Bento XVI Homilias 28506

Cracóvia, 28 de Maio de 2006: CONCELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA NO PARQUE DE BLONIA

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"Homens da Galileia, porque estais assim a olhar para o céu?" (
Ac 1,11)

Irmãos e irmãs, hoje, na esplanada de Blonia de Cracóvia ressoa de novo esta pergunta narrada nos Actos dos Apóstolos. Desta vez ela é dirigida a todos nós: "Porque estais a olhar para o céu?". Na resposta a esta pergunta está contida a verdade fundamental sobre a vida e sobre o destino do homem.

A pergunta em questão refere-se a duas atitudes relacionadas com as suas realidades, nas quais está inscrita a vida do homem: a terrena e a celeste. Primeiro, a realidade terrena: "Porque estais?" Porque estais na terra? Respondemos: estamos na terra, porque o Criador nos colocou como coroamento da obra da criação. O Deus omnipotente, em conformidade com o seu desígnio inefável de amor, criou o cosmos, tirou-o do nada. E depois de ter feito esta obra, chamou o homem à existência, criado à própria imagem e semelhança (cf. Gn 1,26-27). Concedeu-lhe a dignidade de filho de Deus e a imortalidade. Mas sabemos que o homem se perdeu, abusou do dom da liberdade e disse "não" a Deus, condenando-se desta forma a uma existência na qual entram o mal, o pecado, o sofrimento e a morte. Mas também sabemos que o próprio Deus não se resignou a essa situação e entrou directamente na história do homem, a qual se tornou história da salvação. "Estamos na terra", estamos radicados nela, dela crescemos. Aqui praticamos o bem nos vastos campos da existência quotidiana, no âmbito da esfera material, e também na espiritual: nas relações recíprocas, na edificação da comunidade humana, na cultura. Aqui experimentamos a fadiga do viandante a caminho rumo à meta pelas estradas complicadas, entre hesitações, tensões, incertezas, mas também na profunda consciência que mais cedo ou mais tarde este caminho chegará ao fim. E é então que nasce a reflexão: só isto? A terra na qual "nos encontramos" é o nosso destino definitivo?

Neste contexto, é preciso deter-se na segunda parte do interrogativo contido na primeira página dos Actos: "Porque estais assim a olhar para o céu?". Lemos que quando os Apóstolos tentaram chamar a atenção do Ressuscitado sobre a questão da reconstrução do reino terrestre de Israel, Ele "foi elevado ao céu à vista deles e uma nuvem subtraiu-o ao seu olhar". E eles "estavam com os olhos fixos no céu, para onde Jesus se afastava" (Ac 1,9-10). Estavam portanto fixando o céu, porque acompanhavam com o olhar Jesus Cristo, crucificado e ressuscitado, que era elevado ao céu. Não sabemos se se aperceberam naquele momento do facto de que precisamente diante deles se estava a abrir um horizonte magnífico, infinito, o ponto de chegada definitivo da peregrinação terrena do homem. Talvez o tenham compreendido só no dia de Pentecostes, iluminados pelo Espírito Santo. Contudo, para nós aquele acontecimento de há dois mil anos é muito claro. Somos chamados, permanecendo na terra, a fixar o céu, a orientar a atenção, o pensamento e o coração para o mistério inefável de Deus. Somos chamados a olhar na direcção da realidade divina, para a qual o homem está orientado desde a criação. Ali está contido o sentido definitivo da nossa vida.

Queridos irmãos e irmãs, com profunda emoção celebro hoje a Eucaristia na esplanada de Bonia de Cracóvia, lugar no qual várias vezes celebrou o Santo Padre João Paulo II durante as suas inesquecíveis viagens apostólicas no País natal. Durante a liturgia encontrava-se com o povo de Deus quase em todas as partes do mundo, mas não há dúvida de que todas as vezes a celebração da Santa Missa na esplanada de Blonia em Cracóvia, era para ele um acontecimento excepcional.

Voltava aqui com o pensamento e com o coração às raízes, às fontes da sua fé e do seu serviço na Igreja. Daqui via Cracóvia e toda a Polónia. Durante a primeira peregrinação à Polónia, a 10 de Junho de 1979, no final da sua homilia nesta esplanada, disse com saudades: "Permiti que eu, antes de vos deixar, dirija mais um olhar sobre Cracóvia, esta Cracóvia da qual cada pedra e cada tijolo me são queridos. E que daqui olhe mais uma vez para a Polónia...". Durante a última Santa Missa celebrada neste lugar a 18 de Agosto de 2002, na homilia disse: "Estou grato pelo convite para visitar a minha Cracóvia e pela hospitalidade que me foi oferecida" (n. 2). Desejo assumir estas palavras, fazê-las minhas e repeti-las hoje: agradeço-vos de coração "pelo convite para visitar Cracóvia e pela hospitalidade que me oferecestes". Cracóvia, a cidade de Karol Wojtyla e de João Paulo II, é também a minha Cracóvia! É também uma Cracóvia querida ao coração de grandes multidões de cristãos em todo o mundo, os quais sabem que João Paulo II chegou à colina do Vaticano desta cidade, da colina de Wawel, "de um País distante", o qual, graças a este acontecimento, se tornou um País querido a todos.

No início do segundo ano do meu pontificado vim à Polónia e a Cracóvia por uma necessidade do coração, como peregrino sobre as pegadas do meu Predecessor. Queria respirar o ar da sua Pátria. Queria olhar para a terra na qual nasceu e onde cresceu para assumir o incansável serviço a Cristo e à Igreja universal. Desejava antes de tudo encontrar-me com os homens vivos, os seus concidadãos, experimentar a vossa fé da qual ele tirou a linfa vital, e assegurar-me que estais firmes na fé. Aqui desejo também pedir a Deus que conserve em vós a herança da fé, da esperança e da caridade deixada ao mundo, e de modo particular a vós, por João Paulo II.

Saúdo cordialmente todas as pessoas reunidas na esplanada Blonia de Cracóvia, até onde o meu olhar alcança e mais além. Desejaria estreitar a mão de cada um de vós, fixando-vos nos olhos.

Abraço com o coração todos os que participam na nossa Eucaristia por meio da rádio e da televisão. Saúdo toda a Polónia! Saúdo as crianças e a juventude, as famílias e as pessoas sozinhas, os doentes e quantos sofrem no espírito e no corpo, que estão privados da alegria de viver. Saúdo todos os que com o seu trabalho de cada dia multiplicam o bem deste País. Saúdo os Polacos que vivem fora dos confins da Pátria, no mundo inteiro. Agradeço ao Cardeal Stanislaw Dziwisz, Arcebispo Metropolitano de Cracóvia, pelas cordiais palavras de boas-vindas. Saúdo o Senhor Cardeal Francesco Macharski e todos os Senhores Cardeais, os Bispos, os sacerdotes, as pessoas consagradas e os nossos hóspedes provenientes de numerosos Países, especialmente dos limítrofes. Saúdo o Senhor Presidente da República, o Senhor Primeiro-Ministro, os representantes das Autoridades do Estado, das territoriais e locais.

Queridos irmãos e irmãs, o mote da minha peregrinação em terra polaca, nas pegadas de João Paulo II, é constituído pelas palavras: "Permanecei firmes na fé". A exortação encerrada nestas palavras dirige-se a todos nós que formamos a comunidade dos discípulos de Cristo, dirige-se a cada um de nós. A fé é um acto humano muito pessoal que se realiza em duas dimensões. Crer significa antes de tudo aceitar como verdade aquilo que a nossa mente não compreende totalmente.

É preciso aceitar o que Deus nos revela sobre si mesmo, sobre nós mesmos e sobre a realidade que nos circunda, também a invisível, inefável, inimaginável. Este acto de aceitação da verdade revelada, alarga o horizonte do nosso conhecimento e permite-nos alcançar o mistério no qual a nossa existência está imergida. Não se concede facilmente um consentimento a este limite da razão.

E é precisamente aqui que a fé se manifesta na sua segunda dimensão: a de se confiar a uma pessoa não a uma pessoa ordinária, mas a Cristo. É importante aquilo em que cremos, mas ainda mais importante é aquele em quem cremos.

São Paulo fala-nos disto no trecho da Carta aos Efésios que foi lido hoje. Deus concedeu-nos um espírito de sabedoria e "os olhos do nosso coração, para sabermos que esperança nos vem do seu chamamento, que riqueza de glória contém a herança que Ele nos reserva entre os santos e como é extraordinariamente grande o seu poder para connosco, os crentes, de acordo com a eficácia, com a sua força poderosa" (cf. Ep 1,18-20). Crer significa abandonar-se a Deus, confiar o nosso destino a Ele. Crer significa estabelecer um vínculo muito pessoal com o nosso Criador e Redentor em virtude do Espírito Santo, e fazer com que este vínculo seja o fundamento de toda a vida.

Ouvimos hoje as palavras de Jesus: "Ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo" (Ac 1,8). Há séculos estas palavras chegaram também à terra polaca. Elas constituíram e continuam constantemente a constituir um desafio para todos os que admitem pertencer a Cristo, para os quais a sua causa é a mais importante. Devemos ser testemunhas de Jesus que vive na Igreja e nos corações dos homens. É Ele quem nos ensina uma missão. No dia da sua ascensão ao céu disse aos Apóstolos: "Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda a criatura... Eles, partindo, foram pregar por toda a parte; o Senhor cooperava com eles, confirmando a palavra com os sinais que o acompanhavam" (Mc 16,15 Mc 16,20). Queridos irmãos e irmãs! Juntamente com a eleição de Karol Wojtyla para a Sede de Pedro ao serviço de toda a Igreja, a vossa terra tornou-se lugar de um particular testemunho de fé em Jesus Cristo. Vós mesmos sois chamados a prestar este testemunho diante do mundo inteiro. Esta vossa vocação é sempre actual, e talvez ainda mais a partir do momento da bem-aventurada morte do Servo de Deus. Qua ao mundo não falte o vosso testemunho!

Antes de regressar a Roma, para continuar o meu ministério, exorto todos vós, recordando as palavras que João Paulo II pronunciou aqui no ano de 1979: "Deveis ser fortes, caríssimos irmãos e irmãs! Deveis ser fortes com aquela força que brota da fé! Deveis ser fiéis! Hoje mais do que em qualquer outra época tendes necessidade desta força. Deveis ser fortes com a força da esperança, que dá a perfeita alegria de viver e não permite entristecer o Espírito Santo! Deveis ser fortes de amor, que é mais forte que a morte... Deveis ser fortes com a força da fé, da esperança e da caridade, consciente, madura, responsável, que nos ajuda a estabelecer... o grande diálogo com o homem e com o mundo nesta etapa da nossa história: diálogo com o homem e com o mundo, radicado no diálogo com o próprio Deus com o Pai por meio do Filho no Espírito Santo diálogo da salvação" (10 de Junho de 1979, Homilia, n. 4).

Também eu, Bento XVI, Sucessor do Papa João Paulo II, vos peço que olheis da terra para o céu que fixeis Aquele que desde há 2000 anos é seguido pelas gerações que vivem e se sucedem nesta nossa terra, reencontrando n'Ele o sentido definitivo da existência. Fortalecidos pela fé em Deus, comprometei-vos com fervor na consolidação do seu Reino na terra: o Reino do bem, da justiça, da solidariedade e da misericórdia. Peço-vos que testemunheis com coragem o Evangelho perante o mundo de hoje, levando a esperança aos pobres, aos que sofrem, aos abandonados, aos desesperados, a todos os que têm sede de liberdade, de verdade e de paz. Fazendo o bem ao próximo e mostrando-vos solícitos pelo bem comum, testemunhai que Deus é amor.

Por fim, peço-vos que partilheis com os outros povos da Europa e do mundo o tesouro da fé, tendo também em consideração a memória do vosso Concidadão que, como Sucessor de São Pedro, fez isto com extraordinária força e eficiência. E recordai-vos também de mim nas vossas orações e nos vossos sacrifícios, como vos recordáveis do meu grande Predecessor, para que eu possa cumprir a missão que me foi confiada por Cristo. Peço-vos que permaneçais firmes na fé! Permanecei firmes na esperança! Permanecei firmes na caridade! Amém!




Sábado, 3 de Junho de 2006: CELEBRAÇÃO DAS PRIMEIRAS VÉSPERAS DA VIGÍLIA DE PENTECOSTES

ENCONTRO COM OS MOVIMENTOS ECLESIAIS E AS NOVAS COMUNIDADES

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Amados irmãos e irmãs

Viestes verdadeiramente em grande número esta tarde à Praça de São Pedro, para participar na Vigília de Pentecostes. Agradeço-vos de coração! Pertencentes a diversos povos e culturas, vós representais aqui todos os membros dos Movimentos eclesiais e das novas Comunidades, espiritualmente reunidos em redor do Sucessor de Pedro para proclamar a alegria de crer em Jesus Cristo, e renovar o compromisso de lhe serdes discípulos fiéis neste nosso tempo. Agradeço-vos a vossa participação e dirijo a cada um de vós a minha cordial saudação. Transmito o meu pensamento carinhoso em primeiro lugar aos Senhores Cardeais, aos venerados Irmãos no episcopado e no sacerdócio, aos religiosos e às religiosas. Saúdo os responsáveis das vossas numerosas realidades eclesiais, que mostram como é viva a acção do Espírito Santo no Povo de Deus. Saúdo as pessoas que prepararam este acontecimento extraordinário e, em particular, quantos trabalham no Pontifício Conselho para os Leigos, juntamente com o Secretário D. Josef Clemens, e o Presidente, D. Stanislaw Rylko, a quem agradeço também as cordiais expressões que me dirigiu no início da Liturgia das Vésperas. Volta com emoção à nossa memória o encontro análogo que teve lugar nesta mesma Praça, no dia 30 de Maio de 1998, com o amado Papa João Paulo II. Grande evangelizador da nossa época, ele acompanhou-vos e orientou-vos durante todo o seu Pontificado; várias vezes definiu "providenciais" as vossas Associações e Comunidades, sobretudo porque o Espírito santificador se serve delas para despertar a fé nos corações de numerosos cristãos e para fazer com que eles redescubram a vocação recebida mediante o Baptismo, ajudando-os a serem testemunhas de esperança, repletas daquele fogo de amor que é precisamente o dom do Espírito Santo.

Agora, nesta Vigília de Pentecostes, nós perguntamo-nos: quem ou o que é o Espírito Santo? Como podemos reconhecê-lo? De que modo vamos a Ele e Ele vem a nós? O que realiza? Uma primeira resposta recebêmo-la do grande hino pentecostal da Igreja, com o qual começamos as Vésperas: "Veni, Creator Spiritus... Vem, Espírito Criador...". Aqui, o hino refere-se aos primeiros versículos da Bíblia que, com o recurso a imagens, exprimem a criação do universo. Ali afirma-se sobretudo que acima do caos, sobre as águas do abismo, pairava o Espírito de Deus. O mundo em que vivemos é obra do Espírito Criador. O Pentecostes não é apenas a origem da Igreja e por isso, de modo especial, a sua festa; o Pentecostes é também uma festa da criação. O mundo não existe por si mesmo; provém do Espírito criativo de Deus, da Palavra criadora de Deus. E por este motivo reflecte inclusive a sabedoria de Deus. Na sua vastidão e na lógica omnicompreensiva das suas leis, ela deixa entrever algo do Espírito Criador de Deus. Exorta-nos ao temor reverencial.

Precisamente quem, como cristão, crê no Espírito Criador, toma consciência do facto de que não podemos usar e abusar do mundo e da matéria como de um simples objecto da nossa acção e da nossa vontade; que temos o dever de considerar a criação como um dom que nos foi confiado não para a destruição, mas para que se torne o jardim de Deus e assim um jardim do homem. Diante das múltiplas formas de abuso da terra que hoje vemos, ouvimos como que o gemido da criação, de que fala São Paulo (cf.
Rm 8,22); começamos a compreender as palavras do Apóstolo, ou seja, que a criação espera com impaciência a revelação dos filhos de Deus, para se tornar livre e alcançar o seu esplendor.

Queridos amigos, nós queremos ser estes filhos de Deus, que a criação espera, e podemos sê-lo porque no baptismo o Senhor nos tornou assim. Sim, a criação e a história elas esperam por nós, contam com homens e mulheres que realmente sejam filhos de Deus e se comportem de modo consequente. Se contemplamos a história, vemos que em redor dos mosteiros a criação conseguiu prosperar, assim como com o despertar do Espírito de Deus nos corações dos homens voltou o fulgor do Espírito Criador também sobre a terra um esplendor que tinha sido ofuscado, e por vezes até quase extinto, pelas barbáries da avidez de poder. E a mesma coisa acontece de novo em redor de Francisco de Assis acontece em toda a parte onde às almas chega o Espírito de Deus, este Espírito que o nosso hino qualifica como luz, amor e força. Deste modo encontramos uma primeira resposta à pergunta sobre o que é o Espírito Santo, o que Ele põe em acção e como é que podemos reconhê-lo. Ele vem ao nosso encontro através da criação e da sua beleza. Todavia, ao longo da história dos homens, a boa criação de Deus foi coberta por um estrato maciço de escórias que torna, se não impossível, de qualquer maneira difícil reconhecer nela o reflexo do Criador embora diante de um pôr-do-sol no mar, durante uma excursão à montanha ou à vista de uma flor desabrochada desperte em nós, sempre de novo e como que espontaneamente, a consciência da existência do Criador.

Mas o Espírito Criador vem em nossa ajuda. Ele entrou na história e assim fala-nos de uma maneira nova. Em Jesus Cristo, o próprio Deus fez-se homem e permitiu-nos, por assim dizer, lançar um olhar na intimidade do próprio Deus. E ali vemos algo totalmente inesperado: em Deus existe um Eu e um Tu. O Deus misterioso não constitui uma solidão infinita; Ele é um acontecimento de amor. Se do olhar sobre a criação pensamos que podemos entrever o Espírito Criador, o próprio Deus, como que uma matemática criativa, como um poder que plasma as leis do mundo e a sua ordem e, em seguida, contudo, inclusive como beleza agora é-nos dado saber: o Espírito Criador tem um Coração. Ele é Amor. Existe o Filho que fala com o Pai. E ambos são um só no Espírito Santo que é, por assim dizer, a atmosfera do doar e do amar, que faz deles um único Deus. Esta unidade de amor, que é Deus, constitui uma unidade muito mais sublime de quanto poderia ser a unidade de uma última partícula indivisível. Precisamente o Deus trino é o Deus uno.

Por meio de Jesus nós lançamos, por assim dizer, um olhar sobre a intimidade de Deus. No seu Evangelho, João expressou-o assim: "A Deus, jamais alguém O viu. O Filho unigénito, que é Deus e está no seio do Pai, foi Ele quem O deu a conhecer" (Jn 1,18). Todavia, Jesus não nos deixou somente olhar na intimidade de Deus; com Ele, Deus também como que saiu da sua intimidade e veio ao nosso encontro. Isto acontece sobretudo na sua vida, paixão, morte e ressurreição; na sua palavra. Mas Jesus não se contenta com vir ao nosso encontro. Ele quer mais. Deseja a unificação. Este é o significado das imagens do banquete e das bodas. Nós não devemos somente conhecer algo dele, mas através dele mesmo temos o dever de ser atraídos a Deus. Por isso, Ele deve morrer e ressuscitar. Porque agora já não se encontra num determinado lugar, mas o seu Espírito, o Espírito Santo, já emana dele e entra nos nossos corações, unindo-nos deste modo com o próprio Jesus e com o Pai com o Deus Uno e Trino.

O Pentecostes é isto: Jesus, e através dele o próprio Deus, vem a nós e atrai-nos para dentro de si. "Ele envia o Espírito Santo" assim se expressa a Escritura. Qual é o efeito disto? Em primeiro lugar, gostaria de relevar dois aspectos: o Espírito Santo, por meio de quem Deus vem a nós, dá-nos a vida e a liberdade. Observemos ambas um pouco mais de perto. "Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância", diz Jesus no Evangelho de João (Jn 10,10). Todos nós aspiramos à vida e à liberdade. Mas de que se trata, onde e como é que encontramos a "vida"?

Espontaneamente, penso que a esmagadora maioria dos homens tem o mesmo conceito de vida do filho pródigo, no Evangelho. Ele pediu a parte de património que lhe cabia, e agora sentia-se livre, queria finalmente viver já sem o peso dos afazeres de casa, queria simplesmente viver. Receber da vida tudo o que ela pode oferecer. Gozá-la plenamente viver, só viver, beber na abundância da vida e nada perder daquilo que de precioso ela pode oferecer. No final, acabou por se tornar guardião de porcos e chegou mesmo a invejar aqueles animais tão vazia se tinha tornado esta sua vida, tão inútil! E vã revelava-se inclusive a sua liberdade. Porventura não acontece também assim nos nossos dias?

Quando o homem quer somente apoderar-se da vida, ela torna-se cada vez mais vazia, mais pobre; termina-se facilmente por se refugiar na droga, na grande ilusão. E emerge a dúvida se, no final de contas, viver é verdadeiramente um bem. Não, deste modo nós não encontramos a vida. A palavra de Jesus sobre a vida em abundância encontra-se no discurso do Bom Pastor. É uma palavra que se põe num duplo contexto. Sobre o pastor, Jesus diz-nos que ele entrega a sua vida. "Ninguém tira a minha vida, mas sou Eu que a ofereço livremente" (cf. Jn 10,18). A vida só se encontra, quando é doada; ela não pode ser encontrada, desejando tomar posse dela. É isto que devemos aprender de Cristo; é isto que nos ensina o Espírito Santo, que é puro dom, que é o doar-se de Deus. Quanto mais alguém entrega a sua vida pelos outros, pelo próprio bem, tanto mais copiosamente corre o rio da vida. Em segundo lugar, o Senhor diz-nos que a vida desabrocha, quando caminhamos em companhia do Pastor, que conhece as pastagens os lugares onde brotam as nascentes da vida. Encontramos a vida na comunhão com Aquele que é a vida em pessoa na comunhão com o Deus vivo, uma comunhão em que somos introduzidos pelo Espírito Santo, denominado no hino das Vésperas como "fons vivus", fonte viva. A pastagem, onde correm as fontes da vida, é a Palavra de Deus como a encontramos na Escritura, na fé da Igreja. A pastagem é o próprio Deus que, na comunhão da fé, aprendemos a conhecer através do poder do Espírito Santo.

Estimados amigos, os Movimentos nasceram precisamente da sede da vida verdadeira; são Movimentos pela vida sob todos os aspectos. Onde já não corre a verdadeira fonte da vida, onde o homem somente se apodera da vida em vez de a entregar, ali está em perigo também a vida dos outros; ali está-se disposto a excluir a vida inerme nascitura, porque ela parece tirar espaço à própria vida. Se quisermos proteger a vida, então temos que voltar a encontrar sobretudo o manancial da vida; deste modo, a própria vida deve ressurgir em toda a sua beleza e sublimidade; então temos o dever de nos deixarmos vivificar pelo Espírito Santo, a fonte criativa da vida.

O tema da liberdade já foi mencionado há pouco. Com a partida do filho pródigo estão vinculados precisamente os temas da vida e da liberdade. Ele deseja a vida e por isso quer ser totalmente livre. Nesta visão, ser livre significa poder fazer tudo o que desejo; não ter que aceitar qualquer critério fora e acima de mim mesmo. Seguir exclusivamente o meu desejo e a minha vontade. Quem vive assim, embater-se-á depressa com o outro que quer viver desta mesma maneira. A consequência necessária deste conceito egoísta de liberdade é a violência, a destruição recíproca da liberdade e da vida. Ao contrário, a Sagrada Escritura une o conceito de liberdade ao de progenitura. São Paulo diz: "Vós não recebestes um Espírito que vos escraviza e volta a encher-vos de medo; mas recebestes um Espírito que faz de vós filhos adoptivos. É por Ele que clamamos: Abbá, ó Pai!" (Rm 8,15).

O que é que isto significa? São Paulo pressupõe nisto o sistema social do mundo antigo, em que existiam os escravos, aos quais nada pertencia e que por isso não podiam interessar-se por um recto desenvolvimento dos acontecimentos. Correspondentemente havia os filhos, que eram também os herdeiros e que por este motivo se preocupavam com a conservação e a boa administração da sua propriedade ou com a preservação do Estado. Dado que eram livres, tinham também uma responsabilidade. Prescindindo do contexto sociológico daquela época, é válido sempre este princípio: a liberdade e a responsabilidade caminham juntas. A verdadeira liberdade demonstra-se na responsabilidade, num modo de agir que assume sobre si a co-responsabilidade pelo mundo, por si mesmo e pelos outros. Livre é o filho, a quem pertencem as coisas e que por isso não permite que as mesmas sejam destruídas. Todas as responsabilidades mundanas, de que falamos, são contudo responsabilidades parciais, por um determinado âmbito, por um certo Estado, etc. O Espírito Santo, pelo contrário, torna-nos filhos e filhas de Deus. Ele compromete-nos nesta mesma responsabilidade de Deus pelo seu mundo, pela humanidade inteira. Ensina-nos a contemplar o mundo, o próximo e nós mesmos com os olhos de Deus.

Nós realizamos o bem não como escravos, que não são livres de agir de outra forma, mas fazemo-lo porque temos pessoalmente a responsabilidade pelo mundo; porque amamos a verdade e o bem, porque amamos o próprio Deus e portanto também as suas criaturas. Esta é a liberdade verdadeira, para a qual o Espírito Santo nos quer conduzir. Os Movimentos eclesiais querem e devem ser escolas de liberdade, desta liberdade genuína. Ali queremos aprender esta verdadeira liberdade, e não aquela dos escravos, que visa cortar para si mesma uma fatia do bolo de todos, mesmo que venha a faltar aos demais. Nós desejamos a liberdade verdadeira e grande, a dos herdeiros, a liberdade dos filhos de Deus. Neste mundo, tão repleto de liberdades simuladas que aniquilam o meio ambiente e o homem, queremos com a força do Espírito Santo aprender em conjunto a liberdade autêntica; construir escolas de liberdade; demonstrar aos outros, com a vida, que somos livres e como é bonito ser verdadeiramente livres na autêntica liberdade dos filhos de Deus.

Ao doar a vida e a liberdade, o Espírito Santo oferece também a unidade. Trata-se de três dons inseparáveis entre si. Já falei demasiado; no entanto, permiti-me dizer ainda uma breve palavra sobre a unidade. Para a compreender, pode ser-nos útil uma frase que, num primeiro momento, parece contrariamente afastar-nos dela. A Nicodemos que, na sua busca da verdade, vai de noite ter com Jesus com as suas interrogações, Ele responde: "O Espírito sopra onde quer" (Jn 3,8).

Mas a vontade do Espírito não é arbítrio. É a vontade da verdade e do bem. Por isso, Ele não sopra em toda a parte, virando uma vez aqui e a outra ali; o seu sopro não nos dispersa, mas reúne-nos, porque a verdade une como o amor une.

O Espírito Santo é o Espírito de Jesus Cristo, o Espírito que une o Pai ao Filho no Amor que, no único Deus, doa e recebe. Ele une-nos de tal modo, que certa vez São Paulo pôde dizer: "Todos vós sois um só em Cristo Jesus" (Ga 3,28). Com o seu sopro, o Espírito Santo impele-nos rumo a Cristo. O Espírito Santo age corporalmente, e não apenas sob os pontos de vista subjectivo, "espiritual". Aos discípulos que O consideravam somente um "espírito", Cristo ressuscitado disse: "Sou Eu mesmo! Tocai-me e olhai; um simples espírito um fantasma não tem carne nem ossos, como verificais que Eu tenho" (cf. Lc 24,39). Isto é válido para Cristo ressuscitado, em todas as épocas da história. Cristo ressuscitado não é um fantasma, não é somente um pensamento, uma ideia. Ele permaneceu o Encarnado ressuscitou Aquele que assumiu a nossa carne e continua sempre a edificar o seu Corpo, fazendo de nós o seu Corpo. O Espírito sopra onde quer, e a sua vontade é a unidade que se faz corpo, a unidade que encontra o mundo e o transforma.

Na Carta aos Efésios, São Paulo diz-nos que este Corpo de Cristo, que é a Igreja, contém junturas (cf. Ep 4,16), e chega a enumerá-las: são os Apóstolos, os Profetas, os Evangelistas, os Pastores e os Mestres (cf. Ep 4,11). Nos seus dons o Espírito é multiforme, como podemos ver aqui.

Se consideramos a história, se olhamos esta assembleia aqui na Praça de São Pedro então compreendemos como Ele suscita sempre novas dádivas; observamos como são diferentes os órgãos que Ele cria; e como, sempre de novo, age corporalmente. No entanto, nele a multiplicidade e a unidade caminham juntas. Ele sopra onde quer. E fá-lo de maneira inesperada, em lugares imprevistos e de maneiras precedentemente inimagináveis. E com que multiformidade e corporeidade o faz! É também precisamente aqui que a multiplicidade e a unidade são inseparáveis entre si. Ele quer a vossa multiformidade, e deseja que sejais o seu único corpo, na união com as ordens duradouras as junturas da Igreja, com os sucessores dos Apóstolos e com o Sucessor de São Pedro.

Ele não nos poupa o cansaço de aprender o modo de nos relacionarmos uns com os outros; mas demonstra-nos também que age em vista do único corpo e na unidade do único corpo. É exclusiva e precisamente assim que a unidade alcança a sua força e a sua beleza. Participai na edificação do único corpo! Os pastores estarão atentos a não apagar o Espírito (cf. 1Th 5,19), e vós não cessareis de oferecer as vossas dádivas à comunidade inteira. Uma vez mais: o Espírito sopra onde quer. No entanto, a sua vontade é a unidade. Ele conduz-nos rumo a Cristo, no seu Corpo. "É a partir dele [de Cristo] diz-nos São Paulo que o Corpo inteiro, bem ajustado e unido, por meio de toda a espécie de junturas que O sustentam, segundo uma força à medida de cada uma das partes, realiza o seu crescimento como Corpo, para se construir a si próprio no amor" (Ep 4,16).

O Espírito Santo deseja a unidade, quer a totalidade. Por este motivo, a sua presença demonstra-se finalmente também no impulso missionário. Quem encontrou algo de verdadeiro, de belo e de bom na sua própria vida o único tesouro autêntico, a pérola inestimável! corre para o compartilhar em toda a parte, na família e no trabalho, em todos os âmbitos da sua existência. E fá-lo sem qualquer temor, porque sabe que recebeu a adopção de filho; sem qualquer presunção, porque tudo é dádiva; e sem desânimo, porque o Espírito de Deus precede a sua acção no "coração" dos homens e como semente nas mais diversificadas culturas e religiões. Fá-lo sem fronteiras, porque é portador de uma boa notícia destinada a todos os homens e a todos os povos.

Estimados amigos, peço-vos que sejais ainda mais, muito mais, colaboradores no ministério apostólico universal do Papa, abrindo as portas a Cristo. Este é o melhor serviço da Igreja aos homens e, de maneira totalmente particular, aos pobres, a fim de que a vida da pessoa, uma ordem mais justa na sociedade e a convivência pacífica entre as nações encontrem em Cristo a "pedra angular" sobre a qual construir a autêntica civilização, a civilização do amor. O Espírito Santo oferece aos fiéis uma visão superior do mundo, da vida e da história, fazendo deles guardiães da esperança que não engana.

Portanto oremos ao Deus Pai, por meio de nosso Senhor Jesus Cristo, na graça do Espírito Santo, a fim de que a celebração da Solenidade do Pentecostes seja como um fogo ardente e um vento impetuoso para a vida cristã e para a missão de toda a Igreja. Deposito as intenções dos vossos Movimentos e das vossas Comunidades no Coração da Santíssima Virgem Maria, presente no Cenáculo juntamente com os Apóstolos; que Ela suplique a realização concreta das mesmas. Sobre todos vós, invoco a efusão dos dons do Espírito, a fim de que nesta nossa época consiga realizar-se a experiência de um renovado Pentecostes. Amém!



Domingo, 4 de Junho de 2006: NA SOLENIDADE DE PENTECOSTES

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Queridos irmãos e irmãs!

No dia de Pentecostes o Espírito Santo desceu com poder sobre os Apóstolos; teve assim início a missão da Igreja no mundo. O próprio Jesus tinha preparado os Onze para esta missão aparecendo-lhes várias vezes depois da sua ressurreição (cf.
Ac 1,3). Antes da ascensão ao Céu, ordenou que "não se afastassem de Jerusalém, mas que aguardassem que se cumprisse a promessa do Pai" (cf. Ac 1,4-5); isto é, pediu que permanecessem juntos para se prepararem para receber o dom do Espírito Santo. E eles reuniram-se em oração com Maria no Cenáculo à espera do acontecimento prometido (cf. Ac 1,14).

Permanecer juntos foi a condição exigida por Jesus para receber o dom do Espírito Santo; pressuposto da sua concórdia foi uma oração prolongada. Desta forma, encontramos delineada uma formidável lição para cada comunidade cristã. Por vezes pensa-se que a eficiência missionária dependa principalmente de uma programação atenta e da sucessiva inteligente realização mediante um empenho concreto. Sem dúvida, o Senhor pede a nossa colaboração, mas antes de qualquer resposta nossa é necessária a sua iniciativa: é o seu Espírito o verdadeiro protagonista da Igreja. As raízes do nosso ser e do nosso agir estão no silêncio sábio e providente de Deus.

As imagens que São Lucas usa para indicar o irromper do Espírito Santo o vento e o fogo recordam o Sinai, onde Deus se tinha revelado ao povo de Israel e lhe tinha concedido a sua aliança (cf. Ex 19,3ss). A festa do Sinai, que Israel celebrava cinquenta dias depois da Páscoa, era a festa do Pacto. Falando de línguas de fogo (cf. Ac 2,3), São Lucas quer representar o Pentecostes como um novo Sinai, como a festa do novo Pacto, na qual a Aliança com Israel se alargaatodos os povos da Terra. A Igreja é católica e missionária desde a sua origem. A universalidade da salvação é significativamente evidenciada pelo elenco das numerosas etnias a que pertencem todos os que ouvem o primeiro anúncio dos Apóstolos (cf. Ac 2,9-11).

O Povo de Deus, que tinha encontrado no Sinai a sua primeira configuração, hoje é ampliado a ponto de não conhecer qualquer fronteira de raça, cultura, espaço ou tempo. Diferentemente do que tinha acontecido com a torre de Babel (cf. Jn 11,1-9), quando os homens, intencionados a construir com as suas mãos um caminho para o céu, tinham acabado por destruir a sua própria capacidade de se compreenderem reciprocamente. No Pentecostes o Espírito, com o dom das línguas, mostra que a sua presença une e transforma a confusão em comunhão. O orgulho e o egoísmo do homem geram sempre divisões, erguem muros de indiferença, de ódio e de violência.

O Espírito Santo, ao contrário, torna os corações capazes de compreender as línguas de todos, porque restabelece a ponte da comunicação autêntica entre a Terra e o Céu. O Espírito Santo é Amor.

Mas como entrar no mistério do Espírito Santo, como compreender o segredo do Amor? A página evangélica conduz-nos hoje ao Cenáculo onde, tendo terminado a última Ceia, um sentido de desorientação entristece os Apóstolos. A razão é que as palavras de Jesus suscitam interrogativos preocupantes: Ele fala do ódio do mundo para com Ele e para com os seus, fala de uma sua misteriosa partida e há muitas outras coisas ainda para dizer, mas no momento os Apóstolos não são capazes de carrregar o seu peso (cf. Jn 16,12). Para os confortar explica o significado do seu afastamento: irá mas voltará; entretanto não os abandonará, não os deixará órfãos. Enviará o Consolador, o Espírito do Pai, e será o Espírito que dará a conhecer que a obra de Cristo é obra de amor: amor d'Ele que se ofereceu, amor do Pai que o concedeu.

É este o mistério do Pentecostes: o Espírito Santo ilumina o espírito humano e, revelando Cristo crucificado e ressuscitado, indica o caminho para se tornar mais semelhantes a Ele, isto é, ser "expressão e instrumento do amor que d'Ele promana" (Deus caritas est ). Reunida com Maria, como na sua origem, a Igreja hoje reza: "Veni Sancte Spiritus! Vem, Espírito Santo, enche os corações dos teus fiéis e acende neles o fogo do teu amor!".

Amém.





Bento XVI Homilias 28506