Bento XVI Homilias 10106


Sexta-feira, 6 de Janeiro de 2006: POR OCASIÃO DA SANTA MISSA NA SOLENIDADE DA EPIFANIA

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Amados irmãos e irmãs!

A luz que no Natal brilhou na noite iluminando a gruta de Belém, onde permanecem em silenciosa adoração Maria, José e os pastores, resplandece hoje e manifesta-se a todos. A Epifania é mistério de luz, simbolicamente indicada pela estrela que guiou a viagem dos Magos. Mas a verdadeira fonte luminosa, "que das alturas nos visita como sol nascente" (
Lc 1,78), é Cristo. No mistério do Natal, a luz de Cristo irradia-se sobre a terra, difundindo-se como círculos concêntricos. Antes de tudo sobre a Sagrada Família de Nazaré: a Virgem Maria e José são iluminados pela presença divina do Menino Jesus. A luz do Redentor manifesta-se depois aos pastores de Belém, os quais, avisados pelo anjo, vão imediatamente à gruta e nela encontram o "sinal" que lhes fora preanunciado: um menino envolvido em panos e colocado numa manjedoura (cf. Lc 2,12). Os pastores, juntamente com Maria e José, representam aquele "resto de Israel", os pobres, os anawim, aos quais é anunciada a Boa Nova. O esplendor de Cristo, por fim, atinge os Magos, que constituem as primícias dos povos pagãos. Permanecem na penumbra os palácios do poder de Jerusalém, onde a notícia do nascimento do Messias é levada paradoxalmente pelos Magos, e não suscita alegria, mas temor e reacções hostis. Misterioso desígnio divino: "a Luz veio ao mundo, e os homens preferiram as trevas à Luz, porque as suas obras eram más" (Jn 3,1)).

Mas o que é esta luz? É apenas uma sugestiva metáfora, ou a imagem corresponde a uma realidade? O apóstolo João escreve na sua Primeira Carta: "Deus é luz e n'Ele não há trevas" (1Jn 1,5); e mais adiante acrescenta: "Deus é amor". Estas duas afirmações, colocadas juntas, ajudam-nos a compreender melhor: a luz, que surgiu no Natal, que hoje se manifesta aos povos, é o amor de Deus, revelado na Pessoa do Verbo encarnado. Portanto, os Magos do Oriente são atraídos por esta luz. No mistério da Epifania, ao lado de um movimento de irradiação para o exterior, manifesta-se um movimento de atracção para o centro, que leva a cumprimento o movimento já inscrito na Antiga Aliança. A fonte deste dinamismo é Deus, Uno na substância e Trino nas Pessoas, que atrai a si tudo e todos. A Pessoa encarnada do verbo apresenta-se assim como princípio de reconciliação e de recapitulação universal (cf. Ep 1,9-10). Ele é a meta final da história, o ponto de chegada de um "êxodo", de um caminho providencial de redenção, que culmina na sua morte e ressurreição. Por isso, na solenidade da Epifania, a liturgia prevê o chamado "Anúncio da Páscoa": o ano litúrgico, de facto, resume toda a parábola da história da salvação, em cujo centro está "o Tríduo do Senhor crucificado, sepultado e ressuscitado".

Na liturgia do Tempo do Natal recorre com frequência, como refrão, este versículo do Salmo 97: "O Senhor anunciou a sua vitória, revelou aos povos a sua justiça" (Ps 97,2). São palavras que a Igreja usa para realçar a dimensão "epifânica" da Encarnação: fazer-se o Filho de Deus, o seu entrar na história é um momento culminante da auto-revelação de Deus a Israel e a todos os povos. No Menino de Belém, Deus revelou-se na humildade da "forma humana", na "condição de servo", aliás de crucificado (cf. Ph 2,6-8). É o paradoxo cristão. Precisamente este escondimento constitui a mais eloquente "manifestação" de Deus: a humildade, a pobreza, a mesma ignomínia da Paixão fazem-nos conhecer como Deus é verdadeiramente. O rosto do Filho revela fielmente o do Pai. Eis por que o mistério do Natal é, por assim dizer, uma total "epifania". A manifestação aos Magos não acrescenta algo de alheio ao desígnio de Deus, mas revela uma sua dimensão perene e constitutiva, isto é, que "os gentios são admitidos à mesma herança, membros do mesmo Corpo e participantes da mesma promessa, em Cristo Jesus, por meio do Evangelho" (Ep 3,6).

A um olhar superficial a fidelidade de Deus a Israel e a sua manifestação aos povos poderiam parecer aspectos entre si divergentes; na realidade, são as duas faces da mesma medalha. De facto, segundo as Escrituras, é precisamente permanecendo fiel ao pacto de amor com o povo de Israel que Deus revela a sua glória também aos outros povos. "Graça e fidelidade" (Ps 88,2); "misericórdia e verdade" (Ps 84,11) são o conteúdo da glória de Deus, são o seu "nome", destinado a ser conhecido e santificado pelos homens de todas as línguas e nações. Mas este "conteúdo" é inseparável do "método" que Deus escolheu para se revelar, isto é, o da fidelidade absoluta à aliança, que alcança o seu auge em Cristo. O Senhor Jesus é, ao mesmo tempo e inseparavelmente, "Luz para se revelar às nações e glória de Israel, teu povo" (Lc 2,32), como, inspirado por Deus, exclamará o idoso Simeão apertando o menino entre os braços, quando os pais o apresentarão no templo. A luz que ilumina os povos a luz da Epifania provém da glória de Israel a glória do Messias nascido, segundo as Escrituras, em Belém, "cidade de Davide" (Lc 2,4).

Os Magos adoraram um simples Menino nos braços da Mãe Maria, porque reconheceram n'Ele a fonte da dupla luz que os tinha guiado: a luz da estrela e a luz das Escrituras. Reconheceram n'Ele o Rei dos Judeus, glória de Israel, mas também o Rei de todas as nações.

No contexto litúrgico da Epifania manifesta-se também o mistério da Igreja e a sua dimensão missionária. Ela está chamada a fazer resplandecer no mundo a luz de Cristo, reflectindo-a em si mesma como a lua reflecte a luz do sol. Na Igreja tiveram cumprimento as antigas profecias relativas à cidade santa de Jerusalém, como aquela maravilhosa de Isaías que ouvimos há pouco: "Levanta-te, resplandece, Jerusalém, que está a chegar a tua luz... As nações caminharão à tua luz, e os reis ao esplendor da tua aurora" (Is 60,1-3). É isto que os discípulos de Cristo deverão realizar: ensinados por Ele a viver no estilo das Bem-Aventuranças, deverão atrair, mediante o testemunho do amor, todos os homens para Deus: "Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, de modo que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai, que está no Céu" (Mt 5,16). Ao ouvir estas palavras de Jesus, nós, membros da Igreja, não podemos deixar de sentir toda a insuficiência da nossa condição humana, marcada pelo pecado. A Igreja é santa, mas formada por homens e mulheres com os seus limites e erros. É Cristo, só Ele, que ao conceder-nos o Espírito Santo pode transformar a nossa miséria e renovar-nos constantemente. É Ele a luz dos povos, lumen gentium, que escolheu iluminar o mundo mediante a sua Igreja (cf. Conc. Vat. II, Const. Lumen gentium LG 1).

"Como poderá acontecer isto?", interrogamo-nos também nós com as palavras que a Virgem dirigiu ao arcanjo Gabriel. E precisamente ela, a Mãe de Cristo e da Igreja, nos oferece a resposta: com o seu exemplo de total disponibilidade à vontade de Deus "fiat mihi secundum verbum tuum" (Lc 1,38) ela ensina-nos a ser "epifania" do Senhor, na abertura do coração à força da graça e na adesão fiel à palavra do seu Filho, luz do mundo e meta final da história.

Assim seja!





8 de Janeiro de 2006: NA FESTA DO BAPTISMO DO SENHOR

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Capela Sistina

Queridos pais

padrinhos e madrinhas!
Amados irmãos e irmãs!

O que acontece no Baptismo? O que esperamos do Baptismo? Vós destes uma resposta à entrada nesta Capela: esperamos para os nossos filhos a vida eterna. É esta a finalidade do Baptismo. Mas como pode ser realizado? Como pode o Baptismo dar a vida eterna? O que é a vida eterna?

Poder-se-ia dizer com palavras mais simples: esperamos para estas nossas crianças uma vida boa; a vida verdadeira; a felicidade também num futuro ainda desconhecido. Nós não somos capazes de garantir este dom durante todo o tempo futuro desconhecido e, por isso, dirigimo-nos ao Senhor para obter dele este dom.

À pergunta: "Como acontecerá isto?" podemos dar duas respostas. A primeira: no Baptismo cada criança é inserida numa companhia de amigos que nunca a abandonará na vida nem na morte, porque esta companhia de amigos é a família de Deus, que tem em si a promessa da eternidade.

Esta companhia de amigos, esta família de Deus, na qual agora a criança é inserida, acompanhá-la-á sempre, também nos dias de sofrimento, nas noites escuras da vida; dar-lhe-á consolo, conforto e luz. Esta companhia, esta família dar-lhe-á palavras de vida eterna. Palavras de luz que respondem aos grandes desafios da vida e dão a indicação justa sobre o caminho a empreender. Esta companhia oferece à criança consolo e conforto, o amor de Deus também no limiar da morte, no vale escuro da morte. Dar-lhe-á amizade, vida. E esta companhia, absolutamente fiável, nunca desaparecerá. Ninguém sabe o que acontecerá no nosso planeta, na nossa Europa, nos próximos cinquenta, sessenta, setenta anos. Mas, sobre um ponto temos a certeza: a família de Deus estará sempre presente e quem pertence a esta família nunca ficará só, terá sempre a amizade certa d'Aquele que é a vida.

E assim chegamos à segunda resposta. Esta família de Deus, esta companhia de amigos é eterna, porque é comunhão com Aquele que venceu a morte, que tem nas mãos as chaves da vida. Estar na companhia, na família de Deus, significa estar em comunhão com Cristo, que é vida e dá amor eterno além da morte. E se podemos dizer que amor e verdade são fontes de vida, são a vida e uma vida sem amor não é vida podemos dizer que esta companhia com Aquele que é vida realmente, com Aquele que é o Sacramento da vida, responderá à vossa expectativa, à vossa esperança.

Sim, o Baptismo insere na comunhão com Cristo e assim dá vida, a vida. Interpretamos desse modo o primeiro diálogo que tivemos aqui, na entrada da Capela Sistina. Agora, depois da bênção da água, seguir-se-á um segundo diálogo de grande importância. O conteúdo é este: o Baptismo como vimos é um dom; o dom da vida. Mas um dom deve ser acolhido, deve ser vivido. Um dom de amizade exige um "sim" ao amigo e um "não" a tudo o que não for compatível com esta amizade, a tudo o que não está em sintonia com a vida da família de Deus, com a verdadeira vida em Cristo. E assim, neste segundo diálogo, o "não" e o "sim" são pronunciados três vezes. Diz-se "não" e renuncia-se às tentações, ao pecado, ao diabo. Conhecemos bem estas coisas, mas talvez porque as ouvimos demasiadas vezes, estas palavras não nos dizem muito. Então devemos aprofundar um pouco os conteúdos destes "não". A que dizemos "não"? Só assim podemos compreender ao que desejamos dizer "sim".

Na Igreja antiga estes "não" eram resumidos numa palavra que para os homens daquele tempo era muito compreensível: renuncia-se assim se dizia à "pompa diabuli", isto é, à promessa da vida na abundância, daquela aparência de vida que parecia vir do mundo pagão, das suas liberdades, do seu modo de viver apenas segundo o que agradava. Por conseguinte, era um "não" a uma cultura aparentemente de abundância da vida, mas que na realidade era uma "anticultura" da morte. Era o "não" aos espectáculos onde a morte, a crueldade, a violência se tinham tornado divertimento.

Pensemos no que acontecia no Coliseu ou aqui, nos jardins de Nero, onde os homens eram acendidos como tochas vivas. A crueldade e a violência tinham-se tornado um motivo de divertimento, uma verdadeira perversão da alegria, do verdadeiro sentido da vida. Esta "pompa diabuli", esta "anticultura" da morte era uma perversão da alegria, era amor à mentira, ao engano, era abuso do corpo como mercadoria e como comércio.

E se agora reflectimos, podemos dizer que também no nosso tempo é necessário dizer "não" à cultura amplamente dominante da morte. Uma "anticultura" que se manifesta, por exemplo, na droga, na fuga do real para o ilusório, para uma felicidade falsa que se expressa na mentira, no engano, na injustiça, no desprezo do próximo, da solidariedade, da responsabilidade pelos pobres e pelos que sofrem; que se exprime numa sexualidade que se torna puro divertimento sem responsabilidade, que se torna uma "coisificação" por assim dizer do homem, que já não é considerado pessoa, digno de um amor pessoal que exige fidelidade, mas se torna mercadoria, um mero objecto. A esta promessa de aparente felicidade, a esta "pompa" de uma vida aparente que na realidade é apenas instrumento de morte, a esta "anticultura" dizemos "não", para cultivar a cultura da vida. Por isso o "sim" cristão, dos tempos antigos até hoje, é um grande "sim" à vida. Este é o nosso "sim" a Cristo, o "sim" ao vencedor da morte e o "sim" à vida no tempo e na eternidade.

Assim como naquele diálogo baptismal o "não" se desenvolve em três renúncias, também o "sim" se desenvolve em três decisões: "sim" ao Deus vivo, isto é, a um Deus criador, a uma razão criadora que dá sentido à criação e à nossa vida; "sim" a Cristo, ou seja, a um Deus que não permaneceu escondido mas que tem um nome, que tem palavras, corpo e sangue; a um Deus concreto que nos dá a vida e nos mostra o caminho da vida; "sim" à comunhão da Igreja, na qual Cristo é o Deus vivo, que entra no nosso tempo, entra na nossa profissão, entra na vida de todos os dias.

Também poderíamos dizer que o rosto de Deus, o conteúdo desta cultura da vida, o conteúdo do nosso grande "sim", se expressa nos dez Mandamentos, que não são um pacote de proibições, de "não", mas na realidade apresentam uma grande visão de vida. São um "sim" à família (quarto mandamento); "sim" à vida (quinto mandamento); "sim" ao amor responsável (sexto mandamento); "sim" à solidariedade, à responsabilidade social, à justiça (séptimo mandamento); "sim" à verdade (oitavo mandamento), "sim" ao respeito do próximo e do que lhe é próprio (nono e décimo mandamentos). É esta a filosofia da vida, a cultura da vida, que se torna concreta, praticável e bela na comunhão com Cristo, o Deus vivo, que caminha connosco na companhia dos seus amigos, na grande família da Igreja. O Baptismo é dom de vida. É um "sim" ao desafio de viver verdadeiramente a vida, dizendo "não" ao ataque da morte que se apresenta com a máscara da vida; e é "sim" ao grande dom da verdadeira vida, que se fez presente no rosto de Cristo, o qual se doa a nós no Baptismo e depois na Eucaristia.

Disse isto no breve comentário às palavras que no diálogo baptismal interpretam o que se realiza neste Sacramento. Além das palavras, temos os gestos e os símbolos, mas farei deles um breve elenco. O primeiro gesto já o realizámos: é o sinal da cruz, que nos é dado como escudo que deve proteger este menino na sua vida; é como um "indicador" para o caminho da vida, porque a cruz é o resumo da vida de Jesus. Depois há os elementos: a água, a unção com o óleo, as vestes brancas e a chama da candeia. A água é o símbolo da vida: o Baptismo é vida nova em Cristo. O óleo é o símbolo da força, da saúde, da beleza, porque é realmente belo viver em comunhão com Cristo.

Depois a veste branca, como expressão da cultura da beleza, da cultura da vida. E por fim a chama da candeia, como expressão da verdade que resplandece nas obscuridades da história e nos indica quem somos, de onde provimos e para onde devemos ir.

Queridos padrinhos e madrinhas, queridos pais e irmãos, agradeçamos neste dia ao Senhor, porque Deus não se esconde atrás das nuvens do mistério impenetrável, mas, como disse o Evangelho de hoje, abriu os céus, mostrou-se, fala connosco e está connosco; vive connosco e guia-nos na nossa vida. Agradeçamos ao Senhor por este dom e rezemos pelas nossas crianças, para que tenham realmente a vida, a verdadeira, a vida eterna. Amém.



Quarta-feira, 25 de Janeiro de 2006: POR OCASIÃO DO ENCERRAMENTO DA SEMANA DE ORAÇÃO PELA UNIDADE DOS CRISTÃOS

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Basílica de São Paulo fora dos Muros




Queridos irmãos e irmãs!

Neste dia, no qual se celebra a conversão do Apóstolo Paulo, concluímos, reunidos em fraterna assembleia litúrgica, a anual Semana de oração pela unidade dos cristãos. É significativo que a memória da conversão do Apóstolo das Nações coincida com o último dia desta importante Semana, na qual com particular intensidade pedimos a Deus o dom precioso da unidade entre todos os cristãos, fazendo nossa a invocação que o próprio Jesus elevou ao Pai pelos seus discípulos: "para que todos sejam um só. Como tu, Pai, estás em Mim e Eu em Ti, para que assim eles estejam em Nós e o mundo creia que Tu me enviaste" (
Jn 17,21). A aspiração de cada Comunidade cristã e de cada fiel à unidade e a força para a realizar são um dom do Espírito Santo e caminham juntas com uma fidelidade ao Evangelho cada vez mais profunda e radical (cf. Enc. Ut unum sint UUS 15). Damo-nos conta de que na base do compromisso ecuménico está a conversão do coração, como afirma claramente o Concílio Vaticano II: "Não há verdadeiro ecumenismo sem conversão interior. É que os anseios de unidade nascem e amadurecem a partir da renovação da mente, da abnegação de si mesmo e da libérrima efusão da caridade" (Decr. Unitatis redintegratio UR 7).

Deus caritas est (1Jn 4,8 1Jn 4,16), Deus é amor. Sobre esta sólida rocha apoia-se a inteira fé da Igreja. Em particular, baseia-se nela a paciente busca da plena comunhão entre todos os discípulos de Cristo: ao fixar o olhar nesta verdade, ápice da divina revelação, as divisões, embora mantendo a sua dolorosa gravidade, parecem superáveis e não nos desencorajam. O Senhor Jesus, que com o sangue da sua Paixão abateu o "muro da separação" da "inimizade" (Ep 2,14), não deixará de conceder a quantos o invocam com fé a força para cicatrizar todas as dilacerações. Contudo, é preciso partir sempre deste ponto: Deus caritas est. Quis dedicar a minha primeira Encíclica ao tema do amor, a qual foi publicada precisamente hoje e esta feliz coincidência com a conclusão da Semana de oração pela unidade dos cristãos convida-nos a considerar este nosso encontro, mas também muito mais adiante, todo o caminho ecuménico na luz do amor de Deus, do Amor que é Deus. Se já sob o perfil humano o amor se manifesta como uma força invencível, o que devemos dizer nós que "conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele" (1Jn 4,16)? O verdadeiro amor não anula as legítimas diferenças, mas harmoniza-as numa unidade superior, que não é imposta do exterior, mas que do interior dá forma, por assim dizer, ao conjunto. É o mistério da comunhão, que assim como une o homem e a mulher naquela comunidade de amor e de vida que é o matrimónio, assim forma a Igreja qual comunidade de amor, compondo em unidade uma multiforme riqueza de dons, de tradições. A Igreja de Roma está ao serviço desta unidade de amor que, segundo a expressão de Santo Inácio de Antioquia, "preside à caridade" (Ad Rom 1, 1). Diante de vós, queridos irmãos e irmãs, desejo hoje renovar a entrega a Deus do meu peculiar ministério petrino, invocando sobre ele a luz e a força do Espírito Santo, a fim de que favoreça cada vez mais a fraterna comunhão entre todos os cristãos.

O tema do amor liga em profundidade as duas breves leituras bíblicas da hodierna liturgia vespertina. Na primeira, a caridade divina é a força que transforma a vida de Saulo de Tarso e faz dele o Apóstolo das Nações. Ao escrever aos cristãos de Corinto, São Paulo confessa que a graça de Deus operou nele o acontecimento extraordinário da conversão: "Pela graça de Deus, sou o que sou e a graça que me foi concedida, não foi estéril" (1Co 15,10). Por um lado, sente que foi um obstáculo à difusão da mensagem de Cristo, mas ao mesmo tempo vive na alegria de ter encontrado o Senhor ressuscitado e de ter sido iluminado e transformado pela sua luz. Ele conserva uma constante memória daquele acontecimento que mudou a sua existência, acontecimento tão importante para a Igreja inteira que nos Actos dos Apóstolos a ele se faz referência três vezes (cf. Ac 9,3-9 Ac 22,6-11 Ac 26,12-18). No caminho de Damasco, Saulo ouviu a inquietante pergunta: "Porque me persegues?". Caindo ao chão e perturbado interiormente, perguntou: "Quem és Tu, Senhor?", obtendo aquela resposta que está na base da sua conversão: "Eu sou Jesus, a quem tu persegues" (Ac 9,4-5). Paulo compreendeu num instante o que teria expressado depois nos seus escritos, que a Igreja forma um corpo único, do qual Cristo é a Cabeça. Assim de perseguidor dos cristãos tornou-se o Apóstolo das Nações. No trecho evangélico de Mateus, que ouvimos há pouco, o amor age como princípio que une os cristãos e faz com que a sua oração unânime seja ouvida pelo Pai celeste. Jesus diz: "Se dois de entre vós se unirem, na Terra, para pedir qualquer coisa, hão-de obtê-la de meu Pai que está no céu" (Mt 18,19). O verbo que o evangelista usa para "se unirem" é synphonesosin: há a referencia a uma "sinfonia" dos corações. É isto que atrai o coração de Deus. Por conseguinte, a sintonia na oração manifesta-se importante para as finalidades do seu acolhimento por parte do Pai celeste. Pedir juntos já assinala um passo rumo à unidade entre os que pedem. Isto certamente não significa que a resposta de Deus seja de qualquer forma determinada pelo nosso pedido. Sabemo-lo bem: a desejada consecução da unidade depende em primeiro lugar da vontade de Deus, cujo desígnio e generosidade superam a compreensão do homem e as suas expectativas pedidas e aguardadas. Contando precisamente com a bondade divina, intensificamos a nossa oração comum pela unidade, que é um meio necessário e eficaz como nunca, como recordou João Paulo II na Enciclica Ut unum sint. "No caminho ecuménico para a unidade, a primazia pertence, sem dúvida, à oração comum, à união orante daqueles que se consagram à volta do próprio Cristo" (UUS 22).

Analisando depois mais profundamente estes versículos evangélicos, compreendemos melhor a razão pela qual o pai responderá positivamente ao pedido da comunidade crista: "Pois diz Jesus onde dois ou três estiverem reunidos em Meu nome, Eu estou no meio deles". É a presença de Cristo que torna eficaz a oração comum de quantos estão reunidos no seu nome. Quando os cristãos se congregam para rezar, o próprio Jesus está no meio deles. Eles são um com Aquele que é o único mediador entre Deus e os homens. A Constituição sobre a Sagrada Liturgia do Concilio Vaticano II refere-se precisamente a este trecho do Evangelho para indicar uma das formas da presença de Cristo: "está presente, enfim, quando a Igreja reza e canta, Ele que prometeu: "Onde estiverem dois ou tres reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles" (Mt 18, 20" (Sacrosanctum concilium SC 7). Ao comentar este texto do evangelista Mateus, São João Crisóstomo interroga-se: "Pois bem, não existem dois ou três que se reúnem no seu nome?

Existem responde ele mas raramente" (Homilias sobre o Evangelho de MT, 60,3). Esta tarde, sinto uma alegria imensa por ver uma assembleia tão numerosa em oração, que implora de maneira "sinfónica" o dom da unidade. Dirijo a todos e a cada um a minha cordial saudação. Saúdo com afecto particular os irmãos das outras Igrejas e Comunidades eclesiais desta Cidade, unidos no único baptismo, que nos torna membros do único Corpo místico de Cristo. Acabaram de transcorrer 40 anos desde quando, precisamente nesta Basílica, a 5 de Dezembro de 1965, o Servo de Deus Paulo VI, de feliz memória, celebrou a primeira oração comum, na conclusão do Concilio Vaticano II, com a solene presença dos Padres conciliares e com a participação activa dos Observadores das outras Igrejas e Comunidades eclesiais. Em seguida, o amado João Paulo II prosseguiu com perseverança a tradição de concluir aqui a Semana de oração. Tenho a certeza de que esta tarde os dois olham para nós do Céu e se unem à nossa oração.

Entre os que participam desta nossa assembleia desejaria saudar e agradecer de modo especial o grupo dos delegados de Igrejas, de Conferencias Episcopais, de Comunidades cristas e de órgãos ecuménicos que iniciam a preparação da Terceira Assembleia Ecuménica Europeia, programada para Sebiu, na Roménia, em Setembro de 2007, sobre o tema: "A luz de Cristo a todos ilumina. Esperança de renovação e unidade na Europa". Sim, queridos irmãos e irmãs, nós cristãos temos a tarefa de ser, na Europa e entre todos os povos, "luz do mundo" (Mt 5,14). Queira Deus conceder que alcancemos depressa a desejada plena comunhão. A recomposição da nossa unidade dará maior eficiência à evangelização. A unidade é a nossa missão comum; é a condição para que a luz de Cristo se difunda mais eficazmente em todas as partes do mundo e os homens se convertam e sejam salvos. Quanto caminho temos à nossa frente! Mas não percamos a confiança, aliás retomemos o caminho juntos com mais entusiasmo. Cristo precede-nos e acompanha-nos. Nós prosseguimos atrás da sua presença indefectível; d'Ele imploramos humilde e incansavelmente o precioso dom da unidade e da paz.



Domingo, 5 de Fevereiro de 2006: DURANTE A VISITA À PARÓQUIA DE SANTA ANA NO VATICANO

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Queridos irmãos e irmãs!

O Evangelho que agora ouvimos (
Mc 1,29-39) começa com um episódio muito simpático, muito bonito mas também cheio de significado. O Senhor vai à casa de Simão Pedro e André e encontra a sogra de Pedro doente com febre; toma-a pela mão, ajuda-a a levantar-se e a mulher está curada e começa a servir. Neste episódio sobressai simbolicamente toda a missão de Jesus. Jesus vindo do Pai vai à casa da humanidade, na nossa terra, e encontra uma humanidade doente, doente com febre, com aquela febre que são as ideologias, as idolatrias, o esquecimento de Deus. O Senhor dá-nos a sua mão, levanta-nos e cura-nos. E faz isto em todos os séculos; pega-nos pela mão com a sua palavra, e assim dissipa a obscuridade das ideologias, das idolatrias. Toma a nossa mão nos sacramentos, cura-nos da febre das nossas paixões e dos nossos pecados mediante a absolvição no sacramento da reconciliação. Dá-nos a capacidade de nos erguermos, de estarmos de pé diante de Deus e diante dos homens. E precisamente com este conteúdo da liturgia dominical o Senhor encontra-se connosco, guia-nos pela mão, eleva-nos e cura-nos sempre de novo com o dom da sua palavra, com o dom de si mesmo.

Mas também a segunda parte deste episódio é importante, esta mulher curada naquele momento põe-se a servi-los, diz o Evangelho. Começa imediatamente a trabalhar, a estar à disposição dos outros, e assim torna-se representação de tantas boas mulheres, mães, avós, mulheres nas diversas profissões, que estão disponíveis, se levantam e servem, e são a alma da família, a alma da paróquia. E aqui, olhando para a pintura em cima do altar, vemos que não fazem só serviços exteriores, santa Ana introduz a grande filha, Nossa Senhora, nas Sagradas Escrituras, na esperança de Israel, na qual ela teria sido precisamente o lugar do cumprimento. As mulheres são também as portadoras da palavra de Deus do Evangelho, são verdadeiras evangelistas. E parece-me que este Evangelho com este episódio aparentemente tão modesto, precisamente aqui na igreja de santa Ana nos dá a ocasião para dizer um sentido obrigado a todas as mulheres que animam esta paróquia, às mulheres que servem em todas as dimensões, que nos ajudam sempre de novo a conhecer a palavra de Deus não só com o intelecto, mas também com o coração. Voltemos ao Evangelho: Jesus dorme na casa de Pedro, mas de madrugada quando ainda está escuro levanta-se e sai à procura de um lugar deserto para rezar. Surge aqui o verdadeiro centro do mistério de Jesus. Jesus está em diálogo com o Pai e eleva a sua alma humana na comunhão com a pessoa do Filho, de modo que a humanidade do Filho, juntamente com Ele, fala no diálogo trinitário com o Pai; e assim torna possível também para nós a verdadeira oração. Na liturgia Jesus reza connosco, nós rezamos com Jesus e assim entramos em contacto real com Deus, entramos no mistério do amor eterno da Santíssima Trindade.

Jesus fala com o Pai, esta é a fonte e o centro de todas as actividades de Jesus; vemos a sua pregação, as curas, os milagres e por fim a paixão, saem deste centro, do seu ser com o Pai. E, desta forma, este Evangelho ensina-nos o centro da fé e da nossa vida, isto é, a primazia de Deus. Onde Deus não está, o homem deixa de ser respeitado. Só quando o esplendor de Deus resplandece no rosto do homem, o homem imagem de Deus é protegido por uma dignidade que depois ninguém pode violar.

A primazia de Deus. Vemos no "Pai nosso" como os três primeiros pedidos se referem precisamente a esta primazia de Deus: que o nome de Deus seja santificado, que o respeito do mistério divino esteja vivo e anime toda a nossa vida; que "venha o Reino de Deus" e "seja feita a vossa vontade" são dois aspectos diversos da mesma medalha; onde se faz a vontade de Deus já existe o céu, começa também na terra um pouco de céu, e onde for feita a vontade de Deus está presente o Reino de Deus. Pois o Reino de Deus não é uma série de coisas, o Reino de Deus é a presença de Deus, a união do homem com Deus. É para este objectivo que Jesus nos quer guiar.

O Reino de Deus é o centro do seu anúncio, isto é, Deus como fonte e centro da nossa vida, diz-nos: só Deus é a redenção do homem. E podemos ver na história do século passado, como nos Estados onde Deus tinha sido abolido, não só a economia foi destruída, mas sobretudo as almas.

As destruições morais, as destruições da dignidade do homem são as destruições fundamentais e a renovação só pode vir do regresso de Deus, isto é, do reconhecimento da centralidade de Deus. Nestes dias um Bispo do Congo em visita ad Limina disse-me: os europeus dão-nos generosamente muitas coisas para o desenvolvimento, mas há uma hesitação em ajudar-nos na pastoral; parece que consideram a pastoral inútil, que seja importante só o progresso técnico-material. Mas é verdade o contrário disse onde não há a palavra de Deus o desenvolvimento não funciona, e não dá resultados positivos. Só quando primeiro há a palavra de Deus, só quando o homem está reconciliado com Deus, é que as coisas materiais podem correr bem.

O próprio Evangelho com a sua continuação confirma isto em grande medida. Os apóstolos dizem a Jesus: volta, todos te procuram. E ele responde: não, devo ir a outros lugares para anunciar Deus e para afastar os demónios, as forças do mal; foi para isto que vim. Jesus veio está escrito no texto grego: "saí do Pai" não para trazer os confortos da vida, mas para trazer a condição fundamental da nossa dignidade, para nos trazer o anúncio de Deus, a presença de Deus e, desta forma, vencer as forças do mal. Ele indica esta prioridade com grande clareza: não vim curar faço também isto, mas como sinal mas vim para vos reconciliar com Deus. Deus é o nosso criador, Deus deu-nos a vida, a nossa dignidade. É sobretudo a ele que nos devemos dirigir.

E como disse o Pe. Gioele, a Igreja celebra hoje na Itália o Dia pela Vida. Os Bispos italianos quiseram recordar na sua mensagem o dever prioritário de "respeitar a vida", porque se trata de um bem "indispensável", o homem não é dono da vida; mas simplesmente quem a preserva e administra. E sob a primazia de Deus nasce automaticamente esta prioridade de administrar, de preservar a vida do homem, criada por Deus. Esta verdade que o homem é o guarda e o administrador da vida constitui um ponto qualificante da lei natural, plenamente iluminado pela revelação bíblica. Ele apresenta-se hoje como "sinal de contradição" em relação à mentalidade dominante. De facto, verificamos que, apesar de haver em sentido geral uma ampla convergência sobre o valor da vida, contudo quando se chega a este ponto, duas mentalidades opõem-se de maneira inconciliável. Para nos expressarmos em termos simplificantes, poderíamos dizer: uma das duas mentalidades considera que a vida humana esteja nas mãos do homem, a outra reconhece que ela está nas mãos de Deus. A cultura moderna enfatizou legitimamente a autonomia do homem e das realidades terrenas, desenvolvendo assim uma perspectiva querida ao Cristianismo, a da Encarnação de Deus. Mas como afirmou claramente o Concílio Vaticano II, se esta autonomia leva a pensar que "as coisas criadas não dependem de Deus, e que o homem as pode usar sem as relacionar com o Criador", então dá-se origem a um desequilíbrio profundo, porque "a criatura sem o seu Criador perde o sentido" (Gaudium et spes GS 36). É significativo que o documento conciliar, no trecho citado, afirme que esta capacidade de reconhecer a voz e a manifestação de Deus na beleza da criação seja característica de todos os crentes, seja qual for a religião a que pertencem.

Disto podemos concluir que o respeito pleno da vida está ligado ao sentido religioso, à atitude interior com a qual o homem se coloca em relação à realidade, se se considera dono ou preservador. De resto, a palavra "respeito", deriva do verbo latino respicere-guardar, e indica o modo de ver as coisas e as pessoas que conduz a reconhecer nelas a consistência, a não se apropriar delas, e a respeitá-las, ocupando-se delas. Em última análise, se as criaturas forem privadas da sua referência a Deus, como fundamento transcendente, elas correm o risco de estar à mercê do livre arbítrio do homem que pode dispor delas como vemos, fazendo delas um uso desatinado.

Queridos irmãos e irmãs, invoquemos juntos a intercessão de santa Ana para a vossa comunidade paroquial, que saúdo com afecto. Saúdo em particular o Pároco, Pe. Gioele, e agradeço-lhe as palavras que me dirigiu no início; saúdo depois os Padres Agostinianos com o seu Prior-Geral; saúdo D. Angelo Comastri, meu Vigário-Geral para a Cidade do Vaticano, D. Rizzato, meu Esmoler, e todos os presentes, de modo especial as crianças, os jovens e quantos habitualmente frequentam esta Igreja. Sobre todos vigie santa Ana, vossa celeste Padroeira, e obtenha para cada um o dom de ser testemunha do Deus da vida e do amor.



Bento XVI Homilias 10106