica Spe salvi ). Esta certeza profunda gera no coração do homem uma esperança vigorosa, sólida e luminosa, uma esperança que infunde a coragem de continuar a percorrer o caminho da vida, não obstante os fracassos, as dificuldades e as provações que a acompanham. Prezados irmãos e irmãs que trabalhais neste lugar, tende sempre diante dos vossos olhos e no vosso coração o exemplo de Jesus, que por amor se fez nosso servo e nos amou "até ao fim" (cf. Jn 13,1), até à Cruz. Portanto, sede testemunhas alegres da caridade infinita de Deus e, imitando o exemplo do diácono São Lourenço considerai estes vossos amigos um dos tesouros mais preciosos da vossa vida.

A minha visita tem lugar no Ano europeu da luta contra a pobreza e a exclusão social, proclamado pelo Parlamento Europeu e pela Comissão Europeia. Ao vir até aqui como Bispo de Roma, a Igreja que desde os primórdios do Cristianismo preside à caridade (cf. Santo Inácio de Antioquia, Carta aos Rm 1,1), desejo encorajar não apenas os católicos, mas todos os homens de boa vontade, de modo particular quantos têm responsabilidades na administração pública e nas diversas instituições, a comprometer-se na construção de um porvir digno do homem, redescobrindo na caridade a força propulsora para um desenvolvimento autêntico e para a realização de uma sociedade mais justa e fraterna (cf. Carta Encíclica Caritas in veritate ). Efectivamente, a caridade "é o princípio não só das microrrelações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também das macrorrelações como relacionamentos sociais, económicos, políticos" (Ibid., n. 2). Para promover uma convivência pacífica que ajude os homens a reconhecer-se como membros da única família humana, é importante que as dimensões do dom e da gratuidade sejam redescobertas como elementos constitutivos da existência quotidiana e dos relacionamentos interpessoais. Tudo isto se torna, dia após dia, cada vez mais urgente num mundo em que, ao contrário, parece prevalecer a lógica do lucro e da busca do próprio interesse.

Para a Igreja de Roma, o albergue da Caritas constitui uma ocasião importante para educar nos valores do Evangelho. A experiência de voluntariado que muitos vivem aqui é, especialmente para os jovens, uma autêntica escola onde se aprende a ser construtor da civilização do amor, capaz de acolher o outro na sua unicidade e diferença. De tal modo, este albergue manifesta concretamente que a comunidade cristã, através dos seus organismos e sem faltar à Verdade que anuncia, colabora de maneira útil com as instituições civis para a promoção do bem comum. Estou convicto de que a fecunda sinergia aqui realizada também se estende a outras realidades da nossa Cidade, de forma particular nas áreas onde se sentem em maior medida as consequências da crise económica e onde são maiores os riscos de exclusão social. No seu serviço às pessoas em dificuldade, a Igreja é impelida unicamente pelo desejo de expressar a sua fé naquele Deus que é o defensor dos pobres e que ama cada homem por aquilo que é, e não por aquilo que possui ou realiza. A Igreja vive na história, consciente de que as angústias e as necessidades dos homens, principalmente dos pobres e de todos aqueles que sofrem, pertencem também aos discípulos de Cristo (cf. Concílio Ecuménico Vaticano II, Gaudium et spes GS 1) e por isso, no respeito pelas competências próprias do Estado, compromete-se a fim de que a cada ser humano seja garantido aquilo que lhe é devido.

Estimados irmãos e irmãs, para Roma o albergue da Caritas diocesana é um lugar onde o amor não constitui unicamente uma palavra ou sentimento, mas uma realidade concreta, que permite fazer entrar a luz de Deus na vida dos homens e de toda a comunidade civil. Esta luz ajuda-nos a olhar com confiança para o amanhã, persuadidos de que inclusive no futuro a nossa Cidade permanecerá fiel ao valor do acolhimento, tão vigorosamente arraigado na sua história e no coração dos seus cidadãos. A Virgem Maria, Salus populi romani, vos acompanhe sempre com a sua intercessão maternal e ajude cada um de vós a fazer deste lugar um lar onde floresçam as mesmas virtudes presentes na Casa Santa de Nazaré. Com estes sentimentos, concedo-vos de coração a Bênção Apostólica, fazendo-a extensiva a quantos vos são queridos e a todos aqueles que neste lugar vivem e se dedicam com generosidade.



ENCONTRO COM OS PÁROCOS DA DIOCESE DE ROMA

"LECTIO DIVINA"

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Discursos Bento XVI 1076