Discursos Bento XVI 23911

ENCONTRO COM OS REPRESENTANTES DA COMUNIDADE MUÇULMANA Salão de Recepções - Nunciatura Apostólica de Berlim Sexta-feira, 23 de Setembro de 2011

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Queridos amigos muçulmanos,

É um prazer encontrar-me aqui hoje convosco e poder saudar a todos vós, Representantes de diversas comunidades muçulmanas presentes na Alemanha. Agradeço cordialmente ao professor Mouhanad Khorchide pelas suas amáveis palavras de sudação e pelas reflexões profundas que nos apresentou. Estas manifestam como se desenvolveu uma atmosfera de respeito e confiança entre a Igreja Católica e as comunidades muçulmanas na Alemanha e se vai tornando visível o que nos sustenta unidos.

Berlim constitui um lugar propício para tal encontro, não só porque se encontra aqui a mesquita mais antiga no território da Alemanha, mas também porque, de entre todas as cidades da Nação, Berlim é aquela onde vive o número maior de muçulmanos.

A partir dos Anos Setenta, a presença de numerosas famílias muçulmanas foi-se tornando cada vez mais um traço distintivo deste País. Contudo, será necessário empenhar-se constantemente por um melhor e recíproco conhecimento e compreensão. Isto é essencial não só para uma convivência pacífica, mas também para a contribuição que cada um é capaz de dar para a construção do bem comum no âmbito de uma mesma sociedade.

Muitos muçulmanos atribuem grande importância à dimensão religiosa. Às vezes, isto é interpretado como uma provocação, numa sociedade que tende a marginalizar este aspecto ou, quando muito, admiti-lo na esfera das opções privadas dos indivíduos.

A Igreja Católica empenha-se, firmemente, para que seja dado o justo reconhecimento à dimensão pública da pertença religiosa. Trata-se de uma exigência que não se torna irrelevante pelo facto de aparecer no contexto duma sociedade maioritariamente pluralista. Nisso, há que estar atento para que se mantenha sempre o respeito do outro. Este respeito recíproco cresce somente na base de um entendimento sobre alguns valores inalienáveis, próprios da natureza humana, sobretudo a dignidade inviolável de cada pessoa como criatura de Deus. Tal entendimento não limita a expressão das diversas religiões; pelo contrário, permite a cada um testemunhar e propor aquilo em que crê, não se subtraindo ao confronto com o outro.

Na Alemanha – como aliás noutros países, e não só ocidentais –, tal quadro comum de referência é constituído pela Constituição, cujo conteúdo jurídico é vinculativo para todo o cidadão, pertença ele ou não a uma confissão religiosa.

Naturalmente, mantém-se amplo e sempre aberto o debate sobre a melhor formulação de princípios como a liberdade de culto público, mas é significativo o facto de os exprimir validamente ainda hoje – sessenta anos depois – a Lei Fundamental alemã (cf. art. 4, 2). Nela encontramos expressa, primariamente, aquela ética comum que está na base da convivência civil e que, de algum modo, indica também as regras, formais só na aparência, do funcionamento dos organismos institucionais e da vida democrática.

Poderíamos perguntar-nos como pode um texto assim, elaborado numa época histórica radicalmente diferente e numa situação cultural quase uniformemente cristã, mostrar-se adequado para a Alemanha actual, que vive no contexto dum mundo globalizado e se caracteriza por um notável pluralismo em matéria de convicções religiosas.

Parece-me que a razão disso está no facto de, naquele momento importante, os pais da Lei Fundamental terem tido plena consciência de dever procurar uma base verdadeiramente sólida, na qual se pudessem reconhecer todos os cidadãos e que pudesse ser um sustentáculo para todos independentemente das diferenças. Então tendo presente a dignidade do homem e responsabilidade diante de Deus, não prescindiam da sua própria pertença religiosa; antes, para muitos deles, a visão cristã do homem era a verdadeira força inspiradora. Mas sabiam que todos os homem devem confrontar-se com situações confessionais diversas ou até não religiosas: o terreno comum para todos foi encontrado no reconhecimento de alguns direitos inalienáveis, que são próprios da natureza humana e antecedem qualquer formulação positiva.

Deste modo, uma sociedade então substancialmente homogénea colocou o fundamento que hoje podemos considerar válido para um tempo marcado pelo pluralismo. Fundamento esse, que na realidade indica também limites evidentes a tal pluralismo: de facto, não é concebível que uma sociedade se possa manter a longo prazo sem um consenso sobre os valores éticos fundamentais.

Queridos amigos, na base de quanto acabei de acenar, penso que seja possível uma colaboração fecunda entre cristãos e muçulmanos e, desta forma, contribuirmos para a construção duma sociedade que, sob muitos aspectos, será diferente daquilo que trouxemos connosco do passado. Enquanto pessoas religiosas, podemos, a partir das respectivas convicções, dar um testemunho importante em muitos sectores cruciais da vida social. Penso, por exemplo, na tutela da família fundada sobre o matrimónio, no respeito da vida em cada fase do seu decurso natural, ou na promoção duma justiça social mais ampla.

Por isso mesmo, considero importante celebrar um Dia de reflexão, diálogo e oração pela paz e a justiça no mundo; queremos fazê-lo – como bem sabeis – no próximo dia 27 de Outubro em Assis, vinte e cinco anos depois do histórico encontro naquele lugar, presidido pelo meu Predecessor, o Beato João Paulo II. Queremos, por meio desse encontro, mostrar com simplicidade que prestamos, como pessoas religiosas, a nossa contribuição particular para a construção de um mundo melhor, reconhecendo ao mesmo tempo a necessidade de crescer no diálogo e na estima recíproca, tendo em vista a eficácia da nossa acção.

Com estes sentimentos, renovo a minha saudação cordial e vos agradeço por este encontro, que para mim constitui um grande enriquecimento nesta estadia na minha pátria. Obrigado pela vossa atenção!


ENCONTRO COM OS REPRESENTANTES DO CONSELHO DA «IGREJA EVANGÉLICA NA ALEMANHA» Sala do Capítulo do ex-Convento dos Agostinianos de Erfurt Sexta-feira, 23 de Setembro de 2011

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Ilustres Senhoras e Senhores!

Ao tomar a palavra, quero antes de mais nada agradecer cordialmente esta oportunidade de nos encontrarmos aqui. A minha particular gratidão vai para Vossa Excelência, amado Irmão Presidente Schneider, que me deu as boas-vindas e, com suas palavras, me acolheu no vosso meio. Com toda a franqueza do seu coração, Vossa Excelência exprimiu abertamente a fé verdadeiramente comum, o desejo de unidade. E nós sentimo-nos felizes ainda porque considero que esta assembleia e os nossos encontros são celebrados também como a festa da fé que temos em comum. Além disso quero agradecer a todos pelo vosso dom de podermos conversar juntos como cristãos aqui, neste lugar histórico.

Para mim, como Bispo de Roma, é um momento de profunda emoção encontrar-vos aqui, no antigo convento agostiniano de Erfurt. Como acabámos de ouvir, Lutero estudou teologia aqui. Aqui celebrou a sua primeira missa. Contra a vontade do pai, abandonou os estudos de jurisprudência para estudar teologia e encaminhar-se para o sacerdócio na Ordem de Santo Agostinho. E a incentivá-lo neste caminho não era um pormenor ou outro; o que não lhe dava paz era a questão sobre Deus, que constituiu a paixão profunda e a mola da sua vida e de todo o seu itinerário. «Como posso ter um Deus misericordioso?»: tal era a pergunta que lhe atravessava o coração e estava por detrás de cada pesquisa teológica e de cada luta interior. Para Lutero, a teologia não era mera questão académica, mas a luta interior consigo mesmo, que, no fim de contas, era uma luta a propósito de Deus e com Deus.

«Como posso ter um Deus misericordioso?» O facto que esta pergunta tenha sido a força motriz de todo o seu caminho, não cessa de maravilhar o meu coração. Com efeito, hoje quem se preocupa ainda com isto, mesmo entre os cristãos? Que significa a questão de Deus na nossa vida, no nosso anúncio? Hoje a maioria das pessoas, mesmo cristãs, dá por suposto que Deus, em última análise, não se interessa dos nossos pecados e das nossas virtudes. Ele bem sabe que todos nós não passamos de carne. Se se acredita ainda num além e num juízo de Deus, praticamente quase todos pressupõem que Deus terá de ser generoso e, no fim de contas, na sua misericórdia ignorar as nossas pequenas faltas. A questão já não nos preocupa. Mas, verdadeiramente são assim pequenas as nossas faltas? Porventura não está o mundo a ser devastado pela corrupção dos grandes, mas também dos pequenos, que pensam apenas na própria vantagem? Porventura não é ele devastado por causa do poder da droga, que vive, por um lado, da ambição de vida e de dinheiro e, por outro, da avidez de prazer das pessoas que a ela se abandonam? Não está ele porventura ameaçado por uma crescente predisposição à violência que não raro se dissimula sob a aparência de religiosidade? Poderiam a fome e a pobreza devastar assim regiões inteiras do mundo, se estivesse mais vivo em nós o amor de Deus e, derivado dele, o amor ao próximo, às criaturas de Deus que são os homens? E poderiam continuar as perguntas nesta linha. Não, o mal não é uma ridicularia. Mas não seria forte, se verdadeiramente colocássemos Deus no centro da nossa vida. Esta pergunta que desinquietava Lutero – Qual é a posição de Deus a meu respeito, como apareço a seus olhos? – deve tornar-se de novo, certamente numa forma diversa, também a nossa pergunta, não académica mas concreta. Penso que este constitui o primeiro apelo que deveremos escutar no encontro com Martinho Lutero.

Depois é importante também isto: Deus, o único Deus, o Criador do céu e da terra, é algo de diverso duma hipótese filosófica sobre a origem do universo. Este Deus tem um rosto e falou-nos. No homem Jesus Cristo, Ele tornou-Se um de nós: verdadeiro Deus e, simultaneamente, verdadeiro homem. O pensamento de Lutero, a sua espiritualidade inteira era totalmente cristocêntrica. Para Lutero, o critério hermenêutico decisivo na interpretação da Sagrada Escritura era «aquilo que promove Cristo». Mas isto pressupõe que Cristo seja o centro da nossa espiritualidade e que o amor por Ele, o viver juntamente com Ele, oriente a nossa vida.

Ora poder-se-ia talvez dizer: Está bem, mas o que é que tudo isto tem a ver com a nossa situação ecuménica? Porventura não será tudo isto apenas uma tentativa de iludir, com uma inundação de palavras, os problemas urgentes onde se esperam progressos práticos, resultados concretos? A respeito disto, respondo: a coisa mais necessária para o ecumenismo é primariamente que, sob a pressão da secularização, não percamos, quase sem dar por isso, as grandes coisas que temos em comum, que por si mesmas nos tornam cristãos e que nos ficaram como dom e tarefa. O erro do período confessional foi ter visto, na maior parte das coisas, apenas aquilo que separa, e não ter percebido de modo existencial o que temos em comum nas grandes directrizes da Sagrada Escritura e nas profissões de fé do cristianismo antigo. Para mim, isto constitui o grande progresso ecuménico dos últimos decénios: termo-nos dado conta desta comunhão e, no rezar e cantar juntos, no compromisso comum em prol da ética cristã face ao mundo, no testemunho comum do Deus de Jesus Cristo neste mundo, reconhecermos tal comunhão como o nosso comum e imorredouro alicerce.

É certo que o perigo de a perder não é irreal. Queria brevemente fazer notar dois aspectos. Nos últimos tempos, a geografia do cristianismo mudou profundamente e continua a mudar. Perante uma forma nova de cristianismo, que se difunde com um dinamismo missionário imenso, por vezes preocupante nas suas formas, as Igrejas confessionais históricas ficam muitas vezes perplexas. Trata-se de um cristianismo de escassa densidade institucional, com pouca bagagem racional, sendo ainda menor a bagagem dogmática, e também com pouca estabilidade. Este fenómeno mundial – que me é continuamente descrito pelos bispos de todo o mundo – põe-nos a todos perante esta questão: Que tem a dizer-nos de positivo e de negativo esta nova forma de cristianismo? Em todo o caso, coloca-nos novamente perante a pergunta sobre o que permanece sempre válido e o que pode ou deve ser mudado, perante a questão relativa à nossa opção fundamental na fé.

Mais profundo e, no nosso país, mais inquietante é o segundo desafio para toda a cristandade; dele quero agora falar-vos: trata-se do contexto do mundo secularizado, em que temos hoje de viver e testemunhar a nossa fé. A ausência de Deus na nossa sociedade faz-se mais pesada; a história da sua revelação, de que nos fala a Escritura, parece colocada num passado que se distancia sempre mais. Porventura será preciso ceder à pressão da secularização, tornar-se moderno através duma mitigação da fé? Naturalmente, a fé deve ser repensada e sobretudo vivida hoje de um modo novo, para se tornar uma realidade que pertença ao presente. Para isso ajuda não a mitigação da fé, mas somente o vivê-la integralmente no nosso hoje. Esta constitui uma tarefa ecuménica central, na qual nos devemos ajudar mutuamente: a crer de modo mais profundo e vivo. Não serão as tácticas a salvar-nos, a salvar o cristianismo, mas uma fé repensada e vivida de modo novo, através da qual Cristo, e com Ele o Deus vivo, entre neste nosso mundo. Tal como os mártires do período nazista nos aproximaram uns dos outros e suscitaram a primeira grande abertura ecuménica, assim também hoje a fé, vivida a partir do íntimo de nós mesmos, num mundo secularizado, é a força ecuménica mais poderosa que nos reúne, guiando-nos para a unidade no único Senhor. E por isso Lhe pedimos a graça de aprender de novo viver a fé, para assim nos podermos tornar um só.



CELEBRAÇÃO ECUMÉNICA Igreja do ex-Convento dos Agostinianos de Erfurt Sexta-feira, 23 de Setembro de 2011

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Amados irmãos e irmãs no Senhor!

«Não rogo só por eles, mas também por aqueles que hão-de crer em Mim, por meio da sua palavra» (
Jn 17,20): assim disse Jesus ao Pai, no Cenáculo. Intercede pelas futuras gerações de crentes. Estende o olhar, mais além do Cenáculo, para o futuro. Rezou também por nós. E reza pela nossa unidade. Esta oração de Jesus não é algo simplesmente do passado. Ele está sempre diante do Pai, intercedendo por nós, e é assim que Ele, nesta hora, está no meio de nós e nos quer atrair para dentro da sua oração. Na oração de Jesus, encontra-se o lugar interior da nossa unidade. Tornar-nos-emos um só, se nos deixarmos atrair para dentro de tal oração. Todas as vezes que nos encontramos, como cristãos, reunidos na oração, esta luta de Jesus relativa a nós e com o Pai em nosso favor deveria tocar-nos profundamente no coração. Quanto mais nos deixarmos atrair nesta dinâmica, tanto mais se realizará a unidade.

Porventura ficou desatendida a oração de Jesus? A história do cristianismo é, por assim dizer, o lado visível deste drama, no qual Cristo luta e sofre connosco, seres humanos. Sem cessar Ele tem de suportar o contraste com a unidade, e todavia não cessa jamais de realizar-se também a unidade com Ele e, deste modo, com o Deus trinitário. Devemos ver ambas as coisas: o pecado do homem, que se nega a Deus fechando-se em si mesmo, mas também as vitórias de Deus, que sustenta a Igreja não obstante a sua fraqueza, e atrai continuamente homens para dentro de Si aproximando-os assim uns dos outros. Por isso, num encontro ecuménico, não devemos só lamentar as divisões e as separações, mas também agradecer a Deus por todos os elementos de unidade que conservou para nós e incessantemente nos concede. E esta gratidão deve ao mesmo tempo tornar-se disponibilidade para não perder, no meio de um tempo de tentação e de perigos, a unidade assim concedida.

A unidade fundamental consiste no facto de acreditarmos em Deus, Pai omnipotente, Criador do céu e da terra; de O confessarmos como Deus trinitário – Pai, Filho e Espírito Santo. A unidade suprema não é solidão duma mónada, mas unidade através do amor. Acreditamos em Deus, no Deus concreto. Acreditamos no facto que Deus nos falou e Se fez um de nós. Dar testemunho deste Deus vivo é a nossa tarefa comum no momento actual.

O homem tem necessidade de Deus, ou, pelo contrário, as coisas continuam bastante bem mesmo sem Ele? Quando, numa primeira fase da ausência de Deus, a sua luz continua ainda a enviar os seus reflexos e mantém unida a ordem da existência humana, tem-se a impressão de que as coisas funcionem bastante bem mesmo sem Deus. Mas, à medida que o mundo se afasta de Deus, vai-se tornando cada vez mais claro que o homem, na petulância do poder, no vazio do coração e na ânsia de prazer e felicidade, «perde» progressivamente a vida. A sede de infinito está presente no homem de modo inextirpável. O homem foi criado para a relação com Deus e precisa d'Ele. Neste tempo, o nosso primeiro serviço ecuménico deve ser testemunharmos juntos a presença de Deus vivo e, deste modo, dar ao mundo a resposta de que tem necessidade. Naturalmente, deste testemunho fundamental de Deus faz parte, de maneira absolutamente central, o testemunho de Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, que viveu no nosso meio, sofreu por nós, morreu por nós e, na ressurreição, abriu de par em par a porta da morte. Queridos amigos, fortaleçamo-nos nesta fé! Ajudemo-nos mutuamente a vivê-la! Trata-se de uma grande tarefa ecuménica, que nos introduz no coração da oração de Jesus.

A seriedade da fé em Deus manifesta-se na vivência da sua palavra. No nosso tempo, manifesta-se, de modo muito concreto, no empenho por aquela criatura que Ele quis à sua imagem: o homem. Vivemos num tempo em que se tornaram incertos os critérios de ser homem. A ética foi substituída pelo cálculo das consequências. Perante isto, devemos, como cristãos, defender a dignidade inviolável do homem, desde a sua concepção até à morte: nas questões desde o diagnóstico de pré-implantação até à eutanásia. «Só quem conhece Deus, é que conhece o homem» – disse uma vez Romano Guardini. Sem o conhecimento de Deus, o homem torna-se manipulável. A fé em Deus deve-se concretizar-se no nosso empenho comum pelo homem. Fazem parte de tal empenho pelo homem não só estes critérios fundamentais de humanidade, mas sobretudo, e de forma muito concreta, o amor que Jesus Cristo nos ensina na descrição do Juízo Final (Mt 25,31-46): o juiz divino julgar-nos-á segundo o modo como nos comportamos para com aqueles que estão próximo de nós, para com os mais pequenos dos nossos irmãos. A disponibilidade para dar ajuda nas necessidades deste tempo, mesmo para além do próprio ambiente de vida, é uma tarefa essencial do cristão.

Como disse, isto vale antes de mais nada no âmbito da vida pessoal de cada um. Mas vale depois também na comunidade de um povo e de um Estado, onde todos nós devemos cuidar uns dos outros. Vale para o nosso Continente, sendo nós chamados à solidariedade na Europa. E vale, enfim, para além de todas as fronteiras: hoje a caridade cristã exige o nosso empenho mesmo pela justiça no mundo em toda a sua vastidão. Sei que muito se faz, da parte dos alemães e da Alemanha, para tornar possível a toda a humanidade uma vida digna do homem, e por isso quero aqui exprimir uma palavra de viva gratidão.

Por fim quero ainda acenar a uma dimensão mais profunda da nossa obrigação de amar. A seriedade da fé manifesta-se também e sobretudo quando esta inspira certas pessoas a colocarem-se totalmente à disposição de Deus e, partir de Deus, também dos outros. As grandes ajudas tornam-se concretas só quando, num lugar, vivem aqueles que estão totalmente à disposição do outro e, deste modo, tornam credível o amor de Deus. Pessoas assim são um sinal importante para a verdade da nossa fé.

Nas vésperas da minha visita, falou-se diversas vezes de um dom ecuménico do hóspede que se esperava da visita em questão. Não é preciso especificar os dons mencionados em tal contexto. A propósito, quero dizer que isto – como na maioria dos casos se apresentava – constitui um equívoco político da fé e do ecumenismo. Quando um Chefe de Estado visita um país amigo, geralmente a sua vinda é antecedida por contactos das devidas instâncias que preparam a estipulação de um ou mesmo vários acordos entre os dois Estados: ponderando vantagens e desvantagens chega-se a um compromisso que, em última análise, aparece vantajoso para ambas as partes, de tal modo que depois o tratado pode ser assinado. Mas a fé dos cristãos não se baseia numa ponderação das nossas vantagens e desvantagens. Uma fé construída por nós próprios não tem valor. A fé não é algo que nós esquadrinhamos e concordamos. É o fundamento sobre o qual vivemos. A unidade não cresce através da ponderação de vantagens e desvantagens, mas só graças a uma penetração cada vez mais profunda na fé mediante o pensamento e a vida. Assim nos últimos cinquenta anos, e particularmente desde a visita do Papa João Paulo II há trinta anos, cresceram muito os pontos comuns, facto este de que podemos apenas sentir-nos agradecidos. Apraz-me recordar o encontro com a comissão guiada pelo Bispo [luterano] Lohse, na qual nos exercitamos juntos nesta penetração de modo profundo na fé mediante o pensamento e a vida. A quantos colaboraram para isso – nomeadamente, na parte católica, o Cardeal Lehmann – quero exprimir vivo agradecimento. Não menciono outros nomes; o Senhor conhece-os todos. Todos juntos podemos apenas agradecer ao Senhor os caminhos da unidade por onde nos conduziu e associarmo-nos com humilde confiança à sua oração: Fazei que nos tornemos um só, como Vós sois um só com o Pai, para que o mundo creia que Ele Vos enviou» (cf. Jn 17,21).



VÉSPERAS MARIANAS Wallfahrtskapelle de Etzelsbach Sexta-feira, 23 de Setembro de 2011

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Queridos irmãos e irmãs,

De coração sincero, queria agradecer a todos vós que viestes aqui, a Etzelsbach, para este momento de oração. Desde a minha juventude, ouvi tanto falar-se de Eichsfeld que pensei: deveras, devo vê-lo por uma vez e rezar convosco. Agradeço cordialmente o Bispo Wanke, que já durante o voo me apresentou a vossa região. E agradeço os vossos porta-vozes e representantes que me entregaram dons simbólicos da vossa terra, e ao mesmo tempo, puderam dar-me pelo menos uma ideia da variedade desta região.

Assim que estou muito feliz por ter-se realizado o meu desejo de visitar Eichsfeld e de agradecer, juntamente convosco, à Virgem Maria aqui em Etzelsbach. «Aqui, no amado vale tranquilo» – diz um cântico de peregrinos – e «sob as velhas tílias», Maria dá-nos segurança e nova força. Em duas ímpias ditaduras que se propuseram tirar aos homens a sua fé tradicional, a gente de Eichsfeld estava segura de encontrar aqui, no santuário de Etzelsbach, uma porta aberta e um lugar de paz interior. Esta amizade particular com Maria, uma amizade que cresceu com tudo isso, queremo-la continuar inclusive com esta celebração das Vésperas Marianas de hoje.

Em todos os tempos e lugares, quando os cristãos se dirigem a Maria, deixam-se espontaneamente guiar pela certeza de que Jesus não pode recusar os pedidos que Lhe apresenta sua Mãe; e apoiam-se na confiança inabalável de que Maria é ao mesmo tempo também nossa Mãe: uma Mãe que experimentou o maior sofrimento de todos, que conhece juntamente connosco todas as nossas dificuldades e pensa, de modo maternal, à superação das mesmas. No decorrer dos séculos, quantas pessoas foram em peregrinação a Maria, para encontrar – como aqui em Etzelsbach, diante da imagem de Nossa Senhora das Dores – consolação e conforto!

Contemplemos a sua imagem! Uma mulher de meia-idade, com as pálpebras pesadas pelo longo pranto e, ao mesmo tempo, o olhar sonhador perdido lá longe, como se estivesse a meditar em seu coração tudo o que acontecera. Nos seus joelhos, repousa o corpo sem vida do Filho; Ela abraça-o, delicadamente e com amor, como um precioso dom. No corpo nu do Filho, vemos os sinais da crucifixão. O braço esquerdo do Crucificado pende verticalmente para baixo. Quiçá esta escultura da Pietà estivesse originariamente posta sobre um altar, como muitas vezes acontecia. Assim, o Crucificado apontaria, com o seu braço estendido, para o que sucede no altar, onde o santo sacrifício por Ele realizado se faz presente na Eucaristia.

Uma particularidade da imagem miraculosa de Etzelsbach é a posição do Crucificado. Na maior parte das representações da Pietà, Jesus morto jaz com a cabeça virada para a esquerda. Deste modo, o observador pode ver a ferida no lado do Crucificado; aqui em Etzelsbach, ao contrário, a ferida está escondida, justamente porque o cadáver está virado para o outro lado. Parece-me que, em tal representação, se esconde um profundo significado, que só se desvenda numa atenta contemplação: na imagem miraculosa de Etzelsbach, os corações de Jesus e da sua Mãe estão voltados um para o outro; estão junto um do outro. Trocam entre si o seu amor. Sabemos que o coração é também o órgão de uma sensibilidade mais delicada pelo outro, bem como o órgão da compaixão íntima. No coração de Maria, há o espaço para o amor que o seu divino Filho quer dar ao mundo.

A devoção mariana concentra-se na contemplação da relação entre a Mãe e o seu Filho divino. Os fiéis , na oração, no sofrimento, no agradecimento e na alegria, encontraram sempre novos aspectos e títulos que são capazes de nos descerrar mais profundamente este mistério, como, por exemplo, a imagem do Coração Imaculado de Maria como símbolo da unidade profunda e sem reservas com Cristo no amor. Não é a auto-realização, o querer possuir e construir-se a si mesmo, que opera o verdadeiro desenvolvimento da pessoa – um dado que hoje é proposto como modelo da vida moderna, mas que facilmente se muda numa forma de refinado egoísmo –, mas sim a atitude do dom de si, a renuncia de si mesmo, que se orienta para o coração de Maria e, deste modo, também para o coração de Cristo, como também para o próximo, e só desde modo nos faz encontrarmos a nós mesmos.

«Nós sabemos que tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu desígnio» (
Rm 8,28): ouvimo-lo há pouco na leitura, retirada da Carta aos Romanos. Em Maria, Deus fez concorrer tudo para o bem, e não cessa de fazer com que, por meio de Maria, o bem se espalhe ainda mais no mundo. Da Cruz, do trono da graça e da redenção, Jesus deu aos homens como Mãe a sua própria Mãe, Maria. No momento do seu sacrifício pela humanidade, Ele, de certo modo, torna Maria medianeira do fluxo de graça que provém da Cruz. Junto da Cruz, Maria torna-se companheira e protectora dos homens ao longo do caminho da sua vida. «Cuida, com amor materno, dos irmãos de seu Filho que, entre perigos e angústias, caminham ainda na terra, até chegarem à pátria bem-aventurada» (Lumen gentium LG 62), como o exprimiu o Concílio Vaticano II. É verdade! Na vida, atravessamos vicissitudes várias, mas Maria intercede por nós junto de seu Filho e nos ajuda encontrar a força do amor divino do Filho e nos abrirmos a ela.

A nossa confiança na eficaz intercessão da Mãe de Deus e a nossa gratidão pela ajuda incessantemente experimentada encerram em si mesmas, de algum modo, o impulso para levar a reflexão mais além das necessidades de momento. Verdadeiramente que quer dizer-nos Maria, quando nos salva de um perigo? Quer ajudar-nos a compreender a grandeza e a profundidade da nossa vocação cristã. Com delicadeza materna, quer-nos fazer compreender que toda a nossa vida deve ser uma resposta ao amor rico de misericórdia do nosso Deus. Como se nos dissesse: Compreende que Deus, o Qual é a fonte de todo o bem e nada mais quer senão a tua felicidade, tem o direito de exigir de ti uma vida que se abandone, totalmente e com alegria, à sua vontade e se esforce por que os outros façam o mesmo também. «Onde há Deus, há futuro». Com efeito, onde deixarmos que o amor de Deus actue plenamente sobre a nossa vida e na nossa vida, aí se abre o céu. Aí é possível plasmar o presente de forma tal que corresponda sempre mais à Boa Nova de Nosso Senhor Jesus Cristo. Aí as pequenas coisas da vida diária têm o seu sentido, e os grandes problemas encontram aí a sua solução.

Com esta certeza, rezemos a Maria, com esta certeza, acreditemos em Jesus Cristo, nosso Senhor e nosso Deus. Amen.


SAUDAÇÃO AOS CIDADÃOS Münsterplatz de Friburgo Sábado, 24 de Setembro de 2011

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Queridos amigos,

Com grande alegria, saúdo a todos e vos agradeço pelo cordial acolhimento que me reservastes. Depois dos magníficos encontros em Berlim e Erfurt, sinto-me feliz por poder estar agora convosco em Friburgo, envolvido pela luz e o calor do sol. Um obrigado particular ao vosso querido Arcebispo Robert Zollitsch pelo convite – insistiu tanto que, no final, tive que dizer: deveras tenho que ir a Friburgo! - e pelas amáveis palavras de boas-vindas que me dirigiu.

«Onde há Deus, há futuro»: assim diz o lema destas jornadas. Como Sucessor do Apóstolo Pedro, a quem o Senhor – no Cenáculo – precisamente deu o encargo de confirmar os irmãos (cf.
Lc 22,32), de boa vontade vim ter convosco, nesta bela cidade, para rezarmos juntos, proclamar a palavra de Deus e celebrarmos juntos a Eucaristia. Peço a vossa oração para que estes dias sejam frutuosos, para que Deus confirme a nossa fé, revigore a nossa esperança e aumente o nosso amor. Oxalá nos tornemos de novo, nestes dias, cientes de quanto Deus nos ama e que Ele é verdadeiramente bom. E assim, devemos ser colmados pela confiança de que Ele é bom para connosco, que tem um poder benévolo e que Ele nos leva, com tudo o que faz mover o nosso coração e é importante para nós, nas suas mãos. E queremos nos colocar conscientemente nas suas mãos. N’Ele, o nosso futuro está assegurado; Ele dá sentido à nossa vida e pode levá-la à plenitude. Que o Senhor vos acompanhe na paz e torne a nós todos mensageiros da sua paz! Obrigado de coração pelo acolhimento.



ENCONTRO COM OS REPRESENTANTES DAS IGREJAS ORTODOXAS E ORTODOXAS ORIENTAIS Hörsaal do Seminario de Friburgo Sábado, 24 de Setembro de 2011

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Amados Senhores Cardeais e Bispos,
Venerados Representantes das Igrejas Ortodoxas e Ortodoxas Orientais,

Sinto grande alegria por nos encontrarmos hoje aqui juntos. De coração vos agradeço a todos pela presença e a possibilidade desta partilha amiga. De modo particular, agradeço-lhe, caro Metropolita Augoustinos, pelas suas palavras profundas. Chamou-me a atenção particularmente o que o senhor disse sobre a Mãe de Deus e sobre os Santos que abraçam e unem todos os séculos. E, neste contexto, apraz-me repetir aqui o que disse noutro lugar: sem dúvida, de entre as Igrejas e as Comunidades cristãs, a Ortodoxia é teologicamente a que está mais próxima de nós; católicos e ortodoxos conservaram a mesma estrutura da Igreja dos primórdios. Neste sentido, todos nós somos «Igreja dos primórdios», que entretanto está sempre presente e sempre é nova. E deste modo, não obstante as dificuldades que de um ponto de vista humano não cessam de aparecer, ousamos esperar que não esteja demasiado longe o dia em que poderemos de novo celebrar juntos a Eucaristia (cf. Luz do Mundo. Uma conversa com Peter Seewald , pp. pp. 91-92).

Com interesse e simpatia, a Igreja Católica – e eu pessoalmente – acompanhamos o desenvolvimento das comunidades ortodoxas na Europa ocidental, que têm registado um crescimento notável. Na Alemanha – assim fiquei sabendo – vivem hoje cerca de um milhão e seiscentos mil cristãos ortodoxos e ortodoxos orientais. Tornaram-se parte constitutiva da sociedade, contribuindo para tornar mais vivo o património das culturas cristãs e da fé cristã na Europa. Alegro-me com a intensificação da colaboração pan-ortodoxa que fez progressos substanciais nos últimos anos. A fundação das Conferências Episcopais Ortodoxas – de que o senhor nos falou – em regiões onde as Igrejas Ortodoxas estão na diáspora, é expressão das sólidas relações existentes no âmbito da Ortodoxia. Sinto-me feliz por se ter dado tal passo, na Alemanha, no ano passado. Possam as experiências que se vivem nestas Conferências Episcopais reforçar a união entre as Igreja Ortodoxas e fazer progredir os esforços para um concílio pan-ortodoxo.

Já quando era professor em Bona mas particularmente depois como Arcebispo de Mónaco e Frisinga, pude, através da amizade pessoal com representantes das Igrejas Ortodoxas, conhecer e apreciar de forma cada vez mais profunda a Ortodoxia. Naquele tempo, teve início também o trabalho da Comissão mista da Conferência Episcopal Alemã e da Igreja Ortodoxa. Desde então, com os seus textos sobre questões pastorais e práticas, ela promove a mútua compreensão e contribui para consolidar e desenvolver as relações católico-ortodoxas na Alemanha.

Permanece igualmente importante a continuação do trabalho para se esclarecerem as diferenças teológicas, porque a sua superação é indispensável para o restabelecimento da unidade plena, que almejamos e pela qual rezamos. Nós sabemos que é sobretudo na questão do Primado que devemos continuar, com paciência e humildade, os esforços de confrontação para a justa compreensão do mesmo. Penso que aqui podem ainda dar-nos frutuosos incentivos as reflexões feitas pelo Papa João Paulo II, na Encíclica Ut unum sint (n. 95), para ajudar no discernimento entre a natureza e a forma do exercício do Primado.

Olho, com gratidão, também o trabalho da Comissão mista internacional para o diálogo teológico entre a Igreja Católica e as Igrejas Ortodoxas Orientais. Sinto-me feliz, veneradas Eminências e venerados Representantes das Igrejas Ortodoxas Orientais, por encontrar convosco os Representantes das Igrejas envolvidas neste diálogo. Os resultados obtidos fazem crescer a compreensão de uns pelos outros e aproximar-se uns dos outros.

Na tendência actual do nosso tempo, segundo a qual não poucas pessoas querem, por assim dizer, «libertar» a vida pública de Deus, as Igrejas cristãs na Alemanha – entre as quais se contam também os cristãos ortodoxos e ortodoxos orientais –, com base na fé no único Deus e Pai de todos os homens, caminham juntas pelo caminho de um testemunho pacífico a favor da compreensão e da comunhão entre os povos. Ao fazê-lo, não se esquecem de colocar no centro do anúncio o milagre da encarnação de Deus. Cientes de que é sobre este milagre que se funda toda a dignidade da pessoa, empenham-se conjuntamente na protecção da vida humana desde a sua concepção até à sua morte natural. A fé em Deus, Criador da vida, e o manter-se absolutamente fiéis à dignidade de cada pessoa reforçam os cristãos na sua decidida oposição a toda a intervenção manipuladora e selectiva da vida humana. Além disso, conhecendo como cristãos o valor do matrimónio e da família, temos muito a peito, como realidade importante, proteger a integridade e a singularidade do matrimónio entre um homem e uma mulher de toda a interpretação errónea. Aqui o empenho comum dos cristãos, entre os quais se contam os fiéis ortodoxos e ortodoxos orientais, dá uma contribuição preciosa para a edificação duma sociedade que possa ter um futuro, na qual se presta o devido respeito à pessoa humana.

Por fim, queria dirigir o olhar para Maria – o senhor falou-nos d’Ela como Panaghia – para a Hodegetria, a «guia do caminho», que é venerada também no Ocidente sob o título de «Nossa Senhora do Caminho». A Santíssima Trindade deu à humanidade Maria, a Virgem Mãe, para que Ela, com a sua intercessão, nos guie ao longo dos tempos e nos indique o caminho para a perfeição. A Ela queremos confiar-nos e apresentar o nosso pedido de nos tornarmos, em Cristo, uma comunidade cada vez mais unida intimamente, para louvor e glória do Seu nome. Que Deus vos abençoe a todos! Obrigado.




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