Bento XVI Homilias 26306


Segunda-feira, 3 de Abril de 2006: NA CAPELA PAPAL EM SUFRÁGIO DE JOÃO PAULO II

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Queridos irmãos e irmãs

Nestes dias está particularmente viva na Igreja e no mundo a memória do Servo de Deus João Paulo II, no primeiro aniversário da sua morte. Com a vigília mariana de ontem à noite pudemos reviver o momento exacto em que, há um ano, teve lugar o seu piedoso trânsito, enquanto hoje nos encontramos nesta mesma Praça de São Pedro para oferecer o Sacrifício eucarístico em sufrágio de sua alma eleita. Saúdo com afecto, além dos Cardeais, dos Bispos, dos sacerdotes e dos religiosos, os numerosos peregrinos vindos de muitas regiões, especialmente da Polónia, para lhe manifestar o testemunho de estima, de carinho e de profundo reconhecimento. Queremos rezar por este amado Pontífice, deixando-nos iluminar pela Palavra de Deus, que acabámos de ouvir.

Na primeira Leitura, tirada do Livro da Sabedoria, foi-nos recordado qual é o destino final dos justos: um destino de imensa felicidade, que compensa incomensuravelmente os sofrimentos e as provações enfrentadas ao longo da vida. "Deus provou-os afirma o autor sagrado e achou-os dignos de si. Ele provou-os como ouro no crisol e aceitou-os como um holocausto" (
Sg 3,5-6). O termo "holocausto" faz referência ao sacrifício em que a vítima era inteiramente queimada, consumada pelo fogo; era sinal de uma oferenda total a Deus. Esta expressão bíblica faz-nos pensar na missão de João Paulo II, que ofereceu a sua existência a Deus e à Igreja, vivendo a dimensão sacrifical do seu sacerdócio especialmente na celebração da Eucaristia.

Entre as invocações que lhe eram queridas, havia uma tirada da "Ladainha de Jesus Cristo Sacerdote e Vítima", que ele desejou inserir no final do seu livro Dom e Mistério, publicado por ocasião do 50º aniversário do seu Sacerdócio (cf. pp. 113-116): "Jesu, Pontifex qui tradidisti semetipsum Deo oblationem et hostiam Jesus, Pontífice que te entregaste a ti mesmo a Deus como oferenda e vítima, tem piedade de nós". Quantas vezes ele repetiu esta invocação! Ela expressa bem o carácter intimamente sacerdotal de toda a sua vida. Ele nunca ocultou o seu desejo de se tornar cada vez mais um só em Cristo Sacerdote, mediante o Sacrifício eucarístico, fonte de incansável dedicação apostólica.

Naturalmente, na base desta oferta total de si estava a fé. Na segunda Leitura, que acabámos de ouvir, também São Pedro recorre à imagem do ouro provado com o fogo, e aplica-a à fé (cf. 1P 1,7). Com efeito, nas dificuldades da vida é sobretudo a qualidade da fé de cada um que é provada e verificada: a sua solidez, a sua pureza e a sua coerência com a vida. Pois bem, o saudoso Pontífice, que Deus tinha dotado de múltiplos dons humanos e espirituais, passando através da purificação das fadigas apostólicas e da enfermidade, manifestou-se cada vez mais como uma "rocha" na fé. Quem teve a oportunidade de o conhecer de perto, pôde como que tocar com a mão aquela sua fé genuína e sólida que, se impressionou o círculo dos seus colaboradores, não deixou de difundir durante o seu longo Pontificado a sua influência benéfica em toda a Igreja, num crescendo que alcançou o próprio ápice nos últimos meses e dias da sua vida. Uma fé convicta, forte e autêntica, livre de temores e compromissos, que contagiou o coração de muitas pessoas, também graças às numerosas peregrinações apostólicas a todas as regiões do mundo, e especialmente graças a esta última "viagem", que foi a sua agonia e a sua morte.

A página do Evangelho que foi proclamada ajuda-nos a compreender mais um aspecto da sua personalidade humana e religiosa. Poderíamos dizer que ele, Sucessor de Pedro, imitou de modo singular, no meio dos Apóstolos, João, o "discípulo amado" que permaneceu aos pés da Cruz ao lado de Maria na hora do abandono e da morte do Redentor. Vendo-os ali perto narra o Evangelista Jesus confiou-os um ao outro: "Mulher, eis o teu filho! (...) Eis a tua mãe!" (Jn 19,26-27). Estas palavras do Senhor moribundo eram particularmente queridas a João Paulo II.
Como o Apóstolo, também o Evangelista desejou receber Maria na sua casa: "Et ex illa hora accepit eam discipulus in sua" (Jn 19,27). A expressão "accepit eam in sua" é particularmente densa: indica a decisão de João, de tornar Maria partícipe da própria vida, de maneira a experimentar que, quem abre o próprio coração a Maria, na realidade é por Ela acolhido e se torna seu. O lema presente no brasão do Pontificado do Papa João Paulo II, Totus tuus, resume bem esta experiência espiritual e mística, numa vida orientada completamente para Cristo, por meio de Maria: "Ad Iesum per Mariam".

Estimados irmãos e irmãs, esta tarde o nosso pensamento volta com emoção ao momento da morte do amado Pontífice, mas ao mesmo tempo o coração é como que impelido a olhar para a frente. Sentimos ressoar na nossa alma os seus reiterados convites a progredir sem medo pelo caminho da fidelidade ao Evangelho, para sermos anunciadores e testemunhas de Cristo no terceiro milénio. Voltam à nossa mente as suas incessantes exortações a cooperarmos com generosidade para a realização de uma humanidade mais justa e solidária, a sermos promotores de paz e construtores de esperança.

Que o nosso olhar permaneça sempre fixo em Cristo, "o mesmo ontem, hoje e pelos séculos" (He 13,8), que orienta solidamente a sua Igreja. Nós acreditámos no seu amor, e é o encontro com Ele "que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo" (Deus caritas est ).

Queridos irmãos e irmãs, a força do Espírito de Jesus seja para todos, como foi para o Papa João Paulo II, um manancial de paz e de alegria. E a Virgem Maria, Mãe da Igreja, nos ajude a ser em todas as circunstâncias, como ele, apóstolos incansáveis do seu Filho divino e profetas do seu amor misericordioso.
Amém!



Domingo, 9 de Abril de 2006: SANTA MISSA DO DOMINGO DE RAMOS - XXI JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE

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Amados irmãos e irmãs


Há vinte anos, graças ao Papa João Paulo II, o Domingo de Ramos tornou-se de modo particular o dia da juventude o dia em que os jovens do mundo inteiro vão ao encontro de Cristo, desejando acompanhá-lo pelas suas cidades e pelos seus países, a fim de que Ele permaneça no meio de nós e possa estabelecer a sua paz no mundo. Se quisermos ir ao encontro de Jesus e assim caminhar juntamente com Ele ao longo do seu caminho, deveremos contudo perguntar: qual é o caminho pelo qual Ele tenciona orientar-nos? O que nós esperamos dele? O que Ele espera de nós?

Para compreender aquilo que aconteceu no Domingo de Ramos e descobrir o que isto significou não só naquela época, mas também o que significa para todos os tempos, revela-se importante um pormenor, que se tornou inclusive para os seus discípulos a chave para a compreensão deste acontecimento quando, após a Páscoa, eles voltaram a percorrer com um novo olhar aqueles dias tumultuosos. Jesus entra na Cidade Santa montado num jumento, ou seja, o animal das pessoas simples do campo, e além disso num jumento que não lhe pertence, mas que Ele, para essa ocasião, pede emprestado. Não chega num majestoso carro de luxo, nem a cavalo, como os poderosos do mundo, mas montado um jumento que tinha pedido emprestado. João narra-nos que, num primeiro momento, os discípulos não O compreenderam. Somente depois da Páscoa entenderam que Jesus, agindo deste modo, estava a cumprir os anúncios dos profetas, compreenderam que o seu agir derivava da Palavra de Deus e que a levava ao seu cumprimento.

Recordaram, diz João, que no profeta Zacarias se lê: "Não temas, Filha de Sião, olha o teu Rei che chega sentado na cria de uma jumenta" (
Jn 12,15 cf. Za 9,9). Para compreender o significado da profecia e, deste modo, do próprio agir de Jesus, devemos ouvir todo o texto de Zacarias, que continua assim: "Ele exterminará os carros de guerra da terra de Efraim e os cavalos de Jerusalém; o arco de guerra será quebrado. Proclamará a paz para as nações. O seu império irá de um mar ao outro, e do rio às extremidades da terra" (Za 9,10). Com isto, o profeta afirma três coisas sobre o rei que há-de vir.

Em primeiro lugar, diz que ele será um rei dos pobres, um pobre entre os pobres e para os pobres. Neste caso, a pobreza é entendida no sentido dos anawim de Israel, daquelas almas crentes e humildes que encontramos em redor de Jesus na perspectiva da primeira Bem-Aventurança do Sermão da Montanha. Um indivíduo pode ser materialmente pobre, mas ter o coração cheio de desejo da riqueza material e do poder que deriva da riqueza. Precisamente o facto de viver na inveja e na avidez demonstra que, no seu coração, ele pertence aos ricos. Deseja alterar a repartição dos bens, mas para chegar a estar pessoalmente na situação dos ricos de antes. A pobreza, no sentido de Jesus no sentido dos profetas pressupõe sobretudo a liberdade interior do desejo da posse e da avidez do poder. Trata-se de uma realidade maior do que uma simples repartição diferente dos bens que, todavia, permaneceria no campo material, tornando aliás os corações ainda mais duros. Trata-se, em primeiro lugar, da purificação do coração, graças à qual se reconhece a posse como responsabilidade, como dever em relação aos outros, colocando-se sob o olhar de Deus e deixando-se orientar por Cristo que, sendo rico, se fez pobre por nós (cf. 2Co 8,9). A liberdade interior é o pressuposto para a superação da corrupção e da avidez, que já devastam o mundo; esta liberdade só pode ser encontrada se Deus se tornar a nossa riqueza; só pode ser encontrada na paciência das renúncias quotidianas, nas quais ela se desenvolve como autêntica liberdade. É o rei, que nos indica o caminho rumo a esta meta Jesus é Ele que aclamamos no Domingo de Ramos; é a Ele que pedimos paraque nos acompanhe ao longo deste seu caminho.

Em segundo lugar, o profeta mostra-nos que este rei será um rei de paz: Ele exterminará os carros de guerra da terra e os cavalos de batalha, quebrará os arcos de guerra e proclamará a paz. Na figura de Cristo isto concretiza-se mediante o sinal da Cruz. Ela é o arco quebrado, de certa maneira o novo e autêntico arco-íris de Deus, que une o céu e a terra e lança uma ponte sobre os abismos e entre os continentes. A nova arma, que Jesus coloca nas nossas mãos, é a Cruz sinal de reconciliação e de perdão, sinal do amor que é mais forte do que a morte. Cada vez que fazemos o sinal da Cruz devemos recordar que não podemos opor-nos a uma injustiça com outra injustiça, a uma violência com outra violência; devemos recordar que só podemos vencer o mal com o bem, jamais retribuindo o mal com o mal.

A terceira afirmação do profeta é o prenúncio da universalidade. Zacarias diz que o reino do rei da paz se difunde "de um mar ao outro... até às extremidades da terra". Aqui, a antiga promessa da Terra, feita a Abraão e aos Padres, é substituída por uma nova visão: o espaço do rei messiânico já não é um determinado país que em seguida se separaria necessariamente dos outros e portanto, de modo inevitável, tomaria uma posição também contra os demais países. O seu país é a terra, o mundo inteiro. Ultrapassando toda a delimitação, na multiplicidade das culturas, Ele cria a unidade. Penetrando com o olhar as nuvens da história, que separavam o profeta de Jesus, vemos nesta profecia emergir de longe na profecia a rede das comunidades eucarísticas que abraça a terra, o mundo inteiro uma rede de comunidades que constituem o "Reino da paz" de Jesus, de um mar ao outro, até às extremidades da terra. Ele vem a todas as culturas e a todas as regiões do mundo, a toda a parte nas cabanas mais miseráveis e nos campos mais pobres, assim como no esplendor das catedrais. Em todos os lugares Ele é o mesmo, o Único, e assim todos os orantes congregados, na oração com Ele, encontram-se também unidos entre si num único corpo. Cristo domina, tornando-se Ele mesmo o nosso pão e entregando-se a nós. É desta maneira que Ele edifica o seu Reino.

Esta união torna-se totalmente clara na outra palavra veterotestamentária, que caracteriza e explica a liturgia do Domingo de Ramos e o seu clima especial. A multidão aclama Jesus: "Hosana! Bendito seja o que vem em nome do Senhor" (Mc 11,9 Ps 118,25 [117],s.). Esta palavra faz parte do rito da festa dos tabernáculos, durante o qual os fiéis caminham em redor do altar, tendo nas mãos alguns ramos compostos de palmas, mirtos e salgueiros. Pois bem, com as palmas nas mãos, as pessoas elevam este clamor diante de Jesus, em Quem vislumbram Aquele que vem em nome do Senhor: com efeito, a expressão "Aquele que vem em nome do Senhor" tornou-se há muito tempo a designação do Messias. Em Jesus reconhecem Aquele que verdadeiramente vem em nome do Senhor e traz a presença de Deus ao meio de nós. Este brado de esperança de Israel, esta aclamação a Jesus durante o seu ingresso em Jerusalém, na Igreja tornou-se justamente a aclamação Àquele que, na Eucaristia, vem ao nosso encontro de um modo novo.

Com o brado do "Hosana!" saudamos Aquele que, em carne e sangue, trouxe a glória de Deus à terra. Saudamos Aquele que veio e todavia permanece sempre Aquele que há-de vir. Saudamos Aquele que, na Eucaristia, vem sempre de novo a nós em nome do Senhor, unindo deste modo na paz as extremidades da terra. Esta experiência da universalidade constitui uma parte essencial da Eucaristia. Quando o Senhor vem, nós saímos dos nossos particularismos exclusivos e entramos na grande comunidade de todos aqueles que celebram este santo sacramento. Entramos no seu reino de paz e, de certo modo, saudamos nele também todos os nossos irmãos e irmãs, aos quais Ele vem, para se tornar um verdadeiro reino de paz no meio deste mundo dilacerado.

As três características anunciadas pelo profeta pobreza, paz e universalidade são resumidas no sinal da Cruz. Por isso, justamente, a Cruz tornou-se o centro das Jornadas Mundiais da Juventude.

Houve um período que ainda não foi totalmente superado em que se rejeitava o cristianismo precisamente por causa da Cruz. A Cruz fala de sacrifício dizia-se a Cruz é sinal de negação da vida. Nós, contudo, desejamos a vida inteira sem limites e sem renúncias. Queremos viver, somente viver. Não nos deixamos condicionar por preceitos nem por proibições; nós desejamos a riqueza e a plenitude assim se dizia e ainda se diz. Tudo isto parece convincente e cativante; é a linguagem da serpente que nos diz: "Não vos amedronteis! Comei tranquilamente de todas as árvores do jardim!". Porém, o Domingo de Ramos diz-nos que o verdadeiro grande "Sim" é precisamente a Cruz, que a Cruz é a verdadeira árvore da vida. Não encontramos a vida apoderando-nos dela, mas entregando-a. O amor é um doar-se a si mesmo, e por isso é o caminho da vida verdadeira, simbolizada pela Cruz.

Hoje a Cruz, que ultimamente esteve no centro da Jornada Mundial da Juventude em Colónia, será entregue a uma especial delegação, para que comece o caminho rumo a Sidney onde, em 2008, os jovens do mundo inteiro tencionam reunir-se de novo à volta de Cristo para construir juntamente com Ele o reino da paz. De Colónia a Sidney um caminho através dos continentes e das culturas, um caminho através de um mundo dilacerado e atormentado pela violência! Simbolicamente, é o caminho indicado pelo profeta, o caminho que vai de um mar ao outro, e do rio até às extremidades da terra. Trata-se do caminho daquele que, no sinal da Cruz, nos comunica a paz e nos faz ser portadores da reconciliação e da sua paz. Estou grato aos jovens que agora levarão pelos caminhos do mundo esta Cruz, na qual podemos como que tocar o mistério de Jesus. Peçamos-lhe, contemporaneamente, que Ele nos toque também a nós e abra os nossos corações a fim de que, seguindo a sua Cruz, sejamos mensageiros do seu amor e da sua paz.
Amém!





13 de Abril de 2006: NA MISSA CRISMAL DE QUINTA-FEIRA SANTA

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Basílica de São Pedro



Queridos irmãos
no episcopado e no sacerdócio
Prezados irmãos e irmãs

A Quinta-Feira Santa é o dia em que o Senhor confiou aos Doze a tarefa sacerdotal de celebrar, no pão e no vinho, o Sacramento do seu Corpo e do seu Sangue, até à sua volta. O cordeiro pascal e todos os sacrifícios da Antiga Aliança são substituídos pela dádiva do seu Corpo e do seu Sangue, pelo dom de Si mesmo. Assim, o novo culto fundamenta-se no facto de que, em primeiro lugar, Deus nos oferece um dom e nós, repletos deste dom, tornamo-nos seus: a criação regressa ao Criador. Deste modo, também o sacerdócio se tornou algo de novo: já não é uma questão de descendência, mas um encontrar-se no mistério de Jesus Cristo. Ele é sempre Aquele que doa e, no alto, nos atrai a Si. Somente Ele pode dizer: "Isto é o meu Corpo isto é o meu Sangue". O mistério do sacerdócio da Igreja encontra-se no facto de que nós, pobres seres humanos, em virtude do Sacramento, podemos falar com o seu Eu: in persona Christi. Ele quer exercer o seu sacerdócio através de nós. Este mistério comovedor, que em cada celebração do Sacramento volta a tocar-nos, nós recordamo-lo de maneira particular na Quinta-Feira Santa. A fim de que a vida quotidiana não desperdice o que é grande e misterioso, temos necessidade desta lembrança específica, precisamos de regressar à hora em que Ele impôs as suas mãos sobre nós e nos tornou partícipes deste mistério.

Por isso, voltemos a reflectir sobre os sinais em que o Sacramento nos foi concedido. No centro encontra-se o antiquíssimo gesto da imposição das mãos, com o qual Ele tomou posse de mim, dizendo-me: "Tu pertences-me". Mas com isto disse também: "Tu estás sob a protecção das minhas mãos. Tu encontras-te sob a protecção do meu coração. Tu estás conservado na palma da minha mão e é precisamente assim que te encontras na vastidão do meu amor. Permanece no espaço das minhas mãos e dá-me as tuas".

Além disso, recordemos que as nossas mãos foram ungidas com o óleo, que é o sinal do Espírito Santo e da sua força. Por que precisamente as mãos? A mão do homem é o instrumento do seu agir, é o símbolo da sua capacidade de enfrentar o mundo, exactamente de "o tomar pela mão". O Senhor impôs as suas mãos sobre nós e agora quer as nossas mãos a fim de que, no mundo, se tornem suas. Deseja que elas não sejam mais instrumentos para tomar as coisas, os homens e o mundo para nós, para o reduzir à nossa posse mas, ao contrário, para que transmitam o seu toque divino, colocando-se ao serviço do seu amor. Quer que elas sejam instrumentos do serviço e, portanto, expressão da missão de toda a pessoa que se faz garante dele e que O transmite aos homens. Se as mãos do homem representam simbolicamente as suas faculdades e, em geral, a técnica como poder de dispor do mundo, então as mãos ungidas devem constituir um sinal da sua capacidade de doar, da criatividade no acto de plasmar o mundo com o amor e para isso, sem dúvida, temos necessidade do Espírito Santo. No Antigo Testamento, a unção é sinal da admissão para um serviço: o rei, o profeta, o sacerdote faz e dá mais do que aquilo que deriva da sua pessoa. De certo modo, é despojado de si próprio em função de um serviço, em que se põe à disposição de alguém que é maior do que ele. Se hoje Jesus se apresenta no Evangelho como o Ungido de Deus, como Cristo, então isto quer dizer precisamente que Ele age por missão do Pai e na unidade com o Espírito Santo e que, desta forma, entrega ao mundo uma nova realeza, um novo sacerdócio, um renovado modo de ser profeta que não busca a si mesmo, mas vive para Aquele em vista de quem o mundo foi criado. Hoje voltemos a colocar as nossas mãos à sua disposição e peçamos-lhe que nos tome novamente pelas mãos e que nos oriente.

No gesto sacramental da imposição das mãos por parte do Bispo foi o próprio Senhor que impôs as suas mãos sobre mim. Este sinal sacramental resume todo um percurso existencial. Uma vez, como aconteceu com os primeiros discípulos, encontrámos o Senhor e ouvimos a sua palavra: "Segue-me!". Talvez, inicialmente, O tenhamos seguido de maneira um pouco instável, olhando para trás e perguntando-nos se tal caminho era realmente o nosso. E numa certa altura do caminho, talvez tenhamos vivido a experiência de Pedro depois da pesca milagrosa, ou seja, talvez nos tenhamos assustado pela sua grandeza, pela enormidade da tarefa e pela insuficiência da nossa pobre pessoa, a ponto de desejarmos recuar: "Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um homem pecador" (
Lc 5,8).

Mas em seguida, com grande bondade, Ele, pegou-nos pela mão, atraiu-nos a Si e disse-nos: "Não tenhas medo! Eu estou contigo. Não te deixo, mas também tu não me deixes!". E, certas vezes, com cada um de nós talvez tenha acontecido a mesma coisa que aconteceu com Pedro quando, caminhando sobre as águas ao encontro do Senhor, repentinamente sentiu que a água não o sustentava e que estava prestes a afundar. E como Pedro, também nós bradámos: "Salva-me, Senhor!" (Mt 14,30). Vendo a violência da natureza, como podíamos passar pelas águas ruidosas e espumosas do século passado e do último milénio? Mas então olhámos para Ele... e Ele agarrou-nos pela mão e atribuiu-nos um novo "peso específico": a ligeireza, que deriva da fé e nos atrai rumo ao alto. E depois estende-nos a mão, que apoia e orienta. É Ele que nos sustenta.
Fixemos sempre de novo o nosso olhar nele e estendamos-lhe as mãos. Deixemos que a sua mão nos arrebate e assim não afundaremos, mas serviremos a vida, que é mais forte do que a morte; e o amor, que é mais vigoroso do que o ódio. A fé em Jesus, Filho do Deus vivo, é o instrumento através do qual sempre de novo tomamos a mão de Jesus e mediante o qual Ele toma as nossas mãos e nos orienta. Uma das minhas orações preferidas é a súplica que a liturgia coloca nos nossos lábios, antes da Comunhão: "...nunca permitas que eu me separe de ti". Peçamos para jamais permanecermos fora da comunhão com o seu Corpo, com o próprio Cristo, para nunca ficarmos fora do mistério eucarístico. Peçamos que Ele jamais deixe a nossa mão...

O Senhor impôs as suas mãos sobre nós. E expressou o significado deste gesto com as seguintes palavras: "Já não vos chamo servos, visto que o servo não está ao corrente do que faz o seu senhor; mas a vós chamei-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi do meu Pai" (Jn 15,15). Já não vos chamo servos, mas amigos: nestas palavras poder-se-ia chegar a ver a instituição do sacerdócio. O Senhor faz-nos seus amigos; confia-nos tudo; e confia-nos a Si mesmo, de tal modo que possamos falar com o seu Eu in persona Christi capitis. Que confiança!

Ele colocou-se realmente nas nossas mãos. Todos os sinais essenciais da Ordenação sacerdotal são, em última análise, manifestações desta palavra: a imposição das mãos; a entrega do livro da sua palavra, que Ele nos confia; a entrega do cálice, com o qual nos transmite o seu mistério mais profundo e pessoal. De tudo isto faz parte também o poder de absolver: Ele faz-nos participar inclusive na sua consciência, em relação à miséria do pecado e a toda a obscuridade do mundo, enquanto coloca nas nossas mãos a chave para reabrir a porta da casa do Pai. Já não vos chamo servos, mas amigos. Este é o profundo significado do ser sacerdote: tornar-se amigo de Jesus Cristo. Por esta amizade devemos renovar todos os dias o nosso compromisso. Amizade significa comunhão no pensamento e na vontade. Devemos exercitar-nos nesta comunhão de pensamento com Jesus, diz-nos São Paulo na Carta aos Filipenses (cf. Ph 2,2-5). E esta comunhão de pensamento não é algo unicamente intelectual, mas sim comunhão dos sentimentos e da vontade e, por conseguinte, também do agir. Isto significa que devemos conhecer Jesus de modo cada vez mais pessoal, ouvindo-O, vivendo juntamente com Ele, permanecendo ao seu lado. Ouvi-lo na lectio divina, ou seja, lendo a Sagrada Escritura de uma forma não académica, mas espiritual; assim aprendemos a encontrar Jesus presente que nos fala. Devemos raciocinar e reflectir sobre as suas palavras e o seu agir diante dele e com Ele. A leitura da Sagrada Escritura é oração, deve ser oração deve emergir da oração e conduzir à oração. Os Evangelistas dizem-nos que o Senhor durante noites inteiras se retirava reiteradamente "no monte" para rezar sozinho. Também nós temos necessidade deste "monte": trata-se da altura interior que devemos escalar, o monte da oração. É somente assim que a amizade se desenvolve. Só deste modo podemos realizar o nosso serviço presbiteral, somente assim podemos anunciar Cristo e o seu Evangelho aos homens. O simples activismo pode chegar a ser heróico. Mas se não nascer da profunda e íntima comunhão com Cristo, no final de contas o agir exterior permanecerá infecundo e perderá a sua eficácia. O tempo que dedicamos a isto é verdadeiramente um tempo de actividade pastoral, de um serviço autenticamente pastoral. O sacerdote deve ser sobretudo um homem de oração. No seu activismo frenético, o mundo perde com frequência a orientação. O seu agir e as suas capacidades serão destruidores, se definharem as forças da oração, das quais brotam as águas da vida, capazes de fecundar a terra árida.

Já não vos chamo servos, mas amigos. O núcleo do sacerdócio é o facto de sermos amigos de Jesus Cristo. Somente assim podemos falar verdadeiramente in persona Christi, embora a nossa distância interior de Cristo não possa comprometer a validade do Sacramento. Ser amigo de Jesus, ser sacerdote, significa ser homem de oração. É deste modo que O reconhecemos e saímos da ignorância dos simples servos. Assim aprendemos a viver, a sofrer e a agir com Ele e por Ele. A amizade com Jesus é, por antonomásia, sempre amizade com os seus. Só podemos ser amigos de Jesus na comunhão com Cristo inteiro, com a cabeça e o corpo; na videira exuberante da Igreja, animada pelo seu Senhor. Somente nela a Sagrada Escritura é, graças ao Senhor, Palavra viva e actual. Sem o sujeito vivo da Igreja, que abraça todas as épocas, a Bíblia fragmenta-se em escritos frequentemente heterogéneos e assim torna-se um livro do passado. Ela só é eloquente no presente, onde há a "Presença" onde Cristo permanece nosso contemporâneo: no corpo da sua Igreja.

Ser sacerdote significa tornar-se amigo de Jesus Cristo, e isto cada vez mais com toda a nossa existência. O mundo tem necessidade de Deus não de um deus qualquer, mas do Deus de Jesus Cristo, do Deus que se fez carne e sangue, que nos amou a ponto de morrer por nós, que ressuscitou e criou em Si mesmo um espaço para o homem. Este Deus deve viver em nós, e nós nele. Esta é a nossa vocação sacerdotal: somente deste modo o nosso agir presbiteral pode dar fruto. Gostaria de concluir esta homilia com uma palavra de Andrea Santoro, daquele sacerdote da Diocese de Roma, que foi assassinado em Trebizonda enquanto rezava; o Cardeal Cè transmitiu-a a nós durante os Exercícios espirituais. A palavra diz: "Encontro-me aqui para habitar no meio deste povo e permitir que Jesus o faça, emprestando-lhe a minha carne... só nos tornamos capazes de salvação, oferecendo o nosso próprio corpo. Temos que suportar o mal do mundo e compartilhar o sofrimento, absorvendo-os no nosso corpo até ao fim, como fez Jesus". Jesus assumiu a nossa carne. Entreguemos-lhe a nossa para que, deste modo, Ele possa vir ao mundo e transformá-lo.
Amém!







Quinta-feira Santa, 13 de Abril de 2006: NA CONCELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA "IN CENA DOMINI"

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Basílica de São João de Latrão



Queridos irmãos

no episcopado e no sacerdócio
Amados irmãos e irmãs!

"Ele, que amara os seus que estavam no mundo, levou o seu amor por eles até ao extremo" (
Jn 13,1): Deus ama a sua criatura, o homem; ama-o também na sua queda e não o abandona a si mesmo. Ele ama até ao fim. Vai até ao fim com o seu amor, até ao extremo: desce da sua glória divina. Depõe as vestes da sua glória divina e reveste-se com as do servo. Desce até à extrema baixeza da nossa queda. Ajoelha-se diante de nós e presta-nos o serviço do servo; lava os nossos pés sujos, para que possamos ser admitidos à mesa de Deus, para que nos tornemos dignos de nos sentarmos à sua mesa o que, por nós mesmos, nunca podemos nem devemos fazer.

Deus não é um Deus distante, demasiado distante e grande para se ocupar das nossas insignificâncias. Porque Ele é grande, pode interessar-se também pelas coisas pequenas. Porque Ele é grande, a alma do homem, o mesmo homem criado para o amor eterno, não é uma coisa pequena, mas grande e digna do seu amor. A santidade de Deus não é só um poder incandescente, diante do qual nós nos devemos retirar aterrorizados; é poder de amor e por isso é poder que purifica e restabelece.

Deus desce e torna-se escravo, lava-nos os pés para que possamos estar na sua mesa. Exprime-se nisto todo o mistério de Jesus Cristo. Nisto se torna visível o que significa redenção. O banho no qual nos lava é o seu amor pronto para enfrentar a morte. Só o amor tem aquela força purificadora que nos tira a nossa impureza e nos eleva às alturas de Deus. O banho que nos purifica é Ele mesmo que se doa totalmente a nós até às profundidades do seu sofrimento e da sua morte. Ele é continuamente este amor que nos lava; nos sacramentos da purificação o baptismo e o sacramento da penitência Ele está continuamente ajoelhado diante dos nossos pés e presta-nos o serviço do servo, o serviço da purificação, torna-nos capazes de Deus. O seu amor é inexaurível, vai verdadeiramente até ao fim.

"Vós estais limpos, mas não todos", diz o Senhor (Jn 13,10).

Nesta frase revela-se o grande dom da purificação que Ele nos faz, porque deseja estar à mesa juntamente connosco, deseja tornar-se o nosso alimento. "Mas não todos" existe o obscuro mistério da recusa, que com a vicissitude de Judas nos torna presentes e, precisamente na Quinta-Feira Santa, no dia em que Jesus faz a oferenda de Si, nos deve fazer reflectir. O amor do Senhor não conhece limites, mas o homem pode pôr-lhe um limite.

"Vós estais limpos, mas não todos": o que é que torna o homem impuro? É a recusa do amor, o não querer ser amado, o não amar. É a soberba que julga não precisar de purificação alguma, que se fecha à bondade salvífica de Deus. É a soberba que não quer confessar nem reconhecer que precisamos de purificação. Em Judas vemos a natureza desta recusa ainda mais claramente. Ele avalia Jesus segundo as categorias do poder e do sucesso: para ele só o poder e o sucesso são realidades, o amor não conta. E ele é ávido: o dinheiro é mais importante do que a comunhão com Jesus, mais importante do que Deus e o seu amor. E assim torna-se também mentiroso, ambíguo e vira as costas à verdade; quem vive na mentira perde o sentido da verdade suprema, de Deus. Desta forma ele endurece-se, torna-se incapaz da conversão, da volta confiante do filho pródigo, e deita fora a vida destruída.

"Vós estais limpos, mas não todos". Hoje, o Senhor admoesta-nos perante aquela auto-suficiência que põe um limite ao seu amor ilimitado. Convida-nos a imitar a sua humildade, a confiar-nos a ela, a deixar-nos "contagiar" por ela. Convida-nos por muito desorientados que nos possamos sentir a voltar para casa e a permitir que a sua bondade purificadora nos reanime e nos faça entrar na comunhão da mesa com Ele, com o próprio Deus.

Acrescentamos uma última palavra deste inexaurível texto evangélico: "dei-vos exemplo..." (Jn 13,15); "também vós vos deveis lavar os pés uns aos outros" (Jn 13,14). Em que consiste "lavar os pés uns aos outros"? Que significa concretamente? Eis que, qualquer obra de bondade pelo outro especialmente por quem sofre e por quantos são pouco estimados é um serviço de lava-pés. Para isto nos chama o Senhor: descer, aprender a humildade e a coragem da bondade e também a disponibilidade de aceitar a recusa e contudo confiar na bondade e perseverar nela. Mas existe ainda uma dimensão mais profunda. O Senhor limpa-nos da nossa indignidade com a força purificadora da sua bondade. Lavar os pés uns aos outros significa sobretudo perdoar-nos incansavelmente uns aos outros, recomeçar sempre de novo juntos, mesmo que possa parecer inútil. Significa purificar-nos uns aos outros suportando-nos mutuamente e aceitando ser suportados pelos outros; purificar-nos uns aos outros doando-nos reciprocamente a força santificadora da Palavra de Deus e introduzindo-nos no Sacramento do amor divino.

O Senhor purifica-nos e, por isso, ousamos aceder à sua mesa. Peçamos-lhe que conceda a todos nós a graça de podermos ser, um dia e para sempre, hóspedes do eterno banquete nupcial.
Amém!




Bento XVI Homilias 26306