Discursos Bento XVI 1201

AOS PARTICIPANTES NUM CONGRESSO DA «FUNDAÇÃO ROMANO GUARDINI» DE BERLIM Sala Clementina

1201
Sexta-feira, 29 de Outubro de 2010




Excelências
Ilustríssimo Senhor Presidente Prof. von Pufendorf
Distintas Senhoras e Senhores
Prezados amigos

É uma alegria para mim, poder dar-vos as boas-vindas aqui, ao Palácio Apostólico, a vós que viestes a Roma por ocasião do Congresso da «Fundação Guardini», sobre o tema: «Herança espiritual e intelectual de Romano Guardini». Em particular, estou grato ao caro Professor von Pufendorf, pelas cordiais palavras que me dirigiu no início deste nosso encontro, com as quais expressou toda a «luta» actual que nos une a Guardini e, ao mesmo tempo, que nos impele a dar continuidade à obra da sua vida.

No discurso de agradecimento por ocasião da celebração do seu 80º aniversário, em Fevereiro de 1965 na Universidade «Ludwig-Maximilian» de Munique, Guardini descreve a tarefa da sua vida, como ele a entende, um modo «de se interrogar, no contínuo intercâmbio espiritual, sobre o significado de uma Weltanschauung cristã» (Stationen und Rückblicke, S. 41). A visão, este olhar abrangente sobre o mundo, não era para Guardini um olhar a partir de fora, como de um mero objecto de pesquisa. E também não era a perspectiva da história do espírito, que examina e pondera aquilo que os outros disseram ou escreveram sobre a forma religiosa de uma época. Segundo Guardini, todos estes pontos de vista eram insuficientes. Nos apontamentos sobre a sua vida, ele afirmava: «O que me interessava imediatamente, não era a questão do que alguém tinha dito acerca da verdade cristã, mas do que é verdadeiro» (Berichte über mein Leben, S. 24). E era este traço do seu ensinamento que nos surpreendia, a nós jovens, porque não queríamos conhecer um «espectáculo pirotécnico» das opiniões existentes dentro ou fora da Cristandade: desejávamos conhecer aquilo que é. E ali havia alguém que, sem medo e ao mesmo tempo com toda a seriedade do pensamento crítico, levantava esta questão e nos ajudava a pensar em conjunto. Guardini não queria conhecer algo, ou muitas coisas, mas aspirava à verdade de Deus e à verdade sobre o homem. Para ele, o instrumento para se aproximar desta verdade era a Weltanschauung — como nessa época era denominada — que se realiza num intercâmbio vivo com o mundo e com os homens. O específico cristão consiste no facto de que o homem sabe que está em relação com Deus, que o precede e à qual ele não se pode subtrair. Não é o nosso pensar o princípio que estabelece o parâmetro de medida, mas é Deus que o ultrapassa e não pode ser reduzido a qualquer entidade criada por nós. Deus revela-se a si mesmo como a verdade, mas ela não é abstracta, mas encontra-se no concreto vivo, enfim, na forma de Jesus Cristo. Porém, quem quiser ver Jesus, a Verdade, deve «inverter a rota», deve sair da autonomia do pensamento arbitrário e orientar-se para a disposição à escuta, que acolhe aquilo que é. Ao contrário, foi este caminho que ele percorreu na sua conversão, plasmou todo o seu pensamento e toda a sua vida como um contínuo sair da autonomia e orientar-se para a escuta, para a recepção. Todavia, mesmo numa relação autêntica com Deus, o homem nem sempre compreende o que Deus diz. Ele tem necessidade de um emendamento, e isto consiste no intercâmbio com os outros, que na Igreja viva de todos os tempos encontrou a sua forma fidedigna, que une todos uns aos outros.

Guardini era um homem do diálogo. As suas obras nasceram quase sem excepção de um diálogo, pelo menos interior. As lições do Professor de filosofia da religião e de Weltanschauung cristã na Universidade de Berlim nos anos 20 representavam sobretudo encontros com personalidades da história do pensamento. Guardini lia as obras destes autores, ouvia-as, aprendia deles o seu modo de ver o mundo e entrava em diálogo com eles, para desenvolver em diálogo com eles aquilo que ele, enquanto pensador católico, tinha para dizer ao pensamento dos mesmos. E deu continuidade a este hábito em Munique, e o facto de que ele estava em diálogo com os Pensadores constituía também a peculiaridade do estilo das suas lições. A sua palavra-chave era: «Vede...», porque ele queria orientar-nos para «ver», enquanto ele mesmo estava em comum diálogo interior com os seus ouvintes. Era esta a novidade em relação à retórica dos velhos tempos: que ele não procurava de modo algum uma retórica, mas falava de maneira totalmente simples connosco e, ao mesmo tempo, falava com a verdade e nos induzia ao diálogo com a verdade. Trata-se de um amplo espectro de «diálogos» com autores como Sócrates, Santo Agostinho ou Pascal, com Dante, Hölderlin, Mörike, Rilke e Dostoievski. Via neles mediadores vivos, que descobrem numa palavra do passado o presente, permitindo vê-lo e vivê-lo de um modo novo. Eles conferem-nos uma força, que pode conduzir-nos novamente a nós mesmos.

Da abertura do homem à verdade segue-se, para Guardini, um ethos, uma base para o nosso comportamento moral em relação ao nosso próximo, como exigência da nossa existência. Dado que o homem pode encontrar Deus, também pode agir bem. Para ele, é válido este primado da ontologia sobre o ethos, do ser, do próprio ser de Deus correctamente entendido e ouvido segue-se portanto o recto agir. Ele dizia: «Uma prática autêntica, ou seja um agir recto, nasce da verdade, e é por ela que se deve lutar» (Ibid., S. 111).

Guardini notava tal anseio pela verdade e a propensão para o que é originário e essencial, sobretudo nos jovens. Nos seus diálogos com a juventude, particularmente no Castelo de Rothenfels, que nessa época graças a Guardini era o centro do movimento juvenil católico, o sacerdote e educador promoveu os ideais do movimento juvenil, como a autodeterminação, a responsabilidade própria e a disposição interior para a verdade; ele purificou-os e aprofundou-os. Liberdade. Sim, mas só é livre — dizia-nos — aquele que «é completamente o que deve ser, segundo a sua natureza [...] Liberdade é verdade» (Auf dem Wege, S. 20). A verdade do homem é, para Guardini, essencialidade e conformidade com o ser. O caminho leva à verdade, quando o homem põe em prática «a obediência do nosso ser em relação ao ser de Deus» (Ibid., S. 21). Isto verifica-se, em última análise, na adoração, que para Guardini pertence ao âmbito do pensamento.

Ao acompanhar a juventude, Guardini procurava também um novo acesso à liturgia. A redescoberta da liturgia era para ele uma redescoberta da unidade entre espírito e corpo na totalidade do único ser humano, porque o gesto litúrgico é sempre, ao mesmo tempo, um gesto corporal e espiritual. O rezar dilata-se através do agir corporal e comunitário, revelando-se assim a unidade de toda a realidade. A liturgia é um agir simbólico. O símbolo como quinta-essência da unidade entre o espiritual e o material perde-se onde ambos se separam, onde o mundo se divide de modo dualista em espírito e corpo, em sujeito e objecto. Guardini estava profundamente convicto de que o homem é espírito no corpo e corpo no espírito e que, portanto, a liturgia e o símbolo o levam à essência de si mesmo, conduzindo-o finalmente à verdade através da adoração.

1202 Entre os grandes temas de vida de Guardini, a relação entre fé e mundo é de actualidade permanente. Guardini via sobretudo na Universidade o lugar da busca da verdade. A Universidade pode sê-lo, mas só quando é livre de qualquer instrumentalização e vantagem para fins políticos e de outros tipos. Hoje, num mundo de globalização e fragmentação, é ainda mais necessário que se promova este propósito, um propósito muito querido à «Fundação Guardini» para cuja realização foi criada a «Cátedra Guardini».

Exprimo mais uma vez o meu cordial agradecimento a todos os presentes, por terem vindo. Possa a frequentação da obra de Guardini refinar a sensibilidade pelos fundamentos cristãos da nossa cultura e sociedade. É de bom grado que concedo a todos vós a Bênção apostólica.





ENCONTRO COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES

DA AÇÃO CATÓLICA ITALIANA

Praça de São Pedro

Sábado, 30 de Outubro de 2010




Pergunta de um jovem da ACR:

Santidade, o que significa tornar-se grande? Que devo fazer para crescer segundo Jesus? Quem me pode ajudar?

Queridos amigos da Acção Católica Italiana!

Sinto-me feliz por me encontrar convosco, tão numerosos, e agradeço-vos o vosso afecto! Dirijo a todos de coração as boas-vindas. Sobretudo, saúdo o Presidente, Prof. Franco Miano, e o Assistente-Geral, D. Domenico Sigalini. Saúdo o Cardeal Angelo Bagnasco, Presidente da Conferência Episcopal Italiana, os demais Bispos, os sacerdotes, os educadores e os pais que quiseram acompanhar-vos.

Ouvimos a pergunta do jovem da ACR. A resposta mais bonita sobre o que significa tornar-se grandes todos vós a tendes escrita nas vossas t-shirts, nos barretes, nos cartazes: «Há mais». Este vosso mote fez-me reflectir. O que faz uma criança para ver se cresceu? Confronta a sua altura com a dos companheiros; e imagina que é mais alto, para se sentir maior. Mas crescer em altura não significa ser «grandes»! «Há mais». E este «mais» é o vosso coração que vo-lo diz, o qual deseja ter muitos amigos, que se sente feliz quando se comporta bem, quando sabe dar alegria ao pai e à mãe, mas sobretudo quando encontra um amigo insuperável, muito bom e único que é Jesus. Vós sabeis quanto Jesus amava as criancinhas e os jovens! Certa vez muitas crianças como vós aproximaram-se de Jesus, porque se tinha estabelecido um bom entendimento, e no seu olhar viam o reflexo do amor de Deus; mas havia também adultos que, ao contrário, se sentiam perturbados por aquelas crianças. Acontece também a vós algumas vezes, quando brincais, quando vos divertis com os amigos, que os grandes vos dizem para não incomodar... Pois bem, Jesus reprova precisamente aqueles adultos e diz-lhes: Deixai estar aqui todas estas crianças, porque têm no coração o segredo do Reino de Deus. Assim Jesus ensinou aos adultos que também vós sois «grandes» e que os adultos devem guardar a vossa grandeza, que é a de ter um coração que ama Jesus. Queridas crianças, queridos jovens: ser «grandes» significa amar muito Jesus, ouvi-lo e falar com Ele na oração, encontrá-lo nos Sacramentos, na Santa Missa, na Confissão; significa conhecê-lo cada vez mais e também fazê-lo conhecer aos outros, estar com os amigos, também com os mais pobres, os doentes, para crescer juntos. E a acr é precisamente parte daquele «mais», porque não sois os únicos a amar Jesus — sois tantos, vemo-lo também esta manhã! — mas ajudais-vos uns aos outros; porque não quereis deixar que nenhum amigo esteja só, mas quereis oferecer a todos em voz alta que é bom ter Jesus como amigo e ser amigos de Jesus; e é bom sê-lo juntos, ajudados pelos vossos pais, sacerdotes, animadores! Assim tornais-vos deveras grandes, não só porque a vossa altura aumenta, mas porque o vosso coração se abre à alegria e ao amor que Jesus vos doa.

Pergunta de uma menina:

1203 Santidade, os nossos educadores da Acção Católica dizem-nos que para nos tornarmos grandes é preciso aprender a amar, mas muitas vezes nós perdemo-nos e sofremos nas nossas relações, nas nossas amizades, nos nossos primeiros amores. Que significa amar profundamente? Como aprender a amar?

Sem dúvida, é importante aprender a amar, mas a amar deveras! Na adolescência paramos diante do espelho e apercebemo-nos que estamos a mudar. Mas enquanto continuardes a olhar para vós mesmos, nunca vos tornais grandes! Tornais-vos grandes quando já não permitis que o espelho seja a verdade de vós mesmos, mas quando deixais que ela seja dita por quem é vosso amigo. Tornais-vos grandes se fordes capazes de amar. Mas este amor deve ser levado dentro daquele «mais» que hoje dizeis a todos. «Há mais»! Também eu na minha juventude queria algo mais do que a sociedade e a mentalidade do tempo me apresentava. Queria respirar ar puro, sobretudo desejava um mundo bom como Deus, o Pai de Jesus, o tinha querido para todos nós.

É verdade: vós não podeis e não deveis adaptar-vos a um amor à mercê de intercâmbio, que se usa sem respeito de si e do próximo, incapaz de castidade e de pureza. Muito «amor» proposto pelos mass media, pela internet, é egoísmo, fechamento, dá-vos a ilusão por um momento, não vos torna felizes, não vos faz crescer, mas amarra-vos como uma cadeia que sufoca os pensamentos e os sentimentos mais bonitos, os impulsos verdadeiros do coração, aquela força insuprimível que é o amor e que encontra em Jesus a sua máxima expressão e no Espírito Santo a força e o fogo que incendia as vossas vidas, os vossos pensamentos, os vossos afectos. Certamente também custa sacrifício viver o amor de modo verdadeiro, mas tenho a certeza que vós não tendes medo da fadiga de um amor empenhativo e autêntico. É o único que dá a verdadeira alegria! Há uma prova que vos diz se o verdadeiro amor está a crescer bem: se não excluis os outros da vossa vida, sobretudo os vossos amigos que sofrem e estão sozinhos, as pessoas em dificuldade, e se abris o vosso coração ao grande Amigo que é Jesus. Também a Acção Católica vos ensina os caminhos para aprender o amor autêntico: a participação na vida da Igreja, da vossa comunidade cristã, o querer bem aos vossos amigos do grupo de ac, a disponibilidade para com os coetâneos que encontrais na escola, na paróquia ou noutros ambientes, a companhia da Mãe de Jesus, Maria, que sabe guardar o vosso coração e guiar-vos na vida do bem. De resto, na Acção Católica, tendes tantos exemplos de amor genuíno, bom e verdadeiro: o beato Pier Giorgio Frassati, o beato Alberto Marvelli; amor que chega até ao sacrifício da vida, como a beata Pierina Morosini e a beata Antonia Mesina.

Meninos da Acção Católica, aspirai por metas grandes porque Deus vos dá a força. Aquele «mais» é ser jovens e crianças que decidem amar como Jesus, ser protagonistas da própria vida, protagonistas na Igreja, testemunhas da fé entre os vossos coetâneos. O «mais» é a formação humana e cristã que experimentais na ac, que une a vida espiritual, a fraternidade, o testemunho público da fé, a comunhão eclesial, o amor à Igreja, a colaboração com os Bispos e com os sacerdotes, a amizade espiritual. «Tornar-se grandes juntos» diz a importância de fazer parte de um grupo e de uma comunidade que vos ajudam a crescer e a descobrir a vossa vocação.

Pergunta de uma educadora:

Que significa hoje ser educadores? Como enfrentar as dificuldades que encontramos no nosso serviço na Acção Católica? Como fazer com que toda a comunidade e a sociedade se ocupe do presente e do futuro das novas gerações?

Ser educadores significa ter uma alegria no coração e comunicá-la a todos para tornar a vida bela e boa; significa oferecer razões e metas para o caminho da vida, oferecer a beleza da pessoa de Jesus e fazer apaixonar-se por Ele: pelo seu estilo de vida, pela sua liberdade, pelo seu grande amor cheio de confiança em Deus Pai. Significa sobretudo ter sempre alta a meta de cada existência para aquele «mais» que nos vem de Deus. Isto exige um conhecimento pessoal de Jesus, um contacto íntimo, quotidiano, amoroso com Ele na oração, na meditação sobre a Palavra de Deus, na fidelidade aos Sacramentos, à Eucaristia, à Confissão; exige que se comunique a alegria de estar na Igreja, de ter amigos com os quais partilhar não só as dificuldades, mas também a beleza e as surpresas da vida de fé.

Sabeis bem que não sois donos dos jovens, mas servos da sua alegria em nome de Jesus, guias para Ele. Recebestes um mandato da Igreja para esta tarefa. Quando aderis à Acção Católica dizeis a vós mesmos e a todos que amais a Igreja, que estais dispostos a ser co-responsáveis com os Pastores da sua vida e missão, numa associação que se dedica ao bem das pessoas, aos seus e aos vossos caminhos de santidade, à vida das comunidades cristãs no dia-a-dia da sua missão. Sois bons educadores se souberdes comprometer todos para o bem dos mais jovens. Não podeis ser auto-suficientes, mas deveis fazer sentir a urgência da educação das jovens gerações a todos os níveis. Sem a presença da família, por exemplo, arriscais construir na areia; sem uma colaboração com a escola não se forma a inteligência profunda da fé; sem um comprometimento de quantos se ocupam do tempo livre e da comunicação a vossa obra paciente arrisca não ser eficaz, não incidir na vida quotidiana. Tenho a certeza de que a Acção Católica está bem radicada no território e tem a coragem de ser sal e luz. A vossa presença aqui, esta manhã, diz não só a mim, mas a todos que é possível educar, que é cansativo mas bom dar entusiasmo aos jovens e às crianças. Tende a coragem, gostaria de dizer a audácia de não deixar ambiente algum privado de Jesus, da sua ternura que fazeis experimentar a todos, também aos mais necessitados e abandonados, com a vossa missão de educadores.

Queridos amigos, estou-vos grato por terdes participado neste encontro. Gostaria de me deter ainda convosco, porque quando estou no meio de tanta alegria e entusiasmo, também eu fico cheio de alegria! Mas o tempo passa depressa. Queridos amigos, convido-vos a continuar o vosso caminho, a ser fiéis à identidade e à finalidade da Acção Católica. A força do amor de Deus pode fazer em vós coisas grandiosas. Garanto-vos que me recordo de todos na minha oração e confio-vos à intercessão materna da Virgem Maria, Mãe da Igreja, para que como Ela possais testemunhar que «há mais», a alegria da vida plena da presença do Senhor. Obrigado a todos!





                                                                                  Novembro de 2010




AOS PRELADOS DA CONFERÊNCIA NACIONAL

DOS BISPOS DO BRASIL (REGIONAL SUL II) EM VISITA «AD LIMINA APOSTOLORUM» Quinta-feira, 5 de Novembro de 2010

1204 Venerados Irmãos no Episcopado,

«O Deus da esperança vos encha de toda a alegria e paz em vossa vida de fé, para que abundeis na esperança pelo poder do Espírito Santo» (
Rm 15,13) a fim de guiar o vosso povo à plenitude da salvação em Cristo. De coração saúdo a todos e cada um de vós, amados Pastores do Regional Sul 2 em Visita ad limina Apostolorum, e agradeço as palavras que me dirigiu o vosso Presidente, Dom Moacyr, fazendo-se intérprete dos sentimentos de comunhão que vos unem ao Sucessor de Pedro. Por isso vos estou grato. Esta casa é também a vossa: sede bem-vindos! Nela podeis experimentar a universalidade da Igreja de Cristo que se estende até aos extremos confins da terra.

Por sua vez, cada uma das vossas Igrejas particulares, queridos Bispos, é o generoso ponto de chegada de uma missão universal, o aflorar «aqui e agora» da Igreja universal. Neste caso, a justa relação entre «universal» e «particular» verifica-se não quando o universal retrocede diante do particular, mas quando o particular se abre ao universal e se deixa atrair e valorizar por ele. Na idéia divina, a Igreja é uma só: o Corpo de Cristo, a Esposa do Cordeiro, a Jerusalém do Alto, esta Cidade definitiva que seria o objetivo mais profundo da criação querida como o lugar onde se realiza a vontade de Deus e a terra se torna céu. Recordo-vos estes princípios, não porque os ignoreis, mas porque nos ajudam a bem situar as pessoas consagradas na Igreja. Com efeito, nesta, a unidade e a pluralidade não só não se opõem mas enriquecem-se reciprocamente na medida em que procuram a edificação do único Corpo de Cristo, a Igreja, por meio do «amor que une a todos na perfeição» (Col 3,14).

Porção eleita do Povo de Deus, os consagrados e consagradas lembram hoje «uma planta com muitos ramos, que assenta as suas raízes no Evangelho e produz abundantes frutos em cada estação da Igreja» (Exort. ap. Vita consecrata, 5). Sendo a caridade o primeiro fruto do Espírito (cf. Ga 5,22) e o maior de todos os carismas (cf. 1Co 12,31), a comunidade religiosa enriquece a Igreja de que é parte viva, antes de tudo com o seu amor: ama a sua Igreja particular, enriquece-a com seus carismas e abre-a a uma dimensão mais universal. As delicadas relações entre as exigências pastorais da Igreja particular e a especificidade carismática da comunidade religiosa foram tratadas pelo documento Mutuae relationes, do qual está longe tanto a idéia de isolamento e de independência da comunidade religiosa em relação à Igreja particular, como a da sua prática absorção no âmbito da Igreja particular. «Como a comunidade religiosa não pode agir independentemente ou como alternativa ou, menos ainda, contra as diretrizes e a pastoral da Igreja particular, assim a Igreja particular não pode dispor a seu bel-prazer, segundo as suas necessidades, da comunidade religiosa ou de alguns dos seus membros» (Doc. Vida fraterna em comunidade, 60).

Perante a diminuição dos membros em muitos Institutos e o seu envelhecimento, evidente em algumas partes do mundo, muitos se interrogam se a vida consagrada seja ainda hoje uma proposta capaz de atrair os jovens e as jovens. Bem sabemos, queridos Bispos, que as várias Famílias religiosas desde a vida monástica até às congregações religiosas e sociedades de vida apostólica, desde os institutos seculares até às novas formas de consagração tiveram a sua origem na história, mas a vida consagrada como tal teve origem com o próprio Senhor que escolheu para Si esta forma de vida virgem, pobre e obediente. Por isso a vida consagrada nunca poderá faltar nem morrer na Igreja: foi querida pelo próprio Jesus como parcela irremovível da sua Igreja. Daqui o apelo ao compromisso geral na pastoral vocacional: se a vida consagrada é um bem de toda a Igreja, algo que interessa a todos, também a pastoral que visa promover as vocações à vida consagrada deve ser um empenho sentido por todos: Bispos, sacerdotes, consagrados e leigos.

Entretanto, como afirma o decreto conciliar Perfectae caritatis, «a conveniente renovação dos Institutos depende sobretudo da formação dos membros» (n. 18). Trata-se de uma afirmação fundamental para toda a forma de vida consagrada. A capacidade formativa de um Instituto, quer na sua fase inicial quer nas fases sucessivas, está no centro de todo o processo de renovação. «De fato, se a vida consagrada é, em si mesma, uma progressiva assimilação dos sentimentos de Cristo, resulta evidente que um tal caminho terá de durar a vida inteira para permear toda a pessoa (...) e torná-la semelhante ao Filho que Se entrega ao Pai pela humanidade. Assim entendida, a formação já não é apenas um tempo pedagógico de preparação para os votos, mas representa um modo teológico de pensar a própria vida consagrada, que em si mesma é uma formação jamais terminada, uma participação na ação do Pai que, através do Espírito plasma no coração os sentimentos do Filho» (Instr. Partir de Cristo, 15).

Pelo modo que considerardes mais oportuno, venerados Irmãos, fazei chegar às vossas comunidades de consagrados e consagradas, independentemente do serviço claustral ou apostólico que estão desempenhando, a viva gratidão do Papa que de todas e todos se recorda nas suas orações, lembrando em especial os idosos e doentes, quantos atravessam momentos de crise e de solidão, quem sofre e se sente confuso e também os jovens e as jovens que hoje batem à porta das suas Casas e pedem para se entregar a Jesus Cristo na radicalidade do Evangelho. Agora, invocando o celeste patrocínio de Maria, modelo perfeito de consagração a Cristo, confirmo-vos mais uma vez a minha estima fraterna e concedo-vos, extensiva a todos os fiéis confiados aos vossos cuidados pastorais, uma propiciadora Bênção Apostólica.





VIAGEM APOSTÓLICA A SANTIAGO DE COMPOSTELA E BARCELONA

(6-7 DE NOVEMBRO DE 2010)


ENTREVISTA AOS JORNALISTAS DURANTE O VOO PARA A ESPANHA Sábado, 6 de Novembro de 2010

61110

P.: Santidade, na mensagem para o recente Congresso dos Santuários que se realizou precisamente em Santiago de Compostela, Vossa Santidade disse que vive o seu pontificado «com os sentimentos do peregrino». Também no seu Brasão, há a concha do peregrino. Pode dizer-nos algo sobre a perspectiva da peregrinação, também na sua vida pessoal e na sua espiritualidade, e sobre os sentimentos com que vai como peregrino a Santiago?

Santo Padre: Bom dia! Poderia dizer que estar a caminho já está inscrito na minha biografia — Marktl, Tittmoning, Tübingen, Regensburg, München, Roma — mas talvez este seja um aspecto exterior. Contudo, fez-me pensar na intensidade desta vida, o estar a caminho... Naturalmente, contra a peregrinação poder-se-ia dizer: Deus está em toda a parte, não há necessidade de ir de um lugar para outro. Mas também é verdade que a fé, segundo a sua essência, é um «ser peregrino».

A Carta aos Hebreus demonstra o que é a fé na figura de Abraão, que sai da sua terra e permanece um peregrino rumo ao futuro por toda a sua vida; e este movimento abraâmico permanece no acto da fé, é um ser peregrino sobretudo interiormente, mas deve também expressar-se exteriormente. Às vezes, sair da quotidianidade, do mundo do útil, do utilitarismo, sair só para estar realmente a caminho rumo à transcendência; transcender-se a si mesmo, transcender a quotidianidade para encontrar também uma nova liberdade, um tempo de reconsideração interior, de identificação de si mesmo, de ver o outro, Deus, e assim é também a peregrinação, sempre: não só um sair de si em direcção ao maior, mas também um ir junto. A peregrinação reúne: vamos juntos para o outro e assim encontramo-nos reciprocamente. É suficiente dizer que os caminhos de Santiago são um elemento na formação da unidade espiritual do Continente europeu. Aqui, peregrinando, encontraram-se, encontraram a identidade comum europeia, e também hoje renasce este movimento, esta necessidade de ser movimento espiritual e fisicamente, de se encontrar uns com os outros e desta forma encontrar silêncio, liberdade, renovação e Deus.

P.: E agora desviemos o olhar para Barcelona. Que significado pode ter a dedicação de um templo como a Sagrada Família no início do século XXI? E há algum aspecto específico da visão de Gaudí que o fez admirar de modo particular?

Santo Padre: Na realidade, esta catedral é também um sinal próprio para o nosso tempo. Vejo na visão de Gaudí sobretudo três elementos.

O primeiro, esta síntese entre continuidade e novidade, tradição e criatividade. Gaudí teve a coragem de se inserir na grande tradição das catedrais, de ousar de novo, no seu século — com uma visão totalmente nova — esta realidade: a catedral, lugar do encontro entre Deus e o homem, numa grande solenidade; e esta coragem de permanecer na tradição, mas com uma nova criatividade, que renova a tradição e demonstra a unidade da história e o progresso da história, é muito bonito.

Segundo. Gaudí queria este trinómio: livro da Natureza, livro da Escritura, livro da Liturgia. E esta síntese precisamente hoje é de grande importância. Na liturgia, a Escritura torna-se presente, torna-se realidade hoje: já não é uma Escritura de há dois mil anos, mas deve ser celebrada, realizada. E na celebração da Escritura fala a criação e encontra a sua verdadeira resposta porque, como nos diz São Paulo, a criatura sofre e, em vez de ser destruída, desprezada, espera o filho de Deus, ou seja, os que a vêem na luz de Deus. E assim — penso — esta síntese entre sentido da criação, Escritura e adoração é precisamente uma mensagem muito importante no presente.

E, por fim — terceiro ponto — esta catedral nasceu de uma devoção típica do século XIX. São José, a Sagrada Família de Nazaré, o mistério de Nazaré. Mas precisamente esta devoção de ontem, poder-se-ia dizer, é de grandíssima actualidade, porque o problema da família, da renovação da família como célula fundamental da sociedade, é o grande tema de hoje e indica-nos para onde podemos ir, quer na construção da sociedade quer na unidade entre fé e vida, entre religião e sociedade. Família é o tema fundamental que aqui se expressa, dizendo que o próprio Deus se tornou filho numa família e nos chama a construir e a viver a família.

P.: Gaudí e a Sagrada Família representam com particular eficácia o binómio fé-arte. Como pode a fé reencontrar hoje o seu lugar no mundo da arte e da cultura? É este um dos temas mais importantes do seu pontificado?

Santo Padre: É assim. Sabeis que eu insisto muito sobre a relação entre fé e razão, que a fé, e a fé cristã, tem a sua identidade só na abertura à razão, e que a razão só se torna ela mesma se se transcende para a fé. Mas igualmente importante é a relação entre fé e arte, porque a verdade, finalidade, meta da razão, se exprime na beleza e se torna ela mesma na beleza, se prova como verdade. Portanto, onde há a verdade deve nascer a beleza, onde o ser humano se realiza de modo correcto, bom, expressa-se na beleza. A relação entre verdade e beleza é inseparável e por isso precisamos da beleza. Na Igreja, desde o início, também na grande modéstia e pobreza da época das perseguições, a arte, a pintura, o expressar-se da salvação de Deus nas imagens do mundo, o canto e depois também o edifício, tudo isto é constitutivo para a Igreja e permanece constitutivo para sempre. Assim a Igreja foi mãe das artes durante muitos séculos: o grande tesouro da arte ocidental — música, arquitectura, pintura — nasceu da fé no interior da Igreja. Hoje há um certa «divergência», mas isto prejudica tanto a arte, como a fé: a arte que perde a raiz da transcendência, não se orienta mais para Deus, seria uma arte dividida em dois, perderia a raiz viva; e uma fé que tivesse a arte só no passado, já não seria fiel no presente; e hoje deve expressar-se de novo como verdade, que está sempre presente. Por isso o diálogo ou o encontro, diria o conjunto, entre arte e fé está inscrito na mais profunda essência da fé; devemos fazer o possível para que também hoje a fé se exprima numa arte autêntica, como Gaudí, na continuidade e na novidade, e que a arte não perca o contacto com a fé.

P.: Nestes meses está a ser iniciado o Pontifício conselho para a «nova evangelização». E muitos se perguntaram se precisamente a Espanha, com os desenvolvimentos da secularização e da diminuição rápida da prática religiosa, é um dos países no qual Vossa Santidade pensou como objectivo para este novo Organismo, ou se não é até o objectivo principal. É esta a nossa pergunta.

Santo Padre: Com este Organismo pensei no mundo inteiro porque a novidade do pensamento, a dificuldade de pensar nos conceitos da Escritura, da teologia, é universal, mas há naturalmente um centro e este é o mundo ocidental com o seu secularismo, a sua laicidade, e a continuidade da fé que deve procurar renovar-se para ser fé hoje e para responder ao desafio da laicidade. No Ocidente todos os grandes países têm o seu modo próprio de viver este problema: tivemos, por exemplo as viagens à França, à República Checa, ao Reino Unido, onde em toda a parte está presente de modo específico para cada nação, para cada história, o mesmo problema, e isto é válido também de maneira forte para a Espanha. A Espanha foi desde sempre um país «originário» da fé; pensemos que o renascimento do catolicismo na época moderna se deu sobretudo graças à Espanha; figuras como Santo Inácio de Loyola, Santa Teresa de Ávila e São João de Ávila, são figuras que renovaram realmente o catolicismo, formaram a fisionomia do catolicismo moderno. Mas é igualmente verdade que na Espanha nasceram também uma laicidade, um anticlericalismo, um secularismo forte e agressivo, como vimos precisamente nos anos 30, e esta contenda, ou melhor, este confronto entre fé e modernidade, ambas muito vivazes, verifica-se também hoje de novo na Espanha: por isso, para o futuro da fé e do encontro — e não embate, mas o encontro entre fé e laicidade — tem um ponto central também na cultura espanhola. Neste sentido, pensei em todos os grandes países do Ocidente, mas sobretudo também na Espanha.

P.: Com a viagem a Madrid no próximo ano para a Jornada Mundial da Juventude, Vossa Santidade terá feito três viagens à Espanha, o que não acontece com nenhum outro país. Por que este privilégio? É um sinal de amor ou de particular preocupação?

Santo Padre: Naturalmente, é um sinal de amor. Poder-se-ia dizer que é por acaso que vou três vezes à Espanha. A primeira, para o grande encontro internacional das famílias, em Valença: como poderia o Papa não estar presente, se as famílias do mundo se encontram? No próximo ano a jmj, o encontro da juventude do mundo em Madrid, e o Papa não pode estar ausente nesta ocasião. E, por fim, temos o Ano Santo de Santiago, temos a consagração, depois de mais de cem anos de trabalho, da catedral da Sagrada Família de Barcelona, como poderia o Papa não vir? Em si, portanto, as ocasiões são os desafios, quase uma necessidade de ir, mas o facto que se concentrem precisamente na Espanha tantas ocasiões, mostra também que é realmente um país cheio de dinamismo, de força da fé, e a fé responde aos desafios que estão igualmente presentes na Espanha; por isso dizemos: as circunstâncias fizeram com que eu fosse, mas isto demonstra uma realidade mais profunda, a força da fé e a força do desafio para a fé.

P.: E agora, se quiser dizer qualquer outra coisa para concluir este nosso encontro. Há alguma mensagem especial que espera transmitir à Espanha e ao mundo de hoje com esta viagem?

Santo Padre: Diria que esta viagem tem dois temas. O da peregrinação, do estar a caminho, e o tema da beleza, da expressão da verdade na beleza. Da continuidade entre tradição e renovação. Penso que estes dois temas da viagem são também uma mensagem: estar a caminho, não perder o caminho da fé, procurar a beleza da fé, a novidade e a tradição da fé que sabe expressar-se e encontrar-se com a beleza moderna, com o mundo de hoje.

Obrigado.




Discursos Bento XVI 1201