Bento XVI Homilias 50206


1º de Março de 2006: MISSA COM O RITO DA IMPOSIÇÃO DAS CINZAS

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Basílica de Santa Sabina


Senhores Cardeais
Venerados Irmãos
no Episcopado e no Presbiterado
Amados irmãos e irmãs!

A procissão penitencial, com a qual iniciámos a celebração de hoje, ajudou-nos a entrar no clima típico da Quaresma, que é uma peregrinação pessoal e comunitária de conversão e de renovação espiritual. Segundo a antiquíssima tradição romana das stationes quaresmais, durante este tempo os fiéis, juntamente com os peregrinos, todos os dias se reúnem e páram statio diante de uma das numerosas "memórias" dos Mártires, que constituem os fundamentos da Igreja de Roma. Nas Basílicas, onde estão expostas as suas relíquias, é celebrada a Santa Missa precedida de uma procissão, durante a qual se cantam as ladainhas dos Santos. Faz-se assim memória de quantos, com o seu sangue, deram testemunho de Cristo, e a sua evocação torna-se estímulo para cada cristão a renovar a própria adesão ao Evangelho. Não obstante o passar dos séculos, estes ritos conservam o seu valor, porque recordam como é importante, mesmo no nosso tempo, acolher sem compromissos as palavras de Jesus: "Se alguém quer vir após Mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, cada dia, e siga-Me" (
Lc 9,23).

Outro rito simbólico, gesto próprio e exclusivo do primeiro dia da Quaresma, é a imposição das Cinzas. Qual é o seu significado mais profundo? Certamente não se trata de mero ritualismo, mas de algo bastante profundo, que toca o nosso coração. Ele faz-nos compreender a actualidade da admoestação do profeta Joel, que ressoou na primeira Leitura, advertência que conserva também para nós a sua validez saudável: aos gestos exteriores deve corresponder sempre a sinceridade da alma e a coerência das obras. De facto, para que serve pergunta o autor inspirado rasgar as vestes, se o coração permanece distante do Senhor, isto é, do bem e da justiça? Eis aquilo que conta deveras: voltar para Deus, com o coração sinceramente arrependido, para obter a sua misericórdia (cf. Jl 2,12-18). Um coração renovado e um espírito novo: é isto que pedimos com o Salmo penitencial por excelência, o Miserere, que hoje cantamos com o refrão "Perdoai-nos, Senhor, porque pecámos". O verdadeiro crente, consciente de ser pecador, aspira inteiramente espírito, alma e corpo pelo perdão divino, como por uma nova criação, capaz de lhe restituir alegria e esperança (cf. Ps 50,3 Ps 50,5 Ps 50,12 Ps 50,14).

Outro aspecto da espiritualidade quaresmal é aquilo que poderíamos definir "agonístico", e sobressai na hodierna celebração "colecta", quando se fala de "armas" da penitência e do "combate" contra o espírito do mal. Todos os dias, mas sobretudo na Quaresma, o cristão deve enfrentar uma luta, como a que Cristo empreendeu no deserto da Judeia, onde durante quarenta dias foi tentado pelo diabo, e depois no Getsémani, quando rejeitou a extrema tentação aceitando totalmente a vontade do Pai. Trata-se de uma batalha espiritual, que se destina contra o pecado e, por fim, contra satanás. É uma luta que envolve totalmente a pessoa e exige uma vigilância atenta e constante. Santo Agostinho observa que quem deseja caminhar no amor de Deus e na sua misericórdia não pode contentar-se com a libertação dos pecados graves e mortais, mas "pratica a verdade reconhecendo também os pecados que se consideram menos graves... e vem à luz cumprindo obras dignas. Também os pecados menos graves, se forem descuidados, proliferam e causam a morte" (In Io. evang. 12, 13, 35).

Por conseguinte, a Quaresma recorda-nos que a existência cristã é um combate incessante, no qual devem ser utilizadas as "armas" da oração, do jejum e da penitência. Lutar contra o mal, contra qualquer forma de egoísmo e de ódio, e morrer para si mesmos para viver em Deus é o itinerário ascético que cada discípulo de Jesus está chamado a percorrer com humildade e paciência, com generosidade e perseverância. O dócil seguimento do Mestre divino torna os cristãos testemunhas e apóstolos de paz. Poderíamos dizer que esta atitude interior nos ajuda a ressaltar melhor também qual deva ser a resposta cristã à violência que ameaça a paz no mundo. Certamente não é a vingança, nem o ódio, nem sequer a fuga num espiritualismo falso. A resposta de quem segue Cristo é ao contrário a de percorrer o caminho escolhido por Aquele que, face aos males do seu tempo e de todos os tempos, abraçou decididamente a Cruz, seguindo o caminho mais longo mas mais eficaz do amor. Nas suas pegadas e unidos a Ele, todos nós devemos comprometer-nos na oposição ao mal com o bem, à mentira com a verdade, ao ódio com o amor. Na Encíclica Deus caritas est quis apresentar este amor como o segredo da nossa conversão pessoal e eclesial. Reevocando as palavras de Paulo aos Coríntios: "O amor de Cristo nos constrange" (2Co 5,14), realcei como "a consciência de que, n'Ele, o próprio Deus Se entregou por nós até à morte, deve induzir-nos a viver, não mais para nós mesmos, mas para Ele, para os outros" ().

O amor, como recorda Jesus hoje no Evangelho, deve transformar-se em gestos concretos para o próximo, especialmente para os pobres e os necessitados, subordinando sempre o valor das "boas obras" à sinceridade da relação com o "Pai que está nos céus", que "vê o oculto" e que "recompensará" todos os que fazem o bem de maneira humilde e abnegada (cf. Mt 6,1 Mt 6,4 Mt 6,6 Mt 6,18). A concretização do amor constitui um dos elementos fundamentais da vida dos cristãos, que são encorajados por Jesus a serem luz do mundo, para que os homens, vendo as suas "boas obras", glorifiquem a Deus (cf. Mt 5,16). Esta recomendação chega até nós oportuna como nunca no início da Quaresma, porque compreendemos cada vez mais que "para a Igreja, a caridade não é uma espécie de actividade de assistência social... mas pertence à sua natureza, é expressão irrenunciável da sua própria essência" (Deus caritas est ,a). O amor verdadeiro manifesta-se em gestos que não excluem ninguém, a exemplo do bom Samaritano que, com grande abertura de alma, ajudou um desconhecido em dificuldade, encontrado "por acaso" na beira da estrada (cf. Lc 10,31).

Senhores Cardeais, venerados Irmãos no Episcopado e no Presbiterado, queridos religiosos, religiosas e fiéis leigos, a quem saúdo com profunda cordialidade, entramos no clima típico deste período litúrgico com estes sentimentos, deixando que a palavra de Deus nos ilumine e nos guie. Na Quaresma sentiremos ressoar com frequência o convite a converter-nos a a crer no Evangelho, e seremos constantemente estimulados a abrir o espírito ao poder da graça divina. Façamos tesouro dos ensinamentos que a Igreja nos oferecerá abundantemente nestas semanas. Animados por um forte compromisso de oração, decididos a um esforço maior de penitência, de jejum e de atenção carinhosa para com os irmãos, caminhemos rumo à Páscoa, acompanhados pela Virgem Maria, Mãe da Igreja e modelo de cada autêntico discípulo de Cristo.





Domingo, 19 de Março de 2006: CONCELEBRAÇÃO PARA OS TRABALHADORES

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Amados irmãos e irmãs

Juntos ouvimos uma famosa e bonita página do Livro do Êxodo, em que o autor sagrado narra a entrega a Israel do Decálogo por parte de Deus. Um pormenor chama imediatamente a nossa atenção: a enunciação dos dez mandamentos é introduzida por uma significativa referência à libertação do povo de Israel. O texto diz: "Eu sou o Senhor teu Deus, que te fiz sair da terra do Egipto, da casa da servidão" (
Ex 20,2). Por conseguinte, o Decálogo deseja ser uma confirmação da liberdade conquistada. Com efeito, se considerarmos profundamente, os mandamentos são o instrumento que o Senhor nos concede para defender a nossa liberdade, tanto dos interiores condicionamentos das paixões, como dos abusos exteriores dos mal-intencionados. Os "não" dos mandamentos são outros tantos "sim" ao crescimento de uma liberdade autêntica. Há uma segunda dimensão do Decálogo, que deve ser também ressaltada: mediante a Lei dada através de Moisés, o Senhor revela que deseja estabelecer um pacto de aliança com Israel. Portanto, mais do que uma imposição, a Lei é uma dádiva. Mais do que determinar o que o homem deve fazer, ela quer manifestar a todos a opção de Deus: Ele está da parte do povo eleito; libertou-o da escravidão e circunda-o com a sua bondade misericordiosa. O Decálogo é testemunho de um amor de predilecção.

A Liturgia de hoje oferece-nos uma segunda mensagem: a Lei mosaica encontrou o seu pleno cumprimento em Jesus, que revelou a sabedoria e o amor de Deus mediante o mistério da Cruz, "escândalo para os judeus e loucura para os gentios como nos disse São Paulo na segunda leitura mas para os que são chamados, tanto judeus como gregos... é poder e sabedoria de Deus" (1Co 1,23-24). É precisamente a este mistério que faz referência a página evangélica que acaba de ser proclamada: Jesus expulsa do templo os vendilhões e os cambistas. O Evangelista oferece a chave de leitura deste episódio significativo, através do versículo de um Salmo: "O zelo da tua casa me consome" (Ps 69,10 [68], 10). E Jesus é "consumido" por este "zelo" pela "casa de Deus", utilizada para finalidades diferentes daquelas para as quais seria destinada. Diante do pedido dos responsáveis religiosos, que pretendem um sinal da sua autoridade, no meio da admiração dos presentes, Ele afirma: "Destruí este templo, e em três dias Eu o levantarei!" (Jn 2,19). Palavras misteriosas, incompreensíveis naquele momento, mas que João volta a formular para os seus leitores cristãos, observando: "Ele, porém, falava do templo que é o seu corpo" (Jn 2,21). Os seus adversários teriam destruído aquele "templo", mas depois de três dias Ele tê-lo-ia reconstruído mediante a ressurreição. A dolorosa e "escandalosa" morte de Cristo seria coroada pelo triunfo da sua gloriosa ressurreição. Enquanto neste período quaresmal nos preparamos para reviver no Tríduo pascal este acontecimento central da nossa salvação, já fixamos o nosso olhar no Crucificado, vislumbrando nele o esplendor do Ressuscitado.

Dilectos irmãos e irmãs, a hodierna Celebração eucarística, que une a recordação de São José à meditação dos textos litúrgicos do terceiro domingo de Quaresma, oferece-nos a oportunidade de considerar, à luz do mistério pascal, outro aspecto importante da existência humana. Refiro-me à realidade do trabalho, hoje inserida no cerne de mudanças rápidas e complexas. Em diversas páginas, a Bíblia demonstra que o trabalho pertence à condição originária do homem. Quando o Criador plasmou o homem à sua imagem e semelhança, convidou-o a cultivar a terra (cf. Gn 2,5-6). Foi por causa do pecado dos seus antepassados que o trabalho se tornou um cansaço e um sofrimento (cf. Gn 3,6-8), mas no projecto divino ele mantém inalterado o seu valor. Tornando-se em tudo semelhante a nós, o próprio Filho de Deus dedicou-se durante muitos anos as actividades manuais, a ponto de ser conhecido como o "filho do carpinteiro" (cf. Mt 13,55). A Igreja manifestou sempre, especialmente ao longo do século passado, a sua atenção e solicitude por este âmbito da sociedade, como testemunham as numerosas intervenções sociais do Magistério e a acção de múltiplas associações de inspiração cristã, algumas das quais hoje estão aqui reunidas para representar todo o mundo dos trabalhadores. É com prazer que vos recebo, queridos amigos, e transmito a cada um de vós a minha cordial saudação. Dirijo um pensamento especial a D. Arrigo Miglio, Bispo de Ivrea e Presidente da Comissão Episcopal Italiana para os Problemas Sociais e o Trabalho, para a Justiça e a Paz, que se fez intérprete dos sentimentos de todos e me transmitiu as amáveis expressões de bons votos por ocasião da minha festa onomástica. Estou-lhe profundamente agradecido por isto.

O trabalho reveste uma importância primária para a realização do homem e para o desenvolvimento da sociedade, e por este motivo é necessário que ele seja sempre organizado e levado a cabo no pleno respeito da dignidade humana e ao serviço do bem comum. Ao mesmo tempo, é indispensável que o homem não se deixe escravizar pelo trabalho, que não o idolatre, com a pretensão de encontrar nele o sentido último e definitivo da vida. A este propósito, é oportuno o convite contido na primeira leitura: "Recorda-te do dia de sábado, para o santificares. Trabalharás durante seis dias e farás todo o teu trabalho. Mas o sétimo dia é o sábado, consagrado ao Senhor, teu Deus" (Ex 20,8-9). O sábado é um dia santificado, ou seja, consagrado a Deus, em que o homem compreende melhor o sentido da sua existência e também da actividade de trabalho. Por conseguinte, é possível afirmar que o ensinamento bíblico sobre o trabalho encontra a sua coroação no mandamento do descanso. Oportunamente, o Compêndio da Doutrina Social da Igreja faz a seguinte observação a este propósito: "Ao homem, vinculado à necessidade do trabalho, o descanso abre a perspectiva de uma liberdade mais completa, a do sábado eterno (cf. He 4,9-10). O descanso permite que os homens se recordem das obras de Deus, desde a Criação até à Redenção, revivendo-as e reconhecendo-se eles mesmos como sua obra (cf. Ep 2,10), e dando-lhe graças pela sua própria vida e subsistência, a Ele que é o seu Autor" (n. 258).

A actividade de trabalho deve ser útil para o verdadeiro bem da humanidade, permitindo "ao homem, individualmente considerado ou em sociedade, cultivar e realizar a sua vocação integral" (Gaudium et spes GS 35). Para que isto se verifique, não basta a qualificação técnica e profissional, contudo necessária; não é suficiente sequer a criação de uma ordem social justa e atenta ao bem de todos. É preciso viver uma espiritualidade que ajude os fiéis a santificar-se através do seu próprio trabalho, imitando São José, que tinha de prover todos os dias às necessidades da Sagrada Família com as suas mãos e, por isso, a Igreja indica-o como Padroeiro dos trabalhadores. O seu testemunho demonstra que o homem é sujeito e protagonista do trabalho. Gostaria de confiar-lhe os jovens que têm dificuldade de se inserir no mundo do trabalho, os desempregados e aqueles que sofrem em virtude das necessidades devidas à crise difundida no mundo do trabalho. Juntamente com Maria, sua Esposa, São José vele sobre todos os trabalhadores e obtenha a serenidade e a paz para as famílias e para toda a humanidade. Fixando o seu olhar neste grande Santo, os cristãos aprendam a testemunhar, em todos os ambientes de trabalho, o amor de Cristo, fonte de solidariedade genuína e de paz estável.

Amém!




CONSISTÓRIO ORDINÁRIO PÚBLICO PARA A CRIAÇÃO DE NOVOS CARDEAIS


Sexta-feira, 24 de Março de 2006

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Venerados Cardeais

Patriarcas e Bispos
Ilustres Senhores e Senhoras
Amados irmãos e irmãs!

Nesta vigília da solenidade da Anunciação do Senhor, o clima penitencial da Quaresma deixa espaço para a festa: de facto, hoje, o Colégio dos Cardeais enriquece-se com quinze novos cardeais. Antes de tudo, queridos Irmãos, a quem tive a alegria de criar Cardeais, é a vós que dirijo a minha saudação com profunda cordialidade, enquanto agradeço ao Cardeal William Joseph Levada pelos sentimentos e pensamentos que há pouco me expressou em nome de todos vós.

Depois, alegro-me por saudar os outros Senhores Cardeais, os venerados Patriarcas, os Bispos, os sacerdotes, os religiosos e as religiosas e os numerosos fiéis, de modo particular os familiares, aqui reunidos para estar próximos, na oração e na alegria cristã, dos novos Purpurados. Acolho com especial reconhecimento as distintas Autoridades governativas e civis, que representam diversas Nações e Instituições. O Consistório Ordinário Público é um acontecimento que manifesta com grande eloquência a natureza universal da Igreja, difundida em todas as partes do mundo para anunciar a todos a Boa Nova de Cristo Salvador. O amado João Paulo II celebrou nove, contribuindo assim de modo determinante para renovar o Colégio Cardinalício, segundo as orientações que o Concílio Vaticano II e o Servo de Deus Paulo VI tinham dado. Se é verdade que no decurso dos séculos muitas coisas mudaram no que se refere ao Colégio cardinalício, não mudaram contudo a substância e a natureza essencial deste importante organismo eclesial. As suas antigas raízes, o seu desenvolvimento histórico e a sua actual composição formam deveras uma espécie de "Senado", chamado a cooperar estreitamente com o Sucessor de Pedro no cumprimento das tarefas relacionadas com o seu ministério apostólico universal.

A Palavra de Deus, que há pouco foi proclamada, dá-nos uma retrospectiva temporal. Com o evangelista Marcos remontamos à própria origem da Igreja e, em particular, à origem do ministério petrino. Revimos com o olhar do coração o Senhor Jesus, para louvor e glória do qual o acto que estamos a cumprir está totalmente orientado e é dedicado. Ele disse-nos palavras que nos trouxeram à mente a definição do Romano Pontífice querida a são Gregório Magno: "Servus servorum Dei". De facto, Jesus, explicando aos doze Apóstolos que a sua autoridade deveria ser exercida de um modo muito diferente da dos "chefes das nações", resume esta modalidade no estilo do serviço: "Quem quiser ser grande entre vós, faça-se vosso servidor (d???????); e quem quiser ser o primeiro entre vós, faça-se o servo de todos. Aqui Jesus emprega a palavra mais forte (d?????)" (
Mc 10,43-44). A disponibilidade total e generosa em servir os outros é o sinal distintivo daqueles aos quais, na Igreja, é conferida autoridade, porque assim foi para o Filho do homem, o qual "não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por todos" (Mc 10,45).Mesmo sendo Deus, ou melhor, estimulado precisamente pela sua divindade, Ele assumiu a forma de servo "formam servi" como admiravelmente se exprime o hino a Cristo contido na Carta aos Filipenses (cf. Ph 2,6-7).

O primeiro "Servo dos servos de Deus" é portanto Jesus. A seguir a Ele, e unidos a Ele, os Apóstolos; e entre eles, de modo especial, Pedro, ao qual o Senhor confiou a responsabilidade de guiar o seu rebanho. É tarefa do Papa ser o primeiro que se faz servo de todos. O testemunho desta atitude sobressai claramente na primeira Leitura desta Liturgia, que nos propõe uma exortação de Pedro aos "presbíteros" e aos idosos da comunidade (cf. 1P 5,1). É uma exortação feita com aquela autoridade que o Apóstolo tem pelo facto de ter sido testemunha dos sofrimentos de Cristo, Bom Pastor. Sente-se que as palavras de Pedro provêm da experiência pessoal do serviço ao rebanho de Deus, mas antes e ainda mais se fundam sobre a experiência directa do comportamento de Jesus: do seu modo de servir até ao sacrifício de si, do seu humilhar-se até à morte de cruz, confiando unicamente no Pai, que o exaltou no momento oportuno. Pedro, como Paulo, foi intimamente "conquistado" por Cristo "comprehensus sum a Christo Iesu" (cf. Ph 3,12) e como Paulo pode exortar os idosos com total autoridade, porque já não é ele que vive, mas é Cristo que vive nele "vivo autem iam non ego, vivit vero in me Christus" (Ga 2,20).

Sim, venerados e queridos Irmãos, quanto o Príncipe dos Apóstolos afirma é adequado particularmente para quem está chamado a vestir a púrpura cardinalícia: "Aos presbíteros que há entre vós, eu presbítero como eles e que fui testemunha dos padecimentos de Cristo e também participante da glória que se há-de manifestar dirijo-vos esta exortação" (1P 5,1). São palavras que, também na sua estrutura essencial, recordam o ministério pascal, particularmente presente no nosso coração nestes dias de Quaresma. São Pedro relaciona-as consigo próprio sendo "idoso como eles" (s?µp?esß?te???), dando a entender com isto que o idoso na Igreja, o presbítero, devido à experiência acumulada com os anos e às provações enfrentadas e superadas, deve estar particularmente "sintonizado" com o íntimo dinamismo do mistério pascal. Quantas vezes, queridos Irmãos que daqui a pouco recebereis a dignidade cardinalícia, encontrastes nestas palavras motivo de meditação e de estímulo espiritual para seguir as pegadas do Senhor crucificado e ressuscitado!

Elas terão uma confirmação ulterior e comprometedora naquilo que a nova responsabilidade exigirá de vós. Mais estreitamente ligados ao Sucessor de Pedro, sereis chamados a colaborar com ele no cumprimento do seu peculiar serviço eclesial, e isto significará para vós ter uma participação mais intensa no ministério da Cruz na partilha dos sofrimentos de Cristo. E todos nós somos realmente testemunhas dos seus sofrimentos hoje, no mundo e também na Igreja, e precisamente assim também somos partícipes da sua glória. Isto permitir-vos-á haurir mais abundantemente da fonte da graça e difundir ao vosso redor de modo mais eficaz os seus frutos benéficos.

Venerados e amados Irmãos, gostaria de resumir o sentido desta vossa chamada na palavra que coloquei no centro da minha primeira Encíclica: caritas. Ela associa-se bem também à cor da veste cardinalícia. A púrpura que vestis seja sempre expressão da caritas Christi, estimulando-vos a um amor apaixonado por Cristo, pela sua Igreja e pela humanidade. Agora tendes mais um motivo para procurar reviver os mesmos sentimentos que levaram o Filho de Deus feito homem a derramar o seu sangue em expiação pelos pecados da humanidade inteira. Conto convosco, venerados Irmãos, conto com todo o Colégio do qual começais a fazer parte, para anunciar ao mundo que "Deus caritas est", e para fazê-lo antes de mais mediante o testemunho de comunhão sincera entre os cristãos: "Por isso é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros" (Jn 13,35). Conto convosco, queridos Irmãos Cardeais, para fazer com que o princípio da caridade se possa irradiar e consiga vivificar a Igreja em todos os graus da sua hierarquia, em todas as Comunidades e Institutos religiosos, em qualquer iniciativa espiritual, apostólica e de animação social. Conto convosco para que o esforço comum de fixar o olhar no Coração aberto de Cristo torne mais seguro e veloz o caminho rumo à plena unidade dos cristãos. Conto convosco para que, graças à atenta valorização dos pequeninos e dos pobres, a Igreja ofereça ao mundo de maneira incisiva o anúncio e o desafio da civilização do amor. Apraz-me ver tudo isto simbolizado na púrpura com a qual sois distinguidos. Que ela seja verdadeiramente símbolo do fervoroso amor cristão que transparece da vossa existência.

Confio estes votos nas mãos maternas da Virgem de Nazaré, da qual o Filho de Deus tomou o sangue que depois derramou na Cruz como testemunho supremo da sua caridade. No ministério da Anunciação, que nos preparamos para celebrar, é-nos revelado que por obra do Espírito Santo o Verbo divino se fez carne e veio habitar no meio de nós. Por intercessão de Maria, desça abundantemente sobre os novos Cardeais e sobre todos nós a efusão do Espírito de verdade e de caridade para que, cada vez mais plenamente conformes com Cristo, possamos dedicar-nos incansavelmente à edificação da Igreja e à difusão do Evangelho no mundo.



Sábado, 25 de Março de 2006: NA CONCELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA PARA A ENTREGA DO ANEL CARDINALÍCIO

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Senhores Cardeais e Patriarcas!

Venerados Irmãos
no Episcopado e no Sacerdócio
Queridos irmãos e irmãs!

É grande motivo de alegria para mim presidir a esta Concelebração com os novos Cardeais, depois do Consistório de ontem, e considero providencial que ela se realize na solenidade litúrgica da Anunciação do Senhor. De facto, na Encarnação do Filho de Deus nós reconhecemos o início da Igreja. Tudo provém dela. Qualquer realização da história da Igreja e também todas as suas instituições se devem referir àquela Fonte originária. Devem referir-se a Cristo, Verbo encarnado. É Ele que nós celebramos sempre: o Emanuel, o Deus-connosco, por meio do qual se cumpriu a vontade salvífica de Deus Pai. E contudo (precisamente hoje contemplamos este aspecto do Mistério) a Fonte divina flui através de um canal privilegiado: a Virgem Maria. Com uma imagem eloquente são Bernardo fala, em relação a isto, de aquaeductus (cf. Sermo in Nativitate B.V. Mariae: PL183, 437-448). Celebrando a Encarnação do Filho não podemos, por isso, deixar de rezar à Mãe. A ela foi dirigido o anúncio angélico; ela acolheu-o e, quando do fundo do coração respondeu: "Eis... faça-se em mim segundo a Tua palavra" (
Lc 1,38), o Verbo eterno começou a existir como ser humano no tempo.

De geração em geração permanece viva a admiração por este mistério inefável. Santo Agostinho, imaginando que se dirigia ao Cordeiro da Anunciação, pergunta: "Diz-me, ó Anjo, porque aconteceu isto em Maria?". A resposta, diz o Mensageiro, está contida nas próprias palavras da saudação: "Salve, ó cheia de graça" (cf. Sermo 291, 6). De facto, o Cordeiro, "entrando nela", não a chama com o nome terreno, Maria, mas com o seu nome divino, assim como Deus a vê desde sempre e a qualifica: "Cheia de graça grazia plena", que no original grego é 6,P"D4JTµX<0, "amada" (cf. Lc 1,28). Orígenes observa que nunca um semelhante título foi dirigido a um ser humano, e que ele não tem comparação em toda a Sagrada Escritura (cf. In Lucam 6, 7). É um título expresso de maneira passiva, mas esta "passividade" de Maria, que desde sempre e para sempre é a "amada" do Senhor, exige o seu livre consentimento, a sua resposta pessoal e originária: no ser amada Maria é plenamente activa, porque acolhe com disponibilidade pessoal a vaga de amor divino que recai sobre ela. Também nisto ela é discípula perfeita do seu Filho, que na obediência ao Pai realiza totalmente a própria liberdade. Na segunda Leitura ouvimos a maravilhosa página na qual o Autor da Carta aos Hebreus interpreta o Salmo 39 precisamente à luz da Encarnação de Cristo: "Eis que venho... para fazer, ó Deus, a tua vontade" (He 10,7). Face ao mistério destes dois "Eis", de Cristo e da Virgem, que se reflectem um no outro e que formam um único Amen à vontade de amor de Deus, nós permanecemos assombrados e, cheios de reconhecimento, adoramos.

Que grande dom, Irmãos, poder realizar esta sugestiva celebração na solenidade da Anunciação do Senhor! Quanta luz podemos haurir deste mistério para a nossa vida de ministros da Igreja. Em particular vós, queridos novos Cardeais, que apoio podeis ter para a vossa missão de eminente "Senado" do Sucessor de Pedro! Esta providencial coincidência ajuda-nos a considerar o acontecimento de hoje, no qual sobressai de modo particular o princípio petrino da Igreja, à luz do outro princípio, o mariano, que ainda é mais originário e fundamental. A importância do princípio mariano na Igreja foi particularmente ressaltada, depois do Concílio, pelo meu amado Predecessor, o Papa João Paulo II, em sintonia com o seu lema Totus tuus.Na sua orientação espiritual e no seu ministério incansável tornou-se evidente aos olhos de todos a presença de Maria como Mãe e Rainha da Igreja. Mais do que nunca esta presença materna foi por ele sentida no atentado de 13 de Maio de 1981 na Praça de São Pedro. Como recordação daquele trágico acontecimento ele quis que um mosaico que representa a Virgem dominasse, do alto do Palácio Apostólico, sobre a Praça de São Pedro, para acompanhar os momentos culminantes e o caminho quotidiano do seu longo pontificado, que precisamente há um ano entrava na última fase, dolorosa e ao mesmo tempo triunfal, verdadeiramente pascal. O ícone da Anunciação, melhor do que qualquer outro, faz-nos compreender com clareza como tudo na Igreja remonte a isso, àquele mistério de acolhimento do Verbo divino, onde, por obra do Espírito Santo, a Aliança entre Deus e a humanidade foi selada de modo perfeito. Tudo na Igreja, qualquer instituição e ministério, também o de Pedro e dos seus sucessores, está "incluído" sob o manto da Virgem, no espaço pleno da graça do seu "sim" à vontade de Deus. Trata-se de um vínculo que em todos nós tem naturalmente um forte eco afectivo, mas, antes de tudo, possui um valor objectivo. Entre Maria e a Igreja existe de facto uma conaturalidade que o Concílio Vaticano II realçou em grande medida com a feliz escolha de colocar o tema sobre a Bem-Aventurada Virgem Maria na conclusão da Constituição sobre a Igreja, a Lumen gentium.

Podemos encontrar o tema do relacionamento entre o princípio petrino e o mariano também no símbolo do anel, que daqui a pouco vos entregarei. O anel é sempre sinal nupcial. Quase todos vós já o recebestes no dia da vossa ordenação episcopal, como expressão de fidelidade e de compromisso de guardar a santa Igreja, esposa de Cristo (cf. Rito da Ordenação dos Bispos). O anel que hoje vos entrego, próprio da dignidade cardinalícia, deseja confirmar e fortalecer esse compromisso, a partir mais uma vez de uma doação nupcial, que vos recorda o vosso estar antes de tudo unidos a Cristo, para realizar a missão de esposos da Igreja. Por conseguinte, receber o anel seja para vós como renovar o vosso "sim", ao vosso "eis-me", dirigido ao mesmo tempo ao Senhor Jesus, que vos escolheu e vos constituiu, e à sua santa Igreja, que estais chamados a servir com amor esponsal. As duas dimensões da Igreja, mariana e petrina, encontram-se portanto naquela que constitui a tarefa de ambas, isto é, no valor supremo da caridade, o carisma "maior", o "melhor caminho de todos", como escreve o apóstolo Paulo (cf. 1Co 12,31 1Co 13,13).

Neste mundo tudo é passageiro. Na eternidade só o Amor permanece. Por isso, Irmãos, aproveitando o tempo propício da Quaresma, comprometamo-nos a verificar que tudo, na vossa vida pessoal, assim como na actividade eclesial na qual estamos inseridos, seja movido pela caridade e tenda para a caridade. Também por isto nos ilumina o mistério que hoje celebramos. De facto, o primeiro acto que Maria realizou depois de ter acolhido a mensagem do Anjo, foi a de ir "depressa" a casa da sua prima Isabel para lhe prestar o seu serviço (cf. Lc 1,39). A iniciativa da Virgem foi um gesto de caridade autêntica, humilde e corajosa, movida pela fé na Palavra de Deus e pelo estímulo interior do Espírito Santo. Quem ama esquece-se a si mesmo e coloca-se ao serviço do próximo. Eis a imagem e o modelo da Igreja! Todas as Comunidades eclesiais, como a Mãe de Cristo, estão chamadas a acolher com plena disponibilidade o mistério de Deus que vem habitar nelas e as estimula pelos caminhos do amor. Este é o caminho sobre o qual quis iniciar o meu pontificado convidando todos, com a primeira Encíclica, a edificar a Igreja na caridade, como "comunidade de amor" (cf. Deus caritas est, Segunda parte). Ao perseguir esta finalidade, venerados Irmãos Cardeais, a vossa proximidade, espiritual e efectiva, é para mim de grande apoio e conforto. E por este motivo vos agradeço, enquanto convido todos vós, sacerdotes, diáconos, religiosos e leigos, a unir-vos na invocação do Espírito Santo, para que o Colégio dos Cardeais seja sempre mais fervoroso de caridade pastoral, para ajudar toda a Igreja a irradiar no mundo o amor de Cristo, para louvor e glória da Santíssima Trindade. Amém!







Domingo, 26 de Março de 2006: DURANTE A MISSA NA PARÓQUIA ROMANA DE "DEUS PAI MISERICORDIOSO"

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Amados irmãos e irmãs!

Este quarto domingo de Quaresma, tradicionalmente designado como domingo "Laetare", está repleto de uma alegria que de certa forma atenua o clima penitencial deste tempo santo: "Alegra-te Jerusalém diz a Igreja no cântico de entrada Exultai e rejubilai, vós que vivíeis na tristeza". A este convite contido na antífona da entrada faz eco o refrão do Salmo responsorial: "A tua recordação, ó Senhor, é a nossa alegria". Pensar em Deus dá alegria. É espontâneo perguntar: mas qual é o motivo pelo qual nos devemos alegrar? Certamente um motivo é o aproximar-se da Páscoa, cuja previsão nos faz pregustar a alegria do encontro com Cristo ressuscitado. A razão mais profunda consiste contudo na mensagem oferecida pelas leituras bíblicas que a liturgia hoje propõe. Elas recordam que, apesar da nossa indignidade, nós somos os destinatários da misericórdia infinita de Deus. Deus ama-nos de um modo que poderíamos classificar "obstinado", e envolve-nos com a sua ternura inexaurível.

É quanto sobressai da primeira leitura, tirada do Livro das Crónicas do Antigo Testamento (cf.
2Ch 36,14-16 2Ch 36,19-23): o autor sagrado propõe uma interpretação sintética e significativa da história do povo eleito, que experimenta a punição de Deus como consequência do seu comportamento rebelde: o templo é destruído e o povo exilado deixa de ter uma terra; realmente parece ter sido esquecido por Deus. Mas depois vê que através dos castigos Deus persegue um desígnio de misericórdia. Será a destruição da cidade santa e do templo como foi dito será o exílio que toca o coração do povo e o faz voltar para o seu Deus para o conhecer mais profundamente. E então o Senhor, demonstrando a primazia absoluta da sua iniciativa sobre qualquer esforço meramente humano, servir-se-á de um pagão, Ciro, rei da Pérsia, para libertar Israel. No texto que ouvimos a ira e a misericórdia do Senhor confrontam-se numa sequência com aspectos dramáticos, mas no final triunfa o amor, porque Deus é amor. Como não recolher da recordação daqueles acontecimentos distantes uma mensagem válida para todos os tempos, incluindo o nosso? Pensando nos séculos passados podemos ver como Deus continue a amar-nos também através dos castigos. Os desígnios de Deus, também quando passam através das provações, têm sempre por finalidade um êxito de misericórdia e de perdão.

Foi quanto nos confirmou, na segunda leitura, o apóstolo Paulo recordando-nos que "Deus, rico em misericórdia, pelo amor imenso com que nos amou, precisamente a nós que estávamos mortos pelas nossas faltas, deu-nos a vida com Cristo" (Ep 2,4-5). Para expressar esta realidade de salvação o Apóstolo, ao lado da palavra misericórdia, eleos, usa a do amor, agape, retomada e ulteriormente ampliada na bonita frase de abertura da página evangélica que ouvimos: "Deus amou de tal modo o mundo, que lhe deu o Seu Filho único, para que todo o que n'Ele crê não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jn 3,16). Sabemos que aquele "dar" da parte do Pai teve um desenvolvimento dramático: chegou até ao sacrifício do Filho na cruz. Se toda a missão histórica de Jesus é sinal eloquente do amor de Deus, a sua morte é um sinal completamente singular, na qual se expressou de modo total a ternura redentora de Deus. Sempre, mas de modo particular neste tempo quaresmal, no centro da nossa meditação deve portanto estar a Cruz; nela contemplamos a glória do Senhor que resplandece no corpo martirizado de Jesus. Precisamente nesta doação total de si sobressai a grandeza de Deus, sobressai o seu ser amor. É a glória do Crucificado que cada cristão está chamado a compreender, a viver e a testemunhar com a sua existência. A Cruz a doação de si mesmo por parte do Filho de Deus é, definitivamente, o "sinal" por excelência que nos foi dado para compreender a verdade do homem e a verdade de Deus: todos nós fomos criados e remidos por um Deus que por amor imolou o seu único Filho. Eis por que na Cruz, como escrevi na Encíclica Deus caritas est, "cumpre-se aquele virar-se de Deus contra Si próprio, com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvá-lo o amor na sua forma mais radical" ().

Como responder a este amor radical do Senhor? O Evangelho apresenta-nos uma personagem de nome Nicodemos, membro do Sinédrio de Jerusalém, que vai de noite procurar Jesus. Trata-se de um homem bondoso, atraído pelas palavras e pelo exemplo do Senhor, mas que tem medo perante o próximo, que hesita a realizar o salto da fé. Pressente o fascínio deste Rabbi tão diferente dos outros, mas não consegue subtrair-se aos condicionamentos do ambiente contrário a Jesus e permanece hesitante no limiar da fé. Quantos, também no nosso tempo, andam à procura de Deus, à procura de Jesus e da sua Igreja, à procura da misericórdia divina, e aguardam um "sinal" que toque a sua mente e o seu coração! Hoje como naquela época o evangelista recorda-nos que o único "sinal" é Jesus elevado na Cruz: Jesus morto e ressuscitado é o sinal absolutamente suficiente. Nele podemos compreender a verdade da vida e obter a salvação. Este é o anúncio central da Igreja, que permanece inalterável nos séculos. Por conseguinte, a fé cristã não é ideologia, mas encontro pessoal com Cristo crucificado e ressuscitado. Desta experiência, que é individual e comunitária, brota um novo modo de pensar e de agir: tem origem, como testemunham os santos, uma existência marcada pelo amor.

Queridos amigos, este mistério é particularmente eloquente na vossa paróquia, dedicada a "Deus Pai misericordioso". Ela foi querida como sabemos bem pelo meu amado Predecessor João Paulo II em recordação do Grande Jubileu do Ano 2000, para que reunisse de maneira eficaz o significado daquele acontecimento espiritual extraordinário. Meditando sobre a misericórdia do Senhor, que se revelou de modo total e definitivo no mistério da Cruz, volta-me à mente o texto que João Paulo II tinha preparado para o encontro com os fiéis no dia 3 de Abril, domingo in Albis do ano passado. Nos desígnios divinos estava escrito que ele nos deixasse precisamente na vigília daquele dia, sábado, 2 de Abril todos recordam bem e por isso não pôde pronunciar aquelas palavras, que agora me apraz repropor-vos, queridos irmãos e irmãs. O Papa tinha escrito assim: "À humanidade, que por vezes parece estar perdida e dominada pelo poder do mal, do egoísmo e do receio, o Senhor ressuscitado oferece em dom o seu amor que perdoa, reconcilia e abre o coração à esperança. É um amor que converte os corações e dá a paz". O Papa neste último texto, que é como um testamento, acrescentou: "Quanta necessidade tem o mundo de compreender e de acolher a Misericórdia Divina!" (Regina Coeli, 4 de Abril de 2005).

Compreender e acolher o amor misericordioso de Deus: seja este o vosso compromisso antes de tudo no âmbito das famílias e depois em todos os sectores do bairro. Formulo de coração estes votos e saúdo-vos cordialmente, começando pelos sacerdotes que se ocupam da vossa comunidade sob a guia do pároco, Pe. Gianfranco Corbino, ao qual dirijo a minha sincera gratidão por se ter feito intérprete dos vossos sentimentos, com uma bonita apresentação deste edifício, desta "barca" de Pedro e do Senhor. Depois, faço a minha saudação extensiva ao Cardeal Vigário, Camillo Ruini e ao Cardeal Crescenzio Sepe, titular da vossa igreja, ao Vice-Gerente e ao Bispo do sector Leste de Roma, e a quantos cooperam activamente nos vários serviços paroquiais. Sei que a vossa comunidade é jovem, tendo apenas dez anos de vida, que transcorreu os seus primeiros tempos em condições precárias, aguardando o completamento das actuais estruturas.

Também sei que as dificuldades do início em vez de vos desencorajarem vos estimularam a um compromisso apostólico comum, com uma atenção particular ao campo da catequese, da liturgia e da caridade. Queridos amigos, prossegui o caminho empreendido, esforçando-vos por fazer da vossa paróquia uma verdadeira família na qual a fidelidade à Palavra de Deus e à Tradição da Igreja se torne dia após dia cada vez mais a regra de vida. Depois, sei que esta vossa igreja, devido à sua estrutura arquitectónica original, é meta de muitos visitantes. Fazei-lhes apreciar não só a beleza do edifício sagrado, mas sobretudo a riqueza de uma comunidade viva, que testemunha o amor de Deus, Pai misericordioso. Aquele amor que é o verdadeiro segredo da alegria cristã, ao qual nos convida o domingo Laetare. Dirigindo o olhar para Maria, "Mãe da santa alegria", pedimos-lhe que nos ajude a aprofundar as razões da nossa fé, para que, como nos exorta hoje a liturgia, renovados no espírito e com o coração rejubilante correspondamos ao amor de Deus eterno e desmedido. Amém!



Bento XVI Homilias 50206