Discursos Bento XVI 40213

CONCERTO EM HONRA DO SANTO PADRE E DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA ITALIANA POR OCASIÃO DO 84º ANIVERSÁRIO DOS PACTOS LATERANENSES

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DISCURSO DO PAPA BENTO XVI

Sala Paulo VI
Segunda-feira, 4 de Fevereiro de 2013

[Vídeo]



Senhor Presidente da República
Senhores Cardeais
Ilustres Ministros e distintas Autoridades
Venerados Irmãos
Gentis Senhores e Senhoras

Antes de tudo, saúdo o Senhor Presidente da República italiana, Deputado Giorgio Napolitano, e agradeço-lhe as expressões intensas que me dirigiu; nestes sete anos — como recordou — pudemos encontrar-nos várias vezes e compartilhar experiências e reflexões. Saúdo a sua gentil Esposa, as Autoridades italianas, assim como os Senhores Embaixadores e as numerosas Personalidades presentes. Obrigado de coração aos promotores e aos organizadores desta tarde, de modo particular à «Flying Angels Foundation», comprometida no campo da solidariedade.

A Orquestra de «Maggio Musicale Fiorentino» e o seu Director, Zubin Mehta, não têm necessidade de apresentações: ambos ocupam um lugar importante no panorama musical internacional e esta tarde demonstraram-no, oferecendo-nos um momento de profunda elevação do espírito, com a notável execução da Sinfonia verdiana e da Terceira de Beethoven.

Giuseppe Verdi, A força do Destino: uma homenagem devida ao grande músico italiano no ano em que celebramos os duzentos anos do seu nascimento. Nas suas obras impressiona sempre como ele soube capturar e traçar musicalmente as situações da vida, sobretudo os dramas do espírito humano, de modo tão imediato, incisivo e essencial, como raramente se encontra no panorama musical. O destino das personagens verdianas é sempre trágico e também os protagonistas de A força do Destino não o evitam: desde os primeiros tons, a Sinfonia que ouvimos faz-nos senti-lo. Mas enfrentando o tema do destino, Verdi confronta-se directamente com o tema religioso, confronta-se com Deus, com a fé, com a Igreja; e sobressaem mais uma vez o espírito deste músico, a sua inquietação e a sua busca religiosa. Em A força do Destino, não apenas uma das árias mais famosas, «A Virgem dos Anjos», é uma oração angustiada, mas aí encontramos também duas histórias de conversão e aproximação de Deus: a de Leonora, que reconhece dramaticamente as suas culpas e decide retirar-se numa vida eremítica, e a do padre Alvaro, que luta entre o mundo e uma vida de solidão com Deus. É interessante observar que nas duas versões desta obra, a de 1862 para São Petersburgo e a de 1869 para «La Scala» de Milão, os finais mudam: na primeira, o padre Alvaro termina a vida suicida, rejeitando o hábito talar e invocando o inferno; na segunda, ao contrário, ele segue o conselho do Frade Guardião, de confiar no perdão de Deus e a obra termina com as palavras «Elevação a Deus». Aqui está traçado o drama da existência humana, marcada por um destino trágico e pela saudade de Deus, da sua misericórdia e do seu amor, que oferecem luz, sentido e esperança até na escuridão. A fé oferece-nos esta perspectiva que não é ilusória, mas real; como afirma são Paulo, «nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem o presente, nem o futuro, nem as potestades, nem as alturas, nem os abismos, nem qualquer outra criatura nos poderá separar do amor que Deus nos testemunha em Cristo Jesus, nosso Senhor» (
Rm 8,38-39). Esta é a força do cristão, que nasce da morte e ressurreição de Cristo, do gesto supremo de um Deus que entrou na história do homem não só com as palavras, mas encarnando.

Uma palavra também sobre a Terceira Sinfonia de Beethoven, uma obra complexa que marca de modo claro a distância do sinfonismo clássico de Haydn e Mozart. Como se sabe, era dedicada a Napoleão, mas o grande compositor alemão mudou de ideia depois de Bonaparte se ter proclamado imperador, modificando o título: «composta para festejar a recordação de um grande Homem». Beethoven exprime musicalmente o ideal do herói portador de liberdade e de igualdade, que está diante da escolha da resignação ou da luta, da morte ou da vida, da rendição ou da vitória; e a Sinfonia descreve estes humores com uma riqueza de cores e temática até então desconhecida. Não entro na leitura dos quatro tempos, mas menciono só o segundo, a célebre Marcha fúnebre, uma profunda meditação sobre a morte, que começa com uma primeira secção com tons dramáticos e desolados, mas que na parte central contém um episódio sereno entoado pelo oboé e depois a dupla fuga e os tons de trombeta: o pensamento sobre a morte convida a meditar sobre o além, o infinito. Naqueles anos, no testamento de Heiligenstadt de Outubro de 1802, Beethoven escrevia: «Ó Deus, do alto Tu olhas no meu íntimo, conhece-lo e sabes que está cheio de amor pela humanidade e de desejo de fazer o bem». A busca de sentido que abra a uma esperança sólida para o futuro faz parte do caminho da humanidade.

Obrigado, Senhor Presidente, pela sua presença. Agradeço ao Director e aos Professores da Orquestra «Maggio Musicale Fiorentino». Estou grato também aos promotores e aos organizadores, bem como a todos vós! Boa noite!




AOS PARTICIPANTES NA ASSEMBLEIA GERAL DA FRATERNIDADE SACERDOTAL DE SÃO CARLOS BORROMEU 6 de Fevereiro de 2013

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Quarta-feira, 6 de Fevereiro de 2013




Excelências
Queridos Irmãos

É para mim uma grande alegria encontrar-me convosco. Recordo bem as minhas visitas ao Palácio Borromeu, ao lado de Santa Maria Maior, onde conheci pessoalmente padre Giussani; conheci a sua fé, a sua alegria, a força e a riqueza das suas ideias, a criatividade da sua fé. Nasceu uma verdadeira amizade; assim, através dele, conheci também melhor a comunidade de Comunhão e Libertação.

É-me grato saber que o sucessor está connosco; que continua esta grande obra e inspira numerosas pessoas, muitos leigos, homens e mulheres, a colaborar na difusão do Evangelho, no crescimento do Reino de Deus. Aqui conheci também Massimo Camisasca; falámos sobre várias questões, conheci a sua criatividade na arte, a sua capacidade de ver, interpretar os sinais dos tempos, o seu grande dom de educador, de sacerdote. Uma vez tive inclusive a honra de ordenar alguns sacerdotes em Porto Santa Rufina e foi bonito, por conseguinte, saber que aqui cresce uma nova Fraternidade sacerdotal no espírito de são Carlos Borromeu, que permanece sempre o grande modelo de um Pastor realmente estimulado pelo amor de Cristo, que procura os pequenos, que os ama e assim cria verdadeiramente a fé e faz crescer a Igreja.

Hoje a nossa Fraternidade é grande, um sinal de que existem vocações. Mas há também necessidade da nossa abertura para encontrar, acompanhar, guiar e ajudar as vocações na maturação. Por esta razão, agradeço ao padre Camisasca que desempenhou o papel de grande educador. Hoje a educação ainda é fundamental para o crescimento da verdade, para o crescimento do nosso ser filhos de Deus e irmãos de Jesus Cristo.

Graças a Deus, conheço já há muito tempo o vosso novo Superior-Geral, que conheceu um pouco a minha teologia. Deste modo, sinto-me feliz por estar também convosco espiritual e intelectualmente e poder fecundar de modo recíproco o nosso trabalho.

O Senhor vos abençoe. Dou-lhe graças por este dom da vossa Fraternidade: que ela possa crescer e revigorar sempre, sobretudo no amor de Cristo, no amor dos homens por Cristo. O Senhor vos acompanhe.

Concedo-vos a bênção, ciente de que rezais por mim e me acompanhais com a vossa oração. Obrigado a todos vós!


À ASSEMBLEIA PLENÁRIA DO PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A CULTURA Quinta-feira, 7 de Fevereiro de 2013

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Estimados amigos

Estou verdadeiramente feliz por me encontrar convosco na abertura dos trabalhos da Assembleia Plenária do Pontifício Conselho para a Cultura, na qual estareis comprometidos para compreender e aprofundar — como disse o Presidente — sob diversas perspectivas, as «culturas juvenis emergentes». Saúdo cordialmente o Presidente, Cardeal Gianfranco Ravasi, e agradeço-lhe as amáveis palavras que me dirigiu em nome de todos vós. Saúdo os Membros, os Consultores e todos os Colaboradores do Dicastério, desejando um trabalho profícuo que oferecerá uma contribuição útil para a obra que a Igreja desempenha em prol da realidade juvenil; uma realidade, como dissemos, complexa e articulada, que já não pode ser compreendida no interior de um universo cultural homogéneo, mas sim num horizonte que pode definir-se «multiverso», ou seja, determinado por uma pluralidade de visões, de perspectivas e de estratégias. Por isso, é oportuno falar de «culturas juvenis», considerando que os elementos que distinguem e diferenciam os fenómenos e os âmbitos culturais predominam sobre aqueles sempre presentes que, ao contrário, os associam entre si. Com efeito, numerosos factores concorrem para traçar um programa cultural cada vez mais fragmentado e em evolução contínua e extremamente rápida, à qual certamente não são alheios os meios de comunicação social, os novos instrumentos de comunicação que favorecem e, às vezes, eles mesmos provocam contínuas e rápidas mudanças de mentalidade, de costume e de comportamento.

Assim, sentimos um difundido clima de instabilidade que atinge tanto o campo cultural, como os âmbitos político e económico — este último marcado também pelas dificuldades que os jovens têm de encontrar um trabalho — e incide sobretudo nos planos psicológico e relacional. A incerteza e a fragilidade que conotam tantos jovens impele-os, com frequência, para a marginalidade, tornando-os quase invisíveis e ausentes nos processos históricos e culturais das sociedades. E cada vez mais, fragilidade e marginalidade acabam em fenómenos de dependência das drogas, de desvio e de violência. As esferas afectiva e emotiva, o âmbito dos sentimentos, assim como o da corporeidade, são fortemente influenciados por este clima e pela atmosfera cultural que dele deriva, expressa por exemplo por fenómenos aparentemente contraditórios, como a espectacularização da vida íntima e pessoal e o fechamento individualista e narcisista nas nossas próprias necessidade e interesses. Também a dimensão religiosa, a experiência de fé e a pertença à Igreja são muitas vezes vividas numa perspectiva particular e emotiva.

No entanto, não faltam fenómenos decididamente positivos. Os impulsos generosos e intrépidos de muitos jovens voluntários que dedicam aos irmãos mais necessitados as suas energias melhores; as experiências de fé sincera e profunda de numerosos rapazes e moças que, com alegria, dão testemunho da sua pertença à Igreja; os esforços levados a cabo para construir, em muitas regiões do mundo, sociedades capazes de respeitar a liberdade e a dignidade de todos, a começar pelos mais pequeninos e frágeis. Tudo isto nos conforta e nos ajuda a traçar um panorama mais específico e objectivo das culturas juvenis. Por conseguinte, não nos podemos contentar com a interpretação dos fenómenos culturais juvenis segundo paradigmas consolidados, mas que já se tornaram lugares-comuns, ou com a sua análise mediante métodos que já não são úteis, começando a partir de categorias culturais obsoletas e inadequadas.

Em última análise, encontramo-nos diante de uma realidade mais complexa do que nunca, mas também fascinante, que deve ser entendida de maneira profunda e amada com grande espírito de empatia, uma realidade cujas linhas-base e desenvolvimento é necessário saber captar com atenção. Por exemplo, observando os jovens de muitos países do chamado «Terceiro Mundo» damo-nos conta de que, com as suas culturas e as suas necessidades, eles representam um desafio para a sociedade do consumismo globalizado, para a cultura dos privilégios consolidados, dos quais beneficia só um pequeno círculo da população do mundo ocidental. Por conseguinte, as culturas juvenis tornam-se «emergentes» também no sentido de que manifestam uma necessidade profunda, um pedido de ajuda ou até uma «provocação», que não pode ser ignorada nem descuidada, quer pela sociedade civil quer pela comunidade eclesial. Por exemplo, manifestei várias vezes a minha preocupação e a da Igreja inteira pela chamada «emergência educativa», à qual devem certamente ser acrescentadas também outras «emergências», que se referem a diversas dimensões da pessoa e às suas relações fundamentais, às quais não podemos responder de modo evasivo nem superficial. Penso, por exemplo, na dificuldade crescente no campo do trabalho ou na dificuldade de ser fiel, ao longo do tempo, às responsabilidades assumidas. Daqui derivaria, para o futuro do mundo e da humanidade inteira, uma depauperação não apenas económica e social, mas sobretudo humana e espiritual: se os jovens já não esperassem nem progredissem, se não inserissem nas dinâmicas históricas a sua energia, a sua vitalidade e a sua capacidade de antecipar o porvir, encontraríamos uma humanidade fechada em si mesma, desprovida de confiança e de um olhar positivo em relação ao futuro.

Não obstante estejamos conscientes das numerosas situações problemáticas, que dizem respeito também aos âmbitos da fé e da pertença da Igreja, queremos renovar a nossa confiança nos jovens, confirmar que a Igreja considera a sua condição e as suas culturas como um ponto de referência essencial e iniludível para a sua obra pastoral. Por isso, gostaria de reconsiderar novamente alguns dos excertos mais significativos da Mensagem que o Concílio Vaticano II dirigiu aos jovens, a fim de que seja um motivo de reflexão e de estímulo para as novas gerações. Antes de tudo, nesta Mensagem, afirmava-se: «A Igreja olha para vós com confiança e amor... Ela possui o que constitui a força e o encanto dos jovens: a faculdade de se alegrar com o que começa, de se dar sem nada exigir, de se renovar e de partir para novas conquistas». Em seguida, o Venerável Paulo VI dirigia o seguinte apelo aos jovens do mundo: «É em nome deste Deus e do seu Filho Jesus que vos exortamos a alargar os vossos corações a todo o mundo, a escutar o apelo dos vossos irmãos e a pôr corajosamente ao seu serviço as vossas energias juvenis. Lutai contra todo o egoísmo. Recusai dar livre curso aos instintos da violência e do ódio, que geram as guerras e o seu cortejo de misérias. Sede generosos, puros, respeitadores, sinceros. E construí com entusiasmo um mundo melhor que o dos vossos antepassados!».

Também eu quero reiterá-lo vigorosamente: a Igreja tem confiança nos jovens, conta com eles e com as suas energias, tem necessidade deles e da sua vitalidade para continuar a viver com impulso renovado a missão que lhe foi confiada por Cristo. Por conseguinte, espero profundamente que o Ano da fé seja, inclusive para as jovens gerações, uma ocasião preciosa para reencontrar e fortalecer a amizade com Cristo, da qual fazer brotar a alegria e o entusiasmo para transformar profundamente as culturas e as sociedades.

Caros amigos, enquanto vos agradeço o compromisso que, generosamente, assumis ao serviço da Igreja, bem como a atenção especial que prestais aos jovens, concedo-vos de coração a minha Bênção Apostólica. Obrigado!


VISITA AO SEMINÁRIO MAIOR ROMANO NA FESTA DE NOSSA SENHORA DA CONFIANÇA 8 de Fevereiro de 2013

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"LECTIO DIVINA" DO PAPA BENTO XVI
Capela do Seminário

Sexta-feira, 8 de Fevereiro de 2013




Eminência
Queridos Irmãos no episcopado e no sacerdócio
Estimados amigos!

É para mim todos os anos uma grande alegria estar aqui convosco, ver tantos jovens que caminham para o sacerdócio, que estão atentos à voz do Senhor, que querem seguir esta voz e procuram o caminho para servir o Senhor neste nosso tempo.

Ouvimos três versículos da Primeira Carta de São Pedro (cf. 1, 3-5). Antes de entrar neste texto, parece-me importante precisamente estar atento ao facto de que é Pedro quem fala. As duas primeiras palavras da Carta são «Petrus apostolus» (cf. v. 1): ele fala, e fala às Igrejas na Ásia e chama os fiéis «eleitos e estrangeiros dispersos» (ibidem). Reflictamos um pouco sobre isto. Pedro fala, e fala — como se ouve no final da Carta — de Roma, que chamou «Babilónia» (cf. 5, 13). Pedro fala: quase uma primeira encíclica, com a qual o primeiro apóstolo, vigário de Cristo, fala à Igreja de todos os tempos.

Pedro, apóstolo. Por conseguinte, fala aquele que encontrou em Cristo Jesus o Messias de Deus, o primeiro que falou em nome da Igreja futura: «Tu és Cristo, o Filho do Deus vivo» (cf. Mt
Mt 16,16). Fala aquele que nos introduziu nesta fé. Fala aquele ao qual o Senhor disse: «Entrego-te as chaves do reino dos céus» (cf. Jo Jn 16,19), ao qual confiou o seu rebanho depois da Ressurreição, dizendo-lhe três vezes: «Apascenta o meu rebanho, as minhas ovelhas» (cf. Jo Jn 21,15-17). Fala também o homem que caiu, que negou Jesus e que teve a graça de ver o olhar de Jesus, de ser tocado no seu coração e ter encontrado o perdão e a renovação da sua missão. Mas é sobretudo importante que este homem, cheio de paixão, de amor a Deus, de desejo do reino de Deus, do Messias, que este homem que encontrou Jesus, o Senhor e o Messias, é também o homem que pecou, caiu, e contudo permaneceu sob o olhar do Senhor e assim permanece responsável pela Igreja de Deus, permanece encarregado por Cristo, portador do seu amor.

Fala Pedro, o apóstolo, mas os exegetas dizem-nos: não é possível que esta Carta seja de Pedro, porque o grego é tão bom que não pode ser o grego de um pescador do lago da Galileia. E não só a linguagem, a estrutura da língua é óptima, mas também o pensamento é já bastante maduro, há já fórmulas concretas nas quais se condensam a fé e a reflexão da Igreja. Por conseguinte, eles dizem: é já um estádio de desenvolvimento que não pode ser o de Pedro. Como responder? Há duas posições importantes: primeira, o próprio Pedro — ou seja a Carta — dá-nos uma chave porque no final do texto diz: Escrevo-vos através de Silvano — diaSilvano». Este através [dia] pode significar várias coisas: pode significar que ele [Silvano] transporta, transmite; pode significar que ele ajudou na redacção; pode querer dizer que realmente ele foi o escritor concreto. Contudo, podemos concluir que a própria Carta nos indica que Pedro não escreveu esta Carta sozinho, mas expressa a fé de uma Igreja que já está a caminho da fé, uma fé cada vez mais madura. Não escreve sozinho, indivíduo isolado, escreve com o apoio da Igreja, das pessoas que ajudam a aprofundar a fé, a entrar na profundidade do seu pensamento, da sua racionalidade, da sua profundidade. E isto é muito importante: não fala Pedro como indivíduo, fala ex persona Ecclesiae, fala como homem da Igreja, certamente como pessoa, com a sua responsabilidade pessoal, mas também como pessoa que fala em nome da Igreja: não só ideias pessoais, não como um génio do século xix que pretendia expressar só ideias suas, originais, que antes ninguém teria podido ouvir. Não fala como génio individualista, mas fala precisamente na comunhão da Igreja. No Apocalipse, na visão inicial de Cristo é dito que a voz de Cristo é a voz de muitas águas (cf. Ap 1,15). Isto significa: a voz de Cristo reúne todas as águas do mundo, traz em si todas as águas vivas que dão vida ao mundo; é Pessoa, mas é precisamente esta a grandeza do Senhor, que traz em si todo o rio do Antigo Testamento, aliás, da sabedoria dos povos. E tudo o que aqui é dito sobre o Senhor é válido, de outra forma, também para o apóstolo, que não quer dizer uma palavra só sua, mas traz em si realmente as águas da fé, as águas de toda a Igreja, e precisamente assim dá fertilidade, dá fecundidade e deste modo é uma testemunha pessoal que se abre ao Senhor, e assim se torna aberto e vasto. Portanto, isto é importante.

Depois, parece-me também importante que nesta conclusão da Carta são mencionados Silvano e Marcos, duas pessoas que pertencem também às amizades de são Paulo. Assim, através desta conclusão, os mundos de são Pedro e de são Paulo caminham juntos: não é uma teologia exclusivamente petrina contra uma teologia paulina, mas é uma teologia da Igreja, da fé da Igreja, na qual há diversidade — sem dúvida — de temperamento, de pensamento, de estilo no falar entre Paulo e Pedro. É bom que haja esta diversidade, também hoje, de diversos carismas, de vários temperamentos, mas contudo não são contrastantes e unem-se na fé comum.

Gostaria de dizer ainda uma coisa: são Pedro escreve de Roma. É importante: aqui temos já o Bispo de Roma, temos o início da sucessão, temos já o início da primazia concreta colocada em Roma, não só entregue pelo Senhor, mas aqui colocada, nesta cidade, nesta capital do mundo. Como veio Pedro para Roma? Esta é uma pergunta séria. Os Actos dos Apóstolosnarram que, depois da sua fuga da prisão de Herodes, foi para outro lugar (cf. 12, 17) — eis eteron topon — não se sabe para onde; alguns dizem Antioquia, outros Roma. Contudo, neste capítulo, deve-se dizer também que, antes de fugir, confiou a Igreja judaico-cristã, a Igreja de Jerusalém, a Tiago e, ao confiá-la a Tiago, ele permanece contudo Primaz da Igreja universal, da Igreja dos pagãos, mas também da Igreja judaico-cristã. Os liturgistas dizem-nos que no Cânone romano se encontram vestígios de uma linguagem tipicamente judaico-cristã; assim vemos que em Roma se encontram ambas as partes da Igreja; a judaico-cristã e a pagã-cristã, unidas, expressão da Igreja universal. E certamente para Pedro a passagem de Jerusalém para Roma é a passagem para a universalidade da Igreja, a passagem para a Igreja dos pagãos e de todos os tempos, para a Igreja também sempre dos judeus. E penso que, vindo para Roma, são Pedro não só pensou nesta passagem: Jerusalém/Roma, Igreja judaico-cristã/Igreja universal. Certamente recordou-se também das últimas palavras que Jesus lhe dirigiu, escritas por são João: «No fim, tu irás para onde não queres. Cingir-te-ão, estenderão as tuas mãos» (cf. Jo Jn 21,18). É uma profecia da crucifixão. Os filólogos mostram-nos que é uma expressão clara, técnica, este «estender as mãos», para a crucifixão. São Pedro sabia que o seu fim teria sido o martírio, a cruz. Por conseguinte, vindo para Roma certamente vinha também para o martírio: na Babilónia esperava-o o martírio. Portanto, a primazia tem este conteúdo da universalidade, mas também um conteúdo martirológico. Desde o início, Roma é também lugar do martírio. Vindo para Roma, Pedro aceita de novo esta palavra do Senhor: vai ao encontro da Cruz, e convida-nos a aceitar também nós o aspecto martirológico do cristianismo, que pode ter formas muito diversas. E a cruz pode ter formas muito diversas, mas ninguém pode ser cristão sem seguir o Crucificado, sem aceitar também o momento martirológico.

Depois destas palavras sobre o remetente, uma breve palavra também sobre as pessoas às quais é escrito. Já disse que são Pedro define aqueles aos quais escreve com as palavras «eklektois parepidemois», «aos eleitos que são estrangeiros dispersos» (cf. 1P 1,1). Temos de novo este paradoxo de glória e cruz: eleitos, mas dispersos e estrangeiros. Eleitos: este era o título de glória de Israel: nós somos os eleitos, Deus escolheu este pequeno povo não porque somos grandes — diz o Deuteronómio — mas porque Ele nos ama (cf. 7, 7-8). Somos eleitos: isto, agora são Pedro transfere-o para todos os baptizados, e precisamente o conteúdo dos capítulos iniciais da sua Primeira Carta diz que os baptizados entram nos privilégios de Israel, são o novo Israel. Eleitos: parece-me que vale a pena reflectir sobre estas palavras. Somos eleitos. Deus conheceu-nos desde sempre, antes do nosso nascimento, da nossa concepção; Deus quis-me cristão, católico, quis-me sacerdote. Deus pensou em mim, procurou-me entre milhões, entre muitos, viu-me e elegeu-me, não pelos meus merecimentos que não existiam, mas pela sua vontade; quis que eu fosse portador da sua eleição, que é sempre também missão, sobretudo missão, e responsabilidade pelos outros. Eleitos: devemos estar gratos e jubilosos por este facto. Deus pensou em mim, escolheu-me como católico, como portador do seu Evangelho, como sacerdote. Parece-me que vale a pena reflectir diversas vezes sobre isto, e entrar de novo neste facto da sua eleição: elegeu-me, quis-me; agora eu respondo.

Talvez hoje sejamos tentados a dizer: não queremos ser jubilosos por termos sido eleitos, seria triunfalismo. Seria triunfalismo se pensássemos que Deus me elegeu porque eu já sou tão grande. Isto seria realmente triunfalismo errado. Mas estar alegre porque Deus me quis não é triunfalismo, é gratidão, e penso que devemos reaprender esta alegria: Deus quis que eu nascesse assim, numa família católica, que conhecesse Jesus desde o início. Que dom ser querido por Deus, de modo que pude conhecer o seu rosto, que pude conhecer Jesus Cristo, o rosto humano de Deus, a história humana de Deus neste mundo! Sentir-se jubiloso porque me elegeu para ser católico, para estar nesta sua Igreja, onde subsistit Ecclesia unica; devemos ser jubilosos porque Deus me concedeu esta graça, esta beleza de conhecer a plenitude da verdade de Deus, a alegria do seu amor.

Eleitos: uma palavra de privilégio e de humildade ao mesmo tempo. Mas «eleitos» está — como dizia — acompanhado de «parapidemois», dispersos, estrangeiros. Como cristãos, estamos dispersos e somos estrangeiros: vemos que hoje no mundo os cristãos são o grupo mais perseguido porque não se conforma, porque é um estímulo, porque é contrário às tendências do egoísmo, do materialismo, de todas estas coisas.

Certamente, os cristãos são não só estrangeiros; são também nações cristãs, são orgulhosos de ter contribuído para a formação da cultura; há um patriotismo sadio, uma alegria sadia de pertencer a uma nação que tem uma grande história de cultura, de fé. Contudo, como cristãos, somos sempre também estrangeiros — o destino de Abraão, descrito na Carta aos Hebreus.Somos, como cristãos, precisamente hoje, também sempre estrangeiros. Nos lugares de trabalho os cristãos são uma minoria, encontram-se numa situação de estraneidade; é de admirar que hoje ainda se possa crer e viver assim. Isto pertence também à nossa vida: é a forma de ser com Cristo Crucificado; este ser estrangeiros, não vivendo segundo o modo no qual todos vivem, mas vivendo — ou pelo menos procurando viver — segundo a sua Palavra, numa grande diversidade em relação a quanto todos dizem. E precisamente isto para os cristãos é característico.. Todos dizem: «Mas todos fazem assim, por que não eu?» Não, eu não, porque quero viver segundo Deus. Santo Agostinho disse: «Os cristãos são aqueles que não têm as raízes para baixo como as árvores, mas têm as raízes para cima, e vivem esta gravitação não na gravitação natural para baixo». Rezemos ao Senhor para que nos ajude a aceitar esta missão de viver como dispersos, como minoria, num certo sentido; de viver como estrangeiros e contudo ser responsáveis pelos outros e, precisamente assim, dando força ao bem no nosso mundo.

Chegamos finalmente aos três versículos de hoje. Gostaria apenas de frisar, ou digamos interpretar um pouco, na medida do possível, três palavras: a palavra regenerados, a palavraherança e a palavra preservados pela fé. Regeneradosanaghennesas, diz o texto grego — significa: ser cristão não é simplesmente uma decisão da minha vontade, uma minha ideia; vejo que é um grupo que me agrada, torno-me membro deste grupo, partilho os seus objectivos, etc. Não: ser cristão não é entrar num grupo para fazer algo, mas é unicamente um acto da minha vontade, não primariamente da minha vontade, da minha razão: é um acto de Deus. Regenerado não se refere só à esfera da vontade, do pensar, mas à esfera do ser. Renasci: isto significa que tornar-se cristão é antes de tudo passivo; eu não me posso tornar cristão, mas sou feito renascer, sou refeito pelo Senhor na profundidade do meu ser. E eu entro neste processo do renascer, deixo-me transformar, renovar, regenerar. Isto parece-me muito importante: como cristão não me faço só uma ideia minha que partilho com alguns, e quando já não me agradam posso sair. Não: concerne precisamente a profundidade do ser, ou seja, o tornar-se cristão começa com uma acção de Deus, sobretudo uma sua acção, e eu deixo-me formar e transformar.

Parece-me que é matéria de reflexão, precisamente num ano no qual reflectimos sobre os Sacramentos da Iniciação cristã, meditar isto: este passivo e activo profundo do ser regenerado, do tornar-se de toda uma vida cristã, do deixar-me transformar pela sua Palavra, para a comunhão da Igreja, para a vida da Igreja, para os sinais com os quais o Senhor realiza em mim, comigo e para mim. E renascer, ser regenerado, indica também que deste modo entro numa família nova: Deus, meu Pai, a Igreja, minha Mãe, os outros cristãos, meus irmãos e irmãs. Por conseguinte, ser regenerado, deixar-se regenerar implica portanto também este deixar-se voluntariamente inserir nesta família, viver para Deus Pai e de Deus Pai, viver da comunhão com Cristo seu Filho, que me regenera pela sua Ressurreição, como diz a Carta (cf. 1P 1,3), viver com a Igreja deixando-me formar pela Igreja em tantos sentidos, em muitos caminhos, e estar aberto aos meus irmãos, reconhecer nos outros realmente os meus irmãos, que comigo são regenerados, transformados, renovados; um tem responsabilidade pelo outro. Portanto, uma responsabilidade do Baptismo que é um processo de toda uma vida.

Segunda palavra: herança. É um termo muito importante no Antigo Testamento, onde é dito a Abraão que a sua semente será herdeira da terra, e esta foi sempre a promessa para os seus: tereis a terra, sereis herdeiros da terra. No Novo Testamento, torna-se palavra para nós: nós somos herdeios, não de um determinado país, mas da terra de Deus, do futuro de Deus. Herança é algo do futuro, e assim esta palavra diz sobretudo que como cristãos temos o futuro: o futuro é nosso, o futuro é de Deus. E assim, sendo cristãos, sabemos que é nosso o futuro e a árvore da Igreja não é moribunda, mas a árvore que cresce sempre de novo. Portanto, temos motivos para não nos deixarmos impressionar — como disse o Papa João xxiii — pelos profetas de desventura, que dizem: a Igreja, bem, é uma árvore que veio da semente de mostarda, que cresceu em dois milénios, agora tem o tempo atrás de si, agora chegou o tempo no qual morre». Não. A Igreja renova-se sempre, renasce sempre. O futuro é nosso. Naturalmente, há um falso optimismo e um falso pessimismo. Um falso pessimismo que diz: o tempo do cristianismo acabou. Não: começa de novo! O falso optimismo era do pós-Concílio, quando os conventos fechavam, os seminários fechavam, e diziam: mas... nada, tudo corre bem... Não! Nem tudo corre bem. Há também quedas graves, perigosas, e devemos reconhecer com realismo sadio que assim não pode ser onde se fazem coisas erradas. Mas ter também a certeza, ao mesmo tempo, de que se aqui e ali a Igreja morre por causa dos pecados dos homens, por causa da sua não crença, ao mesmo tempo, nasce de novo. O futuro é realmente de Deus: esta é a grande certeza da nossa vida, o grande, verdadeiro optimismo que sabemos. A Igreja é a árvore de Deus que vive eternamente e traz consigo a eternidade e a verdadeira herança: a vida eterna.

E, por fim, preservados pela fé. O texto do Novo Testamento, da Carta de são Pedro, usa aqui uma palavra rara, phrouroumenoi, que significa: há os «vigilantes», e a fé é como o «vigilante» que preserva a integridade do meu ser, da minha fé. Esta palavra interpreta sobretudo os «vigilantes» das portas de uma cidade, onde eles estão e vigiam a cidade, para que não seja invadida por poderes de destruição. Assim a fé é «vigilante» do meu ser, da minha vida, da minha herança. Devemos estar gratos por esta vigilância da fé que nos protege, ajuda, guia, dá segurança: Deus não me deixa cair das suas mãos. Preservados pela fé: assim concluo. Falando da fé devo pensar sempre naquela mulher sírio-fenícia doente que, no meio da multidão, encontra acesso a Jesus, toca nele para ser curada, e é curada. O Senhor diz: «Quem me tocou?». Respondem-lhe: «Senhor, todos te tocam, como podes perguntar: quem me tocou?» (cf. Mc Mc 7,24-30). Mas o Senhor sabe: há um modo de o tocar, superficial, exterior, que realmente nada tem a ver com um verdadeiro encontro com Ele. E há um modo de o tocar profundamente. E esta mulher tocou deveras nele: tocou não só com a mão, mas com o seu coração e deste modo recebeu a força curadora de Cristo, tocando-o realmente do interior, da fé. Esta é a fé: tocar Cristo com a mão da fé, com o nosso coração e, deste modo, entrar na força da sua vida, na força curadora do Senhor. E rezemos ao Senhor para que o possamos tocar cada vez mais de modo a sermos curados. Rezemos para que não nos deixe cair, que nos guie sempre pela mão e deste modo nos preserve para a vida verdadeira. Obrigado!





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