Bento XVI Homilias 7505


Domingo, 15 de Maio de 2005: ORDENAÇÃO DE 21 SACERDOTES NA SOLENIDADE DE PENTECOSTES

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Queridos Irmãos no Episcopado
e no Sacerdócio
Caríssimos Ordenandos
Amados Irmãos e Irmãs!

A primeira leitura e o Evangelho do Domingo de Pentecostes apresentam-nos duas grandes imagens da missão do Espírito Santo. A leitura dos Actos dos Apóstolos narra como, no dia de Pentecostes, o Espírito Santo, sob os sinais de um vento poderoso e de fogo, irrompe na comunidade orante dos discípulos de Jesus e dá assim origem à Igreja. Para Israel, o Pentecostes, de festa da sementeira, tornou-se a festa que recordava a conclusão da aliança no Sinai. Deus demonstrou a sua presença ao povo através do vento e do fogo e depois ofereceu-lhe a sua lei, a lei dos 10 mandamentos. Só assim a obra de libertação, que começara com o êxodo do Egipto, se tinha cumprido plenamente: a liberdade humana é sempre uma liberdade partilhada, um conjunto de liberdades.

Só numa ordenada harmonia das liberdades, que abre para cada um o seu âmbito, se pode ter uma liberdade comum. Por isso o dom da lei no Sinai não foi uma restrição ou uma abolição da liberdade mas o fundamento da verdadeira liberdade. E dado que um justo ordenamento humano se pode reger apenas se provém de Deus e se une os homens na perspectiva de Deus, para uma disposição ordenada das liberdades humanas não podem faltar os mandamentos que o próprio Deus dá. Assim Israel tornou-se plenamente povo precisamente através da aliança com Deus no Sinai. O encontro com Deus no Sinai poderia ser considerado como o fundamento e a garantia da sua existência como povo. O vento e o fogo, que atingiram a comunidade dos discípulos de Cristo reunida no cenáculo, constituíram um ulterior desenvolvimento do acontecimento do Sinai e conferiram-lhe uma nova amplitude. Naquele dia encontravam-se em Jerusalém, segundo quanto referem os Actos dos Apóstolos, "Judeus piedosos provenientes de todas as nações que há debaixo do céu" (
Ac 2,5). E eis que se manifesta o dom característico do Espírito Santo: todos compreenderam as palavras dos apóstolos: "Cada um os ouvia falar na sua própria língua" (Ac 2,6). O Espírito Santo concede o dom da compreensão. Ultrapassa a ruptura que teve início em Babel a confusão dos corações, que nos faz ser uns contra os outros o Espírito abre as fronteiras. O povo de Deus que tinha encontrado no Sinai a sua primeira configuração, é agora ampliado até ao ponto de já não conhecer fronteira alguma.

O novo povo de Deus, a Igreja, é um povo que provém de todos os povos. A Igreja desde o início é católica, esta é a sua essência mais profunda. São Paulo explica e realça isto na segunda leitura, quando diz: "De facto, num só Espírito, fomos todos baptizados para formar um só corpo, judeus e gregos, escravos e livres, e todos bebemos de um só Espírito" (1Co 12,13). A Igreja deve tornar-se sempre de novo aquilo que ela já é: deve abrir as fronteiras entre os povos e romper as barreiras entre as classes e as raças. Nela não podem haver esquecidos nem desprezados. Na Igreja existem unicamente irmãos e irmãs livres em Jesus Cristo. Vento e fogo do Espírito Santo devem infatigavelmente abater aquelas barreiras que nós homens continuamos a erguer entre nós; devemos sempre de novo passar de Babel, do fechamento em nós mesmos, para Pentecostes. Por isso, devemos continuamente pedir que o Espírito Santo nos abra, nos conceda a graça da compreensão, de modo que nos possamos tornar o povo de Deus proveniente de todos os povos ainda mais, diz-nos São Paulo: em Cristo, que como único pão a todos alimenta na Eucaristia e nos atrai para si no seu corpo martirizado na cruz, nós devemos tornar-nos um só corpo e um só espírito.

"A paz esteja convosco": esta saudação do Senhor é uma ponte que ele lança entre céu e terra

A segunda imagem do envio do Espírito, que encontramos no Evangelho, é muito mais discreta. Mas precisamente por isso faz compreender toda a grandeza do acontecimento de Pentecostes. O Senhor Ressuscitado entra através das portas fechadas no lugar onde os discípulos se encontravam e saúda-os duas vezes dizendo: a paz esteja convosco! Nós, continuamente, fechamos as nossas portas; continuamente, queremos pôr-nos a salvo e não ser incomodados pelos outros nem por Deus. Portanto, podemos suplicar continuamente o Senhor por isso, para que ele venha ao nosso encontro vencendo os nossos fechamentos e trazendo-nos a sua saudação. "A paz esteja convosco": esta saudação do Senhor é uma ponte, que ele lança entre céu e terra. Ele desce por esta ponte até nós e nós podemos subir, por esta ponte de paz, até Ele. Nesta ponte, sempre juntamente com Ele, também nós devemos alcançar o próximo, alcançar aquele que tem necessidade de nós. Precisamente descendo com Cristo, nós elevamo-nos até Ele e até Deus: Deus é Amor e por isso descida, abaixamento, que o amor nos pede, e ao mesmo tempo é a verdadeira subida. Precisamente assim, abaixando-nos, saindo de nós mesmos, nós alcançamos a altura de Jesus Cristo, a verdadeira altura do ser humano.

À saudação de paz do Senhor seguem-se dois gestos decisivos para o Pentecostes: o Senhor deseja que a sua missão continue nos discípulos: "Assim como o Pai me enviou, também Eu vos envio a vós" (Jn 20,21). Depois disto, sopra sobre eles e diz: "Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ficarão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ficarão retidos" (Jn 20,23). O Senhor sopra sobre os discípulos, e assim dá-lhes o Espírito Santo, o seu Espírito. O sopro de Jesus é o Espírito Santo. Reconhecemos aqui, antes de mais, uma alusão à narração da criação do homem no Génesis, onde está escrito: "O Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida" (Gn 2,7). O homem é esta criatura misteriosa, que provém totalmente da terra, mas no qual foi posto o sopro de Deus. Jesus sopra sobre os apóstolos e dá-lhe de maneira renovada, maior, o sopro de Deus. Nos homens, não obstante todas as suas limitações, existe agora algo absolutamente novo o sopro de Deus. A vida de Deus habita em nós. O sopro do seu amor, da sua verdade e da sua bondade. Assim podemos ver aqui também uma alusão ao baptismo e à confirmação a esta nova pertença a Deus, que o Senhor nos concede. O texto do Evangelho convida-nos a isto: a viver sempre no espaço do sopro de Jesus Cristo, a receber vida d'Ele, de modo que ele inspire em nós a vida autêntica a vida da qual morte alguma pode privar. Com o seu sopro, com o dom do Espírito Santo, o Senhor relaciona o poder de perdoar. Ouvimos anteriormente que o Espírito Santo une, abate as fronteiras, guia uns para os outros. A força, que abre e faz superar Babel, é a força do perdão. Jesus pode conceder o perdão e o poder de perdoar, porque ele mesmo sofreu as consequências da culpa e dissolveu-as na chama do seu amor. O perdão vem da cruz; ele transforma o mundo com o amor que nos doa. O seu coração aberto na cruz é a porta pela qual entra no mundo a graça do perdão. E unicamente esta graça pode transformar o mundo e edificar a paz.

Se compararmos os dois acontecimentos de Pentecostes, o vento poderoso do 50º dia e o leve sopro de Jesus na noite de Páscoa, podemos recordar-nos do contraste entre dois episódios, que aconteceram no Sinai, dos quais nos fala o Antigo Testamento. Por um lado encontra-se a narração do fogo, do trovão e do vento, que precedem a promulgação dos 10 Mandamentos e a conclusão da aliança (cf. Ex 19 ss.); por outro, a narração misteriosa de Elias no Monte Oreb. Depois dos dramáticos acontecimentos do Monte Carmelo, Elias tinha-se salvado da ira de Acab e de Gezabele. Por conseguinte, seguindo o mandamento de Deus, peregrinou até ao Monte Oreb. O dom da aliança divina, da fé no Deus único, parecia ter desaparecido em Israel. Elias, de certa forma, deve reacender a chama da fé no monte de Deus e reconduzi-la a Israel. Ele experimenta, naquele lugar, vento, terremoto e fogo. Mas Deus não está presente em tudo isto. Então ele apercebe-se de um murmúrio doce e leve. E Deus fala-lhe com esse sopro leve (cf. 1R 19,11-18). O que aconteceu na noite de Páscoa, quando Jesus apareceu aos seus Apóstolos para lhes ensinar o que se deseja dizer? Não podemos porventura ver nisto a prefiguração do servo de Jahwé, do qual Isaías diz: "Ele não gritará, não levantará a voz, não clamará nas ruas" (Is 42,2)? Não sobressai talvez assim a humilde figura de Jesus como a verdadeira revelação na qual Deus se manifesta a nós e nos fala? Não são porventura a humildade e a bondade de Jesus a verdadeira epifania de Deus? Elias, no Monte Carmelo, tinha procurado combater o afastamento de Deus com o fogo e com a espada, matando os profetas de Baal. Mas desta forma não pôde restabelecer a fé. No Oreb ele deve aprender que Deus não está no vento, no terremoto, no fogo; Elias deve aprender a compreender a voz leve de Deus e, assim, a reconhecer antecipadamente que venceu o pecado não com a força mas com a sua Paixão; aquele que, com o seu sofrimento, nos doou o poder do perdão. Esta é a forma com a qual Cristo vence.

Queridos ordenandos! Desta forma a mensagem de Pentecostes dirige-se agora directamente a vós. O cenário de Pentecostes do Evangelho de João fala a vós e de vós. A cada um de vós, de modo muito pessoal, o Senhor diz: paz a vós paz a ti! Quando o Senhor diz isto, não doa uma coisa qualquer mas doa-se a Si mesmo. De facto, ele mesmo é a paz (cf. Ep 2,14). Nesta saudação do Senhor, podemos entrever também uma referência ao grande mistério da fé, à Santa Eucaristia, na qual ele se doa a nós continuamente e, desta forma, doa a verdadeira paz. Esta saudação situa-se no centro da vossa missão sacerdotal: o Senhor confia-vos o mistério deste sacramento. No seu nome vós podeis dizer: este é o meu corpo este é o meu sangue. Deixai-vos atrair sempre de novo pela Santa Eucaristia, na comunhão de vida com Cristo. Considerai como centro de cada um dos vossos dias poder celebrá-la de modo digno. Conduzi os homens sempre de novo a este mistério. Ajudai-os, a partir dela, a levar a paz de Cristo ao mundo.

Ressoa depois, no Evangelho que acabámos de escutar, uma segunda palavra do Ressuscitado: "assim como o Pai me enviou, também Eu vos envio a vós" (Jn 20,21). Cristo diz isto, de modo muito pessoal, a cada um de vós. Com a ordenação sacerdotal vós inseristes-vos na missão dos apóstolos. O Espírito Santo veio, mas não é amorfo. É um Espírito ordenado. E manifesta-se precisamente ordenando a missão, no sacramento do sacerdócio, com o qual continua o ministério dos apóstolos. Através deste ministério, vós sois inseridos na grande multidão dos que, a partir do Pentecostes, receberam a missão apostólica. Vós sois inseridos na comunhão do presbitério, na comunhão com o bispo e com o Sucessor de São Pedro, que aqui em Roma é também o vosso bispo. Todos nós somos inseridos na rede da obediência à palavra de Cristo, à palavra daquele que dá a verdadeira liberdade, porque nos conduz nos espaços livres e nos horizontes amplos da verdade. Precisamente neste vínculo comum com o Senhor nós podemos e devemos viver o dinamismo do Espírito. Como o Senhor saiu do Pai e nos doou luz, vida e amor, assim a missão deve continuamente pôr-nos em movimento, tornar-nos inquietos, para levar a quem sofre, a quem está em dúvida, e também a quem hesita, a alegria de Cristo. Por fim, há o poder do perdão. O sacramento da penitência é um dos tesouros preciosos da Igreja, porque só no perdão se realiza o verdadeiro renovamento do mundo. Nada pode melhorar no mundo, se o mal não for vencido. E o mal pode ser vencido unicamente com o perdão. Sem dúvida, deve ser um perdão eficaz. Mas este perdão, só o Senhor o pode dar. Um perdão que não afasta o mal só com palavras, mas realmente o destrói. Isto pode verificar-se unicamente com o sofrimento e aconteceu realmente com o amor sofredor de Cristo, do qual nós haurimos o poder do perdão.

Por fim, queridos ordenandos, recomendo-vos o amor à Mãe do Senhor. Fazei como São João, que o acolheu no íntimo do próprio coração. Deixai-vos renovar continuamente pelo seu amor materno. Aprendei dela a amar Cristo. O Senhor abençoe o vosso caminho sacerdotal! Amém.





Quinta-feira, 26 de Maio de 2005: NA SANTA MISSA POR OCASIÃO DA SOLENIDADE DO SANTÍSSIMO CORPO E SANGUE DE CRISTO

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Basílica de S. João de Latrão



Amados Irmãos
no Episcopado e no Sacerdócio
Queridos irmãos e irmãs!

Na festa de Corpus Christi, a Igreja revive o mistério da Quinta-Feira Santa à luz da Ressurreição. Também a Quinta-Feira Santa conhece uma sua procissão eucarística, com a qual a Igreja repete o êxodo de Jesus do Cenáculo para o monte das Oliveiras. Em Israel, celebrava-se a noite de Páscoa em casa, na intimidade da família. Fazia-se assim memória da primeira Páscoa, no Egipto da noite em que o sangue do cordeiro pascal, aspergido na arquitrave e nos portais das casas, protegia contra o exterminador. Jesus, naquela noite, sai e entrega-se ao traidor, ao exterminador e, precisamente assim, vence a noite, vence as trevas do mal. Só desta forma, o dom da Eucaristia, instituída no Cenáculo, encontra o seu cumprimento: Jesus entrega realmente o seu corpo e o seu sangue. Atravessando o limiar da morte, torna-se pão vivo, verdadeiro maná,alimentoinexaurível para todos osséculos.Acarne torna-se pão de vida.

Na procissão da Quinta-Feira Santa, a Igreja acompanha Jesus ao monte das Oliveiras: a Igreja orante sente um desejo profundo de vigiar com Jesus, de não o deixar sozinho na noite do mundo, na noite da traição, na noite da indiferença de muitos. Na festa de Corpus Christi, retomamos esta procissão, mas na alegria da Ressurreição. O Senhor ressuscitou e precedeu-nos. Nas narrações da Ressurreição há uma característica comum e fundamental; os anjos dizem: o Senhor "vai à vossa frente para a Galileia. Lá o vereis" (
Mt 28,7). Considerando isto mais de perto, podemos dizer que este "preceder" de Jesus exige uma dupla direcção. A primeira é como ouvimos a Galileia. Em Israel, a Galileia era considerada como a porta que se abre para o mundo dos pagãos.

E na realidade precisamente na Galileia, no monte, os discípulos vêem Jesus, o Senhor, que lhes diz: "Ide... fazei discípulos de todos os povos" (Mt 28,19). A outra direcção do preceder, por parte do Ressuscitado, aparece no Evangelho de São João, nas palavras de Jesus a Madalena: "Não me detenhas, pois ainda não subi para o Pai..." (Jn 20,17). Jesus precede-nos junto do Pai, eleva-se à altura de Deus e convida-nos a segui-lo. Estas duas direcções do caminho do Ressuscitado não se contradizem, mas indicam ao mesmo tempo o caminho do seguimento de Cristo. A verdadeira meta do nosso caminho é a comunhão com Deus o próprio Deus é a casa com muitas moradas (cf. Jn 14,2s.). Mas só podemos subir a esta morada indo "em direcção à Galileia" indo pelos caminhos do mundo, levando o Evangelho a todas as nações, levando o dom do seu amor aos homens de todos os tempos. Por isso o caminho dos apóstolos prolongou-se até aos "confins da terra" (cf. Ac 1,6s.); assim São Pedro e São Paulo foram até Roma, cidade que na época era o centro do mundo conhecido, verdadeira "caput mundi".

A procissão da Quinta-Feira Santa acompanhou Jesus na sua solidão, rumo à "via crucis". A procissão de Corpus Christi, ao contrário, responde de maneira simbólica ao mandamento do Ressuscitado: precedo-vos na Galileia. Ide até aos confins do mundo, levai o Evangelho a todas as nações. Sem dúvida, para a fé, a Eucaristia é um mistério de intimidade. O Senhor instituiu o Sacramento no Cenáculo, circundado pela sua nova família, pelos doze apóstolos, prefiguração e antecipação da Igreja de todos os tempos. Por isso, na liturgia da Igreja antiga, a distribuição da sagrada comunhão era introduzida com as palavras: Sancta sanctis o dom sagrado destina-se aos que são tornados santos. Deste modo, respondia-se à admoestação dirigida por São Paulo aos Coríntios: "Portanto, examine-se cada um a si próprio e só então coma deste pão e beba deste vinho..." (1Co 11,28).Contudo, desta intimidade, que é dom muito pessoal do Senhor, a força do sacramento da Eucaristia vai além das paredes das nossas Igrejas. Neste Sacramento, o Senhor está sempre a caminho no mundo. Este aspecto universal da presença eucarística sobressai na procissão da nossa festa. Nós levamos Cristo, presente na figura do pão, pelas estradas da nossa cidade. Nós confiamos estas estradas, estas casas a nossa vida quotidiana à sua bondade. Que as nossas estradas sejam de Jesus! Que as nossas casas sejam para Ele e com Ele! A nossa vida de todos os dias estejam penetradas da sua presença. Com este gesto, colocamos sob o seu olhar os sofrimentos dos doentes, a solidão dos jovens e dos idosos, as tentações, os receios toda a nossa vida. A procissão pretende ser uma bênção grande e pública para a nossa cidade: Cristo é, em pessoa, a bênção divina para o mundo o raio da sua bênção abranja todos nós!

Na procissão de Corpus Christi, acompanhamos o Ressuscitado no seu caminho pelo mundo inteiro como dissemos. E, precisamente fazendo isto, respondemos também ao seu mandamento: "Tomai e comei... Bebei todos" (Mt 26,26s.). Não se pode "comer" o Ressuscitado, presente na figura do pão, como um simples bocado de pão. Comer este pão é comunicar, é entrar em comunhão com a pessoa do Senhor vivo. Esta comunhão, este acto de "comer", é realmente um encontro entre duas pessoas, é deixar-se penetrar pela vida d'Aquele que é o Senhor, d'Aquele que é o meu Criador e Redentor. A finalidade desta comunhão, deste comer, é a assimilação da minha vida à sua, a minha transformação e conformação com Aquele que é Amor vivo. Por isso, esta comunhão exige a adoração, requer a vontade de seguir Cristo, de seguir Aquele que nos precede. Por isso, a adoração e a procissão fazem parte de um único gesto de comunhão; respondem ao seu mandamento: "Tomai e comei".

A nossa procissão termina diante da Basílica de Santa Maria Maior, no encontro com Nossa Senhora, chamada pelo querido Papa João Paulo II "Mulher eucarística". Verdadeiramente Maria, a Mãe do Senhor, ensina-nos o que significa entrar em comunhão com Cristo: Maria ofereceu a própria carne, o próprio sangue a Jesus e tornou-se tenda viva do Verbo, deixando-se penetrar no corpo e no espírito pela sua presença. Pedimos a Ela, nossa santa Mãe, para que nos ajude a abrir, cada vez mais, todo o nosso estar na presença de Cristo; para que nos ajude a segui-lo fielmente, dia após dia, pelos caminhos da nossa vida. Amém!





Bari, 29 de Maio de 2005: NA CONCLUSÃO DO CONGRESSO EUCARÍSTICO ITALIANO

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Solenidade de Corpus Christi



Caríssimos Irmãos e Irmãs!

"Glorifica o Senhor, Jerusalém, louva, Sião, o teu Deus" (Salmo Responsorial). O convite do Salmista, que ressoa também na Sequência, exprime muito bem o sentido desta Celebração eucarística: reunimo-nos para louvar e bendizer ao Senhor. Eis a razão que levou a Igreja italiana a encontrar-se aqui, em Bari, para o Congresso Eucarístico Nacional. Também eu me quis unir hoje a todos vós para celebrar com particular realce a Solenidade do Corpo e do Sangue de Cristo, e desta forma prestar homenagem a Cristo no Sacramento do seu amor, e ao mesmo tempo, fortalecer os vínculos de comunhão que me ligam à Igreja que está na Itália e aos seus Pastores.

Neste importante encontro eclesial também teria desejado, como sabeis, estar presente o meu venerado e amado Predecessor, o Papa João PauloII. Sentimo-lo próximo de nós e connosco glorifica Cristo, bom Pastor, que ele já pode contemplar directamente.

Saúdo com afecto todos vós que participais nesta solene liturgia: o Cardeal Camillo Ruini e os outros Cardeais presentes, o Arcebispo de Bari, D. Francesco Cacucci, ao qual agradeço as palavras gentis, os Bispos da Apúlia e os que vieram em grande número de todas as partes da Itália; os sacerdotes, os religiosos, as religiosas e os leigos, em particular os jovens e também todos os que, de várias formas, cooperaram para a organização do Congresso. Saúdo também as Autoridades, que com a sua agradável presença realçam como os Congressos Eucarísticos fazem parte da história e da cultura do povo italiano.

Este Congresso Eucarístico, que hoje chega à sua conclusão, quis apresentar o domingo como "Páscoa semanal", expressão da identidade da comunidade cristã e centro da sua vida e da sua missão. O tema escolhido "Sem o Domingo não podemos viver" leva-nos ao ano 304, quando o imperador Diocleciano proibiu aos cristãos, sob pena de morte, de possuir as Escrituras, de se reunirem ao domingo para celebrar a Eucaristia e de construir lugares para as suas assembleias. Em Abitene, uma pequena localidade na actual Tunísia, 49 cristãos foram surpreendidos um domingo enquanto, reunidos em casa de Octávio Félix, celebravam a Eucaristia desafiando as proibições imperiais. Foram presos e levados para Cartago para serem interrogados pelo pró-Cônsul Anulino.

Foi significativa, entre outras, a resposta que um tal Emérito deu ao pró-Cônsul que lhe perguntava por que motivo violaram a ordem severa do imperador. Respondeu: "Sine dominico non possumus": isto é, sem nos reunirmos em assembleia ao domingo para celebrar a Eucaristia não podemos viver. Faltar-nos-iam as forças para enfrentar as dificuldades quotidianas sem sucumbir. Depois de atrozes torturas, os 49 mártires de Abitene foram mortos. Confirmaram assim, com a efusão do sangue, a sua fé. Morreram, mas venceram: agora, nós recordámo-los na glória de Cristo ressuscitado.

Sobre a experiência dos mártires de Abitene também nós, cristãos do século XXI, devemos reflectir. Também para nós não é fácil viver como cristãos, mesmo se não existem estas proibições do imperador. Sob um ponto de vista espiritual, o mundo no qual nos encontramos, muitas vezes marcado pelo consumismo desenfreado, pela indiferença religiosa, por um secularismo fechado à transcendência, pode parecer um deserto não menos áspero do que aquele "grande e assustador" (
Dt 8,15) do qual nos falou a primeira leitura, tirada do Livro do Deuteronómio.

Deus, neste deserto, vai em auxílio do povo hebreu em dificuldade com o dom do maná, para lhe fazer compreender que "nem só de pão vive o homem, mas de tudo o que sai da boca do Senhor" (Dt 8,3). No Evangelho de hoje Jesus explicou-nos para que pão Deus, através da doação do maná, queria preparar o povo da Nova Aliança. Fazendo alusão à Eucaristia disse: "Este é o pão que desceu do céu; não é como aquele que os antepassados comeram, pois eles morreram; quem come mesmo deste pão viverá eternamente" (Jn 6,58). O Filho de Deus, tendo-se feito carne, podia tornar-se pão, e ser assim alimento do seu povo, de nós que estamos a caminho neste mundo rumo à terra prometida do Céu.

Precisamos deste pão para enfrentar as fadigas e o cansaço da viagem. O Domingo, Dia do Senhor, é a ocasião propícia para haurir a força d'Ele, que é o Senhor da vida. Por conseguinte, o preceito festivo não é um dever imposto pelo exterior, um peso sobre os nossos ombros. Ao contrário, participar na Celebração dominical, alimentar-se do Pão eucarístico e experimentar a comunhão dos irmãos e irmãs em Cristo é uma necessidade para o cristão, é uma alegria, e assim pode encontrar a energia necessária para o caminho que devemos percorrer todas as semanas. Um caminho, aliás, não arbitrário: a via que Deus nos indica na sua Palavra vai na direcção inscrita na própria essência do homem, a Palavra de Deus e a razão caminham juntas. Seguir a Palavra de Deus e caminhar com Cristo significa para o homem realizar-se a si mesmo; perdê-la equivale a perder-se a si próprio.

O Senhor não nos deixa sozinhos neste caminho. Ele está connosco; aliás, Ele deseja partilhar o nosso destino até se identificar connosco. No diálogo que há pouco o Evangelho nos referiu, Ele disse: "Quem realmente come a minha carne e bebe o meu sangue fica a morar em mim e Eu nele" (Jn 6,56).Como não se alegrar com uma promessa como esta? Contudo ouvimos que, àquele primeiro anúncio, o povo, em vez de rejubilar, começou a discutir e a protestar: "Como pode Ele dar-nos a sua carne a comer? (Jn 6,52).Na verdade, aquela atitude repetiu-se muitas outras vezes ao longo da história. No fundo, poderíamos pensar que o povo não queira Deus tão próximo, ao seu alcance, tão partícipe das suas vicissitudes. O povo quer que ele seja grande e, em definitiva também com frequência o queremos um pouco distante de nós. Levantam-se então questões que pretendem demonstrar, no fim, que uma semelhante proximidade é impossível. Mas permanecem em toda a sua clareza as palavras que Cristo pronunciou naquela ocasião: "Em verdade, em verdade, vos digo: se não comerdes mesmo a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós" (Jn 6,53). Na verdade precisamos de um Deus que esteja próximo. Perante os murmúrios de protesta, Jesus poderia ter optado por palavras tranquilizantes: "Amigos, teria podido dizer, não vos preocupeis! Falei de carne, mas trata-se apenas de um símbolo. O que pretendo dizer é unicamente uma profunda comunhão de sentimentos". Mas Jesus não recorreu a semelhantes atenuações. Manteve firme a própria declaração, todo o seu realismo, também diante da deserção de muitos dos seus discípulos (cf. Jn 6,66). Aliás, Ele demonstrou-se disposto a aceitar até a deserção dos seus próprios apóstolos, para nada alterar do concreto do seu discurso: "Também vós quereis ir embora?" (Jn 6,67), perguntou. Graças a Deus, Pedro deu uma resposta que também nós, hoje, com plena consciência fazemos nossa: "A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna" (Jn 6,68).Precisamos de um Deus que esteja próximo, de um Deus que se coloca nas nossas mãos e que nos ama.

Na Eucaristia Cristo está realmente presente entre nós. A sua presença não é estática. É uma presença dinâmica, que nos prende para nos fazer seus, para nos assimilar a si. Cristo atrai-nos a si, faz-nos sair de nós próprios para fazer de todos nós uma só coisa com Ele. Desta forma, Ele insere-nos também na comunidade dos irmãos e a comunhão com o Senhor é também e sempre comunhão com as irmãs e irmãos. E vemos a beleza desta comunhão que a Sagrada Eucaristia nos proporciona.

Alcançamos aqui uma ulterior dimensão da Eucaristia, sobre a qual gostaria ainda de falar antes de concluir. O Cristo que encontramos no Sacramento é o mesmo aqui em Bari como em Roma, na Europa como na América, na África, na Ásia, na Oceânia. É o único e o mesmo Cristo que está presente no Pão eucarístico de qualquer lugar da terra. Isto significa que nós só o podemos encontrar juntamente com os outros. Só na unidade o podemos receber. Não foi porventura isto que nos disse o apóstolo Paulo na leitura que há pouco ouvimos? Ao escrever aos Coríntios, ele afirma: "Uma vez que há um único pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, porque todos participamos desse único pão" (1Co 10,17). A consequência é clara: não podemos comunicar com o Senhor, sem comunicar entre nós. Se nos quisermos apresentar a Ele, devemos também mover-nos para irmos uns ao encontro dos outros. Por isso é preciso aprender a grande lição do perdão: não deixemos que o nosso ânimo seja corroído pelo ressentimento, mas abramos o coração à magnanimidade da escuta do próximo, abramos o coração à compreensão em relação a ele, à eventual aceitação das suas desculpas, à generosa oferta das próprias.

A Eucaristia repetimo-lo é sacramento de unidade. Mas infelizmente os cristãos estão divididos, precisamente no sacramento da unidade. Muito mais nos devemos, amparados pela Eucaristia, sentir estimulados a tender com todas as forças para aquela unidade plena que Cristo desejou ardentemente no Cenáculo. Precisamente aqui, em Bari, feliz Bari, cidade generosa que conserva os ossos de São Nicolau, terra de encontro e de diálogo com os irmãos cristãos do Oriente, gostaria de repetir a minha vontade de assumir como compromisso fundamental o de trabalhar com todas as energias para a reconstituição da unidade plena e visível de todos os seguidores de Cristo.

Estou consciente de que para isto não são suficientes as manifestações de bons sentimentos. São necessários gestos concretos que entrem nos ânimos e despertem as consciências, solicitando cada um àquela conversão interior que é pressuposto de qualquer progresso no caminho do ecumenismo (cf. Mensagem à Igreja universal, Capela Sistina, 20 de abril de 2005). Peço a todos vós que tomeis com decisão o caminho daquele ecumenismo espiritual, que na oração abre as portas ao Espírito Santo, o único que pode criar unidade.

Queridos amigos que viestes a Bari de várias partes da Itália para celebrar este Congresso eucarístico, nós devemos redescobrir a alegria do domingo cristão. Devemos redescobrir com orgulho o privilégio de poder participar na Eucaristia, que é o sacramento do mundo renovado. A ressurreição de Cristo aconteceu no primeiro dia da semana, que nas Escrituras é o dia da criação do mundo. Precisamente por isto o domingo era considerado pela comunidade cristã dos primeiros tempos como o dia em que teve início o novo mundo, aquele no qual, com a vitória de Cristo sobre a morte, começou a nova criação. Recolhendo-se em volta da mesa eucarística, a comunidade ía-se modelando como novo povo de Deus. Santo Inácio de Antioquia qualificava os cristãos como "aqueles que alcançaram a nova esperança", e apresentava-os como pessoas "viventes segundo o domingo" ("iuxta dominicam viventes"). Nesta perspectiva o Bispo antioqueno perguntava: "Como poderemos viver sem Aquele, pelo qual também os profetas esperaram?" (Epist. ad Magnesios, 9, 1-2).

"Como poderemos viver sem Ele?". Sentimos ressoar nestas palavras de Santo Inácio a afirmação dos mártires de Abitene: "Sine dominico non possumus". Precisamente disto brota a nossa oração: que também os cristãos de hoje reencontrem a consciência da importância decisiva da Celebração dominical e saibam tirar da participação na Eucaristia o estímulo necessário para um novo compromisso no anúncio, ao mundo, de Cristo "nossa paz" (Ep 2,14). Amém!





Quarta-feira, 29 de Junho de 2005: NA SOLENIDADE DOS SANTOS APÓSTOLOS PEDRO E PAULO

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Queridos Irmãos e Irmãs!


A festa dos santos Apóstolos Pedro e Paulo é ao mesmo tempo uma grata memória das grandes testemunhas de Jesus Cristo e uma solene confissão em favor da Igreja una, santa, católica e apostólica. É antes de tudo uma festa da catolicidade. É sinal do Pentecostes a nova comunidade que fala em todas as línguas e une todos os povos num único povo, numa família de Deus e este sinal tornou-se realidade. A nossa assembleia litúrgica, na qual estão reunidos Bispos provenientes de todas as partes do mundo, pessoas de numerosas culturas e nações, é uma imagem da família da Igreja distribuída sobre toda a terra. Estrangeiros tornaram-se amigos; não obstante todos os confins, reconhecemo-nos irmãos. Com isto é levada a cabo a missão de São Paulo, que sabia "ser para os gentios um ministro de Cristo Jesus, que administra o Evangelho de Deus como um sacerdote, a fim de que a oferenda dos gentios, santificada pelo Espírito Santo, lhe seja agradável" (
Rm 15,16). A finalidade da missão é uma humanidade que se tornou uma glorificação viva de Deus, o culto verdadeiro que Deus espera: eis o sentido mais profundo da catolicidade uma catolicidade que já nos foi doada e para a qual, contudo, nos devemos encaminhar sempre de novo. A catolicidade exprime só uma dimensão horizontal, a reunião de muitas pessoas na unidade; exprime também uma dimensão vertical: só dirigindo o olhar para Deus, só abrindo-nos a Ele nos podemos tornar verdadeiramente uma coisa só. Como Paulo, assim também Pedro veio a Roma, à cidade que era o lugar de convergência de todos os povos e que por isso podia tornar-se antes de qualquer outra, a expressão da universalidade do Evangelho. Empreendendo a viagem de Jerusalém para Roma, certamente ele sabia que era guiado pelas vozes dos profetas, da fé e da oração de Israel. De facto, faz parte também do anúncio da Antiga Aliança a missão a todo o mundo: o povo de Israel estava destinado a ser luz para os povos. O grande salmo da Paixão, o salmo 21, cujo primeiro versículo "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" Jesus pronunciou na cruz, este salmo terminava com a visão: "Hão-de lembrar-se do Senhor e voltar-se para Ele todos os confins da terra; hão-de prostrar-se diante dele todos os povos e nações" (Ps 21,28). Quando Pedro e Paulo vieram a Roma o Senhor, que iniciara aquele Salmo na cruz, tinha ressuscitado; esta vitória de Deus devia ser agora anunciada a todos os povos, cumprindo assim a promessa com a qual o salmo se concluía.

Catolicidade significa universalidade multiplicidade que se torna unidade; unidade que permanece contudo multiplicidade. Da palavra de Paulo sobre a universalidade da Igreja já vimos que faz parte desta unidade a capacidade que os povos têm de se superar a si mesmos, para olhar para o único Deus. O verdadeiro fundador da teologia católica, Santo Ireneu de Lião, no século II, expressou este vínculo entre catolicidade e unidade de maneira muito bonita, e cito-o. Diz: "A Igreja espalhada em todo o mundo conserva esta doutrina e esta fé com diligência, formando quase uma única família: a mesma fé com uma só alma e um só coração, a mesma pregação, ensinamento, tradição como se tivesse uma só boca. São diversas as línguas segundo as religiões, mas a força da tradição é única e a mesma. As Igrejas da Alemanha não têm uma fé ou tradição diversas, nem as da Espanha, da Gália, do Egipto, da Líbia, do Oriente, nem as do centro da terra; como o sol criatura de Deus é um só e idêntico em todo o mundo, assim a luz da verdadeira pregação resplandece em toda a parte e ilumina os homens que desejam chegar ao conhecimento da verdade" (Adv. haer. I 10, 2). A unidade dos homens na sua multiplicidade tornou-se possível porque Deus, este único Deus do céu e da terra, se mostrou a nós; porque a verdade fundamental sobre a nossa vida, sobre o nosso "de onde?", se tornou visível quando Ele se mostrou a nós e em Jesus Cristo nos mostrou o seu rosto, a si mesmo. Esta verdade sobre a essência do nosso ser, sobre o nosso viver e o nosso morrer, verdade que de Deus se tornou visível, une-nos e faz de nós irmãos. Catolicidade e unidade caminham juntas. E a unidade tem um conteúdo: a fé que os Apóstolos nos transmitiram da parte de Cristo.

Sinto-me feliz porque ontem na festa de santo Ireneu e vigília da solenidade dos santos Pedro e Paulo pude entregar à Igreja uma nova guia para a transmissão da fé, que nos ajuda a conhecer melhor e depois também a viver melhor a fé que nos une: o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica. O que no grande Catecismo, mediante os testemunhos dos santos de todos os séculos e com as reflexões maduradas na teologia, é apresentado em pormenor, é recapitulado neste livro, nos seus conteúdos fundamentais, que depois devem ser interpretados na linguagem quotidiana e concretizados sempre de novo. O livro estrutura-se como diálogo de perguntas e respostas; quatorze imagens associadas aos vários campos da fé convidam à contemplação e à meditação. Resumem por assim dizer de modo visível o que a palavra desenvolve nos pormenores. No início está um ícone de Cristo do século VI, que se encontra no monte Athos e representa Cristo na sua dignidade de Senhor da terra, mas ao mesmo tempo, como arauto do Evangelho, que tem nas mãos. "Eu sou aquele que sou" este misterioso nome de Deus proposto na Antiga Aliança está ali representado como o seu próprio nome: tudo o que existe vem d'Ele; Ele é a fonte originária de todos os seres. E por isso é único, também está sempre presente, está sempre perto de nós e ao mesmo tempo precede-nos sempre: como "indicador" no caminho da nossa vida, aliás, sendo Ele mesmo o caminho. Não se pode ler este livro como se lê um romance. É preciso meditá-lo com calma em cada uma das suas partes e permitir que o seu conteúdo, mediante as imagens, penetre na alma. Espero que seja acolhido desta forma e se possa tornar uma boa guia na transmissão da fé.

Dissemos que catolicidade da Igreja e unidade da Igreja caminham juntas. O facto que ambas as dimensões se tornem visíveis a nós nas figuras dos santos Apóstolos indica-nos já a característica sucessiva da Igreja: ela é apostólica. O que significa? O Senhor instituiu doze Apóstolos, assim como doze eram os filhos de Jacob, indicando-os como arquétipos do povo de Deus que, tendo-se já tornado universal, daquele momento em diante abrange todos os povos. São Marcos diz-nos que Jesus chamou os Apóstolos para que "andassem com Ele e também para os enviar" (Mc 3,14). Parece quase uma contradição. Nós diríamos: ou estão com Ele ou são enviados e põem-se a caminho. Há uma palavra do Santo Papa Gregório Magno sobre os anjos, que nos ajuda a desfazer tal contradição. Ele diz que os anjos são sempre enviados e ao mesmo tempo estão sempre diante de Deus, e continua: "Onde quer que sejam enviados, onde quer que vão, caminham sempre no seio de Deus" (Homilia 34, 13). O Apocalipse qualificou os Bispos como "anjos" da sua Igreja, e por conseguinte, podemos fazer esta aplicação: os Apóstolos e os seus sucessores deveriam estar sempre com o Senhor e precisamente assim onde quer que vão estar sempre em comunhão com Ele e viver desta comunhão.

A Igreja é apostólica, porque confessa a fé dos Apóstolos e procura vivê-la. Existe uma unicidade que caracteriza os Doze chamados pelo Senhor, mas existe ao mesmo tempo uma continuidade na missão apostólica. São Pedro na sua primeira carta qualificou-se como "copresbítero" com os presbíteros aos quais escreve (1P 5,1). E com isto expressou o princípio da sucessão apostólica: o mesmo ministério que ele tinha recebido do Senhor continua agora na Igreja graças à ordenação sacerdotal. A Palavra de Deus não está só escrita mas, graças às testemunhas que o Senhor, no sacramento, inseriu no ministério apostólico, permanece palavra viva. Assim me dirijo agora a vós, queridos irmãos Bispos. Saúdo-vos com afecto, juntamente com os vossos familiares e com os peregrinos das respectivas Dioceses. Estais para receber o pálio das mãos do Sucessor de Pedro. Fizemo-lo abençoar, como pelo próprio Pedro, pondo-o ao lado do seu túmulo. Agora ele é expressão da nossa responsabilidade comum diante do "supremo pastor", Jesus Cristo, do qual fala Pedro (1P 5,4). O pálio é a expressão da nossa missão apostólica. É expressão da nossa comunhão, que no ministério petrino tem a sua garantia visível. Com a unidade, assim como com a apostolicidade, está relacionado o serviço petrino, que reúne visivelmente a Igreja de todas as partes e de todos os tempos, impedindo assim que todos nós escorreguemos para falsas autonomias, que muito facilmente se transformam em particularismos da Igreja e podem comprometer a sua independência. Com isto não queremos esquecer que o sentido de todas as funções e ministérios no fundo é que "cheguemos todos à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, ao homem adulto, à medida completa da plenitude de Cristo", para que cresça o corpo de Cristo "para se construir a si próprio no amor" (Ep 4,13 Ep 4,16).

Nesta perspectiva saúdo de coração e com gratidão a delegação da Igreja ortodoxa de Constantinopla, que é enviada pelo Patriarca Ecuménico Bartolomeu I, ao qual dirijo um pensamento cordial. Guiada pelo Metropolita Ioannis, veio a esta nossa festa e participa na nossa celebração. Mesmo se ainda não concordamos sobre a questão da interpretação e do alcance do ministério petrino, estamos contudo unidos na sucessão apostólica, estamos profundamente unidos uns aos outros pelo ministério episcopal e pelo sacramento do sacerdócio e confessamos juntos a fé dos Apóstolos como nos é dada nas Escrituras e como é interpretada nos grandes Concílios. Neste momento do mundo cheio de cepticismo e de dúvidas, mas também rico de desejo de Deus, reconhecemos novamente a nossa missão comum de testemunhar juntos Cristo Senhor e, com base naquela unidade que já nos é dada, ajudar o mundo para que creia. E suplicamos ao Senhor com todo o coração para que nos guie à unidade plena de forma que o esplendor da verdade, a única que pode criar a unidade, se torne de novo visível no mundo.

O Evangelho deste dia fala-nos da confissão de São Pedro que deu origem ao início da Igreja: "Tu és Cristo, o Filho de Deus vivo" (Mt 16,16). Tendo falado hoje da Igreja una, católica e apostólica, mas ainda não da Igreja santa, desejamos recordar neste momento outra confissão de Pedro pronunciada em nome dos Doze no momento do grande abandono: "Por isso nós cremos e sabemos que Tu és o Santo de Deus" (Jn 6,69). O que isto significa? Jesus, na grande oração sacerdotal, diz que se santifica pelos discípulos, fazendo alusão ao sacrifício da sua morte (Jn 17,19).Com isto Jesus exprime implicitamente a sua função de verdadeiro Sumo Sacerdote que realiza o mistério do "Dia da Reconciliação", não apenas nos ritos substitutivos, mas na concretização do seu próprio Corpo e Sangue. A palavra "o Santo de Deus" no Antigo Testamento indicava Aarão como Sumo Sacerdote que tinha a tarefa de realizar a santificação de Israel (Ps 105,16 cf. Si 45,6). A confissão de Pedro em favor de Cristo, que ele declara o Santo de Deus, está no contexto do discurso eucarístico, no qual Jesus anuncia o grande Dia da Reconciliação mediante a oferenda de si mesmo em sacrifício: "O pão que Eu hei-de dar é a minha carne, pela vida do mundo" (Jn 6,51). Assim, no quadro desta confissão, encontra-se o mistério sacerdotal de Jesus, o seu sacrifício por todos nós. A Igreja não é santa por si só; consiste de facto de pecadores todos nós o sabemos e vemos. Mas ela é sempre de novo santificada pelo Santo de Deus, pelo amor purificador de Cristo. Deus não falou apenas: amou-nos de modo muito realista, amou-nos até à morte do próprio Filho. É precisamente disto que se nos mostra toda a grandeza da revelação que quase inscreveu no coração do próprio Deus as feridas. Então, cada um de nós pode dizer pessoalmente com São Paulo: "Vivo na fé do Filho de Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim" (Ga 2,20).Peçamos ao Senhor para que a verdade desta palavra se imprima profundamente, com a sua alegria e responsabilidade, no nosso coração; rezemos para que irradiando-se da Celebração eucarística, ela se torne cada vez mais a força que plasma a nossa vida.



Bento XVI Homilias 7505