Discursos Bento XVI 1195


AO SENHOR BOGDAN TATARU-CAZABAN

NOVO EMBAIXADOR DA ROMÉNIA JUNTO DA SANTA SÉ

POR OCASIÃO DA APRESENTAÇÃO

DAS CARTAS CREDENCIAIS

Quinta-feira, 21 de Outubro de 2010



Senhor Embaixador!

Sinto-me feliz por o receber esta manhã, para a apresentação das Cartas que o acreditam como Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário da República da Roménia junto da Santa Sé. Agradeço-lhe as gentis palavras que acabou de me dirigir. Retribuo, agradecendo-lhe a amabilidade de expressar a Sua Excelência o Senhor Traian Basescu, Presidente da Roménia, os meus cordiais votos pela sua pessoa e de bem-estar e paz para o povo romeno. Através de Vossa Excelência, saúdo também o Governo e todas as autoridades do seu país. Desejo de igual modo saudar fraternalmente Sua Beatitude Daniel, Patriarca da Igreja ortodoxa da Roménia.

Há vinte anos, a Roménia decidiu escrever uma nova página da sua história. Mas tantos anos vividos sob o jugo de uma ideologia totalitária deixam feridas profundas nas mentalidades, na vida político-económica e nos indivíduos. Depois do tempo da euforia da liberdade, a sua nação comprometeu-se com determinação num processo de reconstrução e de cura. A entrada na União Europeia assinalou uma etapa importante na busca de uma democratização autêntica. Para prosseguir esta renovação em profundidade, são numerosos os novos desafios a enfrentar para evitar que a sua sociedade não se baseie unicamente na busca do bem-estar e na atracção do lucro, consequências compreensíveis de um período de mais de 40 anos de privações. Certamente, convém antes de tudo fazer prevalecer a integridade, a honestidade e a rectidão. Estas virtudes devem inspirar e guiar todos os componentes da sociedade para uma boa gestão. Ao guiar os cidadãos, elas contribuem de modo efectivo para a regeneração do tecido político, económico e social na complexidade crescente do mundo contemporâneo.

A Roménia é constituída por um mosaico de povos. Esta variedade pode ser vista como um obstáculo para a unidade nacional mas também como um enriquecimento da sua identidade da qual é uma das características. Por conseguinte, convém fazer com que cada indivíduo tenha o seu lugar legítimo na sociedade, indo além desta variedade e respeitando-a. A gestão da herança deixada pelo comunismo é difícil por causa da desintegração da sociedade e do indivíduo que ele favoreceu. Os valores autênticos foram, de facto, ocultados em benefício de falsas teorias idolatradas por razão de Estado. Trata-se portanto de se comprometer hoje na difícil tarefa de ordenar de maneira justa os assuntos humanos, fazendo bom uso da liberdade. E a verdadeira liberdade pressupõe a busca da verdade, do bem, e cumpre-se precisamente conhecendo e fazendo o que é oportuno e justo. Neste processo de reconstrução do vínculo social, a família ocupa o primeiro lugar. Devem ser feitos todos os esforços para que ela cumpra a sua função de base na sociedade. Com a família, convém favorecer a existência de um sistema educativo que encoraje as jovens gerações e lhes dê uma formação à qual elas têm direito, capaz de respeitar e de alimentar as suas capacidades de transcender os limites nos quais por vezes se pretende fechá-las. Na presença de grandes ideais, os jovens aspirarão à virtude moral e à uma abertura aos outros através da compaixão e da bondade. A família e a educação são o ponto de partida para combater a pobreza e contribuir também para o respeito de cada pessoa, das minorias, da família e da própria vida. Elas são o terreno no qual se enraízam os valores éticos fundamentais e onde a vida religiosa pode crescer.

Senhor Embaixador, a Roménia possui uma longa e rica tradição religiosa que também foi ferida por decénios obscuros e algumas dessas feridas ainda estão vivas. Portanto elas exigem ser curadas com meios aceitáveis para cada uma das comunidades. De facto, convém reparar as injustiças herdadas do passado, sem receio de fazer justiça. Para isto, seria bom encorajar um procedimento que se poderia situar num duplo nível: estatal, ou seja, favorecendo um diálogo autêntico entre o Estado e os diferentes responsáveis religiosos e, por outro, encorajando as relações harmoniosas entre as diferentes comunidades religiosas do seu país.

Elogio os esforços realizados pelos Governos que se sucederam para estabelecer relações entre a Igreja católica e a Roménia. Cito com satisfação, entre outros, a retomada das relações diplomáticas recíprocas das quais celebramos o vigésimo aniversário. Recordo também a nova Lei sobre os Cultos que Vossa Excelência evocou no seu discurso. Existe também um órgão de encontro, a Comissão Mista estabelecida em 1998, cujos trabalhos seria bom reactivar.

Por sua vez, a Igreja católica deseja dar uma contribuição específica à sua Nação tanto no prosseguimento da edificação da sociedade romena como no diálogo desejado com o conjunto das comunidades cristãs não católicas. Neste sentido, ela vê no diálogo ecuménico um caminho privilegiado para reencontrar os seus irmãos na fé e para construir com eles o Reino de Deus, respeitando a especificidade de cada um. O testemunho de fraternidade entre católicos e ortodoxos, num espírito de caridade e justiça, deve prevalecer sobre as dificuldades e abrir os corações à reconciliação. Neste campo, os frutos da histórica visita realizada há uma dezena de anos pelo Papa João Paulo II, a primeira a uma nação com maioria ortodoxa, são numerosos. Eles devem fortalecer o compromisso a dialogar na caridade e na verdade e a promover iniciativas comuns. Tal diálogo construtivo não deixará de ser um fermento de unidade e de concórdia não só para o seu país mas também para toda a Europa. Nesta feliz circunstância, gostaria de saudar também calorosamente os Bispos e os fiéis da Igreja católica na Roménia.

No momento em que inicia a sua missão, apresento-lhe, Senhor Embaixador, os meus melhores votos pela nobre tarefa que o espera, garantindo-lhe que encontrará sempre junto dos meus colaboradores acolhimento atento e compreensão cordial. Sobre Vossa Excelência, família e colaboradores, sobre todo o povo romeno e seus dirigentes, invoco de coração a abundância das Bênçãos de Deus.






AO SENHOR MANUEL TOMÁS FERNANDES PEREIRA NOVO EMBAIXADOR DE PORTUGAL JUNTO DA SANTA SÉ POR OCASIÃO DA APRESENTAÇÃO DAS CARTAS CREDENCIAIS


1196
Sexta-feira, 22 de Outubro de 2010




Senhor Embaixador,

Aproveito de bom grado este momento da apresentação das Cartas Credenciais, com que hoje é designado oficialmente Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário de Portugal junto da Santa Sé, para lhe dar as boas-vindas e, congratulando-me pela sua nomeação, formular venturosos votos para a sua nova missão que se propõe como novo contributo no edifício das relações de amizade existentes entre o seu país e esta Sé Apostólica. Como lembrava nas suas palavras de saudação, a fé e a história uniram-se para forjar um vínculo especial entre o povo português e o Sucessor de Pedro, um vínculo que é confiado à responsabilidade de cada uma das gerações sucessivas, pelo qual jamais devemos deixar de dar graças a Cristo, Bom Pastor da sua Igreja e Senhor da história, dos indivíduos e das nações.

A nobre expressão dos sentimentos que o animam neste dia, certamente muito significativo, mereceu toda a minha atenção. Quero antes de mais manifestar-lhe o meu reconhecimento pelas palavras que me dirigiu e, depois, retribuir os sentimentos de estima que o Senhor Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, me fez chegar através de Vossa Excelência, pedindo-lhe por minha vez a amabilidade de significar ao Senhor Presidente a minha gratidão pelos mesmos, juntamente com encorajadores votos na sua alta missão e a certeza da minha oração ao Altíssimo pela prosperidade e o bem espiritual de todos os portugueses.

Quando me preparava para este encontro com o Senhor Embaixador, acudiam à mente as edificantes e felizes imagens, que guardo na memória e no coração, da minha visita a Portugal no passado mês de Maio, desejando aqui agradecer uma vez mais a todos o contributo dado para uma serena e frutuosa realização da mesma; efeito este amplamente conseguido como atestam as inúmeras mensagens que me chegaram alusivas àqueles dias memoráveis. Jamais esquecerei o acolhimento caloroso a mim reservado, bem como a maneira gentil e respeitosa com que as minhas palavras foram recebidas. Considero que tudo isto tem também uma importância social: onde a sociedade cresce e as pessoas se fortalecem no bem graças à mensagem da fé, sai beneficiada também a convivência social e os cidadãos sentem-se mais disponíveis para servir o bem comum.

Com a sua presença no fórum internacional, a Santa Sé põe todo o seu empenho em servir a causa da promoção integral do homem e dos povos. Deveria ser convicção de todos que os obstáculos a tal promoção não são apenas de ordem económica, mas dependem de atitudes e valores mais profundos: os valores morais e espirituais que determinam o comportamento de cada ser humano para consigo mesmo, os outros e a criação inteira. A presença do Senhor Embaixador neste lugar testemunha a vontade que Portugal tem de dar um lugar importante a tais valores, sem os quais uma sociedade não se pode estabelecer de modo duradouro.

Quando a Igreja, no seu país, promove a consciência de que estes mesmos valores devem inspirar a vida pública e particular, fá-lo não por ambições políticas, mas para ser fiel à missão que o seu divino Fundador lhe confiou. «Dado que a Igreja – são palavras do Concílio Vaticano II – não está ligada, por força da sua missão e natureza, a nenhuma forma particular de cultura ou sistema político, económico ou social, pode graças a esta sua universalidade, constituir um laço muito estreito entre as diversas comunidades e nações, contanto que nela confiem e lhe reconheçam a verdadeira liberdade para cumprir esta sua missão» (Const. Gaudium et spes
GS 42). Ela não representa modelos parciais e passageiros de sociedade, mas tende à transformação dos corações e das mentes, para que o homem possa descobrir-se e reconhecer-se a si mesmo na verdade plena da sua humanidade. E dado a sua missão ser de carácter moral e religioso, a Igreja respeita a área específica de responsabilidade do Estado. Ao mesmo tempo encoraja os cristãos a assumirem plenamente as suas responsabilidades como cidadãos para, juntamente com os outros, contribuírem eficazmente para o bem comum e para as grandes causas do homem.

De uma respeitosa colaboração e leal entendimento entre a Igreja e o poder civil, só poderão derivar benefícios para a sociedade portuguesa. Animada por esta esperança, há seis anos, nascia a nova Concordata entre a Santa Sé e Portugal, a que aludia o Senhor Embaixador. Naquela ocasião, o Papa João Paulo II viu naquele instrumento jurídico a confirmação dos «sentimentos de mútua estima que animam as relações recíprocas» e fez votos de que «a nova Concordata pudesse favorecer um entendimento sempre maior entre as Autoridades do Estado e os Pastores da Igreja para o bem comum da Nação» (L’Osservatore Romano, ed. portuguesa de 22/V/2004, 253). Com alegria, ouvi o Senhor Embaixador referir e desejo daqui encorajar os esforços que se estão a fazer para uma completa e fiel aplicação da mesma nos diversos campos da Igreja Católica e da sociedade portuguesa.

Antes de terminar este encontro, quero assegurar-lhe, Senhor Embaixador, a plena colaboração e apoio da Santa Sé no desempenho da alta missão que lhe foi confiada. Pela intercessão de Nossa Senhora de Fátima, peço ao bom Deus do Céu que assista, com a abundância dos seus dons, Vossa Excelência e sua distinta família, quantos servem o bem comum da Nação portuguesa e todo o seu povo, sobre o qual estendo a minha Bênção.

Vaticano, 22 de Outubro de 2010.



BENEDICTUS PP. XVI




ALMOÇO COM OS PADRES SINODAIS POR OCASIÃO

DA CONCLUSÃO DA ASSEMBLEIA ESPECIAL

DO SÍNODO DOS BISPOS PARA O MÉDIO ORIENTE

Adro da Sala Paulo VI

1197
Sábado, 23 de Outubro de 2010




Queridos amigos!

Segundo uma bonita tradição criada pelo Papa João Paulo II, os Sínodos concluem-se com um almoço, um gesto convival que se insere bem no clima deste Sínodo, que fala sobre a comunhão: não só falou mas fez-nos realizar a comunhão.

Para mim este é o momento de dizer obrigado. Obrigado ao Secretário-Geral do Sínodo e ao seu staff, que prepararam os trabalhos e estão a preparar também a sua continuação. Obrigado aos Presidentes delegados, sobretudo ao Relator e ao Secretário adjunto, que realizaram um trabalho incrível. Obrigado! Também eu certa vez fui Relator no Sínodo sobre a família e posso imaginar que trabalho realizastes. Obrigado a todos os Padres que apresentaram a voz da Igreja do Oriente, aos Auditores, aos Delegados fraternos, a todos!

Comunhão e testemunho. Neste momento demos graças ao Senhor pela comunhão que nos doou e nos doa. Vimos a riqueza e a diversidade desta comunhão. Sois Igrejas de diversos ritos que contudo formam, juntamente com todos os outros ritos, a única Igreja católica. É bonito ver esta verdadeira catolicidade, que é tão rica de diversidade, de possibilidades, de culturas diferentes; e todavia, é exactamente assim que cresce a polifonia de uma única fé, de uma comunhão verdadeira dos corações, que só o Senhor pode dar. Por esta experiência de comunhão demos graças ao Senhor, agradeço a todos vós. Parece-me que este é o dom mais importante do Sínodo que vivemos e realizámos: a comunhão que nos une a todos e que em si é também testemunho.

Comunhão. A comunhão católica, cristã, é uma comunhão aberta, dialogal. Estivemos em diálogo permanente, interior e exteriormente, com os irmãos ortodoxos, com as outras Comunidades eclesiais. E constatamos que exactamente neste estarmos unidos — embora haja divisões exteriores — sentimos a profunda comunhão no Senhor, no dom da sua Palavra, da sua vida, e esperemos que Ele nos guie para evoluirmos nesta comunhão profunda.

Estamos unidos ao Senhor e assim — podemos dizer — fomos «encontrados» pela verdade. E esta verdade não fecha, não põe fim, mas abre. Por isso, estivemos também em diálogo franco e aberto com os irmãos muçulmanos, com os irmãos judeus, todos juntos responsáveis pelo dom da paz, precisamente nesta parte da terra abençoada pelo Senhor, berço do cristianismo e também das outras duas religiões. Queremos perseverar neste caminho com força, ternura e humildade, e com a coragem da verdade que é amor e que no amor se abre.

Disse que concluímos este Sínodo com o almoço. Mas a verdadeira conclusão de amanhã é a convivência com o Senhor, a celebração da Eucaristia. Na realidade, a Eucaristia não é conclusão mas abertura. O Senhor caminha connosco, está connosco, o Senhor põe-nos em movimento. E assim, neste sentido, estamos em Sínodo, isto é, um caminho que continua também quando estamos separados: estamos em Sínodo, num caminho comum. Peçamos ao Senhor que nos ajude. E obrigado a todos vós!






AOS PARTICIPANTES NO SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ERIK PETERSON Segunda-feira, 25 de Outubro de 2010

Eminências
Prezados irmãos no sacerdócio
1198 Ilustres Senhoras e Senhores
Queridos amigos

É com grande alegria que vos saúdo a todos quantos viestes a Roma por ocasião do simpósio internacional sobre Erik Peterson. Em particular, agradeço-lhe, estimado Cardeal Lehmann, as amáveis palavras com que introduziu o nosso encontro.

Como Vossa Eminência afirmou, este ano celebram-se os 120 anos do nascimento deste ilustre teólogo em Hamburgo e, quase neste mesmo dia há 50 anos, 26 de Outubro de 1960, Erik Peterson falecia na sua cidade natal. Ele viveu aqui em Roma com a sua família durante alguns períodos a partir de 1930 e, em 1933, estabeleceu-se aqui: primeiro no Aventino, perto de Santo Anselmo e em seguida diante da Porta de Santa Ana. Por isso, para mim é uma alegria especial poder saudar a família Peterson presente no meio de nós, as estimadas filhas e o filho com as respectivas famílias. Em 1990, juntamente com o Cardeal Lehmann, pude conferir à vossa mãe, no vosso apartamento comum, por ocasião do seu 80º aniversário, um autógrafo com a imagem do Papa João Paulo II, e recordo de bom grado aquele encontro convosco.

«Não temos aqui uma cidade permanente, mas estamos em busca da futura» (
He 13,14). Esta citação da Carta aos Hebreus poderia pôr-se como lema da vida de Erik Peterson. Na realidade, ele não encontrou um verdadeiro lugar em toda a sua vida, onde poder obter o reconhecimento e estabelecer a morada. O início da sua actividade científica coincide com um período de agitações na Alemanha depois da primeira guerra mundial. A monarquia tinha caído. A ordem civil parecia em perigo diante das perturbações políticas e sociais. Isto reflectia-se também no âmbito religioso e, de maneira particular, no protestantismo alemão. A teologia liberal até então predominante, com o próprio optimismo no progresso, entrou em crise deixando espaço a novos ímpetos teológicos em contraste entre si. A situação contemporânea apresentava um problema existencial ao jovem Peterson. Com interesse histórico e teológico, ele já tinha escolhido a matéria dos seus estudos, como afirma, segundo a perspectiva de «que quando estamos sozinhos com a história humana, encontramo-nos diante de um enigma sem sentido» (Eintrag in das Bonner »Album Professorum« 1926/27, Ausgewählte Schriften, Sonderband S. 111). Peterson, cito-o de novo, decidiu «trabalhar no campo histórico e enfrentar especialmente problemas de história das religiões», porque na teologia evangélica dessa época ele não conseguia «progredir, no meio das numerosas opiniões, até às coisas em si mesmas» (Ibidem). Neste caminho, chegou cada vez mais à certeza de que não existe qualquer história desligada de Deus, e que nesta história a Igreja ocupa um lugar especial e encontra o seu significado. Cito-o novamente: «Que a Igreja existe e que ela é constituída de forma totalmente particular, depende de modo estreito do facto que (...) existe uma determinada história especificamente teológica» (Vorlesung »Geschichte der Alten Kirche« Bonn 1928, Ausgewählte Schriften, Sonderband S. 88). A Igreja recebe de Deus o mandato de levar os homens da sua existência limitada e isolada a uma comunhão universal, do natural ao sobrenatural, da fugacidade ao cumprimento no fim dos tempos. No bonito livrinho sobre os Anjos, a este propósito ele afirma: «O caminho da Igreja conduz da Jerusalém terrestre à celeste (...) à cidade dos Anjos e dos Santos» (Buch von den Engeln, Einleitung).

O ponto de partida deste caminho é a índole vinculante da Sagrada Escritura. Segundo Peterson, a Sagrada Escritura torna-se e é vinculante não enquanto tal, pois não está sozinha em si mesma, mas na hermenêutica da Tradição apostólica que, por sua vez, se concretiza na sucessão apostólica, e assim a Igreja conserva a Escritura numa actualidade viva e contemporaneamente interpreta-a. Através dos Bispos, que se encontram na sucessão apostólica, o testemunho da Escritura permanece vivo na Igreja pelas convicções de fé permanentemente válidas da Igreja, que encontramos sobretudo no credo e no dogma. Tais convicções manifestam-se continuamente na liturgia como espaço vivo da Igreja para o louvor a Deus. O Ofício divino celebrado na terra encontra-se, portanto, numa relação indissolúvel com a Jerusalém celeste: ali é oferecido a Deus e ao Anjo o verdadeiro e eterno sacrifício de louvor, do qual a celebração terrena é apenas imagem. Quem participa na Santa Missa detém-se quase no limiar da esfera celeste, da qual contempla o culto que se realiza entre os Anjos e os Santos. Em qualquer lugar onde a Igreja terrestre entoa o seu louvor eucarístico, ela une-se a esta alegre assembleia celeste em que, nos Santos, já chegou uma parte de si mesma, e dá esperança a quantos ainda estão a caminho nesta terra rumo ao cumprimento eterno.

Talvez seja este o ponto, em que devo inserir uma reflexão pessoal. Descobri pela primeira vez a figura de Erik Peterson em 1951. Então eu era Capelão em Bogenhausen e o director da editora local Kösel, senhor Wild, deu-me o volume recém-publicado «Theologische Traktate» (Tratados teológicos). Li-o com curiosidade crescente e apaixonei-me deveras por este livro, porque ali havia a teologia que eu procurava: uma teologia que emprega toda a seriedade histórica para compreender e estudar os textos, analisando-os com toda a seriedade da pesquisa histórica, e que não os deixa permanecer no passado, mas que, na sua investigação, participa na auto-superação da letra, entra nesta auto-superação e deixa-se conduzir por ela e assim entra em contacto com Aquele de que a própria teologia provém: com o Deus vivo. E deste modo o hiato entre o passado, que a filologia analisa, e o hoje é ultrapassado por si próprio, porque a palavra leva ao encontro com a realidade, e toda a actualidade daquilo que está escrito, que transcende a si mesmo rumo à realidade, torna-se viva e concreta. Assim, dele aprendi de modo mais essencial e profundo o que é realmente a teologia, e cheguei até a sentir admiração, porque aqui não se diz apenas o que se pensa, mas este livro é a expressão de um caminho, que era a paixão da sua vida.

De maneira paradoxal, precisamente o intercâmbio de cartas com Harnack exprime ao máximo a repentina atenção que Peterson estava a receber. Harnack confirmou, aliás, já tinha escrito precedente e independentemente, que o princípio formal católico, segundo o qual «a Escritura vive na Tradição, e a Tradição vive na forma viva da Sucessão», é o princípio originário e objectivo, e que o conceito de «sola Scriptura» não funciona. Peterson recebeu esta afirmação do teólogo liberal em toda a sua seriedade e por ela foi despertado, alterar, dobrar, transformar, e assim encontrou o caminho para a conversão. E deste modo, deu verdadeiramente um passo como Abraão, segundo quanto ouvimos no início da Carta aos Hebreus: «Não temos aqui uma cidade permanente». Ele passou da segurança de uma cátedra à incerteza, sem uma morada, e permaneceu a vida inteira desprovido de uma base segura e sem uma pátria certa, autenticamente a caminho com a fé e pela fé, persuadido de que neste estar a caminho, sem uma morada, estava em casa de uma outra forma, aproximando-se cada vez mais da liturgia celeste, que o tinha tocado.

De tudo isto compreende-se que muitas coisas pensadas e escritas por Peterson permaneceram fragmentárias por causa da situação precária da sua vida, depois da perda da cátedra, a seguir à sua conversão. Mas embora tivesse que viver sem a segurança de um salário fixo, casou aqui em Roma e constituiu uma família. Assim, manifestou de modo concreto a sua convicção interior de que nós, não obstante sejamos estrangeiros — como ele era de forma particular — todavia encontramos um apoio na comunhão do amor, e que no próprio amor existe algo que dura para toda a eternidade. Ele viveu este ser estrangeiro do cristão. Tornou-se estrangeiro na teologia evangélica e permaneceu estrangeiro também na teologia católica, como era então. Hoje sabemos que ele pertence a ambas, que ambas devem aprender dele todo o drama, o realismo e a exigência existencial e humana da teologia. Como afirmou o Cardeal Lehmann, Erik Peterson foi certamente estimado e amado por muitos, um autor recomendado num círculo restrito, mas não recebeu o reconhecimento científico que teria merecido; de certo modo, seria demasiado cedo. Como eu disse, ele era um estrangeiro aqui e ali [na teologia católica e na teologia evangélica]. Portanto, nunca se poderá elogiar suficientemente o Cardeal Lehmann por ter tomado a iniciativa de publicar as obras de Peterson numa magnífica edição completa, e a senhora Nichtweiß, a quem ele confiou esta tarefa, que ela desempenha com competência admirável. Assim, a atenção que se lhe dirige através desta edição é muito justa, considerando que agora várias das suas obras foram também traduzidas em italiano, francês, espanhol, inglês, húngaro e até chinês. Faço votos por que, deste modo, seja difundido ulteriormente o pensamento de Peterson, que não se detém nos pormenores, mas que tem sempre uma visão de conjunto da teologia.

Agradeço de coração a todos os presentes por terem vindo. Dirijo o meu agradecimento especial aos organizadores deste Simpósio, sobretudo ao Cardeal Farina, promotor destes evento, e ao Dr. Giancarlo Caronello. Formulo de bom grado os melhores votos por um debate interessante e estimulador, no espírito de Erik Peterson. Espero frutos abundantes deste Congresso, enquanto vos concedo a Bênção apostólica a todos, e a quantos vos são queridos.






AOS PRELADOS DA CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (REGIONAL NORDESTE V) EM VISITA «AD LIMINA APOSTOLORUM» Quinta-feira, 28 de Outubro de 2010



1199 Amados Irmãos no Episcopado,

«Para vós, graça e paz da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo» (
2Co 1,2). Desejo antes de mais nada agradecer a Deus pelo vosso zelo e dedicação a Cristo e à sua Igreja que cresce no Regional Nordeste 5. Lendo os vossos relatórios, pude dar-me conta dos problemas de caráter religioso e pastoral, além de humano e social, com que deveis medir-vos diariamente. O quadro geral tem as suas sombras, mas tem também sinais de esperança, como Dom Xavier Gilles acaba de referir na saudação que me dirigiu, dando livre curso aos sentimentos de todos vós e do vosso povo.

Como sabeis, nos sucessivos encontros com os diversos Regionais da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, tenho sublinhado diferentes âmbitos e respectivos agentes do multiforme serviço evangelizador e pastoral da Igreja na vossa grande Nação; hoje, gostaria de falar-vos de como a Igreja, na sua missão de fecundar e fermentar a sociedade humana com o Evangelho, ensina ao homem a sua dignidade de filho de Deus e a sua vocação à união com todos os homens, das quais decorrem as exigências da justiça e da paz social, conforme à sabedoria divina.

Entretanto, o dever imediato de trabalhar por uma ordem social justa é próprio dos fiéis leigos, que, como cidadãos livres e responsáveis, se empenham em contribuir para a reta configuração da vida social, no respeito da sua legítima autonomia e da ordem moral natural (cf. Deus caritas est ). O vosso dever como Bispos junto com o vosso clero é mediato, enquanto vos compete contribuir para a purificação da razão e o despertar das forças morais necessárias para a construção de uma sociedade justa e fraterna. Quando, porém, os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas o exigirem, os pastores têm o grave dever de emitir um juízo moral, mesmo em matérias políticas (cf. Gaudium et spes GS 76).

Ao formular esses juízos, os pastores devem levar em conta o valor absoluto daqueles preceitos morais negativos que declaram moralmente inaceitável a escolha de uma determinada ação intrinsecamente má e incompatível com a dignidade da pessoa; tal escolha não pode ser resgatada pela bondade de qualquer fim, intenção, conseqüência ou circunstância. Portanto, seria totalmente falsa e ilusória qualquer defesa dos direitos humanos políticos, econômicos e sociais que não compreendesse a enérgica defesa do direito à vida desde a concepção até à morte natural (cf. Christifideles laici CL 38). Além disso no quadro do empenho pelos mais fracos e os mais indefesos, quem é mais inerme que um nascituro ou um doente em estado vegetativo ou terminal? Quando os projetos políticos contemplam, aberta ou veladamente, a descriminalização do aborto ou da eutanásia, o ideal democrático – que só é verdadeiramente tal quando reconhece e tutela a dignidade de toda a pessoa humana – é atraiçoado nas suas bases (cf. Evangelium vitae EV 74). Portanto, caros Irmãos no episcopado, ao defender a vida «não devemos temer a oposição e a impopularidade, recusando qualquer compromisso e ambigüidade que nos conformem com a mentalidade deste mundo» (ibidem,82).

Além disso, para melhor ajudar os leigos a viverem o seu empenho cristão e sócio-político de um modo unitário e coerente, é «necessária — como vos disse em Aparecida — uma catequese social e uma adequada formação na doutrina social da Igreja, sendo muito útil para isso o "Compêndio da Doutrina Social da Igreja"» (Discurso inaugural da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, 3). Isto significa também que em determinadas ocasiões, os pastores devem mesmo lembrar a todos os cidadãos o direito, que é também um dever, de usar livremente o próprio voto para a promoção do bem comum (cf. Gaudium et spes GS 75).

Neste ponto, política e fé se tocam. A fé tem, sem dúvida, a sua natureza específica de encontro com o Deus vivo que abre novos horizontes muito para além do âmbito próprio da razão. «Com efeito, sem a correção oferecida pela religião até a razão pode tornar-se vítima de ambigüidades, como acontece quando ela é manipulada pela ideologia, ou então aplicada de uma maneira parcial, sem ter em consideração plenamente a dignidade da pessoa humana» (Viagem Apostólica ao Reino Unido, Encontro com as autoridades civis, 17 de setembro de 2010).

Só respeitando, promovendo e ensinando incansavelmente a natureza transcendente da pessoa humana é que uma sociedade pode ser construída. Assim, Deus deve «encontrar lugar também na esfera pública, nomeadamente nas dimensões cultural, social, econômica e particularmente política» (Caritas in veritate ). Por isso, amados Irmãos, uno a minha voz à vossa num vivo apelo a favor da educação religiosa, e mais concretamente do ensino confessional e plural da religião, na escola pública do Estado.

Queria ainda recordar que a presença de símbolos religiosos na vida pública é ao mesmo tempo lembrança da transcendência do homem e garantia do seu respeito. Eles têm um valor particular, no caso do Brasil, em que a religião católica é parte integral da sua história. Como não pensar neste momento na imagem de Jesus Cristo com os braços estendidos sobre a baía da Guanabara que representa a hospitalidade e o amor com que o Brasil sempre soube abrir seus braços a homens e mulheres perseguidos e necessitados provenientes de todo o mundo? Foi nessa presença de Jesus na vida brasileira, que eles se integraram harmonicamente na sociedade, contribuindo ao enriquecimento da cultura, ao crescimento econômico e ao espírito de solidariedade e liberdade.

Amados Irmãos, confio à Mãe de Deus e nossa, invocada no Brasil sob o título de Nossa Senhora Aparecida, estes anseios da Igreja Católica na Terra de Santa Cruz e de todos os homens de boa vontade em defesa dos valores da vida humana e da sua transcendência, junto com as alegrias e esperanças, as tristezas e angústias dos homens e mulheres da província eclesiástica do Maranhão. A todos coloco sob a Sua materna proteção, e a vós e ao vosso povo concedo a minha Benção Apostólica.






AOS PARTICIPANTES NA PLENÁRIA DA PONTIFÍCIA ACADEMIA DAS CIÊNCIAS Sala Clementina

1200
Quinta-feira, 28 de Outubro de 2010




Excelência,
Prezadas senhoras e senhores

É com prazer que saúdo todos vós aqui presentes no momento em que se reúne nesta Sessão Plenária a Pontifícia Academia das Ciências, para reflectir sobre «A herança científica do século XX». Saúdo especialmente o Bispo Marcelo Sánchez Sorondo, Chanceler da Academia. Aproveito também esta oportunidade para recordar com afecto e gratidão o Professor Nicola Cabibbo, vosso saudoso presidente. Juntamente com todos vós, confio com devoção a Deus Pai misericordioso a sua nobre alma.

A história da ciência no século XX está sem dúvida marcada por conquistas e grandes progressos. Infelizmente, a imagem popular da ciência do século XX é por vezes caracterizada de forma diferente, por dois elementos extremos. «Por um lado, a ciência é considerada uma panaceia, como é confirmado pelas suas notáveis conquistas do último século. Com efeito, os seus inúmeros progressos foram tão determinantes e velozes que parecem confirmar a opinião segundo a qual a ciência poderia responder a todos as questões da existência humana, inclusive às suas mais altas aspirações. Por outro, há pessoas que têm receio da ciência e dela tomam distância, por causa de preocupantes progressos que fazem reflectir, como a construção e o uso aterrorizador das armas nucleares.

A ciência, claramente, não é definida só por estes dois extremos. A sua tarefa foi e permanece uma paciente e todavia apaixonada procura da verdade sobre o cosmo, a natureza e a criação do ser humano. Nesta procura, houve muitos sucessos e fracassos, vitórias e derrotas. Os desenvolvimentos da ciência foram quer edificantes, como quando foram descobertas a complexidade da natureza e os seus fenómenos, superando as nossas expectativas, quer humilhantes, como quando algumas das teorias que deveriam explicar definitivamente estes fenómenos, se revelaram só parciais.

Todavia, também os resultados provisórios constituem uma concreta contribuição para revelar a correspondência entre o intelecto e as realidades naturais, com base nas quais as gerações vindouras poderão edificar ulteriormente.

O progresso realizado no âmbito do conhecimento científico no século xx, nas suas várias disciplinas, conduziu a uma maior tomada de consciência sobre o lugar que o homem e este planeta ocupam no universo. Em todas as ciências, o comum denominador continua a ser a noção de experimentação como um método estruturado para analisar a natureza. Nos últimos séculos, o homem realizou sem dúvida muitos mais progressos em comparação com a precedente história da humanidade, embora nem sempre no conhecimento de si mesmo e de Deus, mas certamente no conhecimento do macrocosmo e do microcosmo. O nosso encontro hoje, caros amigos, é a prova do apreço da Igreja pelo progresso da pesquisa científica e da sua gratidão pelos esforços científicos, que contemporaneamente encoraja e do qual traz benefícios. Actualmente, os próprios cientistas apreciam cada vez mais a necessidade de abertura à filosofia para descobrir o fundamento lógico e epistemológico da própria metodologia e das próprias conclusões. Por sua vez, a Igreja está convicta de que a actividade científica finalmente beneficia do reconhecimento da dimensão espiritual do homem e da sua procura de uma resposta definitiva, que permita o reconhecimento da existência de um mundo independentemente de nós, que não formos capazes de entender completamente e que podemos penetrar só na medida em que formos capazes de nos ancorar na sua própria lógica. Os cientistas não criam o mundo, aprendem sobre ele e tentam imitá-lo, seguindo as leis e a inteligibilidade que a natureza nos manifesta. A experiência do cientista como ser humano consiste por conseguinte na percepção de uma constante, uma lei, um logos que ele não criou mas que ele próprio observou: com efeito, isto leva-nos a aceitar a existência de uma Razão omnipotente, que é diferente daquela do homem e suporta o mundo. É este o ponto focal do encontro entre as ciências naturais e a religião. Por conseguinte, a ciência torna o lugar do diálogo, um encontro entre o homem e a natureza e, potencialmente, também entre o homem e o seu Criador.

Enquanto observamos o século XXI, gostaria de propor dois argumentos sobre os quais reflectir ainda mais. Em primeiro lugar, ao crescer profundamente dentro de nós a maravilha perante a complexidade da natureza, graças aos resultados cada vez mais numerosos das ciências, a necessidade de uma abordagem interdisciplinar coincidente com a reflexão filosófica que conduza a uma síntese, é cada vez mais sentida. Em segundo lugar, as conquistas científicas neste novo século deveriam conformar-se sempre com os imperativos da fraternidade e da paz, contribuindo para resolver os grandes problemas da humanidade e concentrando os esforços de todos em direcção ao verdadeiro bem do homem e do desenvolvimento integral dos povos do mundo. O êxito positivo da ciência do século xx dependerá certamente em grande medida da capacidade dos cientistas de procurar a verdade e de aplicar as descobertas de forma que possam caminhar de mãos dadas com a procura do que é justo e bom.

Com esses voto, convido-vos a dirigir o vosso olhar em direcção a Cristo, Sabedoria não criada, e reconhecer no Seu rosto, o Logos do Criador de todas as coisas. Renovando os meus bons votos pelo vosso trabalho, concedo-vos de bom grado as minhas bênçãos apostólicas.







Discursos Bento XVI 1195