Discursos Bento XVI 21112

POR OCASIÃO DA INAUGURAÇÃO DO ANO JUDICIÁRIO DO TRIBUNAL DA ROTA ROMANA Sala Clementina

21112
Sábado, 21 de Janeiro de 2012


Estimados Componentes
do Tribunal da Rota Romana!

É para mim motivo de alegria receber-vos hoje no encontro anual, por ocasião da inauguração do ano judiciário. Dirijo a minha saudação ao Colégio dos Prelados Auditores, começando pelo Decano, D. Antoni Stankiewicz, ao qual agradeço as gentis palavras. Dirijo uma cordial saudação também aos Oficiais, aos Advogados, aos demais colaboradores e a todos os presentes. Nesta circunstância renovo a minha estima pelo delicado e precioso ministério que desempenhais na Igreja e que exige um compromisso sempre renovado pela incidência que ele tem na salus animarum do Povo de Deus.

No encontro deste ano, gostaria de começar por um dos importantes eventos eclesiais, que viveremos daqui a alguns meses; refiro-me ao Ano da fé que, nas pegadas do meu venerado Predecessor, o Servo de Deus Paulo VI, eu quis proclamar no cinquentenário da abertura do Concílio Ecuménico Vaticano II. Aquele grande Pontífice — como escrevi na Carta apostólica de proclamação — estabeleceu pela primeira vez um período de reflexão «consciente das dificuldades da época, sobretudo em relação à profissão da verdadeira fé e à sua recta interpretação».[1]

Referindo-me a uma exigência semelhante, passando ao âmbito que mais directamente diz respeito ao vosso serviço à Igreja, hoje gostaria de meditar sobre um aspecto primário do ministério judicial, ou seja, a interpretação da lei canónica no respeitante à sua aplicação.[2] A ligação com o tema acima mencionado — a recta interpretação da fé — certamente não se reduz a uma mera assonância semântica, considerando que o direito canónico encontra nas verdades de fé o seu fundamento e o seu próprio sentido, e que a lex agendi não pode deixar de reflectir a lex credendi. Aliás, a questão da interpretação da lei canónica constitui um tema bastante vasto e complexo, face ao qual me limitarei a fazer algumas observações.

Antes de tudo a hermenêutica do direito canónico está estreitamente ligada ao próprio conceito da lei da Igreja.

Caso houvesse a tendência a identificar o direito canónico com o sistema das leis canónicas, o conhecimento do que é jurídico na Igreja consistiria essencialmente em compreender quanto estabelecem os textos legais. À primeira vista esta abordagem pareceria valorizar plenamente a lei humana. Mas é evidente o empobrecimento que esta concepção comportaria: com o esquecimento prático do direito natural e do direito divino positivo, assim como da relação vital de qualquer direito com a comunhão e a missão da Igreja, o trabalho do intérprete é privado do contacto vital com a realidade eclesial.

Nos últimos tempos algumas correntes de pensamento advertiram contra o apego excessivo às leis da Igreja, começando pelos Códigos, julgando-o, precisamente, uma manifestação de legalismo. Por conseguinte, foram propostas vias hermenêuticas que consentem uma abordagem mais correspondente às bases teológicas e às intenções também pastorais da norma canónica, levando a uma criatividade jurídica na qual cada uma das situações se tornariam factores decisivos para verificar o significado autêntico do preceito legal no caso concreto. A misericórdia, a igualdade, a oikonomia tão querida à tradição oriental são alguns dos conceitos aos quais se recorre nesta acção interpretativa. Convém observar imediatamente que este delineamento não supera o positivismo que denuncia, limitando-se a substituí-lo com outro no qual a obra interpretativa humana se eleva a protagonista ao estabelecer o que é jurídico. Falta o sentido de um direito objectivo que deve ser procurado, porque ele permanece à mercê de considerações que pretendem ser teológicas ou pastorais, mas no final estão expostas ao risco da arbitrariedade. Desta forma a hermenêutica legal é esvaziada: no fundo não interessa compreender a disposição da lei, dado que ela pode ser dinamicamente adaptada a qualquer solução, também oposta à sua letra. Certamente há neste caso uma referência aos fenómenos vitais, dos quais, contudo, não se capta a dimensão jurídica intrínseca.

Existe outro caminho, no qual a compreensão adequada da lei canónica abre o caminho para um trabalho interpretativo que se insere na busca da verdade sobre o direito e sobre a justiça na Igreja. Como quis fazer presente no Parlamento Federal do meu país, no Reichstag de Berlim,[3] o verdadeiro direito é inseparável da justiça. Obviamente o princípio é válido também para a lei canónica, no sentido de que ela não pode ser contida num sistema normativo meramente humano, mas deve estar relacionada com uma ordem justa da Igreja, na qual está em vigor uma lei superior. Nesta óptica a lei positiva humana perde a primazia que se lhe pretenderia atribuir, dado que o direito já não se identifica simplesmente com ela: nisto, contudo, a lei humana é valorizada enquanto expressão de justiça, antes de tudo por aquilo que ela declara como direito divino, mas também pelo que ela introduz como legítima determinação de direito humano.

Deste modo, torna-se possível uma hermenêutica legal que seja autenticamente jurídica, no sentido de que, pondo-se em sintonia com o significado próprio da lei, pode fazer-se a interrogação crucial sobre o que é justo em cada um dos casos. Convém observar, a este propósito, que para compreender o significado próprio da lei é necessário olhar sempre para a realidade disciplinada, e isto não só quando a lei é prevalecentemente declarativa do direito divino, mas também quando introduz constitutivamente regras humanas. De facto, elas devem ser interpretadas também à luz da realidade regulada, a qual contém sempre um núcleo de direito natural e divino positivo, com o qual qualquer norma deve estar em harmonia para ser racional e deveras jurídica.

Nesta perspectiva realista, o esforço interpretativo, por vezes árduo, adquire um sentido e um objectivo. O uso dos meios interpretativos previstos pelo Código de Direito Canónico no
CIC 17, começando pelo «significado próprio das palavras considerado no texto e no contexto», já não é uma mera prática lógica. Trata-se de uma tarefa vivificada por um contacto autêntico com a realidade total da Igreja, que permite adentrar-se no verdadeiro sentido da letra da lei. Acontece então algo semelhante a quanto eu disse em relação ao processo interior de Santo Agostinho na hermenêutica bíblica: «A transcendência da letra tornou credível a própria letra».[4] Confirma-se assim que também na hermenêutica da lei o horizonte autêntico é o da verdade jurídica a ser amada, procurada e servida.

Por isso, a interpretação da lei canónica deve ser feita na Igreja. Não se trata de uma mera circunstância externa, ambiental: é uma chamada ao próprio humus da lei canónica e das realidades por ela reguladas. O sentire cum Ecclesia tem sentido também na disciplina, devido aos fundamentos doutrinais que estão sempre presentes e activos nas normas legais da Igreja. Deste modo, deve ser aplicada também à lei canónica aquela hermenêutica da renovação na continuidade de que falei em referência ao Concílio Vaticano II,[5] tão estreitamente ligada à actual legislação canónica. A maturidade cristã leva a amar cada vez mais a lei e a desejar compreendê-la e aplicá-la com fidelidade.

Estas atitudes de fundo adaptam-se a todas as categorias de interpretação: desde a busca científica sobre o direito canónico, ao trabalho dos agentes jurídicos em sede judiciária ou administrativa, até à busca quotidiana das soluções justas na vida dos fiéis e das comunidades. É necessário um espírito de docilidade para respeitar as leis, procurando estudar com honestidade e dedicação a tradição jurídica da Igreja para se poder identificar com ela e também com as disposições legais emanadas pelos Pastores, sobretudo as leis pontifícias e também o magistério sobre questões canónicas, o qual é em si vinculante em tudo o que ensina acerca do direito.[6] Só deste modo se poderão discernir os casos em que as circunstâncias concretas exigem uma solução equitativa para alcançar a justiça que a norma geral humana não pôde prever, e se estiver em condições de manifestar em espírito de comunhão o que pode servir para melhorar a ordem legislativa.

Estas reflexões adquirem uma relevância peculiar no âmbito das leis relativas ao acto constitutivo do matrimónio e à sua consumação e à recepção da Ordem sagrada, e das concernentes aos respectivos processos. Aqui a sintonia com o verdadeiro sentido da lei da Igreja torna-se uma questão de ampla e profunda incidência prática na vida das pessoas e das comunidades e exige uma atenção especial. Em particular, devem ser aplicados também todos os meios juridicamente vinculantes que tendem a garantir a unidade na interpretação e na aplicação das leis que é exigida pela justiça: o magistério pontifício especificamente concernente a este âmbito, contido sobretudo nos discursos à Rota Romana; a jurisprudência da Rota Romana, sobre cuja relevância já tive ocasião de vos falar;[7] as normas e as declarações emanadas por outros Dicastérios da Cúria Romana. Esta unidade hermenêutica no que é essencial não mortifica de modo algum as funções dos tribunais locais, os primeiros chamados a confrontar-se com as complexas situações reais que se verificam em todos os contextos culturais. De facto, cada um deles deve proceder com um sentido de verdadeira reverência em relação à verdade sobre o direito, procurando praticar exemplarmente, na aplicação dos institutos judiciários e administrativos, a comunhão na disciplina, como aspecto essencial da unidade da Igreja.

Preparando-me para concluir este momento de encontro e de reflexão, gostaria de recordar a recente inovação — à qual se referiu D. Stankiewicz — em virtude da qual foram transferidas para uma Repartição junto deste Tribunal Apostólico as competências sobre os procedimentos de dispensa do matrimónio ratificado e não consumado e as causas de nulidade da sagrada Ordenação.8 Estou certo de que haverá uma resposta generosa a este novo compromisso eclesial.

Ao encorajar a vossa obra preciosa, que exige um trabalho fiel, quotidiano e comprometedor, confio-vos à intercessão da Bem-Aventurada Virgem Maria, Speculum iustitiae, e de bom grado concedo-vos a Bênção Apostólica.

Notas

[1] Motu pr. Porta fidei, 11 de Outubro de 2011, 5: «L’Osservatore Romano», 17-18 de Outubro de 2011, p. 4.
[2] Cf. cân CIC 16 § 3 CDC; cân CIO 1498 § 3 CCIO.
[3] Cf. Discurso ao Parlamento Federal da República Federal da Alemanha, 22 de Setembro de 2011: «L’Osservatore Romano», 24 de Setembro de 2011, pp. 6-7.
[4] Cf. Exort. ap. pós-sinodal Verbum Domini, 30 de Setembro de 2010, 38: AAS 102 (2010), p. 718, n. 38.
[5] Cf. Discurso à Cúria Romana, 22 de Dezembro de 2005: AAS 98 (2006), pp. 40-53.
[6] Cf. João Paulo II, Discurso à Rota Romana, 29 de Janeiro de 2005, 6: AAS 97 (2005), pp. 165-166.
[7] Cf. Discurso à Rota Romana, 26 de Janeiro de 2008: AAS 100 (2008), pp. 84-88.
[8] Cf. Motu pr. Quaerit semper, 30 de Agosto de 2011: «L’Osservatore Romano», 28 de Setembro de 2011, p. 7.





A DOCENTES E ALUNOS DOS PONTIFÍCIOS SEMINÁRIOS DA CAMPÂNIA, CALÁBRIA E ÚMBRIA Sala Clementina

Quinta-feira, 26 de Janeiro de 2012




Senhores Cardeais
Venerados Irmãos
Amados Seminaristas!

1440 É-me grato receber-vos, por ocasião do centenário de fundação dos Pontifícios Seminários da Campânia, Calábria e Úmbria. Saúdo os Irmãos no Episcopado e no Sacerdócio, os três Reitores com os colaboradores e os docentes, e principalmente vós, queridos Seminaristas! O nascimento destes três Seminários Regionais, em 1912, deve ser entendido na obra mais vasta de incremento da formação dos candidatos ao sacerdócio, empreendida pelo Papa São Pio X, em continuidade com Leão XIII. Para ir ao encontro das maiores exigências formativas, o caminho empreendido foi o da agregação dos Seminários diocesanos em novos Seminários regionais, juntamente com a reforma dos estudos teológicos, que produziu uma elevação sensível do nível qualitativo, graças à aquisição de uma cultura de base comum a todos e a um período de estudo suficientemente longo e bem estruturado. A Companhia de Jesus desempenha um papel importante a este propósito. Com efeito, aos Jesuítas foi confiada a gestão de cinco Seminários regionais, entre os quais o de Catanzaro, de 1926 a 1941, e o de Posillipo, desde a fundação até hoje. Mas não foi só a formação académica que obteve benefícios, porque a promoção da vida comum entre jovens seminaristas provenientes de diferentes realidades diocesanas favoreceu um notável enriquecimento humano. É singular o caso do Seminário da Campânia, de Posillipo, que desde 1935 se abriu a todas as regiões meridionais, depois de lhe ter sido reconhecida a possibilidade de conceder títulos académicos.

No contexto histórico e eclesial actual, a experiência dos Seminários regionais ainda se apresenta bastante oportuna e válida. Graças à ligação com Faculdades e Instituições teológicas, permite ter acesso a percursos de estudo de nível elevado, favorecendo uma preparação adequada para o complexo cenário cultural e social em que vivemos. Além disso, a índole interdiocesana revela-se um eficaz «ginásio» de comunhão, que se desenvolve no encontro com diferentes sensibilidades a serem harmonizadas no único serviço à Igreja de Cristo. Neste sentido, os Seminários regionais oferecem uma contribuição incisiva e concreta ao caminho de comunhão das Dioceses, favorecendo o conhecimento, a capacidade de colaboração e o enriquecimento de experiências eclesiais entre os futuros presbíteros, os formadores e entre os próprios Pastores das Igrejas particulares. Além disso, a dimensão regional apresenta-se como mediação válida entre as linhas da Igreja universal e as exigências das realidades locais, evitando o risco do particularismo. Caros amigos, as vossas regiões são ricas de grandes patrimónios espirituais e culturais, enquanto vivem não poucas dificuldades sociais. Pensemos, por exemplo, na Úmbria, pátria de são Francisco e de são Bento! Impregnada de espiritualidade, a Úmbria é meta contínua de peregrinações. Ao mesmo tempo, esta pequena região sofre como e mais do que outras a situação económica desfavorável. Na Campânia e na Calábria, a vitalidade da Igreja local, alimentada por um sentido religioso ainda vivo graças a tradições e devoções sólidas, deve traduzir-se numa evangelização renovada. Naquelas terras, o testemunho das comunidades eclesiais deve fazer as contas com fortes emergências sociais e culturais, como a falta de trabalho, principalmente para os jovens, ou o fenómeno da criminalidade organizada.

O contexto cultural contemporâneo exige uma sólida preparação filosófico-teológica dos futuros presbíteros. Como escrevi na minha Carta aos Seminaristas, no encerramento do Ano sacerdotal, não se trata só de aprender o que é evidentemente útil, mas de conhecer e compreender a estrutura interna da fé na sua totalidade, que não é uma suma de teses, mas um organismo, uma visão orgânica, de tal modo que ela se torne resposta às interrogações dos homens, que mudam sob o ponto de vista exterior, de geração em geração, e todavia no fundo permanecem os mesmos (cf. n. 5). Além disso, o estudo da teologia deve ter sempre um vínculo intenso com a vida de oração. É importante que o seminarista compreenda bem que, enquanto se aplica a este objecto, na realidade é um «Sujeito» que o interpela, aquele Senhor que o fez ouvir a sua voz, convidando-o a dedicar a vida ao serviço de Deus e dos irmãos. Assim poderá realizar-se no seminarista, hoje, e no presbítero amanhã, a unidade de vida almejada pelo documento conciliar Presbyterorum Ordinis (cf. n. 14), a qual encontra a sua expressão visível na caridade pastoral, «princípio interior, a virtude que orienta e anima a vida espiritual do presbítero, enquanto configurado a Cristo Cabeça» (João Paulo II, Exort. apost. pós-sinodal Pastores dabo vobis
PDV 23). Com efeito, é indispensável a integração harmoniosa entre o ministério com as suas múltiplas actividades e a vida espiritual do presbítero. «Para o sacerdote, que terá de acompanhar os outros ao longo do caminho da vida até às portas da morte, é importante que ele mesmo tenha posto em justo equilíbrio coração e intelecto, razão e sentimento, corpo e alma, e que seja humanamente “íntegro”» (Carta aos Seminaristas, n. 6). São estes os motivos que impelem a prestar muita atenção à dimensão humana da formação dos candidatos ao sacerdócio. Com efeito, é na nossa humanidade que nos apresentamos diante de Deus, para sermos diante dos nossos irmãos autênticos homens de Deus. Efectivamente, quem deseja tornar-se sacerdote, deve ser sobretudo um «homem de Deus», como o escreve são Paulo ao seu discípulo Timóteo (1Tm 6,11). ... Por isso, o elemento mais importante no caminho rumo ao sacerdócio e durante toda a vida presbiteral é a relação pessoal com Deus, em Jesus Cristo (cf. Carta aos Seminaristas, n. 1).

Ao receber os Superiores e os alunos do Seminário da Campânia, por ocasião do 50º aniversário de fundação no limiar do Concílio Vaticano II, o beato Papa João XXIII assim manifestou esta convicção firme: «Para isto tende a vossa educação, enquanto aguardais a missão que vos for confiada, para glória de Deus e para a salvação das almas: formar a mente e santificar a vontade. O mundo espera santos: sobretudo isto. Ainda antes que sacerdotes cultos, eloquentes e modernizados, são necessários presbíteros santos e santificadores». Estas palavras ainda ressoam actuais, porque é mais forte do que nunca na Igreja inteira, assim como nas vossas particulares regiões de proveniência, a necessidade de trabalhadores do Evangelho, testemunhas credíveis e promotores de santidade, com a sua própria vida. Possa cada um de vós responder a esta vocação! É para isso que asseguro a minha oração, enquanto vos confio à guia materna da Bem-Aventurada Virgem Maria e, de coração, concedo-vos uma especial Bênção Apostólica. Obrigado!





À PLENÁRIA DA CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ Sala Clementina

Sexta-feira, 27 de Janeiro de 2012




Senhores Cardeais
Venerados Irmãos no Episcopado
e no Sacerdócio
Amados irmãos e irmãs!

É para mim sempre motivo de alegria poder encontrar-me convosco por ocasião da Sessão Plenária e expressar-vos o meu apreço pelo serviço que desempenhais para a Igreja e especialmente para o Sucessor de Pedro no seu ministério de confirmar os irmãos na fé (cf. Lc 22,32). Agradeço ao Cardeal William Levada a sua cordial saudação, na qual recordou alguns compromissos importantes desempenhados pelo Dicastério nestes últimos anos. E estou particularmente grato à Congregação que, em colaboração com o Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, prepara o Ano da fé, vendo nele um momento propício para repropor a todos o dom da fé em Cristo ressuscitado, o ensinamento luminoso do Concílio Vaticano II e a preciosa síntese doutrinal oferecida pelo Catecismo da Igreja Católica.

1441 Como sabemos, em vastas áreas da terra a fé corre o perigo de se extinguir como uma chama que deixa de ser alimentada. Estamos diante de uma profunda crise de fé, de uma perda do sentido religioso que constitui o maior desafio para a Igreja de hoje. Por conseguinte, a renovação da fé deve ser a prioridade no compromisso de toda a Igreja nos nossos dias. Faço votos por que o Ano da fé possa contribuir, com a colaboração cordial de todos os componentes do Povo de Deus, para tornar Deus de novo presente neste mundo e abrir aos homens o acesso à fé, para confiar naquele Deus que nos amou até ao fim (cf. Jn 13,1), em Jesus Cristo crucificado e ressuscitado.

O tema da unidade dos cristãos está estreitamente relacionado a esta tarefa. Por conseguinte, gostaria de me deter sobre alguns aspectos relativos ao caminho ecuménico da Igreja, que foi objecto de uma reflexão aprofundada nesta Plenária, em coincidência com a conclusão da anual Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos. De facto, o impulso da obra ecuménica deve começar a partir daquele «ecumenismo espiritual» da «alma de todo o movimento ecuménico» (Unitatis redintegratio UR 8), que se encontra no espírito da oração para que «todos sejam um só» (Jn 17,21).

A coerência do compromisso ecuménico com o ensinamento do Concílio Vaticano II e com toda a Tradição foi um dos âmbitos ao qual a Congregação, em colaboração com o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, sempre prestou atenção. Hoje podemos verificar não poucos frutos bons produzidos pelos diálogos ecuménicos, mas devemos reconhecer também que o risco de um falso irenismo e de um indiferentismo, totalmente alheio à mentalidade do Concílio Vaticano ii, exige a nossa vigilância. Este indiferentismo é causado pela opinião cada vez mais difundida que a verdade não seria acessível ao homem: portanto seria necessário limitar-se a encontrar regras para uma prática capaz de melhorar o mundo. E assim a fé seria substituída por um moralismo, sem fundamento profundo. O centro do verdadeiro ecumenismo é, ao contrário, a fé na qual o homem encontra a verdade que se revela na Palavra de Deus. Sem a fé todo o movimento ecuménico se reduziria a uma forma de «contrato social» ao qual aderir por um interesse comum, uma «praxiologia» para criar um mundo melhor. A lógica do Concílio Vaticano II é completamente diversa: a busca sincera da plena unidade de todos os cristãos é um dinamismo animado pela Palavra de Deus, pela Verdade divina que nos fala nesta Palavra.

O problema crucial, que marca de modo transversal os diálogos ecuménicos, é portanto a questão da estrutura da revelação — a relação entre Sagrada Escritura, a Tradição viva na Santa Igreja e o Ministério dos sucessores dos Apóstolos como testemunha a fé verdadeira. E aqui é implícita a problemática da eclesiologia, que faz parte deste problema: como chega até nós a verdade de Deus. Entre outras coisas, é fundamental o discernimento entre a Tradição com maiúscula, e as tradições. Não pretendo entrar em pormenores, mas faço uma só observação. Um passo importante deste discernimento foi feito na preparação e na aplicação das disposições para grupos de fiéis provenientes do Anglicanismo, que desejam entrar na plena comunhão da Igreja, na unidade da Tradição divina comum e essencial, conservando as próprias tradições espirituais, litúrgicas e pastorais, que são conformes com a fé católica (cf. Const. Anglicanorum coetibus, art. III). Existe, com efeito, uma riqueza espiritual nas diversas Confissões cristãs, que é expressão da única fé e dom que se deve partilhar e encontrar juntos na Tradição da Igreja.

Além disso, hoje, uma das questões fundamentais é constituída pela problemática dos métodos adoptados nos vários diálogos ecuménicos. Também eles devem reflectir a prioridade da fé. Conhecer a verdade é o direito do interlocutor em cada diálogo verdadeiro. É a mesma exigência da caridade para com o irmão. Neste sentido, é preciso enfrentar com coragem também as questões controversas, sempre no espírito de fraternidade e de respeito recíproco. Além disso, é importante oferecer uma interpretação correcta daquela «ordem ou “hierarquia” nas verdades da doutrina católica», realçada no Decreto Unitatis redintegratio (cf. n. 11), que não significa de modo algum reduzir o depósito da fé, mas fazer sobressair a sua estrutura interna, a organicidade desta única estrutura. Têm também grande relevância os documentos de estudo produzidos pelos vários diálogos ecuménicos. Esses textos não podem ser ignorados, porque constituem um fruto importante, mesmo se provisório, da reflexão comum amadurecida ao longo dos anos. De igual modo, eles devem ser reconhecidos no seu significado justo como contributos oferecidos à Autoridade competente da Igreja, a única chamada a julgá-los de modo definitivo. Atribuir a estes textos um peso vinculante ou quase conclusivo das questões difíceis dos diálogos, sem a devida avaliação por parte da Autoridade eclesial, em última análise, não ajudaria o caminho rumo à plena unidade na fé.

Uma última questão que finalmente gostaria de mencionar é a problemática moral, que constitui um novo desafio para o caminho ecuménico. Nos diálogos não podemos ignorar as grandes questões morais acerca da vida humana, da família, da sexualidade, da bioética, da liberdade, da justiça e da paz. Será importante falar destes temas com uma só voz, haurindo do fundamento da Escritura e da tradição viva da Igreja. Esta tradição ajuda-nos a decifrar a linguagem do Criador na sua criação. Defendendo os valores fundamentais da grande tradição da Igreja, defendemos o homem e a criação.

Na conclusão destas reflexões, faço votos por uma colaboração estreita e fraterna da Congregação com o competente Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, a fim de promover de forma eficaz o restabelecimento da plena unidade entre todos os cristãos. Com efeito, a divisão entre os cristãos «não só contradiz abertamente a vontade de Cristo, mas escandaliza o mundo e prejudica a santíssima causa da pregação do Evangelho a todas as criaturas» (Decr. Unitatis redintegratio UR 1). Por conseguinte, a unidade não só é fruto da fé, mas também um meio e quase um pressuposto para anunciar de modo cada vez mais credível a fé a quantos ainda não conhecem o Salvador. Jesus rezou: «Como Tu, ó Pai estás em Mim e Eu em Ti, que também eles estejam em Nós, para que o mundo creia que Tu Me enviaste» (Jn 17,21).

Ao renovar a minha gratidão pelo vosso serviço, garanto-vos a minha proximidade espiritual constante e concedo de coração a todos vós a Bênção Apostólica.



AOS REPRESENTANTES DA FUNDAÇÃO JOÃO PAULO II PARA O SAHEL Sala dos Papas

Sexta-feira, 10 de Fevereiro de 2012




Queridos amigos

1442 É para mim uma grande alegria receber-vos e desejar-vos as boas-vindas. Agradeço ao Cardeal Sarah, Representante legal da Fundação João Paulo II para o Sahel na qualidade de Presidente do Pontifício Conselho Cor Unum, as amáveis palavras que acaba de me dirigir. Saúdo o Presidente do Conselho de Administração, Sr. Bassène, assim como todos vós, que cooperais nesta grande obra de caridade. A minha saudação e agradecimento também aos representantes das Conferências episcopais alemã e italiana, que contribuem de modo importante para o funcionamento da Fundação.

Deus fez-se carne. Houve porventura alguma vez um gesto maior do que este? Tudo o que acontece hoje em dia e que continua a realizar-se depois do dia em que Jesus se fez homem, é disto o sinal. Deus não deixa de nos amar e de encarnar para a sua Igreja, em todas as partes do mundo. Surgida há quase trinta anos, e desejada pelo meu amado predecessor, também a Fundação João Paulo II para o Sahel não cessou de perseguir esta finalidade: ser sinal de uma caridade cristã que encarna e se torna testemunha de Cristo. A Fundação deseja igualmente manifestar a presença do Papa junto dos nossos irmãos africanos! Ela realizou ao longo dos anos numerosos projectos para contrastar a desertificação. A existência desta Fundação mostra a grande humanidade do meu amado predecessor que teve esta intuição. Mas esta obra não será plenamente eficaz se não for irrigada pela oração. Pois, só Deus é fonte e poder de vida. É Ele o criador das águas (cf.
Gn 1,6-9). Infelizmente, o Sahel foi gravemente ameaçado de novo durante estes últimos meses por uma diminuição importante de recursos alimentares e pela fome por causa da falta de chuva, que causa o avanço constante do deserto. Exorto a comunidade internacional a considerar seriamente a extrema pobreza destas populações cujas condições de vida se agravam. Desejo encorajar e apoiar também os esforços dos organismos eclesiais que trabalham neste âmbito.

A caridade deve promover todas as nossas acções. Não se trata de pretender fazer um mundo «à medida», mas trata-se de o amar. Eis por que a Igreja não tem por vocação primária transformar a ordem política ou mudar o tecido social. Ela deseja transmitir a luz de Cristo. É Ele quem transformará tudo e todos. É por causa de e por Jesus Cristo que a contribuição cristã é tão específica. Em certos países que vós representais, o islão existe. Sei que mantendes boas relações com os muçulmanos e por isto me alegro. Testemunhar que Cristo está vivo e que o seu amor vai além de qualquer religião, raça e cultura, é importante também em relação a eles.

Descreve-se de modo redutivo e muitas vezes humilhante a África como o continente dos conflitos e dos problemas infinitos e sem solução. Ao contrário, a África que hoje acolhe a Boa Nova é para a Igreja o continente da esperança. Para nós, para vós, a África é o continente do futuro. Repito a exortação pronunciada por ocasião da minha recente viagem ao Benim: «África, Boa Nova para a Igreja, sê-o para todo o mundo!». A Fundação João Paulo II para o Sahel é disto um grande testemunho.

Para realizar esta obra e depois de 28 anos de actividades, a Fundação precisa de se actualizar e renovar. Nisto ela é ajudada pelo Pontifício Conselho Cor Unum. Este renovamento deve concernir em primeiro lugar a formação cristã e profissional das pessoas que trabalham no lugar, pois elas são, de certa forma, os instrumentos do Santo Padre nessas regiões. Considero prioritária a educação e a formação cristãs de quantos — de uma maneira ou doutra — co- operam para tornar mais visível o grande sinal de caridade que é a Fundação João Paulo II para o Sahel. Para que este renovamento seja efectivo, deverá começar pela oração e pela conversão pessoal. Que a Virgem Maria e o beato João Paulo II nos assistam! Obrigado!



VISITA AO PONTIFÍCIO SEMINÁRIO MAIOR ROMANO NO DIA DE NOSSA SENHORA DA CONFIANÇA

"LECTIO DIVINA"
Capela do Seminário

Quinta-feira, 15 de Fevereiro de 2012




Eminências
Irmãos no Episcopado
e no sacerdócio Estimados seminaristas
1443 Queridos irmãos e irmãs!

É para mim sempre uma grande alegria ver, no dia de Nossa Senhora da Confiança, os meus seminaristas, os seminaristas de Roma, a caminho para o sacerdócio, e assim ver a Igreja de amanhã, a Igreja que vive sempre.

Hoje ouvimos um texto — ouvimo-lo e meditámo-lo — da Carta aos Romanos: Paulo fala aos Romanos e por conseguinte fala a nós, porque fala aos Romanos de todos os tempos. Esta Carta não é só a maior de são Paulo, mas é também extraordinária devido à espessura doutrinal e espiritual. É extraordinária também porque é uma carta escrita a uma comunidade que não tinha fundado e nem sequer tinha visitado. Ele escreve para anunciar a sua visita e expressar o desejo de visitar Roma, e prenuncia os conteúdos essenciais do seu Kerygma; deste modo prepara a Cidade para a sua visita. Escreve a esta comunidade que não conhece pessoalmente, porque é o Apóstolo dos Pagãos — do trecho do Evangelho dos Hebreus aos Pagãos — e Roma é a capital dos Pagãos e portanto o centro, também da sua mensagem. O seu Evangelho deve chegar aqui, para que alcance realmente o mundo pagão. Chegará, mas dum modo diferente de como tinha pensado. Paulo chegará em cadeias por Cristo e precisamente em cadeias se sentirá livre para anunciar o Evangelho.

No primeiro capítulo da Carta aos Romanos, ele diz também: da vossa fé, da fé da Igreja de Roma fala-se em todo o mundo (cf. 1, 8). O aspecto memorável da fé desta Igreja é que dela se fala no mundo inteiro, e podemos reflectir sobre o seu estado actual. Também hoje se fala muito da Igreja de Roma, de tantas coisas, mas esperamos que se fale também da nossa fé, da fé exemplar desta Igreja, e rezemos ao Senhor para que possamos fazer com que se fale não de tantas coisas, mas da fé da Igreja de Roma.

O texto lido (
Rm 12,1-2) é o início da quarta e última parte da Carta aos Romanos e começa com as palavras «Exorto-vos» (v. 1). Normalmente diz-se que se trata da parte moral que segue a parte dogmática, mas no pensamento de são Paulo, e também na sua linguagem, não se podem dividir assim as coisas; esta palavra «exorto», em grego parakalo, tem em si a palavra paraklesisparakletos, tem uma profundidade que vai muito além da moralidade; é uma palavra que sem dúvida inclui admoestação, mas também conforto, cura para o outro, ternura paterna, aliás materna; esta palavra «misericórdia» — em grego oiktirmon e em hebraico rachamim, seio materno — expressa a misericórdia, a bondade e a ternura de uma mãe. E se Paulo exorta, está implícito: fala com o coração, fala com a ternura do amor de um pai e não é só ele quem fala. Paulo diz «por misericórdia de Deus» (v. 1); faz-se instrumento do falar de Deus, faz-se instrumento do falar de Cristo; Cristo fala a nós com esta ternura, com este amor paterno, com esta solicitude por nós. E assim não faz apelo apenas à nossa moralidade e à nossa vontade, mas também à Graça que está em nós, que deixemos agir a Graça. É quase um acto no qual a Graça dada no Baptismo se torna activa para nós, deveria estar activa em nós; deste modo a Graça, o dom de Deus, e o nosso cooperar caminham juntos.

Neste sentido, ao que exorta Paulo? «Oferecei os vossos corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus» (v. 1). «Oferecei os vossos corpos»: fala da liturgia, fala de Deus, da prioridade de Deus, mas não fala de liturgia como cerimónia, fala de liturgia como vida. Nós próprios, o nosso corpo; nós no nosso corpo e como corpo devemos ser liturgia. Esta é a novidade do Novo Testamento, e vê-lo-emos ainda mais à frente: Cristo oferece-se a si mesmo e substitui assim todos os outros sacrifícios. E deseja «atrair-nos» a nós próprios para a comunhão do seu Corpo: o nosso corpo juntamente com o seu torna-se glória de Deus, torna-se liturgia. Assim esta palavra «oferecer» — em grego parastesai — não é só uma alegoria; alegoricamente também a nossa vida seria uma liturgia, mas, ao contrário, a verdadeira liturgia é a do nosso corpo, do nosso ser no Corpo de Cristo, como fez o próprio Cristo a liturgia do mundo, a liturgia cósmica, que tende a atrair todos a si.

«No vosso corpo, oferecer o corpo»: esta expressão indica o homem na sua totalidade, indivisível — no final — entre alma e corpo, espírito e corpo; no corpo somos nós mesmos e o corpo animado pela alma, o próprio corpo, deve ser a realização da nossa adoração. E pensamos — diria talvez que cada um de nós depois reflicta sobre esta palavra — que o nosso viver quotidiano no nosso corpo, nas pequenas coisas, deveria ser inspirado, prodigalizado, imerso na realidade divina, deveria tornar-se acção juntamente com Deus. Isto não significa que devemos pensar sempre em Deus, mas que devemos ser realmente penetrados pela realidade de Deus, de modo que toda a nossa vida — e não só alguns pensamentos — seja liturgia, seja adoração. Paulo depois diz: «Oferecei os vossos corpos como sacrifício vivo» (v. 1): a palavra grega é logike latreia e aparece depois no Cânone Romano, na primeira Oração Eucarística, «rationabile obsequium». É uma definição nova do culto, mas elaborada quer no Antigo Testamento, quer na filosofia grega: são dois rios — por assim dizer — que guiam para este ponto e se unem na nova liturgia dos cristãos e de Cristo. Antigo Testamento: desde o início compreenderam que Deus não precisa de touros, de carneiros, destas coisas. No Salmo 50 [49], Deus diz: pensais que eu coma touros, que eu beba sangue de carneiros? Eu não preciso destas coisas, não me agradam. Eu não bebo e não como estas coisas. Não são sacrifício para mim. Sacrifício é o louvor de Deus, se vós vindes a mim é louvor de Deus (cf. vv. 13-15.23). Assim o caminho do Antigo Testamento orienta-se para um ponto no qual estas coisas exteriores, símbolos, substituições, desaparecem e o próprio homem se torna louvor de Deus.

O mesmo se verifica no mundo da filosofia grega. Também aqui se compreende cada vez mais que não se pode glorificar a Deus com estas coisas — com animais ou ofertas — mas que só o «logos» do homem, a sua razão transformada em glória de Deus, é realmente adoração, e a ideia é que o homem deveria sair de si mesmo e unir-se com o «Logos», com a grande Razão do mundo e assim ser deveras adoração. Mas aqui falta algo: o homem, segundo esta filosofia, deveria deixar — por assim dizer — que o corpo se espiritualize; só o espírito seria adoração. O Cristianismo, ao contrário, não é simplesmente espiritualização ou moralização, ou seja, Cristo é o «Logos», é a Palavra encarnada, e Ele reúne-nos a todos, de modo que n'Ele e com Ele, no seu Corpo, como membros deste Corpo nos tornamos realmente glorificação de Deus. Tenhamos isto presente: por um lado certamente sair destas coisas materiais por um conceito mais espiritual da adoração de Deus, mas chegar à encarnação do espírito, chegar ao ponto no qual o nosso corpo seja resumido no Corpo de Cristo e o nosso louvor a Deus não seja só palavras, mas acções, realidade de toda a nossa vida. Penso que devemos reflectir sobre este rezar a Deus, para que nos ajude a fim de que o espírito se torne carne também em nós, e a carne se torne cheia do Espírito de Deus.

Encontramos a mesma realidade também no quarto capítulo do Evangelho de São João, onde o Senhor diz à samaritana: Não se adorará no futuro sobre este monte ou sobre aquele, com estes ou outros ritos; adorar-se-á em espírito e em verdade (cf. Jn 4,21-23). Certamente é espiritualização, sair destes ritos carnais, mas este espírito, esta verdade não é um espírito abstracto qualquer: o espírito é o Espírito Santo, e a verdade é Cristo. Adorar em espírito e verdade significa entrar realmente através do Espírito Santo no Corpo de Cristo, na verdade do ser. E assim nós tornamo-nos verdade e glorificação de Deus. Tornar-se verdade em Cristo exige o nosso compromisso total.

E depois prosseguimos: «Santo e agradável a Deus: é este o vosso culto espiritual» (Rm 12,1). Segundo versículo: depois desta definição fundamental da nossa vida como liturgia de Deus, encarnação da Palavra em nós, todos os dias, com Cristo — a Palavra encarnada — são Paulo prossegue: «Não vos conformeis com este mundo, mas deixai-vos transformar, renovando o vosso modo de pensar» (v. 2). «Não vos conformeis com este mundo». Há um não conformismo do cristão, que não se deixa conformar. Isto não significa que nós queremos fugir do mundo, que não nos interessa o mundo; ao contrário, desejamos transformar-nos a nós mesmos e deixar-nos transformar, transformando assim o mundo. E devemos ter presente que no Novo Testamento, sobretudo no Evangelho de são João, a palavra «mundo» tem dois significados e por conseguinte indica o problema e a realidade da qual se trata. Por um lado o «mundo» criado por Deus, amado por Deus, até ao ponto de se entregar a si mesmo e o seu Filho por este mundo; o mundo é criatura de Deus, Deus ama-o e quer dar-se a si mesmo para que ele seja realmente criação e resposta ao seu amor. Mas há também o outro conceito do «mundo», kosmos houtos; o mundo que está no mal, que está no poder do mal, que reflecte o pecado original. Vemos este poder do mal hoje, por exemplo, em dois grandes poderes, que em si são úteis e bons, mas que são facilmente abusáveis; o poder das finanças e o poder dos meios de comunicação. Ambos são necessários, porque podem ser úteis, mas tão abusáveis que muitas vezes tornam-se o contrário das suas verdadeiras intenções.

Vemos como o mundo das finanças possa dominar o homem, que o ter e o parecer dominam o mundo e escravizam-no. O mundo das finanças já não representa um instrumento para favorecer o bem-estar, para favorecer a vida do homem, mas torna-se um poder que o oprime, que deve ser quase adorado: «Mamona», a verdadeira divindade falsa que domina o mundo. Contra este conformismo da submissão a este poder, devemos ser não conformistas: não conta o ter, mas o ser! Não nos submetamos a isto, usemo-lo como meio, mas com a liberdade dos filhos de Deus.

1444 Depois o outro, o poder da opinião pública. Certamente precisamos de informações, de conhecimento das realidades do mundo, mas depois pode tratar-se de um poder da aparência; no final, o que é dito conta mais do que a própria realidade. Uma aparência sobrepõe-se à realidade, torna-se mais importante, e o homem já não segue a verdade do seu coração, mas deseja sobretudo parecer, ser conforme a estas realidades. E também contra isto há o não conformismo cristão: não queremos ser sempre «conformados», louvados, não queremos a aparência, mas a verdade e isto dá-nos liberdade e a verdadeira liberdade cristã: libertar-se desta necessidade de prazer, de falar como a massa pensa que deveria ser, e ter a liberdade da verdade, e deste modo recriar o mundo de modo que não seja oprimido pela opinião, pela aparência que já não deixa sobressair a própria realidade; o mundo virtual torna-se mais verdadeiro, mais forte e já não se vê o mundo real da criação de Deus. O não conformismo do cristão redime-nos, restitui-nos à verdade. Rezemos ao Senhor para que nos ajude a ser homens livres neste não conformismo que não é contra o mundo, mas é o verdadeiro amor do mundo.

E são Paulo prossegue: «Transformar, renovando o vosso modo de pensar» (v. 2). Duas palavras muito importantes: «transformar», do grego metamorphon, e «renovar» em grego anakainosis. Transformar-nos a nós mesmos, deixar-nos transformar pelo Senhor na forma da imagem de Deus, transformar-nos todos os dias de novo, através da sua realidade, na verdade do nosso ser. E «renovação»; esta é a verdadeira novidade: que não nos submetamos às opiniões, às aparências, mas à Graça de Deus, à sua revelação. Deixemo-nos formar, plasmar, para que surja realmente no homem a imagem de Deus.

«Renovando — diz Paulo, para mim de modo surpreendente — o vosso modo de pensar». Por conseguinte, esta renovação, esta transformação começa com a renovação do pensar. São Paulo diz «o nous»: todo o modo do nosso raciocinar, a própria razão deve ser renovada. Renovada não segundo as categorias do habitual, mas renovar significa deixar-se iluminar realmente pela Verdade que nos fala na Palavra de Deus. E desta forma, finalmente, aprender o novo modo de pensar, que é o modo que não obedece ao poder e ao ter, ao parecer, etc., mas obedece à verdade do nosso ser que habita profundamente em nós e que nos é dada novamente no Baptismo.

«Renovar o modo de pensar»: todos os dias é uma tarefa precisamente no caminho do estudo da Teologia, da preparação para o sacerdócio. Estudar bem a teologia, espiritualmente, pensá-la até ao fundo, meditar a Escritura todos os dias; este modo de estudar a Teologia com a escuta do próprio Deus que nos fala é o caminho de renovação do pensar, de transformação do nosso ser e do mundo.

E, por fim, «Façamos tudo — segundo Paulo — para poder discernir a vontade de Deus, o que é bom, o que Lhe é agradável e perfeito» (cf. v. 2). Discernir a vontade de Deus: podemos aprender isto só num caminho obediente, humilde, com a Palavra de Deus, com a Igreja, com os Sacramentos, com a meditação da Sagrada Escritura. Conhecer e discernir a vontade de Deus, quanto é bom. Isto é fundamental na nossa vida.

E, no dia de Nossa Senhora da Confiança, vemos em Nossa Senhora precisamente a realidade de tudo isto, a pessoa que é realmente nova, que foi deveras transformada, que é realmente sacrifício vivente. Nossa Senhora vê a vontade de Deus, vive na vontade de Deus, diz «sim», e este «sim» de Nossa Senhora é todo o seu ser, e assim mostra-nos o caminho, ajuda-nos. Portanto, neste dia, rezemos a Nossa Senhora, que é o ícone vivente do homem novo. Ajude-nos a transformar, a deixar transformar o nosso ser, a ser realmente homens novos, a sermos também depois, se Deus quiser, Pastores da sua Igreja. Obrigado!





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