Discursos Bento XVI 17930

ENCONTRO COM OS LÍDERES DE OUTRAS RELIGIÕES Waldegrave Drawing Room Ido St Mary’s University College Twickenham

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Sexta-feira, 17 de Setembro de 2010



Ilustres hóspedes
Estimados amigos

Sinto-me feliz por ter hoje a oportunidade de me encontrar convosco, que representais as várias comunidades religiosas na Grã-Bretanha. Saúdo tanto os ministros religiosos aqui presentes, como aqueles de entre vós que desempenham actividades nos campos da política, do comércio e da indústria. Estou grato ao Doutor Azzam e ao Rabino-Chefe, Lord Sacks, pelos bons votos que me dirigiram em vosso nome. Enquanto vos saúdo, permiti-me formular os meus votos também à comunidade judaica presente na Grã-Bretanha e no mundo inteiro, para uma feliz e santa celebração do Yom Kippur.

Desejo encetar as minhas palavras, manifestando o apreço da parte da Igreja católica pelo importante testemunho que todos vós ofereceis, como homens e mulheres do espírito, numa época em que as convicções religiosas nem sempre são compreendidas ou estimadas. A presença de fiéis comprometidos em diversos sectores da vida social e económica fala eloquentemente sobre o facto de que a dimensão espiritual da nossa vida é fundamental para a nossa identidade de seres humanos, por outras palavras, que nem só de pão vive o homem (cf. Dt
Dt 8,3). Como seguidores de diferentes tradições religiosas, que trabalham em conjunto pelo bem da comunidade em sentido lato, nós damos uma grande importância a esta dimensão «lado a lado» da nossa colaboração, que completa o aspecto «face a face» do nosso diálogo constante.

No plano espiritual todos nós, de diferentes maneiras, estamos pessoalmente comprometidos numa viagem que oferece uma resposta importante à interrogação mais importante de todas, que diz respeito ao significado derradeiro da existência humana. A busca do sagrado é a procura da única realidade necessária, a única que satisfaz as expectativas do coração do homem. No século v, Santo Agostinho descrevia aquela busca com os seguintes termos: «Senhor, criastes-nos para Vós, e o nosso coração está inquieto enquanto não descansar em Vós» (Confissões, I, 1). Ao empreender esta aventura, damo-nos cada vez mais conta de que a iniciativa não deriva de nós mesmos, mas sim do Senhor: não somos tanto nós que O procuramos, como é principalmente Ele que nos procura e foi sem dúvida Ele quem incutiu aquela saudade d’Ele mesmo no profundo dos nossos corações.

A vossa presença e o vosso testemunho no mundo indica a importância fundamental, para a vida humana, desta busca espiritual em que estamos comprometidos. No interior dos seus âmbitos de competência, as ciências humanas e naturais oferecem-nos uma compreensão inestimável de aspectos da nossa existência, enquanto aprofundam a nossa compreensão acerca do modo como age o universo físico, que pode ser utilizado para proporcionar um benefício enorme à família humana. E todavia, estas disciplinas não oferecem uma resposta, e não a podem oferecer, à interrogação fundamental, porque agem num nível totalmente diferente. Não podem satisfazer os desejos mais profundos do coração do homem, nem podem explicar-nos de maneira integral a nossa origem e o nosso destino, por que motivo e com que finalidade existimos, nem podem oferecer-nos uma resposta completa à seguinte pergunta: «Por que motivo existe algo, em vez de nada?».

A busca do sagrado não desvaloriza outros campos da investigação humana. Pelo contrário, insere-os num contexto que amplia a sua importância como caminhos através dos quais pôr em prática responsavelmente o facto de sermos administradores da criação. Na Bíblia lemos que depois de ter completado a obra da criação, Deus abençoou os nossos antepassados, dizendo-lhes: «Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e subjugai-a» (Gn 1,28). Ele confiou-nos a tarefa de perscrutar e utilizar os mistérios da natureza, com a finalidade de servir um bem superior. Qual é este bem superior? Na fé cristã, ele é manifestado como amor a Deus e amor ao nosso próximo. Por conseguinte, comprometamo-nos de todo o coração e com entusiasmo em benefício do mundo, mas sempre com um olhar voltado para o serviço àquele bem superior, caso contrário desvirtuaremos a beleza da criação, explorando-a para finalidades egoístas.

Por este motivo, o credo religioso genuíno indica-nos, para além da utilidade presente, a transcendência. Recorda-nos a possibilidade e o imperativo da conversão moral, do dever de viver de modo pacífico com o nosso próximo, da importância de levar uma vida de integridade. Propriamente compreendida, ela suscita a iluminação, purifica os nossos corações e inspira gestos nobres e generosos, em benefício de toda a família humana. Impele-nos a cultivar a prática das virtudes e a aproximar-nos uns dos outros com amor, no maior respeito pelas tradições religiosas que são diferentes da nossa.

Desde o Concílio Vaticano II, a Igreja católica tem dado uma ênfase especial à importância do diálogo e da colaboração com os seguidores das demais religiões. E para que ele seja frutuoso, é necessário que haja a reciprocidade da parte de todos os componentes em diálogo, e também da parte dos seguidores das outras religiões. Penso de maneira particular nas situações em algumas regiões do mundo, onde a colaboração e o diálogo entre as religiões exige o respeito recíproco, a liberdade de pôr em prática a sua própria religião e de realizar actos de culto público, assim como a liberdade de seguir a própria consciência, sem sofrer ostracismo nem perseguição, mesmo depois da conversão de uma religião para outra. Uma vez que se estabelecerem este respeito e esta atitude aberta, as pessoas de todas as religiões poderão trabalhar em conjunto, de maneira eficaz pela paz e pela compreensão mútua, oferecendo portanto um testemunho convincente diante do mundo.

Este género de diálogo deve colocar-se a diversos níveis e não deveria ser limitado a debates formais. O diálogo da vida implica simplesmente o acto de viver lado a lado e aprender uns dos outros, de forma a crescer na compreensão recíproca e no respeito mútuo. O diálogo da acção faz com que nos aproximemos de formas concretas de colaboração, enquanto aplicamos as nossas intuições religiosas à tarefa de promover o desenvolvimento humano integral, trabalhando pela paz, pela justiça e pela salvaguarda da criação. Este tipo de diálogo pode incluir o estudo conjunto sobre o modo como defender a vida humana em todas as suas fases e como garantir a não-exclusão da dimensão religiosa de indivíduos e de comunidades da vida da sociedade. Além disso, no plano das conversões formais, não existe apenas a necessidade de um intercâmbio teológico, mas também é preciso apresentar à consideração recíproca as próprias riquezas espirituais, falar das próprias experiências de oração e de contemplação, manifestar mutuamente a alegria do nosso encontro com o amor divino. Neste contexto, é-me grato relevar as numerosas iniciativas positivas empreendidas neste país, para promover tal diálogo a vários níveis. Como ressaltaram os Bispos católicos da Inglaterra e do país de Gales, no seu recente documento «Encontrar Deus no amigo e no forasteiro», o esforço de ir com amizade ao encontro dos seguidores de outras religiões torna-se uma parte familiar da missão da Igreja local (cf. n. 228), um aspecto característico do panorama religioso nesta Nação.

Estimados amigos, ao concluir estes pensamentos, permiti que vos certifique de que a Igreja católica percorre o caminho do compromisso e do diálogo, em vista de um sentido genuíno de respeito por vós e pelos vossos credos. Os católicos, tanto na Grã-Bretanha como no mundo inteiro, continuarão a edificar pontes de amizade com as demais religiões, para corrigir os erros do passado e promover a confiança entre os indivíduos e as comunidades. Permiti-me renovar a minha gratidão pelas vossas boas-vindas e pela presente oportunidade de vos oferecer o meu encorajamento para o diálogo que promoveis com os vossos irmãos e irmãs cristãos. Sobre todos vós, invoco a abundância das bênçãos divinas. Muito obrigado!



VISITA FRATERNA AO ARCEBISPO DE CANTERBURY Lambeth Palace, Londres Sexta-feira, 17 de Setembro de 2010

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Vossa Graça

É para mim um prazer poder retribuir a cortesia das visitas que Vossa Graça me fez em Roma, mediante esta minha visita fraterna aqui na sua residência oficial. Agradeço o convite e a hospitalidade que Vossa Graça me reservou de maneira tão generosa. Saúdo também os Bispos anglicanos aqui vindos das diversas regiões do Reino Unido, os meus irmãos Bispos das dioceses católicas da Inglaterra, do país de Gales e da Escócia, assim como os consultores ecuménicos aqui presentes.

Vossa Graça referiu-se ao histórico encontro que teve lugar, há quase trinta anos, na Catedral de Canterbury, entre dois dos nossos predecessores: o Papa João Paulo II e o Arcebispo Robert Runcie. Naquele mesmo lugar onde São Tomás de Canterbury deu testemunho de Cristo, derramando o próprio sangue, eles rezaram em conjunto pelo dom da unidade entre os seguidores de Cristo. Também hoje nós continuamos a rezar por aquela dádiva, conscientes de que a unidade desejada por Cristo para os seus discípulos só será possível como resposta à oração, mediante a intervenção do Espírito Santo que, sem cessar, renova a Igreja orientando-a para a plenitude da verdade.

Não tenho a intenção de falar hoje sobre as dificuldades que o caminho ecuménico encontrou e continua a encontrar. Tais dificuldades são bem conhecidas por todas as pessoas aqui presentes. Ao contrário, gostaria de me unir a Vossa Graça, manifestando o meu agradecimento pela profunda amizade que cresceu entre nós e pelo notável progresso alcançado em numerosas áreas do diálogo ao longo destes quarenta anos que transcorreram desde que a Comissão internacional anglo-católica deu início aos próprios trabalhos. Confiemos os frutos daquelas obras ao Senhor da messe, persuadidos de que Ele há-de abençoar a nossa amizade mediante um ulterior e significativo crescimento.

O contexto em que tem lugar o diálogo entre a Comunhão anglicana e a Igreja católica evoluiu de maneira impressionante desde o encontro particular entre o Papa João XXIII e o Arcebispo Geoffrey Fisher, em 1960. Por um lado, a cultura que nos circunda desenvolve-se de maneira cada vez mais distante das suas raízes cristãs, não obstante uma profunda e difundida fome de alimento espiritual. Por outro, a crescente dimensão multicultural da sociedade, particularmente acentuada neste país, traz consigo a oportunidade de encontro com outras religiões. Para nós, cristãos, isto oferece a possibilidade de explorar, juntamente com os membros das demais tradições religiosas, outros caminhos para dar testemunho da dimensão transcendente da pessoa humana e da chamada universal à santidade, levando-nos a pôr em prática as virtudes na nossa vida pessoal e social. Neste âmbito, a colaboração ecuménica permanece essencial, e indubitavelmente produzirá frutos na promoção da paz e da harmonia, num mundo que muitas vezes parece correr o risco da fragmentação.

Ao mesmo tempo nós, cristãos, jamais podemos hesitar em proclamar a nossa fé na unicidade da salvação que nos foi conquistada por Cristo, nem em explorar em conjunto uma compreensão mais profunda dos meios que Ele pôs à nossa disposição, para alcançarmos a salvação. Deus «quer que todos os homens sejam salvos e alcancem o conhecimento da verdade» (
1Tm 2,4), e aquela verdade não é senão Jesus Cristo, o eterno Filho do Pai, que reconciliou tudo mediante o poder da sua cruz. Fiéis à vontade do Senhor, expressa neste versículo da primeira Carta de São Paulo a Timóteo, reconhecemos que a Igreja é chamada a ser inclusiva, mas nunca em desvantagem da verdade cristã. É aqui que se apresenta o dilema com o qual se confrontam todos aqueles que se encontram genuinamente comprometidos ao longo do caminho ecuménico.

Na figura de John Henry Newman, que será beatificado no domingo, celebramos um homem de Igreja, cuja visão eclesial foi alimentada pela sua formação anglicana e amadureceu durante os seus longos anos de ministério ordenado na Igreja da Inglaterra. Ele pode ensinar-nos as virtudes exigidas pelo ecumenismo: por um lado, ele foi impelido a seguir a sua própria consciência, também a um elevado preço pessoal; por outro, a intensidade da amizade contínua com os seus colegas precedentes levou-o a verificar juntamente com eles, com verdadeiro espírito irénico, as questões sobre as quais divergiam, conduzido por uma profunda busca da unidade na fé. Vossa Graça, naquele mesmo espírito de amizade renovamos a nossa determinação a procurar a finalidade última da unidade na fé, na esperança e no amor, segundo a vontade do nosso único Senhor e Salvador, Jesus Cristo.

Despeço-me de Vossa Graça com estes sentimentos. Que a bênção do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós (cf. 2Co 13,13).



ENCONTRO COM AS AUTORIDADES CIVIS Parlamento de Londres Sexta-feira, 17 de Setembro de 2010

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Senhor Presidente!

Agradeço-lhe as palavras de boas-vindas que me dirigiu em nome desta distinta assembleia. Ao dirigir-me a Vossa Excelência, estou consciente do privilégio que me é concedido de falar ao povo britânico e aos seus representantes na Westminster Hall, um edifício que tem um significado singular na história civil e política dos habitantes destas Ilhas. Permiti-me manifestar a minha estima pelo Parlamento, que há séculos tem sede neste lugar e que teve uma influência realmente profunda sobre o desenvolvimento de formas de governo participativas no mundo, especialmente no âmbito da Commonwealth e, de uma maneira mais geral, nos países de expressão inglesa. A vossa tradição de «common law» constitui o fundamento do sistema legal em numerosas nações, e a vossa visão particular dos respectivos direitos e deveres do Estado e do cidadão individualmente, bem como da separação dos poderes, permanece como uma fonte de inspiração para muitos no mundo.

Enquanto vos falo neste lugar histórico, penso nos inúmeros homens e mulheres que, ao longo dos séculos, desempenharam o seu papel em acontecimentos importantes que tiveram lugar entre estas paredes e marcaram a vida de muitas gerações de britânicos e de outros povos. De modo particular, gostaria de recordar a figura de São Tomás More, o grande estudioso e estadista inglês, admirado por crentes e não-crentes, em virtude da integridade com que ele foi capaz de seguir a sua própria consciência, mesmo à custa de contrariar o seu soberano, de quem era um «bom servidor», porque tinha preferido servir primeiro Deus. O dilema com que Tomás More se confrontava, naqueles tempos difíceis, a perene problemática da relação entre aquilo que é devido a César e o que é devido a Deus, oferece-me a oportunidade de ponderar brevemente convosco sobre o justo lugar que o credo religioso conserva no processo político.

A tradição parlamentar deste país deve muito ao sentido instintivo de moderação presente na Nação, ao desejo de alcançar um justo equilíbrio entre as exigências legítimas do poder do Estado e os direitos daqueles que lhe estão sujeitos. Se por um lado, na vossa história, foram dados numerosas vezes passos decisivos para estabelecer limites ao exercício do poder, por outro, as instituições políticas da Nação foram capazes de evoluir no interior de um notável grau de estabilidade. Ao longo deste processo histórico, a Grã-Bretanha sobressaiu como uma democracia pluralista, que atribui um grande valor à liberdade de expressão, à liberdade de filiação política e ao respeito pelo Estado de direito, com um vigoroso sentido dos direitos e deveres de cada indivíduo, bem como da igualdade de todos os cidadãos diante da lei. A doutrina social católica, embora tenha sido formulada numa linguagem diversificada, tem muito em comum com este abordagem, se tivermos em consideração a sua solicitude fundamental pela salvaguarda da dignidade de cada pessoa, criada à imagem e semelhança de Deus, e o realce que dá do dever que as autoridades civis têm de promover o bem comum.

E, na verdade, as questões fundamentais que estiveram em jogo no processo contra Tomás More continuam a apresentar-se, em termos sempre novos, com a transformação das condições sociais. Cada geração, enquanto procura promover o bem comum, deve perguntar sempre de novo: quais são as exigências que os governos podem impor razoavelmente aos seus próprios cidadãos, e até onde elas podem estender-se? Que autoridade é possível interpelar, para resolver os dilemas morais? Estas questões levam-nos directamente aos fundamentos éticos do discurso civil. Se os princípios morais que sustentam o processo democrático não estiverem assentes, por sua vez, em nada mais sólido do que no consenso social, então a fragilidade do processo demonstrar-se-á em toda a sua evidência. Eis o principal desafio da democracia.

A inadequação de soluções pragmáticas, a curto prazo, para os complexos problemas sociais e éticos foi ressaltada pela recente crise financeira global. Houve um consenso sobre o facto de que a falta de um sólido fundamento ético da actividade económica contribuiu para criar a situação de grave dificuldade na qual hoje se encontram milhões de pessoas no mundo inteiro. Assim como «cada decisão económica tem uma consequência de índole moral» (Caritas in veritate ), analogamente, no campo político, a dimensão moral das políticas postas em prática tem consequências de vasto alcance, que nenhum governo pode ignorar. Uma exemplificação positiva daquilo que se pode encontrar numa das conquistas particularmente notáveis no Parlamento britânico: a abolição do comércio dos escravos. A campanha que levou a esta legislação epocal fundamentou-se em princípios morais sólidos, assentes sobre a lei natural, e chegando a constituir uma contribuição para a civilização, da qual esta Nação justamente pode sentir-se orgulhosa.

Portanto, a questão fulcral em jogo aqui é a seguinte: onde pode ser encontrado o fundamento ético para as escolhas políticas? A tradição católica afirma que as normas objectivas que governam o recto agir são acessíveis à razão, prescindindo do conteúdo da Revelação. Em conformidade com esta compreensão, o papel da religião no debate político não consiste tanto em oferecer tais normas, como se elas não pudessem ser conhecidas pelos não-crentes — muito menos consiste em propor soluções políticas concretas, o que está totalmente fora da competência da religião — mas sobretudo em ajudar a purificar e lançar luz sobre a aplicação da razão na descoberta dos princípios morais objectivos. Mas este papel «correctivo» da religião em relação à razão nem sempre é bem acolhido, em parte porque determinadas formas ambíguas de religião, como o sectarismo e o fundamentalismo, podem mostrar-se elas mesmas como uma causa de sérios problemas sociais. E, por sua vez, estas ambiguidades da religião sobressaem quando não se presta uma atenção suficiente ao papel purificador e estruturador da razão, no interior da religião. Trata-se de um processo que funciona em duplo sentido. Com efeito, sem a correcção oferecida pela religião, até a razão pode tornar-se vítima de ambiguidades, como acontece quando ela é manipulada pela ideologia, ou então aplicada de uma maneira parcial, sem ter em consideração plenamente a dignidade da pessoa humana. Considerando bem, foi precisamente este uso ambíguo da razão que deu origem ao comércio dos escravos e, sucessivamente, a muitos outros males sociais, não menos grave as ideologias totalitárias do século xx. Por isso, gostaria de sugerir que o mundo da razão e o mundo da fé — o mundo da secularidade racional e o mundo do credo religioso — precisam um do outro, e não deveriam ter medo de entrar num diálogo profundo e contínuo, para o bem da nossa civilização.

Por outras palavras, para os legisladores a religião não representa um problema a resolver, mas um factor que contribui de forma vital para o debate público na nação. Neste contexto, não posso deixar de manifestar a minha preocupação diante da crescente marginalização da religião, de modo particular do Cristianismo, que se vai consolidando em determinados ambientes, também em nações que atribuem um grande valor à tolerância. Existem pessoas segundo as quais a voz da religião deveria ser silenciada ou, na melhor das hipóteses, relegada à esfera puramente particular. Outros ainda afirmam que a celebração pública de festividades como o Natal deveria ser desencorajada, segundo a questionável convicção de que ela poderia de alguma maneira ofender aqueles que pertencem a outras ou a nenhuma religião. E há outros ainda que — paradoxalmente com a finalidade de eliminar as discriminações — chegam a considerar que os cristãos que desempenham funções públicas deveriam, em determinados casos, agir contra a própria consciência. Trata-se de sinais preocupantes da incapacidade de ter na justa consideração não apenas os direitos dos crentes à liberdade de consciência e de religião, mas também o papel legítimo da religião na esfera pública. Por conseguinte, gostaria de convidar todos vós, cada um na sua respectiva esfera de influência, a procurar caminhos para promover e encorajar o diálogo entre fé e razão, a todos os níveis da vida nacional.

A vossa disponibilidade neste sentido já se manifestou no convite sem precedentes que me dirigistes hoje, e encontra expressão naqueles sectores de interesse em que o vosso Governo se tem comprometido juntamente com a Santa Sé. No campo da paz houve intercâmbios a propósito da elaboração de um tratado internacional sobre o comércio de armas; sobre os direitos humanos, a Santa Sé e o Reino Unido viram positivamente o difundir-se da democracia, de modo especial nos últimos 65 anos; na área do desenvolvimento houve a colaboração no perdão da dívida, no comércio equitativo e no financiamento do desenvolvimento, de forma particular através da «International Finance Facility», do «International Immunization Bond» e do «Advanced Market Commitment». Além disso, a Santa Sé sente o desejo de procurar, juntamente com o Reino Unido, novos caminhos para promover a responsabilidade ambiental, para o benefício de todos.

Depois, observo que o actual Governo se comprometeu em destinar, até ao ano de 2013, 0,7% da renda nacional a favor das ajudas ao desenvolvimento. Foi animador, ao longo dos últimos anos, observar os sinais positivos de um aumento da solidariedade para com os mais pobres, e isto diz respeito ao mundo inteiro. Todavia, para traduzir esta solidariedade em obra eficaz são necessárias ideias novas, que melhorem as condições de vida em campos importantes como a produção dos alimentos, a purificação da água, a criação de postos de trabalho, a formação, a ajuda às famílias, especialmente dos migrantes, e os serviços médicos básicos. Quando a vida humana está em jogo, o tempo torna-se sempre breve: na verdade, o mundo tem sido testemunha dos vastos recursos que os Governos são capazes de reunir para salvar instituições financeiras consideradas «demasiado grandes para falir». Sem dúvida, o desenvolvimento integral dos povos da terra não é menos importante: trata-se de um empreendimento digno da atenção do mundo, verdadeiramente «demasiado grande para falir».

Esta consideração geral sobre a cooperação recente entre o Reino Unido e a Santa Sé mostra bem quanto progresso foi alcançado nos anos passados pelo estabelecimento das relações diplomáticas bilaterais, em benefício da promoção no mundo dos numerosos valores fundamentais que compartilhamos. Espero e rezo para que esta relação continue a dar fruto e que se reflicta numa crescente aceitação da necessidade do diálogo e do respeito, a todos os níveis da sociedade, entre o mundo da razão e o mundo da fé. Estou convicto de que também neste país existem muitos campos em que a Igreja e as autoridades públicas podem trabalhar em conjunto pelo bem dos cidadãos, em harmonia com a histórica prática deste Parlamento de invocar a orientação do Espírito sobre quantos procuram melhorar as condições de vida de todo o género humano. A fim de que esta cooperação seja possível, as instituições religiosas, inclusive aquelas ligadas à Igreja católica, devem ser livres de agir de acordo com os princípios e as convicções específicas que lhes são próprias, fundamentadas na fé e no ensinamento oficial da Igreja. Deste modo, poderão ser garantidos aqueles direitos fundamentais como a liberdade religiosa, a liberdade de consciência e a liberdade de associação. Os anjos que nos observam da magnífica abóbada desta antiga Sala recordam-nos a longa tradição a partir da qual o Parlamento britânico se desenvolveu. Eles recordam-nos que Deus vela constantemente sobre nós, para nos guiar e nos proteger. E eles exortam-nos a reconhecer a contribuição vital que o credo religioso deu e continua a oferecer à vida da Nação.

Senhor Presidente, agradeço-lhe mais uma vez esta oportunidade de me dirigir brevemente a esta ilustre assembleia. Permita-me assegurar-lhe, assim como ao Senhor Presidente da Câmara dos Lords, os meus melhores votos e a minha oração constante por Vós e pelo trabalho frutuoso de ambas as Câmaras deste antigo Parlamento. Obrigado, e Deus abençoe todos vós!



CELEBRAÇÃO ECUMÉNICA COM A RECITAÇÃO DAS VÉSPERAS Sexta-feira, 17 de Setembro de 2010

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PALAVRAS NO INÍCIO DA CELEBRAÇÃO Abadia de Westminster

Vossa Graça
Senhor Decano
Queridos amigos em Cristo!

Agradeço-vos as saudações de boas-vindas. Este nobre edifício recorda a longa história da Inglaterra, tão profundamente marcada pela pregação do Evangelho e pela cultura cristã da qual nasceu. Hoje venho de Roma aqui como peregrino para rezar diante do túmulo de Santo Eduardo, o Confessor, e unir-me a vós a fim de implorar o dom da unidade entre os cristãos. Que estes momentos de oração e fraternidade nos confirmem no amor por Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador, e no testemunho comum de que o Evangelho tem o poder perene de iluminar o futuro desta grande Nação.

DISCURSO NO FINAL DA CELEBRAÇÃO ECUMÉNICA


Queridos amigos em Cristo!

Dou graças ao Senhor por esta oportunidade de me unir a vós, representantes das confissões cristãs presentes na Grã-Bretanha, nesta magnífica Abadia dedicada a São Pedro, cuja arquitectura e história falam de maneira deveras eloquente a propósito da nossa comum herança de fé. Neste lugar, não podemos deixar de ser novamente chamados a reflectir sobre o modo como a fé cristã plasmou de maneira tão profunda a unidade e a cultura da Europa, assim como o coração e o espírito do povo inglês. Além disso, aqui somos necessariamente obrigados a reflectir sobre o facto de que quanto nós compartilhamos em Cristo é maior do que aquilo que continua a dividir-nos.

Agradeço a Sua Graça o Arcebispo de Canterbury a sua amável saudação, assim como ao Decano e ao Cabido desta venerável Abadia as suas cordiais boas-vindas. Dou graças ao Senhor por me ter concedido, como sucessor de São Pedro na Sé de Roma, realizar a presente peregrinação ao túmulo de Santo Eduardo, o Confessor. Eduardo, rei da Inglaterra, permanece um modelo de testemunho cristão e um exemplo daquela verdadeira grandeza para a qual o Senhor nas Escrituras chama os seus discípulos, como há pouco ouvimos: a grandeza de uma humildade e de uma obediência fundamentadas no próprio exemplo de Cristo (cf.
Ph 2,6-8), a grandeza de uma fidelidade que não hesita em abraçar o mistério da Cruz com a motivação do amor ao Mestre divino e da esperança certa nas suas promessas (cf. Mc 10,43-44).

Como sabemos, no corrente ano celebra-se o centenário do movimento ecuménico moderno, que teve início com a convocação da Conferência de Edimburgo a favor da unidade dos cristãos, como exigência para um testemunho credível e convincente do Evangelho no nosso tempo. Comemorando este aniversário, temos que dar graças pelos notáveis progressos alcançados em vista desta nobre finalidade através dos esforços de cristãos comprometidos em todas as confissões. Ao mesmo tempo estamos conscientes de que ainda há muito para fazer. Num mundo marcado por uma interdependência e solidariedade crescentes, somos desafiados a proclamar com renovada convicção a realidade da nossa reconciliação e da nossa libertação em Cristo, e a propor a verdade do Evangelho como a chave de um desenvolvimento humano autêntico e integral. Numa sociedade que se tornou cada vez mais indiferente e até hostil à mensagem cristã, todos nós somos ainda mais chamados a dar um testemunho jubiloso e convincente da esperança que se encontra em nós (cf. 1P 3,15), e a apresentar o Senhor Ressuscitado como a resposta às mais profundas interrogações e aspirações espirituais dos homens e das mulheres do nosso tempo.

Enquanto entrávamos em procissão no presbitério, no início desta celebração, o coro cantava que Cristo é o nosso «fundamento seguro». Ele é o eterno Filho de Deus, da mesma substância do Pai, encarnado, como afirma o Credo, «por nós homens e pela nossa salvação». Somente Ele tem palavras de vida eterna. Nele, como ensina o Apóstolo, «todas as coisas subsistem»... «porque aprouve a Deus habitar n'Ele em toda a sua plenitude» (Col 1,17 Col 1,19).

O nosso compromisso a favor da unidade dos cristãos não tem outro fundamento, a não ser a fé em Cristo, neste Cristo, que ressuscitou dos mortos e está sentado à direita do Pai, que voltará na glória para julgar os vivos e os mortos. É a realidade da pessoa de Cristo, a sua obra salvífica e principalmente o acontecimento histórico da sua Ressurreição, que constitui o conteúdo do kerygma apostólico e daquelas fórmulas de fé que, a partir do próprio Novo Testamento, garantiram a integridade da sua transmissão. A unidade da Igreja nunca pode ser algo diferente da unidade na fé apostólica, na fé transmitida no rito do Baptismo a cada um dos novos membros do Corpo de Cristo. É esta fé que nos une ao Senhor, que nos torna partícipes do seu Espírito Santo e, por conseguinte, também agora, partícipes da vida da Santíssima Trindade, modelo da koinonia da Igreja aqui na terra.

Estimados amigos, estamos todos conscientes dos desafios e das bênçãos, das decepções e dos sinais de esperança que têm caracterizado o nosso caminho ecuménico. Nesta tarde confiemo-los ao Senhor, confiantes na sua Providência e no poder da sua graça. Sabemos que a fraternidade edificada, o diálogo encetado e a esperança que nos orienta nos hão-de incutir a força e indicar o rumo, enquanto perseveramos no nosso caminho comum. Ao mesmo tempo, com realismo evangélico, também temos o dever de reconhecer os desafios que se nos apresentam, não apenas no caminho da unidade dos cristãos, mas também no nosso compromisso de proclamar Jesus Cristo nos nossos dias. A fidelidade à palavra de Deus, precisamente porque é uma palavra verdadeira, exige de nós uma obediência que nos leve juntos a uma compreensão mais profunda da vontade do Senhor, uma obediência que deve ser livre do conformismo intelectual ou da fácil adaptação ao espírito do tempo. Esta é a palavra de encorajamento que desejo deixar-vos esta tarde, e faço-o em fidelidade ao meu ministério de Bispo de Roma e Sucessor de São Pedro, encarregado de um cuidado particular pela unidade da grei de Cristo.

Reunidos nesta antiga igreja monástica, podemos evocar o exemplo de um grande inglês e homem de Igreja, que honramos em conjunto: São Beda, o Venerável.

No alvorecer de uma nova era na vida da sociedade e da Igreja, Beda compreendeu quer a importância da fidelidade à palavra de Deus, como era transmitida pela tradição apostólica, quer a necessidade de uma abertura criativa aos novos desenvolvimentos e às exigências de um arraigamento adequado do Evangelho na linguagem e na cultura do seu tempo.

Esta Nação e a Europa, que Beda e os seus companheiros contribuíram para edificar, encontram-se mais uma vez no limiar de uma nova época. Possa o exemplo de São Beda inspirar os cristãos destas terras a redescobrir a sua herança comum, a consolidar aquilo que têm em comum e a continuar no seu compromisso para crescer em fraternidade. Que o Senhor Ressuscitado revigore os nossos esforços para reparar as divisões do passado e enfrentar os desafios do presente com esperança em relação ao futuro que Ele, na sua Providência, reserva a nós e ao nosso mundo.

Amém!




Discursos Bento XVI 17930