Bento XVI Homilias 8125


Domingo, 18 de Dezembro de 2005: DURANTE A CONCELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA NA PARÓQUIA ROMANA DE SANTA MARIA CONSOLADORA

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Queridos irmãos e irmãs

Para mim é realmente uma grande alegria estar aqui convosco na manhã de hoje e celebrar a Santa Missa convosco e para vós. Esta visita a Santa Maria Consoladora, primeira paróquia romana que visito depois do Senhor me ter chamado para ser Bispo de Roma, é de facto para mim, num sentido muito verdadeiro e concreto, um retorno a casa. Recordo-me muito bem daquele 15 de Outubro de 1977, quando tomei posse desta minha Igreja titular. O pároco era o Pe. Ennio Appignanesi, e os vice-párocos o Pe. Enrico Pomili e o Pe. Franco Camaldo. O mestre-de-cerimónias que me tinha sido designado era Mons. Piero Marini. Eis que nos encontramos de novo todos juntos aqui! Para mim, é realmente uma grande alegria.

A partir de então, o nosso vínculo recíproco tornou-se progressivamente mais forte, mais profundo. Um vínculo no Senhor Jesus Cristo, de Quem nesta igreja celebrei muitas vezes o Sacrifício eucarístico e administrei os Sacramentos. Um laço de afecto e de amizade, que realmente aqueceu o meu coração e que o aquece também hoje. Um laço que me uniu a todos vós, em particular ao vosso pároco e aos outros sacerdotes da paróquia. Trata-se de um vínculo que não diminuiu, quando me tornei Cardeal titular da Diocese suburbicária de Velletri e Segni. Um laço que adquiriu uma dimensão nova e mais profunda, pelo facto de ser já Bispo de Roma e vosso Bispo.

Além disso, estou particularmente feliz porque a minha visita hodierna como o Pe. Enrico já disse se realiza neste ano, em que celebrais o 60º aniversário da erecção da vossa paróquia, o 50º aniversário da ordenação sacerdotal do nosso caríssimo pároco Mons. Enrico Pomili, e finalmente o 25º aniversário de episcopado de D. Ennio Appignanesi. Portanto, um ano em que temos motivos especiais para dar graças ao Senhor.

Agora, saúdo com carinho precisamente Mons. Enrico, e agradeço-lhe as palavras tão amáveis que me dirigiu. Saúdo o Cardeal Vigário, Camillo Ruini, o Cardeal Ricardo Maria Carles Gordó, Titular desta igreja e portanto meu sucessor neste Título, o Cardeal Giovanni Canestri, outrora vosso amadíssimo pároco, e o Vice-Gerente, Bispo do Sector Leste de Roma, D. Luigi Moretti; já saudámos D. Ennio Appignanesi, que foi vosso pároco, e Mons. Massimo Giustetti, que foi vosso vigário paroquial. Dirijo uma saudação afectuosa aos vossos actuais vigários paroquiais e às religiosas de Santa Maria Consoladora, presentes em Casal Bertone a partir de 1932, preciosas colaboradoras da paróquia e verdadeiras portadoras de misericórdia e de consolação neste bairro, especialmente para os pobres e para as crianças. Com os mesmos sentimentos saúdo cada um de vós, todas as famílias da paróquia e aqueles que, de vários modos, se prodigalizam nos serviços paroquiais.

Agora, desejamos meditar brevemente o belíssimo Evangelho deste quarto Domingo do Advento, que para mim é uma das páginas mais bonitas da Sagrada Escritura. E gostaria para não me prolongar demasiadamente de reflectir apenas sobre três palavras deste rico Evangelho.

A primeira palavra que gostaria de meditar convosco é a saudação do Anjo a Maria. Na tradução italiana, o Anjo diz: "Saúdo-te, Maria". Mas a palavra grega subjacente, "Kaire", significa por si só "rejubila", "alegra-te". E aqui está o primeiro elemento que surpreende: a saudação entre os judeus era "Shalom", "paz", enquanto a saudação no mundo grego era "Kaire", "alegra-te". É supreendente que o Anjo, ao entrar na casa de Maria, cumprimente com a saudação dos gregos: "Kaire", "alegra-te, rejubila". E quando os gregos, quarenta anos mais tarde, leram este Evangelho, puderam ver nele uma mensagem importante: puderam compreender que com o início do Novo Testamento, a que se referia esta página de Lucas, teve lugar também a abertura ao mundo dos povos, à universalidade do Povo de Deus, que incluía não só o povo hebreu, mas também o mundo na sua totalidade, todos os povos. Nesta saudação grega do Anjo manifesta-se a nova universalidade do Reino do verdadeiro Filho de David.

Mas é oportuno relevar imediatamente que as palavras do Anjo são a retomada de uma promessa profética do Livro do profeta Sofonias. Aqui encontramos quase literalmente aquela saudação. O profeta Sofonias, inspirado por Deus, diz a Israel: "Alegra-te, filha de Sião; o Senhor está contigo e acolhe-te na sua morada". Sabemos que Maria conhecia bem as Sagradas Escrituras. O seu Magnificat é um tecido feito com os fios do Antigo Testamento. Por isso, podemos estar persuadidos de que a Santa Virgem compreendeu imediatamente que estas palavras eram do profeta Sofonias, dirigidas a Israel, à "filha de Sião", considerada como morada de Deus. E agora o que é surpreendente, e que faz Maria reflectir, é que tais palavras endereçadas a todo o Israel são dirigidas de modo especial a ela, Maria. E assim, manifesta-se-lhe com clareza que é precisamente ela a "filha de Sião", de que o profeta falou, e que portanto o Senhor tem uma intenção especial para ela, a qual está chamada a ser a verdadeira morada de Deus, uma morada não feita de pedras, mas de carne viva, de um coração vivo, que na realidade Deus deseja tomar como seu verdadeiro templo precisamente ela, a Virgem. Que indicação! E assim podemos compreender que Maria começa a reflectir com particular intensidade sobre o que quer dizer esta saudação.

Mas detenhamo-nos agora sobretudo na primeira palavra: "rejubila, alegra-te!". Esta é a primeira palavra que ressoa no Novo Testamento como tal, porque o anúncio feito pelo Anjo a Zacarias, acerca do nascimento de João Baptista, é uma palavra que ainda ressoa no limiar entre os dois Testamentos. Somente com este diálogo, que o anjo Gabriel tem com Maria, começa realmente o Novo Testamento. Portanto, podemos dizer que a primeira palavra do Novo Testamento é um convite à alegria: "rejubila, alegra-te!". O Novo Testamento é verdadeiramente "Evangelho", a "Boa Nova" que nos traz alegria. Deus não está distante de nós, não é desconhecido, enigmático, talvez perigoso. Deus está próximo de nós, tão próximo que se faz criança, e nós podemos tratar este Deus por "tu".

Sobretudo o mundo grego sentiu esta novidade, sentiu profundamente esta alegria, porque para eles não era claro se existia um Deus bom ou um Deus mau, ou simplesmente nenhum Deus. A religião dessa época falava-lhes de muitas divindades: por isso, sentiam-se circundados por numerosas divindades, uma em contraste com a outra, a ponto de temerem que, se fizessem algo em favor de uma delas, a outra podia ofender-se e vingar-se. E assim, viviam num mundo de medo, circundados por demónios perigosos, sem jamais saber como se salvar de tais forças, opostas entre si. Era um mundo de medo, um mundo obscuro. E então ouviram dizer: "Rejubila, estes demónios nada são, existe o Deus verdadeiro e este Deus verdadeiro é bom, ama-nos, conhece-nos, está connosco, está connosco a ponto de se ter feito homem!". Esta é a grande alegria que o cristianismo anuncia. Conhecer este Deus é verdadeiramente a "boa nova", uma palavra de redenção.

Talvez nós, católicos, que o sabemos desde sempre, não nos surpreendamos, não sintamos com vivacidade esta alegria libertadora. Mas quando olhamos para o mundo de hoje, onde Deus está ausente, devemos constatar que também ele é dominado pelos temores, pelas incertezas: é um bem ser homem, ou não? É um bem viver, ou não? É realmente um bem existir? Ou porventura tudo é negativo? E na realidade vivem num mundo obscuro, têm necessidade de anestesias para poder viver. Assim, a palavra: "rejubila, porque Deus está contigo, está connosco", é uma palavra que inaugura realmente um tempo novo. Caríssimos, com um acto de fé devemos aceitar e compreender de novo, nas profundezas do coração, esta palavra libertadora: "rejubila!".

Esta alegria que o homem recebeu, não pode conservá-la somente para si mesmo; a alegria deve ser sempre compartilhada. Uma alegria deve ser comunicada. Maria foi imediatamente transmitir a sua alegria à prima Isabel. E desde que foi elevada ao Céu, distribui alegrias pelo mundo inteiro, tornando-se a grande Consoladora; a nossa Mãe, que transmite alegria, confiança e bondade, e que nos convida, também a nós, a anunciar a alegria. Este é o verdadeiro compromisso do Advento: levar a alegria aos outros. O verdadeiro presente de Natal é a alegria, e não as prendas caras que exigem tempo e dinheiro. Nós podemos transmitir esta alegria de modo simples: com um sorriso, com um gesto bom, com uma pequena ajuda, com um perdão. Levemos esta alegria, e o júbilo distribuído voltará para nós. Em particular, procuremos transmitir a alegria mais profunda, a de ter conhecido Deus em Cristo. Oremos para que na nossa vida transpareça esta presença da alegria libertadora de Deus.

A segunda palavra que gostaria de meditar é também do Anjo: "Não tenhas medo, Maria!", diz ele. Na realidade, havia motivo para ter medo, pois como era grande o peso de carregar agora o fardo do mundo sobre si mesma, ser a mãe do Rei do Universo, ser a mãe do Filho de Deus! Um peso acima das forças de um ser humano! Mas o Anjo diz: "Não tenhas medo! Sim, tu carregas Deus, mas Deus carrega-te a ti. Não tenhas medo!". Esta palavra: "Não tenhas medo!" sem dúvida penetrou profundamente no coração de Maria. Nós podemos imaginar como, em várias situações, a Virgem voltou a reflectir esta palavra, ouvindo-a de novo. No momento em que Simeão lhe diz: "Este teu filho será um sinal de contradição, uma espada traspassará o teu coração", naquele momento em que ela podia ceder ao medo, Maria volta à palavra do Anjo e sente interiormente o eco da mesma: "Não tenhas medo, é Deus quem te carrega!". E quando, durante a vida pública, se desencadeiam as contradições ao redor de Jesus, e muitos dizem: "É louco", ela volta a pensar: "Não tenhas medo!" e prossegue em frente. Por fim, no encontro ao longo do caminho do Calvário e depois aos pés da Cruz, quando tudo parece terminado, ela volta a ouvir no coração a palavra do Anjo: "Não tenhas medo!". E assim, corajosamente, permanece ao lado do Filho moribundo e, sustentada pela fé, caminha rumo à Ressurreição, ao Pentecostes e à fundação da nova família da Igreja.

"Não tenhas medo!", Maria diz-nos, também a nós, esta palavra. Já recordei que este nosso mundo é um mundo de temores: medo da miséria e da pobreza, medo das enfermidades e dos sofrimentos, medo da solidão e medo da morte. Neste nosso mundo, temos um sistema de certezas muito desenvolvido: é bom que elas existam. Contudo, sabemos que no momento do sofrimento profundo, na hora da última solidão da morte, nenhuma certeza poderá proteger-nos. A única certeza válida em tais momentos é a aquela nos provém do Senhor, que nos diz também a nós: "Não tenhas medo, eu estou sempre contigo". Nós podemos vacilar, mas no final caímos nas mãos de Deus, e as mãos de Deus são benignas.

A terceira palavra: no fim do diálogo, Maria responde ao Anjo: "Eu sou a Serva do Senhor. Faça-se em mim, segundo a tua vontade". Assim, Maria antecipa a terceira invocação do Pai-Nosso: "Seja feita a vossa vontade". Ela diz "sim" à grande vontade de Deus, uma vontade aparentemente demasiado grande para um ser humano; Maria diz "sim" àquela vontade divina, coloca-se dentro desta vontade, insere toda a sua existência, com um grande "sim", na vontade de Deus e assim abre a porta do mundo a Deus. Adão e Eva, com o seu "não" à vontade de Deus, tinham fechado esta porta. "Seja feita a vontade de Deus": Maria convida-nos, também a nós, a pronunciar este "sim", que às vezes parece tão difícil. Somos tentados a preferir a nossa vontade, mas Ela diz-nos: "Tem coragem, também tu diz: "Seja feita a tua vontade", porque esta vontade é boa". Inicialmente, pode parecer um peso insuportável, um jugo que não é possível carregar; mas na realidade, a vontade de Deus não é um peso; a vontade de Deus concede-nos asas para voar alto, e assim com Maria também nós podemos ousar abrir a Deus a porta da nossa vida, as portas deste mundo, dizendo "sim" à sua vontade, conscientes de que esta vontade é o verdadeiro bem e nos orienta para a felicidade autêntica. Oremos a Maria Consoladora, nossa Mãe, Mãe da Igreja, para que nos infunda a coragem de pronunciar este "sim", que nos conceda também esta alegria de estar com Deus e que nos oriente rumo ao seu Filho, à Vida verdadeira. Amém!





Sábado, 24 de Dezembro de 2005: MISSA DA MEIA NOITE

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SOLENIDADE DO NATAL DO SENHOR

Basílica Vaticana


«O Senhor disse-Me: “Tu és meu filho, Eu hoje Te gerei”». Com estas palavras do Salmo segundo, a Igreja dá início à Santa Missa da vigília de Natal, na qual celebramos o nascimento do nosso Redentor Jesus Cristo no estábulo de Belém. Outrora, este Salmo pertencia ao ritual da coroação dos reis de Judá. O povo de Israel, por causa da sua eleição, sentia-se de modo particular filho de Deus, adoptado por Deus. Uma vez que o rei era a personificação daquele povo, a sua entronização era vivida como um acto solene de adopção por parte de Deus, no qual o rei ficava, de certo modo, envolvido no próprio mistério de Deus. Na noite de Belém, estas palavras, que de facto eram mais a expressão duma esperança que realidade presente, ganharam um sentido novo e inesperado. O Menino no presépio é verdadeiramente o Filho de Deus. Deus não é perene solidão, mas um círculo de amor no recíproco dar-se e um dar-se sem cessar. Ele é Pai, Filho e Espírito Santo.


Mais ainda: em Jesus Cristo, o Filho de Deus, o próprio Deus Se fez homem. É a Ele que o Pai diz: «Tu és meu filho». O hoje eterno de Deus desceu ao hoje efémero do mundo e arrasta o nosso hoje passageiro para o hoje perene de Deus. Deus é tão grande que Se pode fazer pequeno. Deus é tão poderoso que Se pode fazer inerme e vir ter connosco como menino indefeso, para que O possamos amar. Deus é tão bom que renuncia ao seu esplendor divino e desce ao estábulo para que O possamos encontrar e, assim, a sua bondade chegue também a nós, se nos comunique e continue a agir por nosso intermédio. O Natal é isto: «Tu és meu Filho, Eu hoje Te gerei». Deus tornou-Se um de nós, para que nós pudéssemos viver com Ele, tornarmo-nos semelhantes a Ele. Como próprio sinal, escolheu o Menino no presépio: Deus é assim. Deste modo, aprendemos a conhecê-Lo. E em todo o menino brilha algo da luz daquele hoje, da proximidade de Deus que devemos amar e à qual nos devemos submeter – em todo o menino, mesmo na criança ainda não nascida.

Ouçamos uma segunda palavra da liturgia desta Noite santa, tomada agora do Livro do profeta Isaías: «Para os que habitavam na terra da escuridão, uma luz começou a brilhar» (
Is 9,1). A palavra «luz» permeia toda a liturgia desta Santa Missa. Aparece um novo aceno no texto da carta de São Paulo a Tito: «Manifestou-se a graça» (Tt 2,11). A palavra «manifestou-se» diz, em língua grega e neste contexto, a mesma coisa que o hebraico exprime com as palavras «uma luz brilhou»: a «manifestação» – a «epifania» – é a irrupção da luz divina no mundo cheio de escuridão e de problemas insolúveis. Por fim, o Evangelho narra-nos que apareceu a glória de Deus aos pastores e «cercou-os de luz» (Lc 2,9). Onde aparece a glória de Deus, aí irradia a luz pelo mundo. «Deus é luz e n’Ele não há trevas», diz-nos São João (1Jn 1,5). A luz é fonte de vida.

Mas luz significa sobretudo conhecimento, significa verdade em contraposição com a escuridão da mentira e da ignorância. Deste modo, a luz faz-nos viver, indica-nos a estrada. Além disso, enquanto gera calor, a luz significa também amor. Onde há amor, levanta-se uma luz no mundo; onde há ódio, o mundo permanece na escuridão. É verdade, no estábulo de Belém, apareceu a grande luz que o mundo espera. Naquele Menino deitado na manjedoura, Deus mostra a sua glória – a glória do amor, em que Ele mesmo Se entrega em dom e Se despoja de toda a grandeza para nos conduzir pelo caminho do amor. A luz de Belém nunca mais se apagou. Ao longo de todos os séculos, envolveu homens e mulheres, «cercou-os de luz». Onde despontou a fé naquele Menino, aí desabrochou também a caridade – a bondade para com todos, a carinhosa atenção pelos débeis e os doentes, a graça do perdão. A partir de Belém, um rasto de luz, de amor, de verdade atravessa os séculos. Se olharmos os Santos – desde Paulo e Agostinho até São Francisco e São Domingos, desde Francisco Xavier e Teresa de Ávila até à Irmã Teresa de Calcutá – vemos esta corrente de bondade, este caminho de luz que se inflama, sempre de novo, no mistério de Belém, naquele Deus que Se fez Menino. Contra a violência deste mundo, Deus opõe, naquele Menino, a sua bondade e chama-nos a seguir o Menino.

Juntamente com a árvore de Natal, os nossos amigos austríacos trouxeram-nos também uma pequena chama que tinham aceso em Belém, para nos dizer: o verdadeiro mistério do Natal é o esplendor interior que irradia deste Menino. Deixemos que se comunique a nós esse esplendor interior, que acenda no nosso coração a chama da bondade de Deus; todos nós levemos, com o nosso amor, a luz ao mundo! Não deixemos que esta chama luminosa se apague por causa das correntes frias do nosso tempo! Guardemo-la fielmente e demo-la aos outros! Nesta noite, em que voltamos o nosso olhar para Belém, queremos também rezar de modo especial pelo lugar do nascimento do nosso Redentor e pelos homens que lá vivem e sofrem. Queremos rezar pela paz na Terra Santa: Olhai, Senhor, este ângulo da terra que, como pátria vossa, tanto amais! Fazei que resplandeça lá a vossa luz! Fazei que lá chegue a paz!

Com o termo «paz», chegamos à terceira palavra-mestra da liturgia desta Noite santa. Ao Menino que anuncia, Isaías chama-Lhe «Príncipe da paz». A propósito do seu reino, diz-se: «A paz não terá fim». No Evangelho, é anunciado aos pastores: «Glória a Deus nas alturas e paz na terra…». Outrora lia-se: «…aos homens de boa vontade»; na nova tradução, diz-se: «…aos homens que Ele ama». Que significa esta mudança? Deixou de ter valor a boa vontade? Ponhamos melhor a questão: Quais são os homens que Deus ama e porque é que os ama? Porventura Deus é parcial? Porventura ama apenas certas pessoas, deixando as outras entregues a si mesmas? O Evangelho responde a estas perguntas, mostrando-nos algumas pessoas concretas amadas por Deus. Há pessoas individuais – Maria, José, Isabel, Zacarias, Simeão, Ana, etc. Mas há também dois grupos de pessoas: os pastores e os sábios do Oriente, os chamados reis magos. Nesta noite, detenhamo-nos nos pastores. Que espécie de homens são eles? No seu ambiente, os pastores eram desprezados; eram considerados pouco sérios e, em tribunal, não eram admitidos como testemunhas. Mas, quem eram na realidade? Certamente não eram grandes santos, se por este termo entendemos pessoas de virtudes heróicas. Eram almas simples. O Evangelho evidencia uma característica que mais tarde, nas palavras de Jesus, havia de ter um papel importante: eram pessoas vigilantes. Isto vale primariamente em sentido exterior: de noite vigiavam, perto das suas ovelhas. Mas vale também num sentido mais profundo: estavam disponíveis à palavra de Deus. A sua vida não estava fechada em si mesma; o seu coração estava aberto. De certo modo, no mais fundo de si mesmos, estavam à espera d’Ele. A sua vigilância era disponibilidade – disponibilidade para ouvirem, disponibilidade para se porem caminho. Estavam à espera da luz que lhes indicasse o caminho. E isto é o que interessa a Deus. Ele ama a todos, porque todos são criaturas suas. Mas, algumas pessoas têm a sua alma fechada; o seu amor não encontra qualquer acesso a eles. Pensam que não têm necessidade de Deus; não O querem. Outros, que moralmente talvez sejam igualmente miseráveis e pecadores, pelo menos sofrem com isso. Estes esperam Deus. Sabem que têm necessidade da sua bondade, embora não tenham uma ideia precisa dela. No seu íntimo, aberto à expectativa, a luz de Deus pode entrar, e com ela a sua paz. Deus procura pessoas que levem e comuniquem a sua paz. Peçamos-Lhe para fazer com que não encontre fechado o nosso coração. Esforcemo-nos por nos tornarmos capazes de ser portadores activos da sua paz – precisamente no nosso tempo.

Além disso, a palavra paz assumiu entre os cristãos um significado de todo especial: tornou-se um nome para designar a Eucaristia. Nesta, está presente a paz de Cristo. Através de todos os lugares onde se celebra a Eucaristia, estende-se uma rede de paz sobre o mundo inteiro. As comunidades reunidas à volta da Eucaristia constituem um reino da paz largo como o mundo. Quando celebramos a Eucaristia, encontramo-nos em Belém, na «casa do pão». Cristo dá-Se a nós, e assim nos dá a sua paz. Dá-no-la para que levemos a luz da paz no nosso íntimo e a comuniquemos aos outros; para que nos tornemos obreiros de paz e contribuamos assim para a paz no mundo. Por isso, suplicamos: Senhor, realizai a vossa promessa! Fazei que, onde houver discórdia, nasça a paz! Fazei que desponte o amor, onde reinar o ódio! Fazei que surja a luz, onde dominarem as trevas! Fazei que nos tornemos portadores da vossa paz! Amen.




Sábado, 31 de Dezembro de 2005: PRIMEIRAS VÉSPERAS DA SOLENIDADE DE MARIA SANTÍSSIMA MÃE DE DEUS E RECITAÇÃO DO "TE DEUM"

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Caros irmãos e irmãs

No final de um ano, que para a Igreja e para o mundo foi riquíssimo de acontecimentos, ao lembrar do mandamento do Apóstolo: "Caminhai... firmes na fé... transbordando em acções de graças" (
Col 2,6-7), esta noite encontramo-nos juntos para elevar um hino de agradecimento a Deus, Senhor do tempo e da história. Meu pensamento dirige-se, com profundo e espiritual sentimento, há doze meses quando, como nesta noite, o amado Papa João Paulo II, pela última vez, se fez voz do Povo de Deus para dar graças ao Senhor pelos numerosos benefícios concedidos à Igreja e à humanidade. Na mesma sugestiva moldura da Basílica Vaticana, agora é a minha vez de recolher idealmente de todas as partes da terra o cântico de louvor e de agradecimento que se eleva a Deus, ao concluir-se o ano de 2005 e na vigília de 2006. Sim, é nosso dever, mais do que uma necessidade do coração, louvar e agradecer Àquele que, eterno, nos acompanha no tempo sem jamais nos abandonar e vigia sempre sobre a humanidade com a fidelidade do seu amor misericordioso.

Portanto, podemos dizer que a Igreja vive para louvar e agradecer a Deus. Esta mesma "acção de graças", ao longo dos séculos, é testemunha fiel de um amor que não morre, de um amor que envolve os homens de qualquer raça e cultura, disseminando de modo fecundo princípios de verdadeira vida. Como recorda o Concílio Vaticano II, "a Igreja simultaneamente ora e trabalha para que toda a humanidade se transforme em povo de Deus, Corpo do Senhor e templo do Espírito Santo e, em Cristo, cabeça de todos, se dê ao Pai e Criador de todas as coisas toda a honra e toda a glória" (Lumen gentium LG 17). Sustentada pelo Espírito Santo, ela "prossegue a sua peregrinação entre as perseguições do mundo e as consolações de Deus (Santo Agostinho, De Civitate Dei, XVIII, 51, 2), haurindo força da ajuda do Senhor. Deste modo, com paciência e com amor, supera "as aflições e dificuldades internas e externas", e revela "fielmente ao mundo, mesmo que sob a sombra dos sinais, o mistério do seu Senhor, até ao dia em que finalmente resplandecerá na plenitude da luz" (Lumen gentium LG 8). A Igreja vive de Cristo e com Cristo. Ele oferece-lhe o seu amor esponsal, guiando-a ao longo dos séculos; e ela, com a plenitude dos seus dons, acompanha o caminho do homem, para que aqueles que acolhem Cristo tenham vida e a tenham em abundância.

Esta noite, faço-me voz sobretudo da Igreja de Roma, para elevar ao Céu o cântico comum de louvor e de acção de graças. Ela, a nossa Igreja de Roma, nos doze meses transcorridos, foi visitada por muitas Igrejas e Comunidades eclesiais, para aprofundar o diálogo da verdade na caridade, que une todos os baptizados e experimentar juntas o mais vivo desejo da plena comunhão. Também muitos crentes de outras religiões quiseram testemunhar a própria estima cordial e fraterna a esta Igreja e ao seu Bispo, conscientes de que no encontro sereno e respeitoso subjaz um espírito de acção concorde a favor da humanidade inteira. E o que dizer de tantas pessoas de boa vontade que dirigiram o próprio olhar para esta Sede com a vontade de um diálogo profícuo sobre os grandes valores concernentes à verdade do homem e da vida, para a defender e promover? A Igreja quer ser sempre acolhedora, na verdade e na caridade.

No que diz respeito ao caminho da Diocese de Roma, agrada-me deter-me brevemente sobre o programa pastoral diocesano, que este ano fixou a sua atenção na família, escolhendo como tema: "Família e comunidade cristã: formação da pessoa e transmissão da fé". A família sempre esteve no centro da atenção dos meus venerados Predecessores, em particular de João Paulo II, que a ela dedicou múltiplas intervenções. Ele estava convicto, e em muitas ocasiões repetiu, que a crise da família constitui um grave dano para a nossa civilização. Precisamente para acentuar a importância da família fundada sobre o matrimónio na vida da Igreja e da sociedade, também eu quis oferecer a minha contribuição intervindo, na tarde de 6 de Junho passado, no Congresso diocesano de São João de Latrão. Estou feliz porque o programa da Diocese está a desenvolver-se positivamente com uma minuciosa acção apostólica, que é realizada nas paróquias, nas prefeituras e nas várias agregações eclesiais. Permita o Senhor que o esforço comum conduza a uma renovação autêntica das famílias cristãs. Aproveito a ocasião para saudar os representantes da Comunidade religiosa e civil de Roma presentes nesta celebração de fim de ano. Em primeiro lugar saúdo o Cardeal Vigário, os Bispos Auxiliares, os sacerdotes, os religiosos e os fiéis leigos provenientes das várias paróquias; saúdo também o Presidente da Câmara Municipal da Cidade e as demais Autoridades. Estendo o meu pensamento à inteira comunidade romana, da qual o Senhor me chamou para ser Pastor, e renovo a todos a expressão da minha proximidade espiritual.

No início desta celebração, iluminados pela Palavra de Deus, cantámos juntos com fé o "Te Deum". São muitos os motivos que tornam intensa a nossa acção de graças, fazendo dela uma oração coral. Enquanto consideramos os múltiplos acontecimentos que assinalaram o decurso dos meses neste ano que se está a concluir, quero lembrar de modo especial quem se encontra em dificuldade: as pessoas mais pobres e abandonadas, quantos perderam a esperança num fundado sentido da própria existência, ou são vítimas involuntárias de interesses egoístas, sem que se lhes peça a adesão ou opinião. Fazendo nossos os seus sofrimentos, confiemos-las a Deus, que sabe dirigir todas as coisas para o bem; a Ele entreguemos a nossa aspiração para que cada pessoa seja acolhida na própria dignidade de filho de Deus. Ao Senhor da vida peçamos para aliviar com a sua graça as penas provocadas pelo mal e para continuar a dar vigor à nossa existência terrena, doando-nos o Pão e o Vinho da salvação, para sustentar o nosso caminho rumo à pátria do Céu.

Ao despedirmo-nos do ano que se encerra e encaminharmo-nos para o novo, a liturgia destas primeiras Vésperas introduz-nos na festa de Maria, Mãe de Deus, Theotókos. A oito dias do nascimento de Jesus, celebramos Aquela que "quando chegou a plenitude do tempo" (Ga 4,4) foi escolhida por Deus para ser a Mãe do Salvador. Mãe é quem dá a vida, mas também quem ajuda e ensina a viver. Maria é Mãe, Mãe de Jesus, a quem deu o seu sangue, o seu corpo. E é ela que nos apresenta o Verbo eterno do Pai, que veio habitar no meio de nós. Peçamos a Maria que interceda por nós. A sua materna protecção nos acompanhe hoje e sempre, para que Cristo nos acolha um dia na sua glória, na assembleia dos Santos: Aeterna fac cum sanctis tuis in gloria numerari.

Amém!




Domingo, 1° de Janeiro de 2006: FESTA DA MÃE DE DEUS E XXXIX DIA MUNDIAL DA PAZ

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Amados irmãos e irmãs

Na hodierna liturgia o nosso olhar continua a voltar-se para o grande mistério da encarnação do Filho de Deus enquanto, com particular ênfase, contemplamos a maternidade da Virgem Maria. No trecho paulino que ouvimos (cf.
Ga 4,4), o Apóstolo refere-se de maneira muito discreta àquela, mediante a qual o Filho de Deus entra no mundo: Maria de Nazaré, a Mãe de Deus, a Theotokos. No início de um novo ano, somos como que convidados a colocarmo-nos na sua escola, na escola da discípula fiel do Senhor, para que Ela nos ensine a acolher na fé e na oração a salvação que Deus deseja derramar sobre quantos confiam no seu amor misericordioso.

A salvação é um dom de Deus; na primeira leitura, ela foi-nos apresentada como bênção: "Que o Senhor te abençoe e proteja... te mostre o seu rosto e te conceda a paz" (Nb 6,24 Nb 6,26). Aqui, trata-se da bênção que os sacerdotes costumavam invocar sobre o povo no final das grandes solenidades litúrgicas, particularmente na festa do ano novo. Encontramo-nos na presença de um texto muito significativo, cadenciado pelo nome do Senhor, que se repete no início de cada versículo. Um texto que não se limita a uma simples enunciação de princípio, mas tende a realizar aquilo que afirma. Como se sabe, no pensamento semítico a bênção do Senhor produz, pela sua própria força, o bem-estar e a salvação, do mesmo modo como a maldição dá lugar à desgraça e à ruína. Além disso, a eficácia da bênção é concretizada de maneira mais específica por parte de Deus que nos protege (cf. Nb 6,24), que nos é propício (cf. Nb 6,25) e que nos concede a paz, ou seja, que nos oferece a abundância da felicidade.

Fazendo-nos ouvir esta antiga bênção, no início de um novo ano solar, é como se a liturgia quisesse encorajar-nos a invocar, por nossa vez, a bênção do Senhor sobre o novo ano, que dá os seus primeiros passos, a fim de que ele seja para todos nós um ano de prosperidade e de paz. E é precisamente estes bons votos que gostaria de dirigir aos ilustres Embaixadores do Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé, que participam na hodierna celebração litúrgica. Saúdo o Cardeal Angelo Sodano, meu Secretário de Estado. Juntamente com ele, saúdo o Cardeal Renato Raffaele Martino e todos os componentes do Pontifício Conselho "Justiça e Paz". Estou-lhes particularmente reconhecido pelo compromisso que têm assumido na difusão da Mensagem anual para o Dia Mundial da Paz, endereçada aos cristãos e a todos os homens e mulheres de boa vontade. Dirijo uma saudação especial também aos numerosos pueri cantores que, com o seu canto, tornam ainda mais solene esta Santa Missa, mediante a qual invocamos de Deus a dádiva da paz para o mundo inteiro.

Quando escolhi para a Mensagem do presente Dia Mundial da Paz o tema: "Na verdade, a paz", desejei manifestar a convicção de que "sempre que o homem se deixa iluminar pelo esplendor da verdade, empreende quase naturalmente o caminho da paz" (n. 3). Como deixar de ver uma realização eficaz e apropriada disto no trecho evangélico que acaba de ser proclamado, onde pudemos contemplar a cena dos pastores a caminho rumo a Belém, para adorar o Menino (cf. Lc 2,16)? Não são acaso aqueles pastores, que o evangelista Lucas nos descreve na sua pobreza e na sua simplicidade, obedientes ao mandato do anjo e dóceis à vontade de Deus, a imagem mais facilmente acessível a cada um de nós, do homem que se deixa iluminar pela verdade, tornando-se assim capaz de construir um mundo de paz?

A paz! Esta grande aspiração do coração de cada homem e de cada mulher edifica-se dia após dia com a contribuição de todos, valorizando também a admirável herança que nos foi legada pelo Concílio Vaticano II, com a Constituição pastoral Gaudium et spes, em que se afirma, entre outras coisas, que a humanidade não conseguirá "edificar em toda a parte um mundo verdadeiramente mais humano para todos os homens, se todos não se orientarem, com espírito renovado, para a verdadeira paz" (GS 77). O momento histórico em que a Constituição Gaudium et spes foi promulgada, no dia 7 de Dezembro de 1965, não era muito diferente do nosso; nessa época, como infelizmente também nos dias de hoje, no horizonte mundial delineavam-se tensões de vários tipos.

Diante da persistência de situações de injustiça e de violência, que continuam a oprimir várias regiões da terra, diante daquelas que se apresentam como as novas e mais insidiosas ameaças à paz o terrorismo, o niilismo e o fundamentalismo fanático torna-se mais necessário do que nunca trabalhar em conjunto pela paz!

É preciso um "sobressalto" de coragem e de confiança em Deus e no homem, para escolher percorrer o caminho da paz. E isto por parte de todos: cada indivíduo e cada povo, as organizações internacionais e as potências mundiais. Em particular, desejei exortar a Organização das Nações Unidas a tomar uma renovada consciência das suas responsabilidades na promoção dos valores da justiça, da solidariedade e da paz, num mundo cada vez mais assinalado pelo vasto fenómeno da globalização. Se a paz é a aspiração de cada pessoa de boa vontade, para os discípulos de Cristo ela representa um mandato permanente que a todos compromete; é uma missão exigente que os impele a anunciar e a dar testemunho do "Evangelho da Paz", proclamando que o reconhecimento da plena verdade de Deus constitui a condição prévia e indispensável para a consolidação da verdade da paz. Possa esta consciência aumentar cada vez mais, de tal maneira que cada comunidade cristã consiga tornar-se "fermento" de uma humanidade renovada no amor.

"Maria, porém, conservava todos estes factos e meditava sobre eles no seu coração" (Lc 2,19). O primeiro dia do ano é colocado sob o sinal de uma mulher, Maria. O Evangelista Lucas descreve-a como a Virgem silenciosa, constantemente à escuta da palavra eterna, que vive na Palavra de Deus. Maria conserva no seu coração as palavras que provêm de Deus e, unindo-as como num mosaico, aprende a compreendê-las. Na sua escola, também nós queremos aprender a tornar-nos atentos e dóceis discípulos do Senhor. Com a sua ajuda maternal, desejamos comprometer-nos a trabalhar alacremente na "construção" da paz, na esteira de Cristo, Príncipe da Paz. Seguindo o exemplo da Virgem Santa, queremos deixar-nos orientar sempre e unicamente por Jesus Cristo, que é o mesmo ontem, hoje e para sempre (cf. He 13,8).

Amém!





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