Discursos Bento XVI 22111

POR OCASIÃO DA INAUGURAÇÃO DO ANO JUDICIÁRIO DO TRIBUNAL DA ROTA ROMANA Sábado, 22 de Janeiro de 2011

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Sala Clementina



Queridos Componentes do Tribunal da Rota Romana!

Sinto-me feliz por vos receber para este encontro anual por ocasião da inauguração do ano judiciário. Dirijo uma saudação cordial ao Colégio dos Prelados Auditores, iniciando pelo Decano, D. Antoni Stankiewicz, ao qual agradeço as gentis palavras. Saúdo os Oficiais, os Advogados e os demais colaboradores deste Tribunal, assim como todos os presentes. Este momento oferece-me a oportunidade de renovar a minha estima pela obra que desempenhais ao serviço da Igreja e de vos encorajar a um empenho cada vez maior num campo tão delicado e importante para a pastoral e para a salus animarum.

A relação entre o direito e a pastoral esteve no centro do debate pós-conciliar sobre o direito canónico. A afirmação muito conhecida do Venerável Servo de Deus João Paulo II, segundo a qual «não é verdade que para ser mais pastoral o direito tem que se tornar menos jurídico» (Alocução à Rota Romana, 18 de Janeiro de 1990, n. 4: AAS 82 [1990], p. 874) expressa a superação radical de uma aparente contraposição. «A dimensão jurídica e a pastoral — dizia — estão inseparavelmente unidas na Igreja peregrina nesta terra. Antes de tudo, existe uma sua harmonia que deriva de comum finalidade: a salvação das almas» (ibidem). No primeiro encontro, que tive convosco em 2006, procurei evidenciar o autêntico sentido pastoral dos processos de nulidade do matrimónio, fundado no amor pela verdade (cf. Alocução à Rota Romana, 28 de Janeiro de 2006: AAS 98 [2006] pp. 135-138). Hoje gostaria de me prolongar sobre a consideração da dimensão jurídica que é ínsita na actividade pastoral de preparação e admissão ao matrimónio, para procurar ressaltar o vínculo existente entre esta actividade e os processos judiciários matrimoniais.

A dimensão canónica da preparação para o matrimónio talvez não seja um elemento de percepção imediata. De facto, por um lado observa-se como nos cursos de preparação para o matrimónio as questões canónicas ocupem um lugar bastante modesto, ou até insignificante, enquanto a tendência é pensar que os futuros esposos tenham um interesse muito limitado pelas problemáticas reservadas aos especialistas. Por outro lado, mesmo se a ninguém passa despercebida a necessidade das actividades jurídicas que precedem o matrimómio, destinadas a certificar que «nada impede a sua válida e lícita celebração» (CDC,
CIC 1066), está difundida a mentalidade segundo a qual o exame dos esposos, as publicações matrimoniais e os outros meios oportunos para realizar as necessárias investigações pré-matrimoniais (cf. ibid., CIC 1067), entre os quais se colocam os cursos de preparação para o matrimónio, constituíram observâncias de natureza exclusivamente formal. De facto, com frequência considera-se que, ao admitir os casais ao matrimónio, os pastores deveriam proceder com minuciosidade, porque está em jogo o direito natural das pessoas que se casam.

A este propósito, seria bom reflectir sobre a dimensão jurídica do próprio matrimónio. Trata-se de um argumento ao qual me referi no contexto de uma reflexão sobre a verdade do matrimónio, na qual afirmei, entre outras coisas: «diante da relativização subjectiva e libertária da experiência sexual a tradição da Igreja afirma com clareza a índole naturalmente jurídica do matrimónio, ou seja, a sua pertença por natureza ao âmbito da justiça nos relacionamentos interpessoais. Nesta perspectiva, o direito entrelaça-se verdadeiramente com a vida e com o amor; como um seu intrínseco dever ser» (Alocução à Rota Romana, 27 de Janeiro de 2007, AAS 99 [2007], p. 90). Por conseguinte, não existe um matrimónio da vida e outro do direito: existe um só matrimónio, o qual é constitutivamente vínculo jurídico real entre o homem e a mulher, um vínculo sobre o qual se baseia a autêntica dinâmica conjugal de vida e de amor. O matrimónio celebrado pelos esposos, aquele do qual se ocupa a pastoral e o que é ressaltado pela doutrina canónica, são uma só realidade natural e salvífica, cuja riqueza dá certamente lugar a uma variedade de abordagens, sem que contudo venha a faltar a sua identidade essencial. O aspecto jurídico está intrinsecamente ligado à essência do matrimónio. Isto compreende-se à luz de uma noção não positivista do direito, mas considerada na óptica da relacionalidade segundo justiça.

O direito de se casar, ou ius connubii, deve ser visto nesta perspectiva. Ou seja, não se trata de uma pretensão subjectiva que deve ser satisfeita pelos pastores mediante um mero reconhecimento formal, independentemente do conteúdo efectivo da união. O direito de contrair matrimónio pressupõe que se possa e se deseje celebrá-lo realmente, portanto na verdade da sua essência tal como é ensinada pela Igreja. Ninguém pode ostentar o direito a uma cerimónia nupcial. De facto, o ius connubii, refere-se ao direito de celebrar um matrimónio autêntico. Por conseguinte, não se negaria o ius connubii no caso que fosse evidente que não subsistem as premissas para o seu exercício, isto é, se faltasse manifestamente a capacidade exigida para casar, ou se a vontade estabelecesse um objectivo que contrasta com a realidade natural do matrimónio.

A este propósito gostaria de reafirmar quanto escrevi depois do Sínodo dos Bispos sobre a Eucaristia: «Considerando a complexidade do contexto cultural no qual a Igreja vive em muitos países, o Sínodo recomendou também que haja o máximo cuidado pastoral na formação dos nubentes e na prévia verificação das suas convicções acerca dos compromissos irrenunciáveis para a validade do sacramento do Matrimónio. Um sério discernimento a este propósito poderá evitar que impulsos emotivos ou razões superficiais induzam os dois jovens a assumir responsabilidades que depois não saberão honrar (cf. Propositio, 40). É demasiado grande o bem que a Igreja e a sociedade inteira esperam do matrimónio e da família fundada sobre ele para não se comprometer profundamente neste específico âmbito pastoral. Matrimónio e família são instituições que devem ser promovidas e defendidas de qualquer equívoco possível sobre a sua verdade, porque qualquer dano a eles causado é de facto uma ferida que se provoca à convivência humana como tal» (Exort. Ap. Pós-sinodal Sacramentum caritatis, 22 de Fevereiro de 2007, n. 29; AAS 99 [2007], p. 130).

A preparação para o matrimónio, nas suas várias fases descritas pelo Papa João Paulo II na Exortação apostólica Familiaris consortio, tem certamente finalidades que transcendem a dimensão jurídica, dado que o seu horizonte é constituído pelo bem integral, humano e cristão, dos cônjuges e dos seus futuros filhos (cf. FC 66: aas 73 [1981], pp. 159-162) destinado em definitiva à santidade da sua vida (cf. CDC CIC 1063, 2). Contudo, nunca devemos esquecer que o objectivo imediato desta preparação é promover a celebração livre de um verdadeiro matrimónio, isto é, a constituição de um vínculo de justiça e amor entre os cônjuges, com as características da unidade e indissolubilidade, ordenado para o bem dos cônjuges e para a procriação e educação da prole, e que entre baptizados constitui um dos sacramentos da Nova Aliança. Com isto não é dirigida ao casal uma mensagem ideológica extrínseca, e muito menos é imposto um modelo cultural; ao contrário, os noivos são postos em condições de descobrir a verdade de uma inclinação natural e de uma capacidade de se comprometerem que eles têm inscritas no seu ser relacional homem-mulher. É disto que brota o direito como componente essencial da relação matrimonial, radicado numa potencialidade natural dos cônjuges que a doação consensual actualiza. Razão e fé concorrem para iluminar esta verdade de vida, devendo contudo ser claro que, como ensinou ainda o Venerável João Paulo II, «a Igreja não rejeita a celebração das núpcias a quem é bene dispositus, mesmo se imperfeitamente preparado sob o ponto de vista sobrenatural, sob condição de que tenha a recta intenção de se casar segundo a realidade natural da conjugalidade» (Alocução à Rota Romana, 30 de Janeiro de 2003, n. 8: AAS 95 [2003], p. 397). Nesta perspectiva, deve ser dedicada atenção especial ao acompanhamento da preparação para o matrimónio, quer remota, quer próxima, quer imediata (cf. João Paulo II, Exortação ap. Familiaris consortio, 22 de Novembro de 1981, FC 66: AAS 73 [1981], pp. 159-162).

Entre os meios para verificar que o projecto dos nubentes seja realmente conjugal sobressai o exame pré-matrimonial. Este exame tem uma finalidade principalmente jurídica: certificar que nada impeça a válida e lícita celebração das núpcias. Portanto, jurídico não significa formalístico, como se se tratasse de uma passagem burocrática que consiste em preencher um formulário com base em perguntas rituais. Ao contrário, trata-se de uma ocasião pastoral única — que deve ser valorizada com toda a seriedade e a atenção que exige — na qual, através de um diálogo totalmente respeitoso e cordial, o pastor procura ajudar a pessoa a colocar-se seriamente perante a verdade acerca de si mesma e da própria vocação humana e cristã para o matrimónio. Neste sentido o diálogo, sempre guiado separadamente com os dois noivos — sem minimizar a conveniência de outros colóquios com o casal — requer um clima de total sinceridade, no qual se deveria acentuar o facto de que os próprios contraentes são os primeiros interessados e responsáveis em consciência para celebrar um matrimónio válido.

Deste modo, com os vários meios à disposição para uma cuidadosa preparação e verificação, pode-se desenvolver uma eficaz acção pastoral orientada para a prevenção das nulidades matrimoniais. É preciso comprometer-se a fim de que se interrompa, na medida do possível, o círculo vicioso que muitas vezes se verifica entre uma admissão previsível ao matrimónio, sem uma adequada preparação e um exame sério dos requisitos previstos para a sua celebração, e uma declaração judiciária por vezes de igual modo fácil, mas de sinal inverso, na qual o próprio matrimónio é considerado nulo unicamente com base na constatação da sua falência. É verdade que nem todos os motivos de uma eventual declaração de nulidade podem ser encontrados ou manifestados na preparação para o matrimónio, mas, de igual modo, não seria justo impedir o acesso às núpcias com base em presunções infundadas, como a de considerar que, hoje em dia, as pessoas seriam geralmente incapazes ou teriam uma vontade só aparentemente matrimonial. Nesta perspectiva parece ser importante que haja uma tomada de consciência ainda mais incisiva sobre a responsabilidade nesta matéria de quantos se ocupam das almas. O direito canónico em geral, e sobretudo o matrimonial e processual, exigem certamente uma preparação particular, mas o conhecimento dos aspectos basilares e dos imediatamente práticos do direito canónico, relativos às próprias funções, constitui uma exigência formativa de primária relevância para todos os agentes pastorais, sobretudo para quantos estão empenhados na pastoral familiar.

Além disso, tudo isto exige que a acção dos tribunais eclesiásticos transmita uma mensagem unívoca sobre o que é essencial no matrimónio, em sintonia com o Magistério e com a lei canónica, falando em uníssono. Atendida a necessidade da unidade da jurisprudência, confiada aos cuidados deste Tribunal, os outros tribunais eclesiásticos devem adequar-se à jurisprudência da Rota (cf. João Paulo II, Alocução à Rota Romana, 17 de Janeiro de 1998, n. 4: AAS 90 [1998], p. 783). Recentemente insisti sobre a necessidade de julgar rectamente as causas relativas à incapacidade consensual (cf. Alocução à Rota Romana, 29 de Janeiro de 2009: AAS 101 [2009], pp. 124-128). A questão continua a ser muito actual, e infelizmente permanecem ainda posições não correctas, como a de identificar a discrição de juízo exigida para o matrimónio (cf. CDC, CIC 1095, n. 2) com a desejada prudência na decisão de se casar, confundindo deste modo uma questão de capacidade com outra que não afecta a validade, porque diz respeito ao grau de sabedoria prática com a qual foi tomada uma decisão que é, contudo, deveras matrimonial. Seria ainda mais grave o equívoco se se quisesse atribuir eficácia invalidante às escolhas imprudentes feitas durante a vida matrimonial.

No âmbito da nulidade por exclusão dos bens essenciais do matrimónio (cf. ibid., CIC 1101, § 2) é necessário também um sério compromisso para que as pronúncias judiciárias reflictam a verdade acerca do matrimónio, a mesma que deve iluminar o momento da admissão às núpcias. Penso, de modo particular, na questão da exclusão do bonum coniugum. Em relação a esta exclusão parece repetir-se o mesmo perigo que ameaça a recta aplicação das normas sobre a incapacidade, isto é o de procurar motivos de nulidade nos comportamentos que não dizem respeito à constituição do vínculo conjugal mas sim à sua realização na vida. É necessário resistir à tentação de transformar as simples faltas dos esposos na sua existência conjugal em defeitos de consentimento. A verdadeira exclusão pode verificar-se de facto só quando é afectada a ordenação para o bem dos cônjuges (cf. ibid., CIC 1055, § 1), excluída com um acto positivo de vontade. Sem dúvida são totalmente excepcionais os casos nos quais falta o reconhecimento do outro como cônjuge, ou é excluída a ordenação essencial da comunidade de vida conjugal para o bem do outro. O esclarecimento destas hipóteses de exclusão do bonum coniugum deverá ser atentamente examinada pela jurisprudência da Rota Romana.

Ao concluir estas minhas reflexões, volto a considerar a relação entre direito e pastoral. Com frequência ela é objecto de equívocos, em desvantagem do direito, mas também da pastoral. Ao contrário, é preciso favorecer em todos os sectores, e de modo particular no campo do matrimónio e da família, uma dinâmica de sinal oposto, de harmonia profunda entre pastoralidade e juridicidade, que certamente se revelará fecunda no serviço prestado a quem se aproxima do matrimónio.

Estimados Componentes do Tribunal da Rota Romana, confio todos vós à poderosa intercessão da Bem-Aventurada Virgem Maria, para que nunca vos falte a assistência divina no desempenho com fidelidade, espírito de serviço e fruto do vosso trabalho quotidiano, e de bom grado concedo a todos uma especial Bênção Apostólica.



À DELEGAÇÃO DA IGREJA UNIDA EVANGÉLICA LUTERANA DA ALEMANHA Quinta-feira, 24 de Janeiro de 2011

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Excelentíssimo Senhor
Bispo regional Friedrich
Amados amigos da Alemanha

Dirijo cordiais boas-vindas a todos vós, representantes da presidência da Igreja Unida Evangélica Luterana da Alemanha, aqui no Palácio apostólico, enquanto me alegro pelo facto de que vós, como delegação, viestes a Roma para o encerramento da Semana de oração pela unidade dos cristãos. Deste modo, vós demonstrais também que todo o nosso anseio pela unidade só pode dar frutos se estiver arraigado na oração comum. Em particular, gostaria de lhe agradecer, estimado Senhor Bispo regional, as palavras que, com grande sinceridade, exprimem os esforços conjuntos em prol de uma unidade mais profunda entre todos os cristãos.

Entretanto, o diálogo oficial entre luteranos e católicos — assim está escrito aqui — pode remontar a mais de cinquenta anos de actividades intensas. Vossa Excelência falou de trinta anos. Julgo que há trinta anos, depois da visita do Papa, demos oficialmente início ao diálogo, mas com efeito já havia muito tempo que dialogávamos. Eu mesmo era membro do «Jaeger-Stählin-Kreis», que nasceu imediatamente após a guerra. Portanto, pode-se falar quer de cinquenta anos quer de trinta. Não obstante as diferenças teológicas que continuam a subsistir sobre questões em parte fundamentais, cresceu um «conjunto» entre nós, que se torna cada vez mais a base de uma comunhão vivida na fé e na espiritualidade entre luteranos e católicos. Aquilo que já foi alcançado corrobora a nossa confiança na continuação do diálogo, porque somente assim podemos permanecer juntos ao longo do caminho que, em definitivo, é o próprio Jesus Cristo.

Portanto, o compromisso da Igreja católica a favor do ecumenismo, como afirmou o meu venerado Predecessor Papa João Paulo II na sua Encíclica Ut unum sint, não é uma mera estratégia de comunicação num mundo que se transforma, mas sim um compromisso fundamental da Igreja a partir da missão que lhe é própria (cf. nn. 28-32).

Para alguns contemporâneos a meta comum da unidade plena e visível entre os cristãos hoje parece estar novamente mais distante. Os interlocutores ecuménicos trazem ao diálogo ideias completamente diferentes sobre a unidade da Igreja. Compartilham a solicitude de muitos cristãos pelo facto de que os frutos da obra ecuménica, principalmente em relação à ideia de Igreja e de ministério, ainda não são compreendidas suficientemente pelos interlocutores ecuménicos. Todavia, embora surjam dificuldades sempre novas, olhemos para o futuro com esperança. Não obstante as divisões entre os cristãos constituam um obstáculo para modelar plenamente a catolicidade na realidade da vida da Igreja, como lhe foi prometido em Cristo e através de Cristo (cf. Unitatis redintegratio
UR 4), confiemos no facto de que, sob a guia do Espírito Santo, o diálogo ecuménico, como instrumento importante na vida da Igreja, serve para resolver este conflito. Isto acontecerá, em primeiro lugar, também mediante o diálogo teológico, que deve contribuir para um entendimento sobre as questões ainda insolúveis, que representam um obstáculo ao longo do caminho rumo à unidade visível e à celebração conjunta da Eucaristia como sacramento da unidade entre os cristãos.

Apraz-me afirmar que além do diálogo luterano-católico internacional sobre o tema «Baptismo e a crescente comunhão eclesial», também na Alemanha desde 2009 uma Comissão bilateral de diálogo da Conferência Episcopal e da Igreja evangélica luterana alemã retomou o seu trabalho sobre o tema: «Deus e a dignidade do homem». Este âmbito temático engloba em particular também os problemas que surgiram recentemente em relação à salvaguarda e à dignidade da vida humana, assim como as questões urgentes da família, do matrimónio e da sexualidade, que não podem ser silenciadas nem subestimadas só para não pôr em perigo o consenso ecuménico até agora alcançado. Formulemos votos a fim de que nestas importantes problemáticas relativas à vida não se apresentem novas diferenças confessionais, mas que juntos possamos dar testemunho, ao mundo e aos homens, daquilo que o Senhor nos mostrou e mostra.

Hoje o diálogo ecuménico não pode continuar a ser separado da realidade e da vida na fé, no interior das nossas Igrejas, sem causar prejuízos. Portanto, dirijamos juntos o nosso olhar para o ano de 2017, que nos recorda a divulgação das teses de Martinho Lutero sobre as indulgências, há quinhentos anos. Nessa ocasião, luteranos e católicos terão a oportunidade de celebrar no mundo inteiro uma comum comemoração ecuménica, de defender a nível mundial as questões fundamentais, e não — como Vossa Excelência acabou de dizer — sob forma de uma celebração triunfalista, mas como uma profissão comum na nossa fé no Deus Uno e Trino, na obediência comum a nosso Senhor e à sua Palavra. Temos que atribuir um lugar importante à oração comum e à prece interior, dirigidas a nosso Senhor Jesus Cristo pelo perdão das injustiças recíprocas e pela culpa relativa às divisões. Desta purificação da consciência faz parte o intercâmbio recíproco sobre a avaliação dos 1500 anos que precederam a Reforma e que, portanto, nos são comuns. Por isso, desejamos implorar conjuntamente e de modo incessante a ajuda de Deus e a assistência do Espírito Santo, para podermos dar outros passos rumo à unidade almejada e não descansarmos nos resultados já alcançados.

Ao longo deste caminho somos animados inclusive pela Semana de oração pela unidade dos cristãos deste ano. Recorda-nos o capítulo dos Actos dos Apóstolos: «Eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à união fraterna, à fracção do pão e às orações» (Ac 2,42). A estes quatro gestos e comportamentos os primeiros cristãos eram assíduos e, por conseguinte, a comunidade crescia com Cristo e dela brotava este «conjunto» de homens em Cristo. Este testemunho, extraordinário e visível ao mundo, da unidade da Igreja primitiva poderia ser também para nós um estímulo e uma norma para o caminho ecuménico comum, inclusive no futuro.

Na esperança de que a vossa visita corrobore ulteriormente a válida colaboração entre luteranos e católicos na Alemanha, imploro para todos vós a graça de Deus e as suas abundantes bênçãos.



NO ENCONTRO COM OS MEMBROS DA COMISSÃO MISTA INTERNACIONAL PARA O DIÁLOGO TEOLÓGICO

ENTRE A IGREJA CATÓLICA E AS IGREJAS ORIENTAIS ORTODOXAS Sexta-feira, 28 de Janeiro de 2011

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Eminências
Excelências
Prezados Irmãos em Cristo

É com grande alegria que vos dou as boas-vindas, membros da Comissão internacional para o diálogo teológico entre a Igreja católica e as Igrejas Orientais ortodoxas. Através de vós, é de bom grado que transmito as minhas saudações fraternais aos meus veneráveis Irmãos, Chefes das Igrejas Orientais ortodoxas.

Estou grato pelo trabalho da Comissão, que teve início em Janeiro de 2003 como uma iniciativa comum das autoridades eclesiais da família das Igrejas Orientais ortodoxas e do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos.

Como bem sabeis, a primeira fase do diálogo, de 2003 a 2009, levou à redacção de um texto conjunto intitulado Nature, Constitution and Mission of the Church. Este documento delineou alguns aspectos dos princípios eclesiológicos fundamentais que nós compartilhamos, identificando problemáticas que exigem uma reflexão mais profunda nas sucessivas fases do diálogo. Só podemos estar gratos pelo facto de que, depois de quase mil e quinhentos anos de separação, ainda estamos de acordo no que se refere à natureza sacramental da Igreja, à sucessão apostólica no serviço sacerdotal e à urgente necessidade de dar testemunho do Evangelho de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo no mundo.

Na segunda fase, a Comissão meditou a partir de uma perspectiva histórica sobre os modos como as Igrejas manifestaram a sua comunhão ao longo dos tempos. Durante o encontro desta semana, estais a aprofundar o vosso estudo a propósito da comunhão e da comunicação que existiam entre as Igrejas até aos meados do século V da história cristã, assim como o papel desempenhado pelo monasticismo na vida da Igreja primitiva.

Temos que estar convictos de que a vossa reflexão teológica levará as nossas Igrejas não apenas a compreender-se umas às outras de maneira mais profunda, mas a continuar resolutamente o nosso caminho com determinação rumo à plena comunhão, à qual somos chamados pela vontade de Cristo. Para esta intenção, elevamos a nossa oração conjunta durante a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, que há pouco terminou.

Muitos de vós vindes de regiões onde os cristãos, indivíduos e comunidades, enfrentam provações e dificuldades que constituem uma causa de profunda solicitude para todos nós. Todos os cristãos têm necessidade de trabalhar em conjunto, com aceitação e confiança recíprocas, para servir a causa da paz e da justiça. Possa a intercessão e o exemplo dos numerosos mártires e santos, que deram um testemunho corajoso de Cristo em todas as nossas Igrejas, sustentar-vos e fortalecer-vos, bem como as vossas comunidades cristãs.

Com sentimentos de afecto fraterno, invoco sobre todos vós a graça e a paz de nosso Senhor Jesus Cristo.






À COMUNIDADE DO PONTIFÍCIO COLÉGIO ETÍOPE NO VATICANO Sábado, 29 de Janeiro de 2011

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Sala dos Papas




Queridos irmãos e irmãs!

Sinto-me feliz por vos receber nesta jubilosa comemoração do 150º aniversário do nascimento no Céu de são Justino De Jacobis. Saúdo cordialmente cada um de vós, caros sacerdotes e seminaristas do Pontifício Colégio Etíope, que a Providência Divina pôs a viver próximo do túmulo do Apóstolo Pedro, sinal dos antigos e profundos vínculos de comunhão que unem a Igreja na Etiópia e na Eritreia à Sé Apostólica. Saúdo de modo especial o Reitor, Pe. Teclezghi Bahta, a quem agradeço as gentis expressões com as quais introduziu o nosso encontro, recordando as diversas e significativas circunstâncias que o sugeriram. Recebo-vos hoje com afecto particular e, juntamente convosco, apraz-me pensar nas vossas comunidades de origem.

Agora gostaria de meditar sobre a figura luminosa de são Justino De Jacobis, do qual celebrastes o significativo aniversário a 31 de Julho passado. Digno filho de são Vicente de Paulo, são Justino viveu de modo exemplar o seu «fazer-se tudo para todos», especialmente ao serviço do povo abissínio. Enviado com 38 anos pelo então Prefeito da Propaganda Fide, Cardeal Franzoni, como missionário à Etiópia, ao Tigray, trabalhou primeiro em Adua e depois em Guala, onde imediatamente pensou em formar sacerdotes etíopes, dando vida a um seminário chamado «Colégio da Imaculada». Com o seu ministério zeloso trabalhou incansavelmente a fim de que aquela porção do povo de Deus reencontrasse o fervor originário da fé, semeada pelo primeiro evangelizador são Frumêncio (cf. PL 21, 473-80). Justino intuiu com clarividência que a atenção ao contexto cultural devia ser uma via privilegiada sobre a qual a graça do Senhor teria formado novas gerações de cristãos. Ao aprender a língua local e favorecer a tradição litúrgica plurissecular do rito próprio daquelas comunidades, ele também empenhou-se por uma obra ecuménica eficaz. Por mais de vinte anos o seu generoso ministério, primeiro sacerdotal e depois episcopal, dirigiu-se a quantos encontrava e amava como membros vivos do povo a ele confiado.

Pela sua paixão educativa, especialmente na formação dos sacerdotes, pode ser justamente considerado o padroeiro do vosso Colégio; de facto, ainda hoje esta benemérita Instituição recebe presbíteros e candidatos ao sacerdócio, apoiando-os no seu empenho de preparação teológica, espiritual e pastoral. Ao regressar às comunidades de origem ou acompanhando os concidadãos emigrados no estrangeiro, sabei suscitar em cada um o amor a Deus e à Igreja, segundo o exemplo de são Justino De Jacobis. Ele coroou o seu fecundo contributo para a vida religiosa e civil dos povos abissínios com o dom da sua vida, silenciosamente restituída a Deus depois de muitos sofrimentos e perseguições. Foi beatificado pelo Venerável Pio XII a 25 de Junho de 1939 e canonizado pelo Servo de Deus Paulo VI no dia 26 de Outubro de 1975.

Também para vós, estimados sacerdotes e seminaristas, a vida de santidade está traçada! Cristo continua a estar presente no mundo e a revelar-se através daqueles que, como são Justino De Jacobis, se deixam animar pelo seu Espírito. O Concílio Vaticano ii recorda-nos que «Deus manifesta de forma viva aos homens a sua presença e o seu rosto na vida daqueles que, embora possuindo uma natureza igual à nossa, se transformam mais perfeitamente na imagem de Cristo (cf.
2Co 3,18). Neles é Deus quem nos fala e nos mostra um sinal do seu Reino» (Const. dog. Lumen gentium LG 50).

Cristo, o eterno Sacerdote da Nova Aliança, que com a especial vocação ao ministério sacerdotal «conquistou» a nossa vida, não suprime as qualidades características da pessoa; ao contrário, eleva-as, enobrece-as e, fazendo-as suas, chama-as a servir o seu mistério e a sua obra. Deus precisa também de cada um de nós «para mostrar aos séculos futuros a extraordinária riqueza da sua graça, pela bondade que teve para connosco em Cristo Jesus» (Ep 2,7). Não obstante o carácter próprio da vocação de cada um, não estamos separados uns dos outros; ao contrário, somos solidários, estamos em comunhão dentro de um único organismo espiritual. Somos chamados a formar o Cristo total, uma unidade recapitulada no Senhor, vivificada pelo seu Espírito para nos tornar o seu «pleroma» e enriquecer o cântico de louvor que Ele eleva ao Pai. Cristo é inseparável da Igreja, que é o seu Corpo. É na Igreja que Cristo reúne mais estreitamente a si os baptizados e, alimentando-os na Mesa eucarística, torna-os partícipes da sua vida gloriosa (cf. Lumen gentium LG 48). Portanto, a santidade encontra-se no próprio coração do mistério eclesial e é a vocação à qual todos somos chamados. Os Santos não são um ornamento que reveste a Igreja a partir de fora, mas são como as flores de uma árvore que revelam a inesgotável vitalidade da linfa que a percorre. É bonito contemplar a Igreja assim, de modo ascensional rumo à plenitude do Vir perfectus; em maturação contínua, laboriosa e progressiva; dinamicamente impulsionada para o cumprimento pleno em Cristo.

Queridos sacerdotes e seminaristas do Pontifício Colégio Etíope, vivei com alegria e dedicação este período importante da vossa formação, à sombra da cúpula de São Pedro: caminhai com decisão na via da santidade. Vós sois um sinal de esperança, especialmente para a Igreja nos vossos países de origem. Estou certo de que a experiência de comunhão vivida aqui em Roma vos ajudará inclusive a oferecer um precioso contributo para o crescimento e a convivência pacífica das vossas amadas Nações. Acompanho o vosso caminho com a minha oração e, por intercessão de são Justino De Jacobis e da Virgem Maria, concedo-vos com afecto a Bênção Apostólica, que estendo de bom grado às Irmãs de Maria Menina, aos funcionários da Casa e a todas as pessoas que vos são queridas.



AO SENHOR ALFONS M. KLOSS, NOVO EMBAIXADOR DA ÁUSTRIA POR OCASIÃO DA APRESENTAÇÃO DAS CARTAS CREDENCIAIS Terça-feira, 3 de Fevereiro de 2011

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Estimado Embaixador!

É com prazer que aceito as Cartas mediante as quais o presidente da República da Áustria o acreditou como Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário junto da Santa Sé. Ao mesmo tempo, agradeço-lhe as palavras cordiais com as quais o senhor manifestou a proximidade do Presidente e do Governo ao Sucessor de Pedro. Por minha vez, apresento ao Presidente, à Chanceler e aos membros do Governo, assim como a todas as cidadãs e a todos os cidadãos da Áustria, as minhas carinhosas saudações, e é de bom grado que exprimo a esperança de que as relações entre a Santa Sé e a Áustria continuem a dar frutos também no futuro.

A cultura, a história e a vida quotidiana da Áustria, «terra das catedrais» (Hino nacional) são profundamente plasmadas pela fé católica. Pude constatar isto também durante a minha visita pastoral ao seu país e na peregrinação a Mariazell, há quatro anos. Os fiéis, com os quais pude encontrar-me, representam os milhares de homens e de mulheres em todo o país que, com a sua vida de fé na quotidianidade e a disponibilidade para com o próximo, demonstram os traços mais nobres do homem e difundem o amor de Cristo. Ao mesmo tempo, a Áustria é um país em que a coexistência pacífica das várias religiões e culturas conta com uma longa tradição. «Na harmonia está a força», já recitava um antigo hino popular da época da monarquia. Isto é particularmente válido no que diz respeito à dimensão religiosa, que está arraigada no profundo da consciência do homem e, por isso, pertence à vida de cada indivíduo e à convivência da comunidade. A pátria espiritual, de que têm necessidade como ponto de referência pessoal muitos indivíduos que vivem uma situação de trabalho com uma mobilidade cada vez maior e uma transformação constante, deveria poder existir publicamente e num clima de convivência pacífica com outras confissões de fé.

Em muitos países europeus, a relação entre Estado e religião está a passar por uma tensão particular. Por um lado, as autoridades políticas estão muito atentas a não conceder espaços públicos a religiões entendidas como ideias de fé meramente individuais dos cidadãos. Por outro, procura-se aplicar às comunidades religiosas os critérios de uma opinião pública secular. Parece que se deseja adaptar o Evangelho à cultura e, todavia, procura-se impedir de modo quase embaraçante, que a cultura seja plasmada pela dimensão religiosa. Contudo, há que ressaltar a atitude, sobretudo de alguns Estados da Europa central e oriental, de dar espaço às instâncias fundamentais do homem, à fé em Deus e à fé na salvação por meio de Deus. A Santa Sé pôde observar com satisfação algumas actividades do Governo austríaco neste sentido, não por último a posição assumida no que se refere à chamada «sentença sobre o crucifixo» (Kreuzurteil) do Tribunal europeu para os direitos do homem, ou a proposta do Ministro dos Negócios estrangeiros, «de que também o novo serviço europeu para a Acção estrangeira observe a situação da liberdade de religião no mundo, prepare regularmente um relatório e o apresente aos Ministros dos Negócios estrangeiros da União europeia» (Austria Presse Agentur, de 10 de Dezembro de 2010).

O reconhecimento da liberdade religiosa permite à comunidade eclesial desempenhar as suas múltiplas actividades, das quais também toda a sociedade obtém benefício. Faz-se referência, aqui, às várias instituições de formação e aos diversos serviços caritativos geridos pela Igreja, enumerados por Vossa Excelência, Senhor Embaixador. O compromisso da Igreja em prol dos necessitados torna evidente o modo como a Igreja, num certo sentido, se considera porta-voz das pessoas deserdadas. Este compromisso eclesial, que na sociedade recebe um vasto reconhecimento, não se pode reduzir a uma mera forma de beneficência.

As suas raízes mais profundas encontram-se em Deus, no Deus que é amor. Por isso, é necessário respeitar plenamente a obra própria da Igreja, sem fazer dela um dos numerosos distribuidores de serviços sociais. É preciso considerá-la, ao contrário, na totalidade da sua dimensão religiosa. Por conseguinte, é sempre necessário contrastar a tendência ao isolamento egoísta. Todas as forças sociais têm a tarefa urgente e constante de garantir a dimensão moral da cultura, a dimensão de uma cultura que seja digna do homem e da sua vida em comunidade. Por isso, a Igreja católica empenhar-se-á com todas as forças para o bem da sociedade.

Mais uma importante instância da Santa Sé é uma política equilibrada para a família. A família ocupa um espaço na sociedade que diz respeito aos próprios fundamentos da vida humana. A ordem social encontra um apoio essencial na união esponsal de um homem e de uma mulher, que está voltada também para a procriação. Por isso, o matrimónio e a família exigem também a tutela particular do Estado. Eles são para todos os seus membros uma escola de humanidade, com efeitos positivos para os indivíduos mas também para a sociedade. Com efeito, a família é chamada a viver e a salvaguardar o amor recíproco e a verdade, o respeito e a justiça, a fidelidade e a colaboração, o serviço e a disponibilidade para com os outros, de modo particular os mais frágeis. Todavia, a família numerosa é muitas vezes prejudicada. Os problemas em tais famílias, como por exemplo uma alta percentagem de conflitualidade, níveis de vida baixos, acesso difícil à formação, endividamento e aumento dos divórcios, fazem pensar em causas mais profundas, que deveriam ser eliminadas da sociedade. Além disso, é necessário lamentar que a vida dos nascituros não recebe uma salvaguarda suficiente e que, ao contrário, com frequência só se lhes reconhece um direito de existência secundário em relação à liberdade decisória dos pais.

A edificação da casa comum europeia só pode alcançar bom êxito, se este continente estiver consciente dos seus próprios fundamentos cristãos e se os valores do Evangelho, assim como da imagem cristã do homem, constituírem também no futuro o fermento da civilização europeia. A fé vivida em Cristo e o amor concreto pelo próximo, delineado segundo a palavra e a vida de Cristo e também segundo o exemplo dos santos, são mais importantes que a cultura ocidental cristã. Precisamente os seus compatriotas proclamados santos nos últimos tempos, como Franz Jägerstätter, Irmã Restituta Kafka, Ladislaus Batthyány-Strattman e Carlos da Áustria, podem abrir-nos perspectivas mais amplas. Estes santos, ao longo de diversos caminhos de vida, puseram-se com a mesma dedicação ao serviço de Deus e da sua mensagem de amor ao próximo. Assim, eles permanecem para nós imagens-guia na fé e testemunhas do entendimento entre os povos.

Enfim, desejo assegurar-lhe que, no cumprimento da alta missão que lhe foi confiada, o Senhor Embaixador poderá contar com o meu apoio e a ajuda dos meus colaboradores. Confio de bom grado Vossa Excelência, a sua família e todos os funcionários da Embaixada da Áustria junto da Santa Sé à Bem-Aventurada Virgem Maria, Magna Mater Austriae, enquanto lhe concedo de coração, bem como a todo o amado povo austríaco, a Bênção apostólica.





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