Bento XVI Homilias






Domingo, 24 de Abril de 2005: SANTA MISSA, IMPOSIÇÃO DO PÁLIO E ENTREGA DO ANEL DO PESCADOR

PARA O INÍCIO DO MINISTÉRIO PETRINO DO BISPO DE ROMA

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Praça de São Pedro




Senhores Cardeais

Venerados Irmãos no episcopado e no sacerdócio
Distintas Autoridades
e Membros do Corpo Diplomático
Caríssimos Irmãos e Irmãs!

Por três vezes, nestes dias tão intensos, o cântico das ladainhas dos Santos nos acompanhou: durante o funeral do nosso Santo Padre João Paulo II; por ocasião da entrada dos Cardeais em Conclave, e também hoje, quando as cantamos de novo com a invocação: Tu illum adiuva ampara o novo sucessor de São Pedro. Todas as vezes, de modo totalmente particular ouvi este cântico orante como um grande conforto. Quanto nos sentimos abandonados depois da perda de João Paulo II! O Papa que por 26 anos foi o nosso pastor e guia no caminho através deste tempo.

Ele cruzou o limiar para a outra vida entrando no mistério de Deus. Mas não deu este passo sozinho. Quem crê, nunca está sozinho nem na vida nem na morte. Naquele momento nós pudemos invocar os santos de todos os séculos, os seus amigos, os seus irmãos na fé, sabendo que teriam estado no cortejo vivo que o teria acompanhado no além, até à glória de Deus. Nós sabemos que a sua chegada era esperada. Agora sabemos que ele está entre os seus e está verdadeiramente em sua casa. De novo, fomos confortados cumprindo a solene entrada em conclave, para eleger aquele que o Senhor tinha escolhido. Como podíamos reconhecer o seu nome? Como podiam, 115 Bispos, provenientes de todas as culturas e países, encontrar aquele ao qual o Senhor desejava conferir a missão de ligar e desligar? Mais uma vez, nós o sabíamos: sabíamos que não estávamos sós, que estávamos circundados, conduzidos e guiados pelos amigos de Deus.

E agora, neste momento, eu, frágil servo de Deus, devo assumir esta tarefa inaudita, que realmente supera qualquer capacidade humana. Como posso fazer isto? Como serei capaz de o fazer? Todos vós, queridos amigos, acabaste de invocar todos os santos, representados por alguns dos grandes nomes da história de Deus com os homens. Desta forma, também em mim se reaviva esta autoconsciência: não estou sozinho. Não devo carregar sozinho o que na realidade nunca poderia carregar sozinho. Os numerosos santos de Deus protegem-me, amparam-me e guiam-me. E a vossa oração, queridos amigos, a vossa indulgência, o vosso amor, a vossa fé e a vossa esperança acompanham-me. De facto, à comunidade dos santos não pertencem só as grandes figuras que nos precederam e das quais conhecemos os nomes. Todos nós somos a comunidade dos santos, nós baptizados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, nós que vivemos do dom da carne e do sangue de Cristo, por meio do qual ele nos quer transformar e tornar-nos semelhantes a si mesmo.

Sim, a Igreja é viva eis a maravilhosa experiência destes dias. Precisamente nos tristes dias da doença e da morte do Papa isto manifestou-se de modo maravilhoso aos nossos olhos: que a Igreja é viva. E a Igreja é jovem. Ela leva em si o futuro do mundo e por isso mostra também a cada um de nós o caminho para o futuro. A Igreja é viva e nós vemo-lo: experimentamos a alegria que o Ressuscitado prometeu aos seus. A Igreja é viva ela é viva, porque Cristo é vivo, porque verdadeiramente ele ressuscitou. No sofrimento, presente no rosto do Santo Padre nos dias de Páscoa, contemplámos o mistério da paixão de Cristo e, ao mesmo tempo, tocámos nas suas feridas. Mas em todos esses dias também pudemos, num sentido profundo, tocar o Ressuscitado. Foi-nos concedido experimentar a alegria que ele prometeu, depois de um breve tempo de obscuridade, como fruto da sua ressurreição.

A Igreja é viva saúdo assim com grande alegria e gratidão todos vós, que estais aqui reunidos, venerados Irmãos Cardeais e Bispos, caríssimos sacerdotes, diáconos, agentes de pastoral, catequistas. Saúdo a vós, religiosos e religiosas, testemunhas da transfigurante presença de Deus. Saúdo a vós, irmãos leigos, imersos no grande espaço da construção do Reino de Deus que se expande no mundo, em todas as expressões da vida. O discurso torna-se repleto de afecto também na saudação que dirijo a quantos, renascidos no sacramento do Baptismo, ainda não estão em plena comunhão connosco; e a vós irmãos do povo judaico, a quem nos sentimos ligados por um grande património espiritual comum, que afunda as suas raízes nas irrevogáveis promessas de Deus. O meu pensamento, por fim quase como uma onda que se expande dirige-se a todos os homens do nosso tempo, crentes e não crentes.

Queridos amigos! Neste momento não temos necessidade de apresentar um programa de governo. Alguns aspectos daquilo que eu considero minha tarefa, já tive ocasião de os expor na mensagem de quarta-feira 20 de Abril; não faltarão outras ocasiões para o fazer. O meu verdadeiro programa de governo é não fazer a minha vontade, não perseguir ideias minhas, pondo-me contudo à escuta, com a Igreja inteira, da palavra e da vontade do Senhor e deixar-me guiar por Ele, de forma que seja Ele mesmo quem guia a Igreja nesta hora da nossa história. Em vez de expor um programa, gostaria simplesmente de procurar comentar os dois sinais com os quais é representada liturgicamente a assunção do Ministério Petrino; contudo, estes dois sinais reflectem também exactamente o que é proclamado nas leituras de hoje.

O primeiro sinal é o Pálio, tecido em lã pura, que me é colocado sobre os ombros. Este antiquíssimo sinal, que os Bispos de Roma usam desde o século IV, pode ser considerado como uma imagem do jugo de Cristo, que o Bispo desta cidade, o Servo dos Servos de Deus, assume sobre os seus ombros. O jugo de Deus é a vontade de Deus, que nós aceitamos. Esta vontade não é para nós um peso exterior, que nos oprime e nos priva da liberdade. Conhecer o que Deus quer, conhecer qual é o caminho da vida eis a alegria de Israel, era o seu grande privilégio. Esta é também a nossa alegria: a vontade de Deus não nos desvia, mas purifica-nos talvez de maneira até dolorosa e assim conduz-nos a nós mesmos. Desta forma, não servimos só a Ele mas à salvação de todo o mundo, de toda a história. Na realidade o simbolismo do Pálio é ainda mais concreto: a lã do cordeiro pretende representar a ovelha perdida ou também a doente e frágil, que o pastor coloca sobre os ombros e conduz às águas da vida. A parábola da ovelha perdida, que o pastor procura no deserto, era para os Padres da Igreja uma imagem do mistério de Cristo e da Igreja. A humanidade todos nós é a ovelha perdida que, no deserto, já não encontra o caminho. O Filho de Deus não tolera isto; Ele não pode abandonar a humanidade numa condição tão miserável.

Levanta-se de ímpeto, abandona a glória do céu, para reencontrar a ovelha e segui-la, até à cruz. Carrega-a sobre os ombros, leva a nossa humanidade, leva-nos a nós mesmos Ele é o bom pastor, que oferece a sua vida pelas ovelhas. O Pálio diz antes de tudo que todos nós somos guiados por Cristo. Mas ao mesmo tempo convida-nos a levar-nos uns aos outros. Assim o Pálio se torna o símbolo da missão do pastor, de que falam a segunda leitura e o Evangelho. A santa preocupação de Cristo deve animar o pastor: para ele não é indiferente que tantas pessoas vivam no deserto. E existem tantas formas de deserto. Há o deserto da pobreza, o deserto da fome e da sede, o deserto do abandono, da solidão, do amor destruído. Há o deserto da obscuridão de Deus, do esvaziamento das almas que perderam a consciência da dignidade e do caminho do homem. Os desertos exteriores multiplicam-se no mundo, porque os desertos interiores tornaram-se tão amplos. Por isso, os tesouros da terra já não estão ao serviço da edificação do jardim de Deus, no qual todos podem viver, mas tornaram-se escravos dos poderes da exploração e da destruição. A Igreja no seu conjunto, e os Pastores nela, como Cristo, devem pôr-se a caminho, para conduzir os homens fora do deserto, para lugares da vida, da amizade com o Filho de Deus, para Aquele que dá a vida, a vida em plenitude. O símbolo do cordeiro tem ainda outro aspecto. No Antigo Oriente era costume que os reis se designassem como pastores do seu povo. Esta era uma imagem do seu poder, uma imagem cínica: os povos eram para eles como ovelhas, das quais o pastor podia dispor como lhe aprazia. Enquanto o pastor de todos os homens, o Deus vivo, se tornou ele mesmo cordeiro, pôs-se do lado dos cordeiros, daqueles que são esmagados e mortos.

Precisamente assim Ele se revela como o verdadeiro pastor: "Eu sou o bom pastor... Ofereço a minha vida pelas minhas ovelhas", diz Jesus de si mesmo (cf.
Jn 10,14 s). Não é o poder que redime, mas o amor! Este é o sinal de Deus: Ele mesmo é amor. Quantas vezes nós desejaríamos que Deus se mostrasse mais forte. Que atingisse duramente, vencesse o mal e criasse um mundo melhor. Todas as ideologias do poder se justificam assim, justificando a destruição daquilo que se opõe ao progresso e à libertação da humanidade. Nós sofremos pela paciência de Deus. E de igual modo todos temos necessidade da sua plenitude. O Deus, que se tornou cordeiro, diz-nos que o mundo é salvo pelo Crucificado e não por quem crucifica. O mundo é redimido pela plenitude de Deus e destruído pela impaciência dos homens.


Significado da entrega do anel do pescador: conquistar os homens para o Evangelho

Uma das características fundamentais deve ser a de amar os homens que lhe foram confiados, assim como ama Cristo, a cujo serviço se encontra. "Apascenta as minhas ovelhas", diz Cristo a Pedro, e a mim, neste momento. Apascentar significa amar, e amar quer dizer também estar prontos para sofrer. Amar significa: dar às ovelhas o verdadeiro bem, o alimento da verdade de Deus, da palavra de Deus, o alimento da sua presença, que ele nos oferece no Santíssimo Sacramento. Queridos amigos neste momento eu posso dizer apenas: rezai por mim, para que eu aprenda cada vez mais a amar o Senhor. Rezai por mim, para que eu aprenda a amar cada vez mais o seu rebanho vós, a Santa Igreja, cada um de vós singularmente e todos vós juntos. Rezai por mim, para que eu não fuja, por receio, diante dos lobos. Rezai uns pelos outros, para que o Senhor nos guie e nós aprendamos a guiar-nos uns aos outros.

O segundo sinal, com o qual é representado na liturgia de hoje o início do Ministério Petrino, é a entrega do anel do pescador. A chamada de Pedro para ser pastor, que ouvimos no Evangelho, acontece depois de uma pesca abundante: depois de uma noite, durante a qual tinham lançado as redes sem pescar nada, os discípulos vêem na margem do lago o Senhor Ressuscitado. Ele ordena-lhes que voltem a pescar mais uma vez e eis que a rede se enche tanto que eles não conseguem tirá-la para fora da água; 153 peixes grandes: "E apesar de serem tantos, a rede não se rompeu" (Jn 21,11). Esta narração, no final do caminho terreno de Jesus com os seus discípulos, corresponde a uma narração do início: também então os discípulos não tinham pescado nada durante toda a noite; também então Jesus tinha convidado Simão a fazer-se ao largo mais uma vez.

E Simão, que ainda não era chamado Pedro, deu a admirável resposta: Mestre, porque tu o dizes, lançarei as redes! E eis o conferimento da missão: "Não tenhas receio; de futuro, serás pescador de homens" (Lc 5,1-11).Também hoje é dito à Igreja e aos sucessores dos apóstolos que se façam ao largo no mar da história e que lancem as redes, para conquistar os homens para o Evangelho para Deus, para Cristo, para a vida. Os Padres dedicaram um comentário muito particular a esta tarefa. Eles dizem assim: para o peixe, criado para a água, é mortal ser tirado para fora do mar. Ele é privado do seu elemento vital para servir de alimento ao homem. Mas na missão do pescador de homens acontece o contrário. Nós homens vivemos alienados, nas águas salgadas do sofrimento e da morte; num mar de obscuridade sem luz. A rede do Evangelho tira-nos para fora das águas da morte e conduz-nos ao esplendor da luz de Deus, na verdadeira vida. É precisamente assim na missão de pescador de homens, no seguimento de Cristo, é necessário conduzir os homens para fora do mar salgado de todas as alienações rumo à terra da vida, rumo à luz de Deus. É precisamente assim: nós existimos para mostrar Deus aos homens. E só onde se vê Deus, começa verdadeiramente a vida. Só quando encontramos em Cristo o Deus vivo, conhecemos o que é a vida. Não somos o produto casual e sem sentido da evolução. Cada um de nós é o fruto de um pensamento de Deus. Cada um de nós é querido, cada um de nós é amado, cada um é necessário. Não há nada mais belo do que ser alcançados, surpreendidos pelo Evangelho, por Cristo. Não há nada de mais belo do que conhecê-Lo e comunicar com os outros a Sua amizade. A tarefa do pastor, do pescador de homens muitas vezes pode parecer cansativa. Mas é bela e grande, porque em definitiva é um serviço à alegria, à alegria de Deus que quer entrar no mundo.

Gostaria de realçar aqui mais uma coisa: quer na imagem do pastor quer na do pescador sobressai de maneira muito explícita a chamada à unidade. "Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil. Também estas Eu preciso de as trazer e hão-de ouvir a minha voz; e haverá um só rebanho e um só pastor" (Jn 10,16), diz Jesus no final do sermão do bom pastor. E a narração dos 153 grandes peixes termina com a gloriosa constatação: "apesar de serem tantos, a rede não se rompeu" (Jn 21,11). Ai de mim, amado Senhor, agora ela rompeu-se! Poderíamos dizer que sofremos. Mas não não devemos estar tristes! Alegremo-nos pela tua promessa, que não desilude, e façamos o possível para percorrer o caminho rumo à unidade, que tu prometeste. Façamos memória dela na oração ao Senhor, como pedintes: sim, Senhor, recorda-te de tudo o que prometeste. Faz com que sejam um só pastor e um só rebanho! Não permitas que a tua rede se rompa e ajuda-nos a ser servos da unidade!

Neste momento a minha recordação volta ao dia 22 de Outubro de 1978, quando o Papa João Paulo II deu início ao seu ministério aqui na Praça de São Pedro. Ainda, e continuamente, ressoam aos meus ouvidos as suas palavras de então: "Não tenhais medo, abri de par em par as portas a Cristo!" O Papa dirigia-se aos fortes, aos poderosos do mundo, os quais tinham medo que Cristo pudesse tirar algo ao seu poder, se o tivessem deixado entrar e concedido a liberdade à fé. Sim, ele ter-lhes-ia certamente tirado algo: o domínio da corrupção, da perturbação do direito, do arbítrio. Mas não teria tirado nada do que pertence à liberdade do homem, à sua dignidade, à edificação de uma sociedade justa. O Papa falava também a todos os homens, sobretudo aos jovens. Porventura não temos todos nós, de um modo ou de outro, medo, se deixarmos entrar Cristo totalmente dentro de nós, se nos abrirmos completamente a Ele, medo de que Ele possa tirar-nos algo da nossa vida? Não temos porventura medo de renunciar a algo de grandioso, único, que torna a vida tão bela? Não arriscamos depois de nos encontrarmos na angústia e privados da liberdade? E mais uma vez o Papa queria dizer: não! Quem faz entrar Cristo, nada perde, nada absolutamente nada daquilo que torna a vida livre, bela e grande. Não! Só nesta amizade se abrem de par em par as portas da vida. Só nesta amizade se abrem realmente as grandes potencialidades da condição humana. Só nesta amizade experimentámos o que é belo e o que liberta. Assim, eu gostaria com grande força e convicção, partindo da experiência de uma longa vida pessoal, de vos dizer hoje, queridos jovens: não tenhais medo de Cristo! Ele não tira nada, ele dá tudo. Quem se doa por Ele, recebe o cêntuplo. Sim, abri de par em par as portas a Cristo e encontrareis a vida verdadeira. Amém.



Segunda-feira, 25 de Abril de 2005: POR OCASIÃO DA VISITA À BASÍLICA DE SÃO PAULO FORA DOS MUROS

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Senhores Cardeais

Venerados Irmãos
no Episcopado e no Sacerdócio
Amados Irmãos e Irmãs no Senhor!

Dou graças a Deus que, no início do meu ministério de Sucessor de Pedro, me concede deter-me em oração junto do sepulcro do apóstolo Paulo. Para mim, esta é uma peregrinação tão desejada, um gesto de fé, que realizo em meu nome, mas também em nome da amada Diocese de Roma, da qual o Senhor me constituiu Bispo e Pastor, e da Igreja universal confiada à minha solicitude pastoral. Uma peregrinação, por assim dizer, às raízes da missão, daquela missão que Cristo ressuscitado confiou a Pedro, aos Apóstolos e, de modo singular, também a Paulo, estimulando-o a anunciar o Evangelho aos gentios, até chegar a esta Cidade, onde, depois de ter longamente pregado o Reino de Deus (
Ac 28,31), deu com o sangue o extremo testemunho ao seu Senhor, que o tinha "conquistado" (cf. Ph 3,12) e enviado.

Ainda antes que a Providência o guiasse até Roma, o Apóstolo escreveu aos cristãos desta Cidade, capital do Império, a sua Carta mais importante sob o perfil doutrinal. Há pouco, foi proclamada a parte inicial, um denso preâmbulo no qual o Apóstolo saúda a comunidade de Roma apresentando-se como "servo de Jesus Cristo, apóstolo por vocação" (cf. Rm 1,1). E mais adiante acrescenta: "Por Ele [Cristo] recebemos a graça de sermos Apóstolos, a fim de levarmos à obediência da fé todos os gentios" (Rm 1,5).

Queridos amigos, como Sucessor de Pedro, estou aqui para reavivar na fé esta "graça do apostolado", porque Deus, segundo outra expressão do Apóstolo dos gentios, me confiou "a solicitude por todas as Igrejas" (2Co 11,28). Encontra-se diante dos nossos olhos o exemplo do meu amado e venerado predecessor João Paulo II, um Papa missionário, cuja intensa actividade, testemunhada por mais de cem viagens apostólicas além dos confins da Itália, é verdadeiramente inimitável. O que o impulsionava a um semelhante dinamismo a não ser o mesmo amor de Cristo que transformou a existência de São Paulo (cf. 2Co 5,14)? Que o Senhor alimente também em mim um amor semelhante, para que eu não tenha paz perante as urgências do anúncio evangélico no mundo de hoje. A Igreja é por sua natureza missionária, a sua tarefa primária é a evangelização.

O Concílio Ecuménico Vaticano II dedicou à actividade missionária o Decreto denominado, precisamente, "Ad gentes", o qual recorda que "os Apóstolos... seguindo as pegadas de Cristo "pregaram a palavra da verdade e fundaram Igrejas" (S. Aug., Enarr. in PS 44,23, PL 36, 508)" e que "é obrigação dos seus sucessores perpetuar esta obra, a fim de que "a palavra de Deus seja difundida e acolhida com honra" e o Reino de Deus seja anunciado e instaurado em toda a terra" (n. AGD 1).

No início do terceiro milénio, a Igreja sente com renovada vivacidade que o mandato missionário de Cristo é actual como nunca. O Grande Jubileu do Ano 2000 conduziu-a a "voltar a partir de Cristo", contemplado na oração, para que a luz da sua verdade seja irradiada a todos os homens, antes de tudo com o testemunho da santidade. Apraz-me recordar aqui o mote que São Bento escreveu na sua Regra, exortando os seus monges a "nada antepor absolutamente ao amor de Cristo" (cap. RB 4). De facto, a vocação no caminho de Damasco levou Paulo precisamente a isto: a fazer de Cristo o centro da sua vida, deixando tudo pela sublimidade do Seu conhecimento e do seu mistério de amor, e comprometendo-se depois a anunciá-lo a todos, especialmente aos pagãos, "para glória do seu nome" (Rm 1,5). A paixão por Cristo levou-o a pregar o Evangelho não só com as palavras, mas com a própria vida, cada vez mais conformada com o seu Senhor.

No final, Paulo anunciou Cristo com o martírio, e o seu sangue, juntamente com o de Pedro e de tantas outras testemunhas do Evangelho, irrigou esta terra e tornou fecunda a Igreja de Roma, que preside à comunhão universal da caridade (cf. S. Inácio de Ant., Ad Rom., Inscr.: Funk, I, 252).

O século XX, todos nós o sabemos, foi um tempo de martírio. Realçou bem isto o Papa João Pualo II, ao pedir à Igreja para "actualizar o Martirológio" e canonizando e beatificando numerosos mártires da história recente. Por conseguinte, se o sangue dos mártires é semente para novos cristãos, no início do terceiro milénio é lícito esperar um renovado florescimento da Igreja, sobretudo onde ela sofreu em maior medida pela fé e pelo testemunho do Evangelho.

Confiamos estes votos à intercessão de São Paulo. Que ele obtenha à Igreja de Roma, em particular ao seu Bispo, e a todo o Povo de Deus, a alegria de anunciar e testemunhar a todos a Boa Nova de Cristo Salvador.



Sábado, 7 de Maio de 2005: CONCELEBRAÇÃO COMO BISPO DE ROMA NA BASÍLICA DE SÃO JOÃO DE LATRÃO

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Estimados Padres Cardeais

Queridos Irmãos no Episcopado
Amados Irmãos e Irmãs

Neste dia, no qual posso pela primeira vez tomar posse da Cátedra do Bispo de Roma como sucessor de Pedro, é o dia em que na Itália a Igreja celebra a Festa da Ascensão do Senhor. No centro deste dia, encontramos Cristo. E só graças a Ele, graças ao mistério da sua elevação, conseguimos compreender também o significado da Cátedra, que é por sua vez o símbolo do poder e da responsabilidade do Bispo. O que nos quer dizer então a Festa da Ascensão do Senhor? Não nos quer dizer que o Senhor foi para um lugar distante dos homens e do mundo. A Ascensão de Cristo não é uma viagem no espaço em direcção aos astros mais remotos; porque, no fim, também os astros são feitos de elementos físicos como a Terra. A Ascensão de Cristo significa que Ele não já pertence ao mundo da corrupção e da morte que condiciona a nossa vida. Significa que Ele pertence completamente a Deus. Ele o Filho Eterno guiou o nosso ser humano até à presença de Deus, levou consigo a carne e o sangue numa forma transfigurada. O homem encontra espaço em Deus; através de Cristo, o ser humano foi conduzido até ao interior da própria vida de Deus. E dado que Deus abraça e ampara toda a criação, a Ascensão do Senhor significa que Cristo não se afastou de nós, mas que agora, graças ao Seu ser com o Pai, está próximo de cada um de nós, para sempre. Cada um de nós pode chamá-Lo por tu; todos os podem chamar. O Senhor ouve-nos sempre. Podemos afastar-nos dele interiormente Podemos viver voltando-lhe as costas. Mas Ele espera-nos sempre, e está sempre perto de nós.

Das leituras da liturgia de hoje aprendemos também algo mais sobre a solidez com que o Senhor realiza este Seu estar perto de nós. O Senhor promete aos discípulos o Seu Espírito Santo. A primeira leitura que escutámos diz-nos que o Espírito Santo será "força" para os discípulos; o Evangelho acrescenta que será guia para a Verdade total. Jesus disse tudo aos Seus discípulos, sendo Ele próprio a Palavra viva de Deus, e Deus não pode dar mais do que a Si próprio. Em Jesus, Deus doou-se a nós completamente isto é deu-nos tudo. Além disto, ou paralelamente a isto, não pode haver outra revelação capaz de comunicar em maior medida ou de completar, de certa forma, a Revelação de Cristo. Nele, no Filho, tudo nos foi dito, tudo nos foi dado. Mas a nossa capacidade de compreensão é limitada; por isso a missão do Espírito é introduzir a Igreja de maneira sempre nova, de geração em geração, na grandeza do mistério de Cristo. O Espírito nada acrescenta de novo nem de diverso ao lado de Cristo; não há qualquer revelação pneumática ao lado da de Cristo como dizem alguns nenhum segundo nível de Revelação. Não: "receberá do que é meu", diz Cristo no Evangelho (
Jn 16,14). E como Cristo diz apenas aquilo que sente e recebe do Pai, assim o Espírito Santo é intérprete de Cristo. "Receberá do que é meu". Não nos conduz a outros lugares, distantes de Cristo, mas conduz-nos cada vez mais dentro da luz de Cristo. Por isso, a Revelação cristã é, ao mesmo tempo, cada vez mais antiga e nova. Por isso, tudo nos é sempre e já doado. Ao mesmo tempo, cada geração, no encontro inexaurível com o Senhor encontro mediado pelo Espírito Santo aprende sempre algo de novo.

Assim, o Espírito Santo é a força através da qual Cristo nos faz experimentar a sua proximidade. Mas a primeira leitura diz-nos também uma segunda palavra: sereis minhas testemunhas. Cristo ressuscitado precisa de testemunhas que O encontraram, de homens que o conheceram intimamente através da força do Espírito Santo. Homens que, por assim dizer, tendo feito a experiência directa d'Ele, O podem testemunhar. Foi assim que a Igreja, a família de Cristo, cresceu de "Jerusalém... até aos extremos confins da terra", como diz a leitura. Através das testemunhas foi construída a Igreja começando por Pedro e por Paulo, e pelos Doze, alcançando todos os homens e mulheres que, repletos de Cristo, no decorrer dos séculos acenderam e acenderão novamente de forma sempre renovada a chama da fé. Cada cristão, a seu modo, pode e deve ser testemunha do Senhor ressuscitado. Quando lemos os nomes dos santos podemos ver quantas vezes eles foram e continuam a ser em primeiro lugar homens simples, homens dos quais emanava e emana uma luz resplandecente, capaz de guiar até Cristo.

Mas esta sinfonia é dotada também de uma estrutura bem definida: aos sucessores dos Apóstolos, isto é, aos Bispos, compete a responsabilidade pública de fazer com que a rede deste testemunho permaneça no tempo. No sacramento da ordenação episcopal são-lhe conferidos o poder e a graça necessárias para este serviço. Nesta rede de testemunhas, compete ao Sucessor de Pedro uma tarefa especial. Foi Pedro quem expressou primeiro, em nome dos apóstolos, a profissão de fé: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo" (Mt 16,16). Esta é a tarefa de todos os Sucessores de Pedro: ser a guia na profissão de fé em Cristo, o Filho do Deus vivo. A Cátedra de Roma é, em primeiro lugar, a Cátedra deste credo. Do alto desta Cátedra o Bispo de Roma deve repetir constantemente: Dominus Jesus "Jesus é o Senhor", como escreveu Paulo nas suas cartas aos Romanos (Rm 10,9) e aos Coríntios (1Co 12,3). Aos Coríntios, com particular ênfase, disse: "Embora haja pretensos deuses, quer no céu quer na terra... para nós, contudo, um só é Deus, o Pai...; e um só é o Senhor Jesus Cristo, por meio do qual tudo existe e mediante o qual nós existimos" (1Co 8,5-6). A Cátedra de Pedro obriga todos os que dela são titulares a dizer como já fez Pedro num momento de crise dos discípulos quando muitos queriam afastar-se: "A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna. Por isso nós cremos e sabemos que Tu é que és o Santo de Deus" (Jn 6,68-69). Aquele que se senta na Cátedra de Pedro deve recordar as palavras que o Senhor disse a Simão Pedro durante a Última Ceia: "... e tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos..." (Lc 22,32). Aquele que é titular do ministério petrino deve ter a consciência de que é um homem frágil e débil como são frágeis e débeis as suas próprias forças constantemente necessitado de purificação e de conversão. Mas ele também pode ter a consciência de que do Senhor lhe vem a força para confirmar os seus irmãos na fé e mantê-los unidos na confissão de Cristo crucificado e ressuscitado. Na primeira carta de São Paulo aos Coríntios, encontramos a narração mais antiga que possuímos da ressurreição. Paulo recolheu-a fielmente das testemunhas. Esta narração fala primeiro da morte do Senhor pelos nossos pecados, da sua sepultura, da sua ressurreição, ao terceiro dia, e depois diz: "apareceu a Cefas e depois aos Doze" (1Co 15,5). Assim, mais uma vez, é resumido o significado do mandato conferido a Pedro até ao fim dos tempos: ser testemunha de Cristo ressuscitado.

O Bispo de Roma senta-se na Cátedra para dar testemunho de Cristo. É o símbolo da potestas docendi, aquele poder de ensinar que faz parte essencial do mandato de ligar e desligar conferido pelo Senhor a Pedro e, depois dele, aos Doze. Na Igreja, a Sagrada Escritura, cuja compreensão aumenta sob a inspiração do Espírito Santo, e o ministério da interpretação autêntica, conferido aos apóstolos, pertencem um ao outro de modo indissolúvel. Onde a Sagrada Escritura é separada da voz viva da Igreja, torna-se vítima das controvérsias dos peritos. Sem dúvida, tudo o que eles têm para nos dizer é importante e precioso; o trabalho dos sábios é para nós um grande contributo para poder compreender aquele processo vivo com o qual a Escritura cresceu e para compreender a sua riqueza histórica. Mas a ciência sozinha não nos pode fornecer uma interpretação definitiva e vinculante; não é capaz de nos fornecer, na interpretação, aquela certeza com a qual podemos viver e pela qual podemos até morrer. Por isso é necessário um mandato maior, que não pode surgir unicamente das capacidades humanas. Por isso é necessária a voz da Igreja viva, daquela Igreja confiada a Pedro e ao colégio dos apóstolos até ao fim dos tempos.

Este poder de ensinamento assusta muitos homens dentro e fora da Igreja. Perguntam-se se ela não ameaça a liberdade de consciência, se não é uma soberba em oposição à liberdade de pensamento. Não é assim. O poder conferido por Cristo a Pedro e aos seus sucessores é, em sentido absoluto, um mandato para servir. O poder de ensinar, na Igreja, obriga a um compromisso ao serviço da obediência à fé. O Papa não é um soberano absoluto, cujo pensar e querer são leis. Ao contrário: o ministério do Papa é garantia da obediência a Cristo e à Sua Palavra. Ele não deve proclamar as próprias ideias, mas vincular-se constantemente a si e à Igreja à obediência à Palavra de Deus, tanto perante todas as tentativas de adaptação e de adulteração, como diante de qualquer oportunismo. O Papa João Paulo II fez isto quando, perante todas as tentativas, aparentemente benévolas para com o homem, perante as erradas interpretações da liberdade, realçou de maneira inequivocável a inviolabilidade do ser humano, a inviolabilidade da vida humana desde a concepção até à morte natural. A liberdade de matar não é uma liberdade, mas é uma tirania que reduz o ser humano à escravidão. O Papa tem a consciência de que está, nas suas grandes decisões, ligado à grande comunidade da fé de todos os tempos, às interpretações vinculantes que cresceram ao longo do caminho peregrinante da Igreja. Assim, o seu poder não é superior, mas está ao serviço da Palavra de Deus, e sobre ele recai a responsabilidade de fazer com que esta Palavra continue a estar presente na sua grandeza e a ressoar na sua pureza, de modo que não seja fragmentada pelas contínuas mudanças das modas.

A Cátedra é repetimos mais uma vez símbolo do poder de ensinamento, que é um poder de obediência e de serviço, para que a Palavra de Deus a verdade! possa resplandecer entre nós, indicando-nos o caminho da vida. Mas, falando da Cátedra do Bispo de Roma, como não recordar as palavras que Santo Inácio de Antioquia escreveu aos Romanos? Pedro, vindo de Antioquia, a sua primeira sede, dirigiu-se para Roma, sua sede definitiva. Uma sede que se tornou definitiva através do martírio com o qual ligou para sempre a sua sucessão em Roma. Inácio, por seu lado, permanecendo Bispo de Antioquia, estava destinado ao martírio que teria que sofrer em Roma. Na sua carta aos Romanos refere-se à Igreja de Roma como "Àquela que preside no amor", expressão muito significativa. Não sabemos com certeza o que Inácio pensava exactamente quando usou estas palavras. Mas na Igreja antiga, a palavra amor, agape, referia-se ao mistério da Eucaristia. Neste mistério o amor de Cristo torna-se sempre tangível entre nós. Nele, Ele oferece-se sempre de novo. Nele, Ele deixa que trespassem o seu coração sempre de novo; nele, Ele mantém a sua promessa, a promessa que, da Cruz, teria arrebatado tudo a si. Na Eucaristia, nós próprios aprendemos o amor de Cristo. Foi graças a este centro e coração, graças à Eucaristia, que os santos viveram, levando o amor de Deus ao mundo de maneiras e formas sempre novas. Graças à Eucaristia a Igreja renasce sempre de novo! A Igreja mais não é do que aquela rede a comunidade eucarística! na qual todos, recebendo o mesmo Senhor, nos tornamos um só corpo e abraçamos o mundo inteiro. Presidir na doutrina e presidir no amor, no final, devem ser uma só coisa: toda a doutrina da Igreja, no final, conduz ao amor. E a Eucaristia, enquanto amor presente de Jesus Cristo, é o critério de qualquer doutrina. Do amor dependem a Lei e os Profetas (Mt 22,40). O amor é o cumprimento da lei, escrevia São Paulo aos Romanos (Rm 13,10).

Queridos Romanos, agora eu sou o vosso Bispo. Obrigado pela vossa generosidade, obrigado pela vossa simpatia, obrigado pela paciência que tendes comigo! Como católicos, de certo modo, todos somos também romanos. Com as palavras do Salmo 87, um hino de louvor a Sião, mãe de todos os povos, cantava Israel e canta a Igreja: "De Sião há-de dizer-se: todos lá nascemos..." (Ps 87,5). De igual modo, também nós podemos dizer: como católicos, de certa forma, todos nascemos em Roma. Assim desejo procurar ser, de todo o coração, o vosso Bispo, o Bispo de Roma. E todos nós desejamos procurar ser cada vez mais católicos cada vez mais irmãos e irmãs na grande família de Deus, aquela família na qual ninguém é estrangeiro. Por fim, desejo agradecer de coração ao Vigário para a Diocese de Roma, querido Cardeal Camillo Ruini, aos Bispos auxiliares e a todos os seus colaboradores que, como fiéis, oferecem o seu contributo para construir aqui a casa viva de Deus.

Amém.




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