Bento XVI Homilias 40606


Quinta-feira, 15 de Junho de 2006: NA SOLENIDADE DE CORPUS CHRISTI

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Queridos irmãos e irmãs!


Na vigília da sua Paixão, durante a Ceia pascal, o Senhor tomou o pão nas suas mãos assim ouvimos há pouco no Evangelho e, tendo pronunciado a bênção, partiu-o e "entregou-o aos discípulos, dizendo: "Tomai: isto é o meu corpo". Depois, tomou o cálice, deu graças e entregou-lho. Todos beberam dele. E Ele disse-lhes: "Isto é o meu sangue da aliança, que vai ser derramado por todos"" (
Mc 14,22-24). Toda a história de Deus com os homens está resumida nestas palavras. Não foi só recolhido e interpretado no passado, mas antecipado também no futuro a vinda do Reino de Deus ao mundo. Aquilo que Jesus diz, não são simplesmente palavras. O que Jesus diz, é acontecimento, o acontecimento central da história do mundo e da nossa vida pessoal.
Estas palavras são inexauríveis. Gostaria de meditar convosco neste momento apenas um aspecto.

Jesus, como sinal da sua presença, escolheu pão e vinho. Com cada um dos dois sinais doa-se totalmente, e não só uma parte de si. O Ressuscitado não está dividido. Ele é uma pessoa que, mediante os sinais, se aproxima de nós e se une a nós. Mas os sinais representam, a seu modo, cada aspecto particular do Seu mistério e, com o seu típico manifestar-se, querem falar-nos, para que aprendamos a compreender um pouco mais o mistério de Jesus Cristo.

Durante a procissão e a adoração nós olhamos para a Hóstia consagrada o tipo mais simples de pão e de alimento, feito apenas com farinha e água. Assim vemo-lo como o alimento dos pobres, aos quais em primeiro lugar o Senhor destinou a sua proximidade. A oração com a qual a Igreja durante a liturgia da Missa entrega este pão ao Senhor, qualifica-o como fruto da terra e do trabalho do homem. Nele está contida a fadiga humana, o trabalho quotidiano de quem cultiva a terra, semeia e recolhe e finalmente prepara o pão. Contudo o pão não é simples e somente o nosso produto, uma coisa feita por nós; é fruto da terra e portanto também dom. Porque o facto que a terra dá frutos, não é merecimento nosso; só o Criador lhe podia conferir a fertilidade. E agora podemos alargar um pouco mais esta oração da Igreja, dizendo: o pão é fruto da terra e, ao mesmo tempo, do céu.

Pressupõe a sinergia das forças da terra e dos dons do alto, isto é, do sol e da chuva. E também a água, da qual temos necessidade para preparar o pão, não a podemos produzir nós. Num período, no qual se fala da desertificação e sentimos sempre de novo denunciar o perigo de que homens e animais morram de sede nestas regiões sem água neste período damo-nos conta da grandeza do dom também da água e de quanto somos incapazes de o obter sozinhos. Então, olhando mais de perto, vemos este pequeno pedaço de Hóstia branca, este pão dos pobres, como uma síntese da criação. Céu e terra, assim como a actividade e o espírito do homem, concorrem.

A sinergia das forças que torna possível no nosso pobre planeta o mistério da vida e a existência do homem, vem ao nosso encontro em toda a sua maravilhosa grandeza. Assim começamos a compreender porque o Senhor escolhe este pedaço de pão como símbolo seu. A criação com todos os seus dons aspira para além de si mesma a algo de maior. Além da síntese das próprias forças, além da síntese também de natureza e de espírito que, de certa forma, sentimos no pedaço de pão, a criação inclina-se para a divinização, para as santas núpcias, para a unificação com o próprio Criador.

Mas ainda não explicamos profundamente a mensagem deste sinal do pão. O Senhor mencionou o seu mistério mais profundo no Domingo de Ramos, quando lhe foi feito o pedido da parte de alguns para se encontrarem com Ele. Na sua resposta a esta pergunta encontra-se a frase: "Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto" (Jn 12,24). No pão feito de grãos moídos está encerrado o mistério da Paixão.

A farinha, o grão moído, pressupõe morrer e ressuscitar do grão. Ao ser moído e cozido ele tem em si mais uma vez o mesmo mistério da Paixão. Só através do morrer consegue ressuscitar, dá o fruto e a vida nova. As culturas do Mediterrâneo, nos séculos antes de Cristo, intuíram profundamente este mistério. Com base na experiência deste morrer e ressurgir conceberam mitos de divindades que, morrendo e ressuscitando, davam vida nova.

O céu da natureza parecia-lhes como que uma promessa divina no meio das trevas do sofrimento e da morte que nos são impostos. Nestes mitos a alma dos homens, de certa forma, inclinam-se para aquele Deus que se fez homem, se humilhou até à morte na cruz e assim abriu a todos nós a porta da vida. No pão e no seu transformar-se, os homens descobriram como que uma expectativa da natureza, como que uma promessa da natureza de que isto deveria ter existido: o Deus que morre neste mundo conduz-nos à vida.

O que nos mitos era expectativa e que no mesmo grão está escondido como sinal da esperança da criação isto aconteceu realmente em Cristo. Através do seu sofrer e morrer livremente, Ele tornou-se pão para todos nós, e com isto esperança viva e fidedigna: Ele acompanha-nos em todos os nossos sofrimentos até à morte. Os caminhos que Ele percorre connosco e através dos quais nos conduz à vida são caminhos de esperança.

Quando nós olhamos para a Hóstia consagrada em adoração, o sinal da criação fala-nos. Então encontramos a grandeza do seu dom; mas encontramos também a Paixão, a Cruz de Jesus e a sua ressurreição. Mediante este olhar em adoração, Ele atrai-nos para si, para dentro do seu mistério, por meio do qual nos quer transformar como transformou a Hóstia.

A Igreja primitiva encontrou ainda no pão outro simbolismo. A Doutrina dos doze Apóstolos, um livro escrito por volta do ano 100, contém entre as suas orações a afirmação: "Assim como este pão partido estava disperso pelas colinas e ao ser recolhido se tornou uma só coisa, também a tua Igreja dos confins da terra seja reunida no teu Reino" (IX, 4). O pão feito por muitos grãos encerra também um acontecimento de união: o tornar-se pão dos grãos moídos é um processo de unificação. Nós próprios, sendo muitos, devemos tornar-nos um só pão, um só corpo, diz-nos São Paulo (cf. 1Co 10,17). Assim o sinal do pão torna-se ao mesmo tempo esperança e tarefa.

De maneira análoga nos fala também o sinal do vinho. Mas, enquanto o pão nos remete para a quotidianidade, para a simplicidade e para a peregrinação, o vinho expressa o requinte da criação: a festa da alegria que Deus nos quer oferecer no fim dos tempos e que já antecipa agora sempre de novo levemente mediante este sinal. Mas o vinho também fala da Paixão: a videira deve ser podada repetidamente para assim ser purificada; as uvas devem amadurecer sob o sol e sob a chuva e deve ser esmagada: só através desta paixão amadurece um vinho precioso.

Na festa de Corpus Christi olhamos sobretudo para o sinal do pão. Ele recorda-nos também a peregrinação de Israel durante os quarenta anos no deserto. A Hóstia é o nosso maná com o qual o Senhor nos alimenta é verdadeiramente o pão do céu, mediante o qual Ele se doa a si mesmo. Na procissão nós seguimos este sinal e assim seguimos a Ele próprio.

E imploramo-l'O: guia-nos pelos caminhos desta nossa história! Mostra sempre de novo à Igreja e aos seus Pastores o caminho justo! Olha para a humanidade que sofre, que vagueia insegura entre tantas interrogações; olha para a fome física e psíquica que a atormenta! Concede aos homens pão para o corpo e para a alma! Dá-lhe trabalho! Concede-lhe luz! Concede-te a ti mesmo a ela!

Purifica e santifica todos nós! Faz-nos compreender que só mediante a participação na tua Paixão, mediante o "sim" à cruz, à renúncia, às purificações que nos impões, a nossa vida pode amadurecer e alcançar o seu verdadeiro cumprimento. Reúne-nos de todos os confins da terra. Une a tua Igreja, une a humanidade dilacerada! Concede-nos a tua salvação! Amém!




Quinta-feira, 29 de Junho de 2006: BÊNÇÃO E IMPOSIÇÃO DOS PÁLIOS

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SOLENIDADE DOS SANTOS PEDRO E PAULO



"Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja" (Mt 16,18). O que diz exactamente o Senhor a Pedro com estas palavras? Que promessa lhe faz com elas e que cargo lhe confia? E que diz a nós ao Bispo de Roma, que está na Cátedra de Pedro, e à Igreja de hoje?


Se quisermos compreender o significado das palavras de Jesus, é útil recordar-se de que os Evangelhos nos narram três situações diversas nas quais o Senhor, sempre de maneira diversa, transmite a Pedro a tarefa que lhe competirá. Trata-se sempre da mesma tarefa, mas torna-se mais claro para nós, pela diversidade das situações e das imagens usadas o que nele interessava e interessa o Senhor.

No Evangelho de São Mateus que ouvimos há pouco, Pedro faz sua a confissão a Jesus reconhecendo-o como Messias e Filho de Deus. Com base nisto é-lhe conferida a sua tarefa particular mediante três imagens: a da rocha que se torna pedra de fundamento ou pedra angular, a das chaves e a de ligar e desligar.

Neste momento não pretendo interpretar mais uma vez estas três imagens que a Igreja, ao longo dos séculos, explicou sempre de novo: desejaria ao contrário chamar a atenção para o lugar geográfico e para o contexto cronológico destas palavras. A promessa é feita perto das fontes do Jordão, na fronteira com a terra judaica, no confim com o mundo pagão.

O momento da promessa marca uma viragem decisiva no caminho de Jesus: agora o Senhor encaminha-se para Jerusalém e, pela primeira vez, diz aos discípulos que este caminho para a Cidade Santa é o caminho da Cruz: "A partir desse momento, Jesus Cristo começou a fazer ver aos seus discípulos que tinha de ir a Jerusalém e sofrer muito, da parte dos anciãos, dos sumos sacerdotes e dos doutores da Lei, ser morto e, ao terceiro dia, ressuscitar" (Mt 16,21).

Os dois aspectos caminham juntos e determinam o lugar interior da Primazia, antes da Igreja em geral: continuamente o Senhor está a caminho da Cruz, da humilhação do servo de Deus sofredor e morto, mas ao mesmo tempo está também sempre a caminho da vastidão do mundo, na qual Ele nos precede como Ressuscitado, para que resplandeça no mundo a luz da sua palavra e a presença do seu amor; está a caminho porque através d'Ele, de Cristo crucificado e ressuscitado, o próprio Deus chegue ao mundo. Neste sentido Pedro, na sua Primeira Carta, qualifica-se como "testemunha dos sofrimentos de Cristo e partícipe da glória que deve manifestar-se" (1P 5,1).

Para a Igreja a Sexta-Feira Santa e a Páscoa existem sempre juntas; ela é sempre tanto o grão de mostarda como a árvore entre cujos ramos os pássaros do céu fazem o ninho. A Igreja e nela Cristo sofre hoje também. Nela Cristo é sempre escarnecido de novo e atingido; sempre de novo se procura pô-lo fora do mundo. Sempre de novo a pequena barca da Igreja é abalada pelo vento das ideologias, que com as suas águas penetram nela e parecem condená-la a afundar.

E contudo, precisamente na Igreja sofredora Cristo é vitorioso. Apesar de tudo, a fé n'Ele retoma força sempre de novo. Também hoje o Senhor ordena às águas e demonstra-se o Senhor dos elementos. Ele permanece na sua barca, na barca da Igreja. Assim também no ministério de Pedro se revela, por um lado, a debilidade do que é próprio do homem, mas ao mesmo tempo também a força de Deus: precisamente na debilidade dos homens o Senhor manifesta a sua força; demonstra que é Ele mesmo quem constrói, através de homens débeis, a sua Igreja.

Dirijamo-nos agora ao Evangelho de São Lucas que nos narra como o Senhor, durante a Última Ceia, confere de novo uma tarefa especial a Pedro (cf. Lc 22,31-33). Esta vez as palavras de Jesus dirigidas a Simão encontram-se imediatamente depois da instituição da Santíssima Eucaristia. O Senhor acabou de se oferecer aos seus, sob as espécies do pão e do vinho. Podemos ver na instituição da Eucaristia o verdadeiro e próprio acto fundador da Igreja. Através da Eucaristia o Senhor doa aos seus não só a si mesmo, mas também a realidade de uma nova comunhão entre eles que se prolonga nos tempos "até à Sua vinda" (cf. 1Co 11,26).

Mediante a Eucaristia os discípulos tornam-se a sua casa viva que, ao longo da história, cresce como o templo de Deus novo e vivente neste mundo. E assim Jesus, logo após a instituição do Sacramento, fala do que significa ser discípulos, o "ministério" na nova comunidade: diz que ele é um compromisso de serviço, assim como Ele próprio se encontra no meio deles como Aquele que serve. E então dirige-se a Pedro. Diz que Satanás pediu para poder examinar os discípulos como o grão. Isto recorda o trecho do Livro de Job, no qual Satanás pede a Deus a faculdade de atingir Job. O diabo o caluniador de Deus e dos homens quer provar com isto que não existe uma verdadeira religiosidade, mas que no homem tudo tem sempre e unicamente por objectivo a utilidade.

No caso de Job, Deus concede a Satanás a liberdade exigida precisamente para poder com ela defender a sua criatura, o homem e a si mesmo. Acontece assim também com os discípulos de Jesus Deus dá uma certa liberdade a Satanás em todos os tempos. Com frequência parece-nos que Deus conceda demasiada liberdade a Satanás; que lhe conceda a faculdade de nos despertar de maneira demasiado terrível; e que isto supere as nossas forças e nos oprima demasiado.

Bradaremos sempre de novo a Deus: Ai de mim, olha para a miséria dos teus discípulos, protege-nos! De facto Jesus continua: "Mas eu roguei por ti, para que a tua fé não desapareça" (Lc 22,32). A oração de Jesus é o limite colocado ao poder do maligno. A oração de Jesus é a protecção da Igreja.

Podemos refugiar-nos sob esta protecção, apegar-nos a ela e ter a sua certeza. Mas como nos diz o Evangelho Jesus reza de modo especial por Pedro: "... para que a tua fé nunca desfaleça". Esta oração de Jesus é ao mesmo tempo promessa e tarefa. A Oração de Jesus tutela a fé de Pedro; aquela fé que ele lhe confessou em Cesareia de Filipe: "Tu és Cristo, o Filho do Deus vivo" (Mt 16,16).

Eis: nunca permitir que esta fé se torne muda, fortalecê-la sempre de novo, precisamente também perante a cruz e todas as contradições do mundo: é esta a tarefa de Pedro. Por isso o Senhor não reza só pela fé pessoal de Pedro, mas pela sua fé como serviço aos outros. É precisamente isto que Ele pretende dizer com as palavras: "E tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos" (Lc 22,32).

"E tu, uma vez convertido" estas palavras são ao mesmo tempo profecia e promessa. Elas profetizam a debilidade de Simão que, perante uma serva e um servo, negará que conhece Jesus.

Através desta queda de Pedro e com ele qualquer sucessor seu deve aprender que a própria força sozinha não é suficiente para edificar e guiar a Igreja do Senhor. Ninguém consegue sozinho. Por mais que Pedro pareça ser capaz e bom já no primeiro momento da prova falha. "E tu, uma vez convertido" o Senhor, que lhe prediz a queda, também lhe promete a conversão: "Voltando-se, o Senhor fixou os olhos em Pedro..." (Lc 22,61).

O olhar de Jesus realiza a transformação e torna-se a salvação de Pedro: Ele, "saindo para fora, chorou amargamente" (Lc 22,62). Queremos implorar sempre de novo este olhar salvador de Jesus: para todos os que, na Igreja, ocupam uma responsabilidade; para todos os que sofrem devido às confusões deste tempo; para os grandes e para os pequenos: Senhor, olha para nós sempre de novo e assim eleva-nos de todas as nossas quedas e toma-nos nas tuas mãos bondosas.

O Senhor confia a Pedro a tarefa pelos irmãos através da promessa da sua oração. O cargo de Pedro está ancorado na oração de Jesus. É isto que lhe dá a segurança da sua perseverança através de todas as misérias humanas. E o Senhor confia-lhe este cargo no contexto da Ceia, em simultâneo com o dom da Santíssima Eucaristia. A Igreja, fundada na instituição da Eucaristia, no seu íntimo é comunidade eucarística e desta forma comunhão com o Corpo do Senhor.

A tarefa de Pedro é presidir a esta comunhão universal; mantê-la presente no mundo como unidade também visível, encarnada. Ele, juntamente com toda a Igreja de Roma, deve como diz Santo Inácio de Antioquia presidir à caridade: presidir à comunidade daquele amor que provém de Cristo e, sempre de novo, ultrapassa os limites do privado para levar o amor de Cristo até aos confins da terra.

A terceira referência à Primazia encontra-se no Evangelho de São João (Jn 21,15-19). O Senhor ressuscitou, e como Ressuscitado confia a Pedro o seu rebanho. Também aqui se compenetram reciprocamente a Cruz e a Ressurreição. Jesus prediz a Pedro que o seu caminho irá em direcção à cruz. Nesta Basílica erigida em cima do túmulo de Pedro um túmulo pobre vemos que o Senhor vence sempre precisamente assim, através da Cruz.

O seu poder não é um poder segundo as modalidades deste mundo. É o poder do bem da verdade e do amor, que é mais forte que a morte. Sim, a sua promessa é verdadeira: os poderes da morte, as portas do inferno não prevalecerão contra a Igreja que Ele edificou sobre Pedro (cf. Mt 16,18) e que Ele, precisamente desta forma, continua a edificar pessoalmente.

Nesta solenidade dos santos Apóstolos Pedro e Paulo dirijo-me de modo especial a vós, queridos Metropolitanos, que viestes de numerosos Países do mundo para receber do Sucessor de Pedro o Pálio. Saúdo-vos cordialmente juntamente com quantos vos acompanharam. Saúdo também com alegria particular a Delegação do Patriarcado Ecuménico presidida por Sua Eminência Joannis Zizioulas, Metropolitano de Pérgamo, co-Presidente da Comissão Mista Internacional para o diálogo teológico entre católicos e ortodoxos. Estou grato ao Patriarca Bartolomeu I e ao Santo Sínodo por este sinal de fraternidade, que torna evidente o desejo e o compromisso de progredir mais rapidamente pelo caminho da unidade plena que Cristo invocou para todos os seus discípulos.

Nós sentimos que partilhamos o desejo ardente expresso um dia pelo Patriarca Atenágoras e pelo Papa Paulo VI: beber juntos do mesmo Cálice e comer juntos do mesmo pão que é o próprio Senhor. Imploramos de novo, nesta ocasião, que este dom nos seja concedido depressa. E agradecemos ao Senhor que nos encontremos unidos na confissão que Pedro fez em Cesareia de Filipe a todos os discípulos: "Tu és Cristo, o Filho do Deus vivo". Queremos levar juntos esta confissão ao mundo de hoje. Ajude-nos o Senhor a sermos, precisamente nesta hora da nossa história, verdadeiras testemunhas dos seus sofrimentos e partícipes da glória que deve manifestar-se (1P 5,1). Amém.




Domingo, 9 de Julho de 2006: VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA BENTO XVI A VALÊNCIA (ESPANHA) POR OCASIÃO DO V ENCONTRO MUNDIAL DAS FAMÍLIAS

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NA CONCELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA POR OCASIÃO DO ENCERRAMENTO DO V ENCONTRO MUNDIAL DAS FAMÍLIAS



Cidade das Artes e das Ciências



Queridos irmãos e irmãs!

Nesta Santa Missa que tenho a imensa alegria de presidir, concelebrando com numerosos Irmãos no Episcopado e com um grande número de sacerdotes, dou graças ao Senhor por todas as amadas famílias que se reuniram aqui formando uma multidão jubilosa, e também por muitas outras que, de terras longínquas, seguem esta celebração através da rádio e da televisão. Desejo saudar-vos a todos e expressar-vos o meu grande afecto com um abraço de paz.

Os testemunhos de Ester e Paulo, que ouvimos antes nas leituras, mostram como a família está chamada a colaborar na transmissão da fé. Ester confessa: "No seio da família, ouvi desde criança, Senhor, escolheste Israel entre todos os povos" (
Est 4,16). Paulo segue a tradição dos seus antepassados judeus prestando culto a Deus com consciência pura. Louva a fé sincera de Timóteo e recorda-lhe: "a tua fé, que se encontrava já na tua avó, Loide, e na tua mãe Eunice e que, estou seguro, se encontre também em ti" (2Tm 1,5). Nestes testemunhos bíblicos a família compreende não só pais e filhos, mas também avós e antepassados. Assim, a família apresenta-se-nos como uma comunidade de gerações e garante de um património de tradições.

Nenhum homem se deu o ser a si mesmo nem adquiriu sozinho os conhecimentos elementares da vida. Todos recebemos de outros a vida e as verdades básicas para ela, e estamos chamados a alcançar a perfeição em relação e comunhão amorosa com os demais. A família, fundada no matrimónio indissolúvel entre um homem e uma mulher, expressa esta dimensão relacional, filial e comunitária, e é o âmbito no qual o homem pode nascer com dignidade, crescer e desenvolver-se de maneira integral.

Quando uma criança nasce, através do relacionamento dos seus pais começa a fazer parte de uma tradição familiar, que tem raízes muito mais antigas. Com o dom da vida recebe todo um património de experiência. A este respeito, os pais têm o direito e o dever inalienável de o transmitir aos filhos: educá-los no descobrimento da sua identidade, introduzi-los na vida social, na prática responsável da sua liberdade moral e da sua capacidade de amar através da experiência de serem amados e, sobretudo, no encontro com Deus. Os filhos crescem e maturam humanamente na medida em que acolhem com confiança esse património e essa educação que vão assumindo progressivamente.

Deste modo são capazes de elaborar uma síntese pessoal entre o que receberam e o que é novo, e que cada indivíduo e geração estão chamados a realizar.

Na origem de todos os homens e, por conseguinte, em qualquer paternidade e maternidade humana está presente Deus Criador. Por isso os esposos devem acolher a criança que nasce como filho que não é unicamente seu, mas também de Deus, que o ama por si mesmo e o chama à filiação divina. Contudo, qualquer geração, qualquer paternidade e maternidade, e qualquer família tem o seu princípio em Deus, que é Pai, Filho e Espírito Santo.

A Ester, seu pai tinha transmitido, com a memória de seus antepassados e do seu povo, a de um Deus do qual todos procedem e ao qual todos estão chamados a responder. A memória de Deus Pai que elegeu o seu povo e que actua na história para a nossa salvação. A memória deste Pai ilumina a identidade mais profunda dos homens: de onde vimos, quem somos e quanto é grande a nossa dignidade. Certamente, provimos de nossos pais e somos seus filhos, mas também vimos de Deus, que nos criou à sua imagem e nos chamou para sermos seus filhos. Por isso, na origem de todo o ser humano não existe a sorte ou a casualidade, mas um projecto de amor de Deus. Foi o que nos revelou Jesus Cristo, verdadeiro Filho de Deus e homem perfeito. Ele sabia de quem provinha e de quem provimos todos: do amor de seu Pai e nosso Pai.

Portanto, a fé não é uma mera herança cultural, mas uma acção contínua da graça de Deus que chama e da liberdade humana que pode ou não aderir a essa chamada. Mesmo se ninguém responde por outro, sem dúvida os pais cristãos estão chamados a dar um testemunho crível da sua fé e esperança cristã. Devem preocupar-se por que a chamada de Deus e a Boa Nova de Cristo cheguem aos seus filhos com a maior clareza e autenticidade.

Com o passar dos anos, este dom de Deus que os pais contribuíram para apresentar aos olhos dos pequeninos, também precisará de ser cultivado com sabedoria e doçura, fazendo crescer neles a capacidade de discernimento. Deste modo, com o testemunho constante do amor conjugal dos pais, vivido e impregnado de fé, e com o acompanhamento comprometido da comunidade cristã, será favorecido que os filhos façam seu o dom da fé, descubram com ela o sentido profundo da própria existência e se sintam alegres e gratos por isso.

A família cristã transmite a fé quando os pais ensinam os seus filhos a rezar e rezam com eles (cf. Familiaris consortio FC 60); quando os aproximam dos sacramentos e os vão introduzindo na vida da Igreja; quando todos se reúnem para ler a Bíblia, iluminando a vida familiar à luz da fé e louvam a Deus como Pai.

Na actual cultura exalta-se com muita frequência a liberdade do indivíduo concebido como pessoa autónoma, como se ele se tivesse feito sozinho e se bastasse a si mesmo, à margem da sua relação com os demais e sem o sentido da responsabilidade para com o próximo. Procura-se organizar a vida social só a partir de desejos subjectivos e transitórios, sem qualquer referência a uma verdade objectiva prévia como a dignidade de cada ser humano e os seus deveres e direitos inalienáveis, a cujo serviço deve estar todo o grupo social.

A Igreja não cessa de recordar que a verdadeira liberdade do ser humano deriva do facto de ter sido criado à imagem e semelhança de Deus. Por isso, a educação cristã é educação da liberdade e para a liberdade. "Nós realizamos o bem não como escravos, que não são livres de agir de outra forma, mas fazemo-lo porque temos pessoalmente a responsabilidade pelo mundo; porque amamos a verdade e o bem, porque amamos o próprio Deus e portanto também as suas criaturas. Esta é a liberdade verdadeira, para a qual o Espírito Santo nos quer conduzir" (Homilia na Vigília de Pentecostes).

Jesus Cristo é o homem perfeito, exemplo de liberdade filial, que nos ensina a comunicar aos demais o seu próprio amor: "Assim como o Pai me tem amor, assim Eu vos amo a vós. Permanecei no meu amor" (Jn 15,9). A este propósito o Concílio Vaticano II ensina que "os cônjuges e pais cristãos, seguindo o seu próprio caminho, se ajudem mutuamente a conservar a graça no decorrer de toda a sua vida, numa grande fidelidade de amor, e que eduquem na doutrina cristã e nas virtudes evangélicas a prole que receberem amorosamente de Deus. Oferecem, assim, a todos o exemplo de um amor incansável e generoso, constróem a fraternidade da caridade e apresentam-se como testemunhas e cooperadores da fecundidade da Mãe Igreja, como símbolo e participação do amor com que Cristo amou a sua Esposa e por Ela se entregou" (Lumen gentium LG 41).

A alegria amorosa com que os nossos pais nos acolheram e acompanharam nos primeiros passos neste mundo é como um sinal e prolongamento sacramental do amor benevolente de Deus, do qual procedemos. A experiência de sermos acolhidos e amados por Deus e pelos nossos pais é a base sólida que favorece sempre o crescimento e desenvolvimento autênticos do homem, que tanto nos ajuda a amadurecer no caminho para a verdade e para o amor, e a sairmos de nós mesmos para entrarmos na comunhão com o próximo e com Deus.

Para progredir nesse caminho de maturidade humana, a Igreja ensina-nos a respeitar e a promover a maravilhosa realidade do matrimónio indissolúvel entre um homem e uma mulher, que é, além disso, a origem da família. Portanto, reconhecer e ajudar esta instituição é um dos maiores serviços que se possam prestar hoje ao bem comum e ao verdadeiro desenvolvimento dos homens e das sociedades, assim como a melhor garantia para assegurar a dignidade, a igualdade e a verdadeira liberdade da pessoa humana.

Neste sentido, desejo realçar a importância e o papel positivo que realizam as diversas associações familiares eclesiais em favor do matrimónio e da família. Por isso, "desejo convidar todos os cristãos a colaborar, carinhosa e corajosamente, com todos os homens de boa vontade, que vivem a responsabilidade própria no serviço à família" (Familiaris consortio FC 86), para que unindo as suas forças e com uma pluralidade legítima de iniciativas, contribuam para a promoção do verdadeiro bem da família na sociedade actual.

Voltemos por um momento à primeira leitura desta Missa, tirada do livro de Ester. A Igreja orante viu nesta humilde rainha, que intercede com todo o seu ser pelo seu povo que sofre, uma prefiguração de Maria, que seu Filho nos deu a todos como Mãe; uma prefiguração da Mãe, que protege com o seu amor a família de Deus que peregrina neste mundo. Maria é a imagem exemplar de todas as mães, da sua grande missão como guardiãs da vida, da sua missão de ensinar a arte de viver, a arte de amar.

A família cristã pai, mãe, filhos está portanto chamada a cumprir os objectivos assinalados não como algo imposto de fora, mas como um dom da graça do sacramento do matrimónio infundida nos esposos. Se eles permanecerem abertos ao Espírito e pedirem a sua ajuda, ele não deixará de lhes comunicar o amor de Deus Pai manifestado e encarnado em Cristo. A presença do Espírito ajudará os esposos a não perder de vista a fonte e medida do seu amor e entrega, e a colaborar com ele para o reflectir e encarnar em todas as dimensões da sua vida. Desta forma, o Espírito suscitará neles o anseio do encontro definitivo com Cristo na casa de seu Pai e nosso Pai. É esta a mensagem de esperança que, de Valência, quero fazer chegar a todas as famílias do mundo. Amém!




Terça-feira, 15 de Agosto de 2006: SOLENIDADE DA ASSUNÇÃO DA BEM-AVENTURADA VIRGEM MARIA

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Paróquia Pontifícia de S. Tomás "da Villanova" em Castel Gandolfo



Venerados Irmãos

no Episcopado e no Sacerdócio
Prezados irmãos e irmãs

No Magnificat o grande cântico de Nossa Senhora que acabámos de ouvir no Evangelho encontramos uma palavra surpreendente. Maria diz: "De hoje em diante todas as gerações me chamarão bem-aventurada". A Mãe do Senhor profetiza os louvores marianos da Igreja para todo o futuro, a devoção mariana do Povo de Deus até ao fim dos tempos. Louvando Maria, a Igreja não inventou algo "ao lado" da Escritura: respondeu a esta profecia feita por Maria naquela hora de graça.

E estas palavras de Maria não eram somente pessoais, talvez arbitrárias. Como afirma São Lucas, Isabel tinha clamado repleta do Espírito Santo: "Bendita aquela que acreditou". E Maria, também cheia do Espírito Santo, continua e completa aquilo que Isabel disse, afirmando: "Todas as gerações me chamarão bem-aventurada". É uma verdadeira profecia, inspirada pelo Espírito Santo, e a Igreja venerando Maria responde a uma ordem do Espírito Santo, faz aquilo que deve fazer. Nós não louvamos a Deus suficientemente calando-nos acerca dos seus santos, sobretudo sobre "a Santa", que se tornou a sua morada na terra, Maria. A luz simples e multiforme de Deus manifesta-se-nos precisamente na sua variedade e riqueza somente no rosto dos santos, que constituem o verdadeiro espelho da sua luz. Exactamente quando contemplamos o rosto de Maria, podemos ver mais do que de outras maneiras a beleza de Deus, a sua bondade e a sua misericórdia. Podemos realmente sentir a luz divina neste rosto.

"Todas as gerações me chamarão bem-aventurada". Nós podemos louvar Maria, venerar Maria, porque é "bem-aventurada", é bendita para sempre. Este é o contexto da presente Solenidade. É bem-aventurada porque está unida a Deus, vive com Deus e em Deus. O Senhor, na vigília da sua Paixão, ao despedir-se dos seus, disse: "Eu vou preparar-vos, na casa do Pai, uma morada. E Há muitas moradas na casa do meu Pai". Quando Maria dizia: "Eu sou a tua serva, faça-se em mim segundo a tua vontade" preparava aqui na terra a morada para Deus; de corpo e alma, tornou-se morada e assim abriu a terra ao céu.

São Lucas, no Evangelho que há pouco ouvimos, com várias indicações faz compreender que Maria é a verdadeira Arca da Aliança, que o mistério do Templo a morada de Deus aqui na terra foi completado em Maria. Em Maria realmente habita Deus, tornando-se presente aqui na terra. Maria torna-se a sua tenda. O que desejam todas as culturas isto é, que Deus habite no meio de nós realiza-se aqui. Santo Agostinho diz: "Antes de conceber o Senhor no corpo, já O tinha concebido na alma". Reservou ao Senhor o espaço da sua alma e assim tornou-se realmente o autêntico Templo onde Deus encarnou, tornando-se presente nesta terra. Deste modo, como morada de Deus na terra, nela já está preparada a sua morada eterna, já está preparada esta morada para sempre. E é nisto que consiste todo o conteúdo do dogma da Assunção de Maria à glória do céu de corpo e alma, aqui expresso também com estas palavras. Maria é "bem-aventurada" porque se tornou totalmente, de corpo e alma e para sempre a morada do Senhor. Se isto é verdade, Maria não nos convida apenas à admiração, à veneração, mas também nos orienta, nos indica o caminho da vida e nos mostra como podemos tornar-nos bem-aventurados, como podemos encontrar a vereda da felicidade.

Agora ouçamos uma vez mais a palavra de Isabel, completada no Magnificat de Maria: "Bendita aquela que acreditou". O primeiro e fundamental acto para se tornar morada de Deus e para assim encontrar a felicidade definitiva é crer, é a fé, a fé em Deus, naquele Deus que se manifestou em Jesus Cristo e que se faz sentir na palavra divina da Sagrada Escritura. Crer não significa acrescentar uma opinião às outras. E a convicção, a fé que Deus existe não é uma informação como as outras. Sobre muitas informações, pouco nos importa se são verdadeiras ou falsas, pois não mudam a nossa vida. Mas se Deus não existe, a vida é vazia, o futuro é vazio. E se Deus existe, tudo se transforma, a vida é luz, o nosso futuro é luz e temos a orientação para a nossa vida.

Por isso, acreditar constitui a orientação fundamental da nossa vida. Crer, dizer: "Sim, acredito que Vós sois Deus, creio que no Filho encarnado Vós estais presente no meio de nós", orienta a minha vida, impelindo-me a apegar-me a Deus, a unir-me a Deus e assim a encontrar o lugar onde viver e o modo como viver. E crer não é apenas um tipo de pensamento, uma ideia; é, como já dissemos, um agir, um estilo de vida. Acreditar significa seguir as indicações que nos foram deixadas pela Palavra de Deus. Maria, para além deste acto fundamental da fé, que é um acto existencial, uma tomada de posição para a vida inteira, acrescenta mais uma palavra: "A sua misericórdia estende-se sobre aqueles que o temem". Fala, com toda a Escritura, do "temor de Deus". Esta é, talvez, uma palavra que conhecemos pouco ou da qual não gostamos muito. Todavia, "temor de Deus" não quer dizer angústia, é algo totalmente diferente. Como filhos, não sentimos angústia em relação ao Pai, mas temos temor de Deus, a preocupação de não destruir o amor sobre o qual está depositada a nossa vida. Temor de Deus é aquele sentido de responsabilidade que nós devemos ter, responsabilidade pela porção do mundo que nos for confiada na nossa vida. Responsabilidade pela boa administração desta parte do mundo e da história que nós somos, e assim contribuir para a justa edificação do mundo, contribuir para a vitória do bem e da paz.

"Todas as gerações te chamarão bem-aventurada": isto quer dizer que o futuro, o porvir pertence a Deus, está nas mãos de Deus, que Ele vence. E quem vence não é o dragão, tão forte, de que fala a primeira leitura de hoje, o dragão que é a representação de todos os poderes da violência do mundo. Parecem invencíveis, mas Maria diz-nos que não o são. A Mulher é o que nos indicam a primeira leitura e o Evangelho é mais vigorosa porque Deus é mais forte. Sem dúvida, diante do dragão, assim armado, esta Mulher que é Maria, que é a Igreja, parece indefesa, vulnerável. E realmente Deus é vulnerável no mundo, porque é o Amor, e o amor é vulnerável. Contudo, Ele tem o futuro nas suas mãos, é o amor que vence e não o ódio; no final é a paz que vence.

Esta é a grande consolação contida no dogma da Assunção de Maria de corpo e alma à glória do céu. Demos graças ao Senhor por esta consolação, mas vejamos também esta consolação como um compromisso para nós, em vista de nos colocarmos do lado do bem, da paz. E oremos a Maria, Rainha da Paz, para que nos ajude em ordem à vitória da paz hoje: "Rainha da Paz, roga por nós". Amém!




Bento XVI Homilias 40606