Discursos Bento XVI 19911


VIAGEM APOSTÓLICA À ALEMANHA

22-25 DE SETEMBRO DE 2011


ENCONTRO COM OS JORNALISTAS DURANTE A VIAGEM PARA A ALEMANHA Quinta-feira, 22 de Setembro de 2011

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Padre Lombardi: Santidade, permita-nos — no início — uma pergunta muito pessoal. Quanto é que Bento XVI ainda se sente alemão? E quais são os aspectos pelos quais ele percebe o quanto ainda influi— ou como cada vez menos — a sua origem alemã?

Santo Padre: Hölderlin dizia: «Mais que tudo, faz o nascimento», e isto, naturalmente, também eu o sinto. Nasci na Alemanha, e a raiz não pode ser, nem deve ser, cortada. Recebi a minha formação cultural na Alemanha, a minha língua é o alemão, e a língua é o modo como o espírito vive e age. Toda a minha formação cultural teve lugar ali! Quando me ocupo de teologia, faço-o a partir da forma interior, que aprendi nas universidades alemãs e infelizmente devo admitir que ainda continuo a ler mais livros em alemão do que noutras línguas, de modo que na estrutura cultural da minha vida, o ser alemão é muito forte. A pertença à sua história, com a sua grandeza e a suas debilidades, não pode nem deve ser anulada. Porém, para o cristão acrescenta-se algo mais. Mediante o Baptismo, ele nasce de novo, nasce num novo povo, que é de todos os povos, um povo que engloba todos os povos e todas as culturas, e no qual agora se encontra verdadeiramente em casa, sem perder a sua origem natural. Depois, quando se assume uma responsabilidade grande — como eu, que assumi a responsabilidade suprema — neste novo povo, é evidente que a pessoa interessada se identifica de modo cada vez mais profundo nele. A raiz torna-se uma árvore que se estende de várias maneiras, e o facto de estar em casa nesta grande comunidade de um povo de todos os povos, da Igreja católica, torna-se cada vez mais vivo e profundo, forja toda a existência sem anular o que estava antes. Portanto, diria que a origem permanece, que a estrutura cultural permanece, que permanece naturalmente também o amor especial e a responsabilidade particular, mas tudo isto inserido e ampliado na sua maior pertença, na «civitas Dei», como diria Agostinho, no povo de todos os povos, no qual todos somos irmãos e irmãs.

Padre Lombardi: Santo Padre, durante os últimos anos, houve na Alemanha um aumento do abandono da Igreja, em parte também por causa dos abusos cometidos contra menores por parte de membros do clero. Qual é o seu sentimento acerca deste fenómeno? E o que diria a quantos querem deixar a Igreja?

Santo Padre: Distingamos, talvez, antes de tudo, a motivação específica daqueles que se sentem escandalizados por estes crimes, que se revelaram nestes últimos tempos. Posso compreender que, à luz de tais informações, sobretudo quando se trata de pessoas próximas, há quem diga: «Esta já não é a minha Igreja. A Igreja era para mim força de humanização e de moralização. Se representantes da Igreja fazem o contrário, já não posso viver com esta Igreja». Trata-se de uma situação específica. Geralmente, as motivações são múltiplas, no contexto da secularização da nossa sociedade. E estas saídas, em geral, são o último passo de uma longa cadeia de afastamento da Igreja. Neste contexto, parece-me importante perguntar, meditar: «Por que motivo estou na Igreja? Estou na Igreja como numa associação desportiva, numa agremiação cultural, etc., onde tenho os meus interesses e, se não encontram mais uma resposta, eu saio; ou estar na Igreja é algo mais profundo?». Diria que seria importante saber que estar na Igreja não significa estar numa associação qualquer, mas estar na rede do Senhor, na qual Ele tira peixes bons e maus das águas da morte, para a terra da vida. Pode acontecer que nesta rede eu esteja precisamente ao lado de peixes maus e sinta isto, mas permanece verdade o facto de que não me encontro ali por estes ou por aqueles, mas porque se trata da rede do Senhor; é algo diverso de todas as agremiações humanas, uma realidade que toca o fundamento do meu ser. Falando com estas pessoas, penso que devemos ir até ao fundo nesta questão: o que é a Igreja? O que é a sua diversidade? Por que motivo me encontro na Igreja, ainda que haja escândalos e pobrezas humanas terríveis? E assim renovar a consciência da especificidade deste ser Igreja, do povo de todos os povos, que é o Povo de Deus, e deste modo aprender, suportar também escândalos e trabalhar contra tais escândalos permanecendo precisamente dentro, nesta grande rede do Senhor.

Padre Lombardi: Obrigado, Santidade! Não é a primeira vez que grupos de pessoas se manifestam contrários à sua ida a um país. A relação da Alemanha com Roma era tradicionalmente crítica, em parte mesmo no próprio contexto católico. Os temas controversos são conhecidos desde há muito tempo: preservativos, eucaristia e celibato. Antes da sua viagem, até alguns parlamentares assumiram posições críticas. Mas também antes da sua viagem à Grã-Bretanha, a atmosfera não parecia amigável, mas depois tudo se resolveu bem. Com que sentimentos Vossa Santidade vai agora à sua antiga Pátria e se dirigirá aos alemães?

Santo Padre: Primeiramente, diria que é algo normal que numa sociedade livre e numa época secularizada haja oposições contra uma visita do Papa. É também justo que se expresse — respeito todos — que manifestem esta sua contrariedade: faz parte da nossa liberdade, e devemos reconhecer que o secularismo e também a oposição, precisamente ao Catolicismo nas nossas sociedades, são fortes. E quando se manifestam tais oposições de modo civil, nada há a dizer em contrário. Por outro lado, é também verdade que há muita expectativa e um grande amor pelo Papa. Mas talvez seja necessário ainda que eu diga que na Alemanha existem várias dimensões desta oposição: a antiga oposição entre cultura germânica e românica, os contrastes da história, pois somos o país da Reforma, que agravou ainda mais estes contrastes. Mas existe inclusive um enorme consenso em relação à fé católica, uma crescente convicção de que temos necessidade de uma certeza, que precisamos de uma força moral no nosso tempo e de uma presença de Deus nesta nossa época. Assim, sei que juntamente com a oposição — que julgo natural e que se deve esperar — há muitas pessoas que me aguardam com júbilo, que esperam uma festa da fé, um estar juntos, e desejam aguardar a alegria de conhecer Deus e de viver juntos no futuro, que Deus nos guia pela mão e nos indica o caminho. É por isso que vou com alegria à minha Alemanha e sinto-me feliz por levar a mensagem de Cristo à minha terra.

Padre Lombardi: Obrigado. Ainda uma última pergunta. O Santo Padre visitará em Erfurt o antigo convento do reformador Martinho Lutero. Os cristãos evangélicos, e os católicos em diálogo com eles, preparam-se para comemorar o quinto centenário da Reforma. Com que mensagem, com que pensamentos Vossa Santidade se prepara para este encontro? A sua viagem deve ser vista também como um gesto fraterno em relação aos irmãos e às irmãs separados de Roma?

Santo Padre: Quando aceitei o convite para realizar esta viagem, para mim era evidente que o ecumenismo com os nossos amigos evangélicos devia constituir um ponto forte, um elemento central desta viagem. Nós vivemos numa época de secularismo, como eu já disse, em que os cristãos comunitariamente têm a missão de tornar presente a mensagem de Deus, a mensagem de Cristo, de tornar possível acreditar, progredir com estas grandes ideias, com a verdade. E por isso, o reunir-se entre católicos e evangélicos constitui um elemento fundamental para o nosso tempo, embora sob o ponto de vista institucional não estejamos perfeitamente unidos, não obstante subsistam problemas, até grandes problemáticas, no fundamento da fé em Cristo, no Deus trinitário e no homem como imagem de Deus, estamos, contudo, unidos; e este mostrar ao mundo e aprofundar esta unidade é essencial neste momento histórico. Por isso, estou profundamente grato aos nossos amigos, irmãos e irmãs protestantes, que tornaram possível um sinal muito significativo: o encontro no convento onde Lutero encetou o seu caminho teológico, a oração na igreja onde ele foi ordenado sacerdote e o diálogo sobre a nossa responsabilidade de cristãos nesta época. Assim, estou muito feliz por poder mostrar esta unidade fundamental, que somos irmãos e irmãs, e que trabalhamos juntos pelo bem da humanidade, anunciando a alegre mensagem de Cristo, do Deus que tem uma face humana e fala connosco.


CERIMÓNIA DE BOAS-VINDAS Castelo Bellevue de Berlim Quinta-feira, 22 de Setembro de 2011

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Senhor Presidente Federal,
Senhoras e Senhores,
Queridos amigos,

Sinto-me muito honrado pelo amável acolhimento que me reservais aqui no Castelo Bellevue. Estou particularmente agradecido a Vossa Excelência, Senhor Presidente Wulff, pelo convite para uma Visita oficial, que é a minha terceira estadia como Papa na República Federal da Alemanha. De coração lhe agradeço as amáveis e profundas palavras de boas-vindas que me dirigiu. A minha gratidão estende-se igualmente aos representantes do Governo Federal, do Bundestag e do Bundesrat e também da cidade de Berlim pela sua presença, exprimindo assim o seu respeito pelo Papa como Sucessor do Apóstolo Pedro. E finalmente agradeço aos três Bispos que me oferecem hospedagem: o Arcebispo Woelki de Berlim, o Bispo Wanke de Erfurt e o Arcebispo Zollitsch de Friburgo, bem como a todos aqueles que colaboraram, a diverso nível eclesial e público, na preparação desta visita à minha pátria, contribuindo assim para o seu bom êxito.

Embora a minha viagem seja uma visita oficial que reforçará as boas relações entre a República Federal da Alemanha e a Santa Sé, não vim aqui primariamente por ter em vista certos objectivos políticos ou económicos, como fazem outros homens de Estado, mas para encontrar o povo e falar-lhe de Deus. Por isso me deixa feliz saber que aqui está uma grande representação dos cidadãos da República Federal. Obrigado!

Falando da religião – mencionada por Vossa Excelência, Senhor Presidente Federal –, constatamos uma indiferença crescente na sociedade, que, nas suas decisões, tende a considerar a questão da verdade sobretudo como um obstáculo, dando por isso a prioridade às considerações utilitaristas.

Mas há necessidade duma base vinculativa para a nossa convivência; caso contrário, cada um vive só para o seu individualismo. Ora um destes fundamentos para uma convivência bem sucedida é a religião. «Assim como a religião precisa da liberdade, assim também a liberdade precisa da religião»: estas palavras do grande bispo e reformador social, Wilhelm von Ketteler – de quem se comemora, este ano, o segundo centenário do nascimento –, ainda são actuais [«Discurso na Primeira Assembleia dos Católicos na Alemanha» (1848), in: Erwin Iserloh (ed.), Wilhelm Emmanuel von Ketteler: Sämtliche Werke und Briefe (Mainz 1977) vol. I/1, p. 18].

A liberdade precisa duma ligação primordial a uma instância superior. O facto de haver valores que não são de modo algum manipuláveis, é a verdadeira garantia da nossa liberdade. O homem que se sente vinculado à verdade e ao bem, estará imediatamente de acordo com isto: a liberdade só se desenvolve na responsabilidade face a um bem maior. Um tal bem só existe para todos juntos; por conseguinte, devo interessar-me sempre também dos meus vizinhos. A liberdade não pode ser vivida na ausência de relações.

Na convivência humana, a liberdade não é possível sem a solidariedade. Aquilo que faço a dano dos outros, não é liberdade, mas uma acção culpável que prejudica aos outros e deste modo, no fim de contas, também a mim mesmo. Só usando também as minhas forças para o bem dos outros é que posso verdadeiramente realizar-me como pessoa livre. E isto vale não só no âmbito privado mas também na sociedade. Segundo o princípio de subsidiariedade, a sociedade deve dar espaço suficiente às estruturas inferiores para o seu desenvolvimento e, ao mesmo tempo, deve servir-lhes de suporte, de tal modo que, um dia, possam também manter-se por si sós.

Aqui no Castelo Bellevue, cujo nome se fica a dever à sua vista estupenda sobre a margem do Sprea e que não está longe da Coluna da Vitória, do Bundestag e da Porta de Brandeburgo, encontramo-nos mesmo no centro de Berlim, a capital da República Federal da Alemanha. Com o seu passado acidentado, o castelo é, como muitos edifícios da cidade, um testemunho da história alemã. Nós conhecemos as suas páginas grandiosas e nobres e sentimo-nos agradecidos por isso. Mas é possível também ter uma visão clara das páginas obscuras da história, e só isto nos permite aprender do passado e receber estímulos para o presente. A República Federal da Alemanha tornou-se naquilo que é hoje, através da força da liberdade plasmada pela responsabilidade diante de Deus e a de cada um perante o outro. Ela precisa desta dinâmica, que envolve todos os âmbitos humanos, para poder continuar a desenvolver-se nas condições actuais. Precisa disso neste mundo que necessita de uma renovação cultural profunda e da redescoberta de valores fundamentais para construir sobre eles um futuro melhor (cf. Encíclica Caritas in veritate ).

Faço votos de que os encontros durante as várias etapas da minha viagem – aqui em Berlim, em Erfurt, em Eichsfeld e em Friburgo – possam dar um pequeno contributo neste sentido. Que nestes dias Deus nos conceda a todos a sua bênção. Obrigado!


VISITA AO PARLAMENTO FEDERAL Palácio Reichstag de Berlim Quinta-feira, 22 de Setembro de 2011

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Ilustre Senhor Presidente Federal!
Senhor Presidente do Bundestag!
Senhora Chanceler Federal!
Senhor Presidente do Bundesrat!
Senhoras e Senhores Deputados!

Constitui para mim uma honra e uma alegria falar diante desta Câmara Alta, diante do Parlamento da minha Pátria alemã, que se reúne aqui em representação do povo, eleita democraticamente para trabalhar pelo bem da República Federal da Alemanha. Quero agradecer ao Senhor Presidente do Bundestag o convite que me fez para pronunciar este discurso, e também as amáveis palavras de boas-vindas e de apreço com que me acolheu. Neste momento, dirijo-me a vós, prezados Senhores e Senhoras, certamente também como concidadão que se sente ligado por toda a vida às suas origens e acompanha solidariamente as vicissitudes da Pátria alemã. Mas o convite para pronunciar este discurso foi-me dirigido a mim como Papa, como Bispo de Roma, que carrega a responsabilidade suprema da Igreja Católica. Deste modo, vós reconheceis o papel que compete à Santa Sé como parceira no seio da Comunidade dos Povos e dos Estados. Na base desta minha responsabilidade internacional, quero propor-vos algumas considerações sobre os fundamentos do Estado liberal de direito.

Seja-me permitido começar as minhas reflexões sobre os fundamentos do direito com uma pequena narrativa tirada da Sagrada Escritura. Conta-se, no Primeiro Livro dos Reis, que Deus concedeu ao jovem rei Salomão fazer um pedido por ocasião da sua entronização. Que irá pedir o jovem soberano neste momento tão importante: sucesso, riqueza, uma vida longa, a eliminação dos inimigos? Não pede nada disso; mas sim: «Concede ao teu servo um coração dócil, para saber administrar a justiça ao teu povo e discernir o bem do mal» (
1R 3,9). Com esta narração, a Bíblia quer indicar-nos o que deve, em última análise, ser importante para um político. O seu critério último e a motivação para o seu trabalho como político não devem ser o sucesso e menos ainda o lucro material. A política deve ser um compromisso em prol da justiça e, assim, criar as condições de fundo para a paz. Naturalmente um político procurará o sucesso, sem o qual não poderia jamais ter a possibilidade de uma acção política efectiva; mas o sucesso há-de estar subordinado ao critério da justiça, à vontade de actuar o direito e à inteligência do direito. É que o sucesso pode tornar-se também um aliciamento, abrindo assim a estrada à falsificação do direito, à destruição da justiça. «Se se põe de parte o direito, em que se distingue então o Estado de uma grande banda de salteadores?» – sentenciou uma vez Santo Agostinho (De civitate Dei IV, 4, 1). Nós, alemães, sabemos pela nossa experiência que estas palavras não são um fútil espantalho. Experimentámos a separação entre o poder e o direito, o poder colocar-se contra o direito, o seu espezinhar o direito, de tal modo que o Estado se tornara o instrumento para a destruição do direito: tornara-se uma banda de salteadores muito bem organizada, que podia ameaçar o mundo inteiro e impeli-lo até à beira do precipício. Servir o direito e combater o domínio da injustiça é e permanece a tarefa fundamental do político. Num momento histórico em que o homem adquiriu um poder até agora impensável, esta tarefa torna-se particularmente urgente. O homem é capaz de destruir o mundo. Pode manipular-se a si mesmo. Pode, por assim dizer, criar seres humanos e excluir outros seres humanos de serem homens. Como reconhecemos o que é justo? Como podemos distinguir entre o bem e o mal, entre o verdadeiro direito e o direito apenas aparente? O pedido de Salomão permanece a questão decisiva perante a qual se encontram também hoje o homem político e a política.

Grande parte da matéria que se deve regular juridicamente, pode ter por critério suficiente o da maioria. Mas é evidente que, nas questões fundamentais do direito em que está em jogo a dignidade do homem e da humanidade, o princípio maioritário não basta: no processo de formação do direito, cada pessoa que tem responsabilidade deve ela mesma procurar os critérios da própria orientação. No século III, o grande teólogo Orígenes justificou assim a resistência dos cristãos a certos ordenamentos jurídicos em vigor: «Se alguém se encontrasse no povo de Scizia que tem leis irreligiosas e fosse obrigado a viver no meio deles, (…) estes agiriam, sem dúvida, de modo muito razoável se, em nome da lei da verdade que precisamente no povo da Scizia é ilegalidade, formassem juntamente com outros, que tenham a mesma opinião, associações mesmo contra o ordenamento em vigor» [Contra Celsum GCS Orig. 428 (Koetschau); cf. A. Fürst, «Monotheismus und Monarchie. Zum Zusammenhang von Heil und Herrschaft in der Antike», in Theol.Phil. 81 (2006) 321-338; a citação está na página 336; cf. também J. Ratzinger, Die Einheit der Nationem, Eine Vision der Kirchenväter (Salzburg-München 1971) 60].

Com base nesta convicção, os combatentes da resistência agiram contra o regime nazista e contra outros regimes totalitários, prestando assim um serviço ao direito e à humanidade inteira. Para estas pessoas era evidente de modo incontestável que, na realidade, o direito vigente era injustiça. Mas, nas decisões de um político democrático, a pergunta sobre o que corresponda agora à lei da verdade, o que seja verdadeiramente justo e possa tornar-se lei não é igualmente evidente. Hoje, de facto, não é de per si evidente aquilo que seja justo e possa tornar-se direito vigente relativamente às questões antropológicas fundamentais. À questão de saber como se possa reconhecer aquilo que verdadeiramente é justo e, deste modo, servir a justiça na legislação, nunca foi fácil encontrar resposta e hoje, na abundância dos nossos conhecimentos e das nossas capacidades, uma tal questão tornou-se ainda muito mais difícil.

Como se reconhece o que é justo? Na história, os ordenamentos jurídicos foram quase sempre religiosamente motivados: com base numa referência à Divindade, decide-se aquilo que é justo entre os homens. Ao contrário doutras grandes religiões, o cristianismo nunca impôs ao Estado e à sociedade um direito revelado, nunca impôs um ordenamento jurídico derivado duma revelação. Mas apelou para a natureza e a razão como verdadeiras fontes do direito; apelou para a harmonia entre razão objectiva e subjectiva, mas uma harmonia que pressupõe serem as duas esferas fundadas na Razão criadora de Deus. Deste modo, os teólogos cristãos associaram-se a um movimento filosófico e jurídico que estava formado já desde o século II (a.C.). De facto, na primeira metade do século II pré-cristão, deu-se um encontro entre o direito natural social, desenvolvido pelos filósofos estóicos, e autorizados mestres do direito romano [cf. W. Waldstein, Ins Herz geschrieben. Das Naturrecht als Fundament einer menschlichen Gesellschaft (Augsburg 2010) 11ss; 31-61]. Neste contacto nasceu a cultura jurídica ocidental, que foi, e é ainda agora, de importância decisiva para a cultura jurídica da humanidade. Desta ligação pré-cristã entre direito e filosofia parte o caminho que leva, através da Idade Média cristã, ao desenvolvimento jurídico do Iluminismo até à Declaração dos Direitos Humanos e depois à nossa Lei Fundamental alemã, pela qual o nosso povo reconheceu, em 1949, «os direitos invioláveis e inalienáveis do homem como fundamento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça no mundo».

Foi decisivo para o desenvolvimento do direito e o progresso da humanidade que os teólogos cristãos tivessem tomado posição contra o direito religioso, requerido pela fé nas divindades, e se tivessem colocado da parte da filosofia, reconhecendo como fonte jurídica válida para todos a razão e a natureza na sua correlação. Esta opção realizara-a já São Paulo, quando afirma na Carta aos Romanos: «Quando os gentios que não têm a Lei [a Torah de Israel], por natureza agem segundo a Lei, eles (…) são lei para si próprios. Esses mostram que o que a Lei manda praticar está escrito nos seus corações, como resulta do testemunho da sua consciência» (Rm 2,14-15). Aqui aparecem os dois conceitos fundamentais de natureza e de consciência, sendo aqui a «consciência» o mesmo que o «coração dócil» de Salomão, a razão aberta à linguagem do ser. Deste modo se até à época do Iluminismo, da Declaração dos Direitos Humanos depois da II Guerra Mundial e até à formação da nossa Lei Fundamental, a questão acerca dos fundamentos da legislação parecia esclarecida, no último meio século verificou-se uma dramática mudança da situação. Hoje considera-se a ideia do direito natural uma doutrina católica bastante singular, sobre a qual não valeria a pena discutir fora do âmbito católico, de tal modo que quase se tem vergonha mesmo só de mencionar o termo. Queria brevemente indicar como se veio a criar esta situação. Antes de mais nada é fundamental a tese segundo a qual haveria entre o ser e o dever ser um abismo intransponível: do ser não poderia derivar um dever, porque se trataria de dois âmbitos absolutamente diversos. A base de tal opinião é a concepção positivista, quase geralmente adoptada hoje, de natureza. Se se considera a natureza – no dizer de Hans Kelsen - «um agregado de dados objectivos, unidos uns aos outros como causas e efeitos», então realmente dela não pode derivar qualquer indicação que seja de algum modo de carácter ético (Waldstein, op. cit., 15-21). Uma concepção positivista de natureza, que compreende a natureza de modo puramente funcional, tal como a conhecem as ciências naturais, não pode criar qualquer ponte para a ética e o direito, mas suscitar de novo respostas apenas funcionais. Entretanto o mesmo vale para a razão numa visão positivista, que é considerada por muitos como a única visão científica. Segundo ela, o que não é verificável ou falsificável não entra no âmbito da razão em sentido estrito. Por isso, a ética e a religião devem ser atribuídas ao âmbito subjectivo, caindo fora do âmbito da razão no sentido estrito do termo. Onde vigora o domínio exclusivo da razão positivista – e tal é, em grande parte, o caso da nossa consciência pública –, as fontes clássicas de conhecimento da ética e do direito são postas fora de jogo. Esta é uma situação dramática que interessa a todos e sobre a qual é necessário um debate público; convidar urgentemente para ele é uma intenção essencial deste discurso.

O conceito positivista de natureza e de razão, a visão positivista do mundo é, no seu conjunto, uma parcela grandiosa do conhecimento humano e da capacidade humana, à qual não devemos de modo algum renunciar. Mas ela mesma no seu conjunto não é uma cultura que corresponda e seja suficiente ao ser humano em toda a sua amplitude. Onde a razão positivista se considera como a única cultura suficiente, relegando todas as outras realidades culturais para o estado de subculturas, aquela diminui o homem, antes, ameaça a sua humanidade. Digo isto pensando precisamente na Europa, onde vastos ambientes procuram reconhecer apenas o positivismo como cultura comum e como fundamento comum para a formação do direito, reduzindo todas as outras convicções e os outros valores da nossa cultura ao estado de uma subcultura. Assim coloca-se a Europa, face às outras culturas do mundo, numa condição de falta de cultura e suscitam-se, ao mesmo tempo, correntes extremistas e radicais. A razão positivista, que se apresenta de modo exclusivista e não é capaz de perceber algo para além do que é funcional, assemelha-se aos edifícios de cimento armado sem janelas, nos quais nos damos o clima e a luz por nós mesmos e já não queremos receber estes dois elementos do amplo mundo de Deus. E no entanto não podemos iludir-nos, pois em tal mundo autoconstruído bebemos em segredo e igualmente nos “recursos” de Deus, que transformamos em produtos nossos. É preciso tornar a abrir as janelas, devemos olhar de novo a vastidão do mundo, o céu e a terra e aprender a usar tudo isto de modo justo.

Mas, como fazê-lo? Como encontramos a entrada justa na vastidão, no conjunto? Como pode a razão reencontrar a sua grandeza sem escorregar no irracional? Como pode a natureza aparecer novamente na sua verdadeira profundidade, nas suas exigências e com as suas indicações? Chamo à memória um processo da história política recente, esperando não ser mal entendido nem suscitar demasiadas polémicas unilaterais. Diria que o aparecimento do movimento ecológico na política alemã a partir dos Anos Setenta, apesar de não ter talvez aberto janelas, todavia foi, e continua a ser, um grito que anela por ar fresco, um grito que não se pode ignorar nem acantonar, porque se vislumbra nele muita irracionalidade. Pessoas jovens deram-se conta de que, nas nossas relações com a natureza, há algo que não está bem; que a matéria não é apenas uma material para nossa feitura, mas a própria terra traz em si a sua dignidade e devemos seguir as suas indicações. É claro que aqui não faço propaganda por um determinado partido político; nada me seria mais alheio do que isso. Quando na nossa relação com a realidade há qualquer coisa que não funciona, então devemos todos reflectir seriamente sobre o conjunto e todos somos reenviados à questão acerca dos fundamentos da nossa própria cultura. Seja-me permitido deter-me um momento mais neste ponto. A importância da ecologia é agora indiscutível. Devemos ouvir a linguagem da natureza e responder-lhe coerentemente. Mas quero insistir num ponto que - a meu ver –, hoje como ontem, é descurado: existe também uma ecologia do homem. Também o homem possui uma natureza, que deve respeitar e não pode manipular como lhe apetece. O homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza, e a sua vontade é justa quando respeita a natureza e a escuta e quando se aceita a si mesmo por aquilo que é e que não se criou por si mesmo. Assim mesmo, e só assim, é que se realiza a verdadeira liberdade humana.

Voltemos aos conceitos fundamentais de natureza e razão, donde partíramos. O grande teórico do positivismo jurídico, Kelsen, em 1965 – com a idade de 84 anos (consola-me o facto de ver que, aos 84 anos, ainda se é capaz de pensar algo de razoável) –, abandonou o dualismo entre ser e dever ser. Antes, ele tinha dito que as normas só podem derivar da vontade. Consequentemente – acrescenta ele – a natureza só poderia conter em si mesma normas, se uma vontade tivesse colocado nela estas normas. Mas isto – diz ele – pressuporia um Deus criador, cuja vontade se inseriu na natureza. «Discutir sobre a verdade desta fé é absolutamente vão» – observa ele a tal propósito (citado segundo Waldstein, op.cit., 19). Mas sê-lo-á verdadeiramente? – apetece-me perguntar. É verdadeiramente desprovido de sentido reflectir se a razão objectiva que se manifesta na natureza não pressuponha uma Razão criadora, um Creator Spiritus?

Aqui deveria vir em nossa ajuda o património cultural da Europa. Foi na base da convicção sobre a existência de um Deus criador que se desenvolveram a ideia dos direitos humanos, a ideia da igualdade de todos os homens perante a lei, o conhecimento da inviolabilidade da dignidade humana em cada pessoa e a consciência da responsabilidade dos homens pelo seu agir. Estes conhecimentos da razão constituem a nossa memória cultural. Ignorá-la ou considerá-la como mero passado seria uma amputação da nossa cultura no seu todo e privá-la-ia da sua integralidade. A cultura da Europa nasceu do encontro entre Jerusalém, Atenas e Roma, do encontro entre a fé no Deus de Israel, a razão filosófica dos Gregos e o pensamento jurídico de Roma. Este tríplice encontro forma a identidade íntima da Europa. Na consciência da responsabilidade do homem diante de Deus e no reconhecimento da dignidade inviolável do homem, de cada homem, este encontro fixou critérios do direito, cuja defesa é nossa tarefa neste momento histórico.

Ao jovem rei Salomão, na hora de assumir o poder, foi concedido formular um seu pedido. Que sucederia se nos fosse concedido a nós, legisladores de hoje, fazer um pedido? O que é que pediríamos? Penso que também hoje, em última análise, nada mais poderíamos desejar que um coração dócil, a capacidade de distinguir o bem do mal e, deste modo, estabelecer um direito verdadeiro, servir a justiça e a paz. Agradeço-vos pela vossa atenção!



ENCONTRO COM OS REPRESENTANTES DA COMUNIDADE JUDAICA Saleta do Reichstag, Berlim Quinta-feira, 22 de Setembro de 2011

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Ilustres Senhoras e Senhores,
Queridos amigos!

Sinto-me deveras feliz por ter este encontro convosco aqui em Berlim. De coração agradeço ao Senhor Presidente, Dr. Dieter Graumann, as suas palavras amáveis e convidativas à reflexão. Elas manifestam quanto cresceu a confiança entre o povo judeu e a Igreja Católica, que têm em comum uma parte não irrelevante das suas tradições fundamentais, como Vossa Excelência sublinhou. Ao mesmo tempo, todos nós sabemos bem que uma comunhão benévola e compreensiva entre Israel e a Igreja, no mútuo respeito pelo ser do outro, deve crescer mais e há-de ser incluída profundamente no anúncio da fé.

Há seis anos, durante a minha visita à Sinagoga de Colónia, o rabino Teitelbaum falou da memória como de uma das colunas que precisamos para fundar sobre elas um futuro pacífico. E, hoje, encontro-me num lugar central da memória, de uma memória pavorosa: a partir daqui foi projectada e organizada a Shoah, a eliminação dos concidadãos judeus da Europa. Na Alemanha, antes do terror nazista, vivia aproximadamente meio milhão de judeus, que constituíam uma componente estável da sociedade alemã. Depois da II Guerra Mundial, a Alemanha foi considerada como o «País da Shoah», onde fundamentalmente, como judeu, já não se podia viver. Ao início, quase não havia qualquer esforço para fundar novamente as antigas comunidades judaicas, embora chegassem continuamente do Leste indivíduos e famílias de judeus. Muitos deles queriam emigrar e construir uma nova existência sobretudo nos Estados Unidos ou em Israel.

Neste lugar, é igualmente necessário trazer à memória o pogrom da «noite dos cristais», de 9 para 10 de Novembro de 1938. Poucas foram as pessoas que perceberam toda a dimensão daquele acto de desprezo humano como o percebeu o arcipreste da Catedral de Berlim, Bernhard Lichtenberg, que, do púlpito da Catedral de Santa Edvige, gritou: «Fora o Templo está em chamas; também isso é uma casa de Deus». O regime de terror do nacional-socialismo baseava-se num mito racista, do qual fazia parte a rejeição do Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob, do Deus de Jesus Cristo e das pessoas que acreditavam n’Ele. O «omnipotente», de que falava Adolf Hitler, era um ídolo pagão, que queria colocar-se como substituto do Deus bíblico, Criador e Pai de todos os homens. Com a recusa do respeito a este Deus único, perde-se sempre também o respeito pela dignidade de homem. E do que seja capaz o homem que recusa Deus e qual semblante possa assumir um povo no «não» a tal Deus, no-lo revelaram as horríveis imagens que chegaram dos campos de concentração no fim da guerra.

Face a esta memória, há que constatar com gratidão que, desde há algumas décadas, se manifesta um novo desenvolvimento a propósito do qual se pode inclusive falar duma reflorescência da vida judaica na Alemanha. Deve-se destacar que, neste período, a comunidade judaica tornou-se benemérita particularmente na obra de integração de imigrados do Leste europeu.

Com gratidão, quero aludir também ao diálogo entre a Igreja Católica e o Judaísmo, um diálogo que se vai aprofundando. A Igreja sente uma grande proximidade com o povo judeu. Com a Declaração Nostra aetate do Concílio Vaticano II, começou-se «a percorrer um caminho irrevogável de diálogo, de fraternidade e de amizade» (cf. Discurso na Sinagoga de Roma, 17 de Janeiro de 2010). Isto vale para a Igreja Católica inteira, na qual o Beato Papa João Paulo II se empenhou de modo particularmente intenso em favor deste novo caminho. Isto vale obviamente também para a Igreja Católica na Alemanha, que está bem ciente da sua responsabilidade particular nesta matéria. No âmbito público, destaca-se sobretudo a «Semana da fraternidade», que é organizada cada ano, na primeira semana de Março, pelas associações locais para a colaboração judaico-cristã.

Da parte católica, temos ainda encontros anuais entre Bispos e Rabinos, bem como colóquios organizados com o Conselho Central dos Judeus. Já nos Anos Setenta, o Comité Central dos Católicos Alemães (ZdK) se distinguiu com a fundação dum fórum «Judeus e Cristãos», que, no decorrer dos anos, produziu de modo competente muitos documento úteis. E não quero descurar também o histórico encontro para o diálogo judeo-cristão [que teve lugar na Alemanha] em Março de 2006, com a participação do Cardeal Walter Kasper. Esta colaboração produz muito fruto..

A par destas importantes iniciativas, parece-me que nós, cristãos, devemos consciencializar-nos sempre mais do nosso parentesco interior com o Judaísmo, de que falou Vossa Excelência. Para os cristãos, não pode haver uma quebra no evento salvífico. A salvação vem precisamente dos judeus (cf.
Jn 4,22). Sempre que o conflito de Jesus com o Judaísmo do seu tempo é visto superficialmente como uma separação da Antiga Aliança, acaba-se por reduzi-lo a uma ideia de libertação que interprete de maneira errónea a Torah, ou seja, apenas como observância servil de ritos e prescrições exteriores. Mas, de facto, o Sermão da Montanha não abole a Lei mosaica, mas desvenda as suas possibilidades escondidas e faz surgir novas exigências; remete-nos para o fundamento mais profundo do agir humano, para o coração, onde o homem escolhe entre o puro e o impuro, onde se desenvolvem fé, esperança e amor.

A mensagem de esperança, que os livros da Bíblia hebraica e do Antigo Testamento cristão transmitem, foi assimilada e desenvolvida de modo diverso por judeus e cristãos. «Depois de séculos de contraposição, reconhecemos como nossa tarefa fazer com que estes dois modos de nova leitura dos escritos bíblicos – o cristão e o judaico – dialoguem entre si, para se compreender rectamente a vontade e a Palavra de Deus» (Jesus de Nazaré – Parte II: Da Entrada em Jerusalém até à Ressurreição, p. 38). Numa sociedade cada vez mais secularizada, este diálogo deve reforçar a esperança comum em Deus. Sem tal esperança, a sociedade perde a sua humanidade.

No fim de contas, podemos constatar que o intercâmbio entre a Igreja Católica e o Judaísmo na Alemanha produziu já frutos prometedores. Relações duradouras e confiantes se desenvolveram. Certamente, judeus e cristãos têm uma responsabilidade comum no progresso da sociedade, a qual possui sempre também uma dimensão religiosa. Possam todos os interessados continuar juntos este caminho. Para isso, o Único e o Omnipotente – Ha Kadosch Baruch Hu – conceda a sua Bênção. Obrigado!





Discursos Bento XVI 19911