Bento XVI Homilias 25107


2 de Fevereiro de 2007: EXÉQUIAS DO CARDEAL ANTONIO MARÍA JAVIERRE ORTAS

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Basílica Vaticana


Queridos irmãos e irmãs!

Ontem, dia seguinte à memória litúrgica de São João Bosco, partiu para o Céu um seu filho espiritual, o amado e venerado Cardeal Antonio María Javierre Ortas. Encontrou-se circundado, no momento da sua partida, pela oração coral de sufrágio que os Salesianos costumam elevar pelos Irmãos e Irmãs defuntos precisamente no dia depois da festa do Fundador. À sua família religiosa une-se hoje a Cúria Romana, unem-se os parentes e os amigos, com esta celebração, no dia em que a liturgia recorda a Apresentação do Senhor no Templo. As palavras do idoso Simeão que estreita entre os seus braços o Menino Jesus, ressoam nesta circunstância com particular emoção: "Nunc dimittis servum tuum Domine, secundum verbum tuum in pace Agora, Senhor, segundo a tua palavra, deixarás ir em paz o teu servo" (
Lc 2,29). É a oração que a Igreja eleva a Deus quando cai a noite, e é muito significativo recordá-la hoje, pensando neste nosso Irmão que chegou ao ocaso da sua vida terrena.

"Misericordias Domini in aeternum cantabo. Façamos nossas estas palavras, tiradas do seu diário espiritual, enquanto acompanhamos o Cardeal Javierre Ortas na sua viagem rumo à casa do Pai. Nascido em Siétamo, na Diocese de Huesca, a 21 de Fevereiro de 1921, teve em dom uma longa existência, animada pela juventude do seu acentuado espírito missionário. Seguindo o exemplo de Don Bosco teria desejado viver a sua vocação de salesiano em contacto directo com a juventude, em terra de missão, mas a Providência chamou-o para outras funções. Ele foi assim apóstolo nos ambientes da Universidade e da Cúria Romana, sem perder ocasião alguma para desempenhar uma intensa actividade espiritual no âmbito mais propriamente teológico e no mais amplo da cultura, sobretudo animando grupos de professores e de religiosos, e como capelão entre os universitários. O seu foi um serviço eclesial, fiel e generoso, sempre disponível e cordial. Mesmo tendo chegado a uma idade notável, deixou-nos de modo bastante imprevisto. Estimulados pela fé, mas também pelo afecto à sua venerada pessoa, estamos agora reunidos à volta do altar do Senhor e aprestamo-nos para oferecer por ele o Sacrifício eucarístico.

Ressoam no coração as palavras de Cristo que escutámos há pouco no Evangelho: "Eu sou o pão vivo, o que desceu do Céu: se alguém comer deste pão, viverá eternamente; e o pão que Eu hai-de dar é a minha carne, pela vida do mundo" (Jn 6,51). Esta é uma das expressões de Jesus que encerram numa síntese todo o seu mistério. É confortador ouvi-la e meditá-la enquanto rezamos pela alma sacerdotal que encontrou na Eucaristia o centro da sua vida. A comunhão sacramental, íntima e perseverante, com o Corpo e o Sangue de Cristo, realiza uma transformação profunda da pessoa e o fruto deste processo interior, que a envolve toda, é quanto diz de si o apóstolo Paulo escrevendo aos Filipenses: "Mihi vivere Christus est" (Ph 1,21). Morrer então é um "lucro" porque só morrendo se pode realizar plenamente aquele "ser-em-Cristo" do qual a comunhão eucarística é penhor nesta terra.

Ontem, pude ter nas minhas mãos algumas cartas que o Cardeal Javierre dirigiu ao amado João Paulo II e das quais sobressai precisamente esta referência privilegiada à Eucaristia. Em 1992, no momento em que recebeu a nomeação para Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, ele escreveu: "Huelga repetir en esta ocasión mi voluntad incondicionada de servicio. Cuente, Santidade, con mi esfuerzo sincero de conducir a término el cometido que se me ha encomendado. Lo imagino gravitando por completo en torno a la EUCARISTIA toda maiúscula Todo gira en torno ese baricentro". Depois, por ocasião do 50º aniversário da sua Ordenação sacerdotal, na carta de agradecimento ao Santo Padre para os bons votos que lhe enviara escreveu: "Na época da minha ordenação em Salamanca o sacerdócio gravitava integralmente em volta da Eucaristia... É uma alegria reviver os sentimentos da nossa ordenação, conscientes de que na Eucaristia, sacramento do Sacrifício, Cristo actualiza em plenitude o seu único Sacerdócio". Agora, o querido Cardeal defunto participa com alegria da mesa celeste, naquele convívio messiânico do qual fala Isaías na primeira Leitura, onde a morte é eliminada para sempre e as lágrimas são enxugadas em todos os rostos (cf. Is 25,8). Na expectativa de partilhar também nós, quando o Senhor quiser, este eterno convívio de amor, irmana-nos agora, a nós que ainda somos peregrinos com ele que já chegou à meta, o cântico que ressoou no Salmo responsorial: "Dominus pascit me, et nihil mihi deerit: in loco pascuae, ibi me collocavit" (Ps 22,1-2). Sim, para o homem que vive em Cristo a morte não assusta; ele experimenta em cada momento quanto o salmista afirma com confiança: "Nam et si ambulavero in valle umbrae mortis, non timebo mala, quoniam tu mecum es" (Ps 22,4).

"Tu mecum es": esta expressão remete para outra que Jesus ressuscitado dirigiu aos Apóstolos, e que este nosso Irmão escolheu como mote episcopal: "Ego vobiscum sum" (Mt 28,20). De facto, o Cardeal Javiere Ortas quis que a sua existência pessoal e a sua missão eclesial fossem uma mensagem de esperança; através do seu apostolado, seguindo o exemplo de São João Bosco, esforçou-se por comunicar a todos que Cristo está sempre connosco. Ele, Filho da pátria de Santa Teresa e de São João da Cruz, quantas vezes rezou no seu coração: "Nada te turbe, / nada te espante. / Quen a Dios tiene / nada le falta /.../ Solo Dios basta". Precisamente porque estava habituado a viver amparado por estas convicções, o Cardeal Javierre Ortas, no momento de se despedir do ministério activo na Cúria, podia escrever de novo ao Papa palavras repletas de esperança: "No me resta sino impetrar que el Señor utilice en registro divino la bondad de su Vicario cuando en la tarde de la vida no lejana suene para mi la hora del examen sobre el amor".

No brasão deste nosso saudoso Irmão está representada uma barca ancorada a duas colunas: a barca é a Igreja, o timoeiro é o Papa e as duas colunas são a Eucaristia e Nossa Senhora. Sendo filho digno de Don Bosco, era profundamente devoto a Maria, amada e venerada com o título de Auxiliadora. De Nossa Senhora, "Ancilla Domini", procurou imitar o estilo de um serviço discreto e generoso. Deixou o cargo de Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos "em ponta de pés" para se dedicar ao serviço que nunca se deve deixar: a oração. E agora que o Pai celeste o quis consigo, tenho a certeza de que no Céu onde confiamos que o Senhor o tenha acolhido no seu abraço paterno continua a rezar por nós.

Apraz-me concluir com uma reflexão sua, que nos conduz ao abraço do Redentor: é maravilhoso escrevia ele pensar que não importa a série dos pecados da nossa vida, que basta erguer os olhos e ver o gesto do Salvador que nos acolhe um por um com bondade infinita, com extrema amabilidade. Nesta perspectiva, concluía ele, "la despedida se nimba de esperanza y de gozo".





Quarta-feira, 21 de Fevereiro de 2007: NA CELEBRAÇÃO DA QUARTA-FEIRA DE CINZAS

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Basílica de Santa Sabina no Aventino



Queridos irmãos e irmãs!

Com a procissão penitencial entrámos no clima austero da Quaresma e introduzindo-nos na Celebração eucarística rezámos há pouco para que o Senhor ajude o povo cristão a "iniciar um caminho de verdadeira conversão para enfrentar vitoriosamente com as armas da penitência o combate contra o espírito do mal" (Oração da Colecta). Ao receber daqui a pouco as cinzas sobre a cabeça, ouviremos mais uma vez um claro convite à conversão que pode expressar-se numa fórmula dupla: "Convertei-vos e acreditai no evangelho", ou: "Recorda-te que és pó e em pó te hás-de tornar". Precisamente devido à riqueza dos símbolos e dos textos bíblicos, a Quarta-Feira de Cinzas é considerada a "porta" da Quaresma. De facto, a hodierna liturgia e os gestos que a distinguem formam um conjunto que antecipa de modo sintético a própria fisionomia de todo o período quaresmal. Na sua tradição, a Igreja não se limita a oferecer-nos a temática litúrgica e espiritual do itinerário quaresmal, mas indica-nos também os instrumentos ascéticos e práticos para o percorrer frutuosamente.

"Convertei-vos a mim de todo o vosso coração com jejuns, com lágrimas, com gemidos". Com estas palavras inicia a Primeira Leitura, tirada do livro do profeta Joel (
Jl 2,12). Os sofrimentos, as calamidades que afligiam naquele tempo a terra de Judá estimulam o autor sagrado a encorajar o povo eleito à conversão, isto é, a voltar com confiança filial ao Senhor dilacerando o seu coração e não as vestes. De facto, recorda o profeta, ele "é clemente e compassivo, paciente e rico em misericórdia e se compadece da desgraça" (Jl 2,13). O convite que Joel dirige aos seus ouvintes também é válido para nós, queridos irmãos e irmãs. Não hesitemos em reencontrar a amizade de Deus perdida com o pecado; encontrando o Senhor experimentamos a alegria do seu perdão. E assim, quase respondendo às palavras do profeta, fizemos nossa a invocação do refrão do Salmo responsorial: "Perdoai-nos Senhor, porque pecámos". Proclamando o Salmo 50, o grande Salmo penitencial, apelámo-nos à misericórdia divina; pedimos ao Senhor que o poder do seu amor nos volte a dar a alegria de sermos salvos.

Com este espírito, iniciamos o tempo favorável da Quaresma, como nos recordou São Paulo na Segunda Leitura, para nos deixarmos reconciliar com Deus em Cristo Jesus. O Apóstolo apresenta-se como embaixador de Cristo e mostra claramente como precisamente através d'Ele, seja oferecida ao pecador, isto é a cada um de nós, a possibilidade de uma reconciliação autêntica.

"Aquele que não havia conhecido o pecado diz ele Deus o fez pecado por nós, para que nos tornássemos, nele, justiça de Deus" (2Co 5,21). Só Cristo pode transformar qualquer situação de pecado em novidade de graça. Eis por que assume um forte impacto espiritual a exortação que Paulo dirige aos cristãos de Corinto: "Em nome de Cristo suplicamo-vos: reconciliai-vos com Deus"; e ainda: "Este é o tempo favorável, é este o dia da salvação" (2Co 5,20 2Co 6,2). Enquanto Joel falava do futuro dia do Senhor como de um dia de terrível juízo, São Paulo, referindo-se às palavras do profeta Isaías, fala de "momento favorável", de "dia da salvação". O futuro dia do Senhor tornou-se o "hoje". O dia terrível transformou-se na Cruz e na Ressurreição de Cristo, no dia da salvação. E este dia é agora, como ouvimos no Canto ao Evangelho: "Hoje não endureçais os vossos corações, mas ouvi a voz do Senhor". O apelo à conversão, à penitência ressoa hoje com toda a sua força, para que o seu eco nos acompanhe em cada momento da vida.

A liturgia da Quarta-Feira de Cinzas indica assim na conversão do coração a Deus a dimensão fundamental do tempo quaresmal. Esta é a chamada muito sugestiva que nos vem do tradicional rito da imposição das cinzas, que daqui a pouco renovaremos. Rito que assume um dúplice significado: o primeiro relativo à mudança interior, à conversão e à penitência, enquanto o segundo recorda a precariedade da condição humana, como é fácil compreender das duas fórmulas diversas que acompanham o gesto. Aqui em Roma, a procissão penitencial da Quarta-Feira de Cinzas parte de Santo Anselmo e conclui-se nesta basílica de Santa Sabina, onde tem lugar a primeira estação quaresmal. A este propósito é interessante recordar que a antiga liturgia romana, através das estações quaresmais, tinha elaborado uma singular geografia da fé, partindo da ideia que, com a chegada dos apóstolos Pedro e Paulo e com a destruição do Templo, Jerusalém se tivesse transferido para Roma. A Roma cristã era vista como uma reconstrução da Jerusalém do tempo de Jesus dentro dos muros da Cidade. Esta nova geografia interior e espiritual, ínsita na tradição das igrejas "estacionais" da Quaresma, não é uma simples recordação do passado, nem uma antecipação vazia do futuro; ao contrário, pretende ajudar os fiéis a percorrer um caminho interior, o caminho da conversão e da reconciliação, para chegar à glória da Jerusalém celeste onde Deus habita.

Amados irmãos e irmãs, temos quarenta dias para aprofundar esta extraordinária experiência ascética e espiritual. No Evangelho que foi proclamado, Jesus indica quais são os instrumentos úteis para realizar a autêntica renovação interior e comunitária: as obras de caridade (a esmola), a oração e a penitência (o jejum). São as três práticas fundamentais queridas também à tradição hebraica, porque contribuem para purificar o homem aos olhos de Deus (cf. Mt 6,1-6 Mt 6,16-18).

Estes gestos exteriores, que devem ser realizados para agradar a Deus e não para obter a aprovação e o consenso dos homens, são por Ele aceites se expressam a determinação do coração a servi-l'O, com simplicidade e generosidade. Recorda-nos isto também um dos Prefácios quaresmais onde, em relação ao jejum, lemos esta singular expressão: "ieiunio... mentem elevas: com o jejum elevas o espírito" (Prefácio IV).

O jejum, ao qual a Igreja nos convida neste tempo forte, certamente não nasce de motivações de ordem física ou estética, mas brota da exigência que o homem tem de uma purificação interior que o desintoxique da poluição do pecado e do mal; que o eduque para aquelas renúncias saudáveis que libertam o crente da escravidão do próprio eu; que o torne mais atento e disponível à escuta de Deus e ao serviço dos irmãos. Por esta razão o jejum e as outras práticas quaresmais são consideradas pela tradição cristã "armas" espirituais para combater o mal, as paixões negativas e os vícios. A este propósito, apraz-me ouvir de novo convosco um breve comentário de São João Crisóstomo. "Como no findar do Inverno escreve ele volta a estação do Verão e o navegante arrasta para o mar a nave, o soldado limpa as armas e treina o cavalo para a luta, o agricultor lima a foice, o viandante revigorado prepara-se para a longa viagem e o atleta depõe as vestes e prepara-se para as competições; assim também nós, no início deste jejum, quase no regresso de uma Primavera espiritual forjamos as armas como os soldados, limamos a foice como os agricultores, e como timoneiros reorganizamos a nave do nosso espírito para enfrentar as ondas das paixões. Como viandantes retomamos a viagem rumo ao céu e como atletas preparamo-nos para a luta com o despojamento de tudo" (Homilias ao povo antioqueno, 3).

Na mensagem para a Quaresma, convidei a viver estes quarenta dias de especial graça como um tempo "eucarístico". Haurindo daquela fonte inexaurível de amor que é a Eucaristia, na qual Cristo renova o sacrifício redentor da Cruz, cada cristão pode perseverar no itinerário que hoje empreendemos solenemente. As obras de caridade (a esmola), a oração, o jejum juntamente com qualquer outro esforço sincero de conversão encontram o seu significado mais alto e valor na Eucaristia, centro e ápice da vida da Igreja e da história da salvação. "Este sacramento que recebemos, ó Pai assim rezamos no final da Santa Missa nos ampare no caminho quaresmal, santifique o nosso jejum e o torne eficaz para a cura do nosso espírito". Pedimos a Maria que nos acompanhe para que, no final da Quaresma, possamos contemplar o Senhor ressuscitado, interiormente renovados e reconciliados com Deus e com os irmãos. Amém!



Domingo, 18 de Março de 2007: CONCELEBRAÇÃO NA CAPELA DO PRESÍDIO DE CASAL DEL MARMO EM ROMA

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Estimados irmãos e irmãs

Queridos jovens

Vim visitar-vos de bom grado, e o momento mais importante do nosso encontro é a Santa Missa, em que se renova o dom do amor de Deus: amor que nos consola e dá paz, especialmente nos momentos difíceis da vida. Neste clima de oração, gostaria de dirigir a minha saudação a cada um de vós: ao Ministro da Justiça, Deputado Clemente Mastella, a quem manifesto um especial reconhecimento, ao Chefe do Departamento da Justiça Juvenil, Sra. Melita Cavallo, às outras Autoridades que intervieram, aos responsáveis, assistentes, educadores e funcionários desta estrutura penal juvenil, aos voluntários, aos familiares e a todos os presentes. Saúdo o Cardeal Vigário e o Bispo Auxiliar, D. Benedetto Tuzia. Saúdo de modo particular Mons. Giorgio Caniato, Inspector-Geral dos Capelães dos Institutos de Prevenção e Penais, e o vosso Capelão, a quem estou grato por se terem feito intérpretes dos vossos sentimentos no início da Santa Missa.

Na Celebração Eucarística, é o próprio Cristo que se faz presente no meio de nós; aliás, mais ainda: Ele vem para nos iluminar com o seu ensinamento na Liturgia da Palavra e para nos alimentar com o seu Corpo e o seu Sangue na Liturgia Eucarística e na Comunhão. Assim, Ele vem para nos ensinar e amar, vem para nos tornar capazes de amar e, assim, capazes de viver. Mas, talvez digais, como é difícil amar seriamente, viver bem! Qual é o segredo do amor, o segredo da vida? Voltemos ao Evangelho. Neste Evangelho aparecem três pessoas: o pai e os dois filhos. Mas por detrás das pessoas aparecem dois projectos de vida bastante diferentes. Ambos os filhos vivem em paz, são agricultores abastados e, portanto, têm do que viver, vendem bem os seus produtos e a vida parece ser boa.

Todavia, gradualmente o filho mais jovem julga esta vida tediosa, insatisfatória: não pode ser esta pensa ele toda a vida: levantar todos os dias, digamos, às 6 horas e depois, segundo as tradições de Israel, uma oração, uma leitura da Bíblia Sagrada, e depois ir trabalhar e no final novamente uma oração. Assim, dia após dia, ele pensa: mas não, a vida é mais do que isto, devo encontrar outra vida, em que eu seja verdadeiramente livre, possa fazer o que me agrada; uma vida livre desta disciplina e destas normas dos mandamentos de Deus, das ordens do pai; gostaria de estar a sós e ter a vida inteira totalmente para mim, com todas as suas belezas. Agora, contudo, é só trabalho...

E assim decide pretender todo o seu património e partir. O pai é muito atencioso e generoso, e respeita a liberdade do filho: é ele que deve encontrar o seu projecto de vida. E, como diz o Evangelho, ele parte para uma terra muito distante. É provável que fosse distante geograficamente, porque deseja uma mudança, mas também interiormente, porque quer uma vida totalmente diversa.

Agora a sua ideia é: liberdade, fazer tudo o que quero, ignorar estas normas de um Deus que está distante, não permanecer no cárcere desta disciplina da casa, fazer tudo o que é bonito, aquilo que me agrada, levar a vida com toda a sua beleza e a sua plenitude.

E num primeiro momento poderíamos talvez pensar por alguns meses tudo corre bem: ele acha bom ter finalmente alcançado a vida, sente-se feliz. Mas depois, pouco a pouco, sente também aqui o tédio, também aqui é sempre o mesmo. E no final permanece um vazio cada vez mais inquietador; faz-se cada vez mais vivo o sentimento de que esta ainda não é a vida, ao contrário, continuando com todas estas coisas, a vida afasta-se cada vez mais. Tudo se torna vazio: também agora se repropõe a escravidão de fazer as mesmas actividades. E no final inclusive o dinheiro termina, e o jovem julga que o seu nível de vida é inferior ao dos porcos.

Então, começa a reflectir e pergunta se era realmente aquele o caminho da vida: uma liberdade interpretada como fazer tudo o que quero, viver, levar a vida só para mim, ou se ao contrário não seria talez mais vida, viver pelos outros, contribuir para a construção do mundo, para o crescimento da comunidade humana... Assim começa o novo caminho, um caminho interior. O jovem reflecte e considera todos estes novos aspectos do problema e começa a ver que era muito mais livre em casa, sendo também ele proprietário, contribuindo para a construção da casa e da sociedade em comunhão com o Criador, conhecendo a finalidade da sua vida, adivinhando o projecto que Deus tinha para ele. Neste caminho interior, neste amadurecimento de um novo projecto de vida, vivendo depois também o caminho exterior, o filho mais jovem põe-se a caminho para regressar, para recomeçar a sua vida, porque já compreendeu que o caminho empreendido era errado. Devo partir de novo com outro conceito, diz ele, devo recomeçar.

E chega à casa do pai, que lhe tinha deixado a sua liberdade para lhe dar a possibilidade de compreender interiormente o que é viver, o que é não viver. O pai abraça-o com todo o seu amor, oferece-lhe uma festa e a vida pode começar de novo, a partir desta festa. O filho compreende que precisamente o trabalho, a humildade, a disciplina de cada dia cria a verdadeira festa e a verdadeira liberdade. Assim regressa a casa interiormente maduro e purificado: compreendeu o que é viver.

Sem dúvida, também no futuro a sua vida não será fácil, as tentações voltarão, mas ele já está plenamente consciente de que uma vida sem Deus não funciona: falta o essencial, falta a luz, falta o porquê, falta o grande sentido do ser homem. Ele entendeu que só podemos conhecer Deus com base na sua Palavra. (Nós, cristãos, podemos acrescentar que sabemos quem é Deus através de Jesus, no qual nos foi mostrado realmente o rosto de Deus). O jovem compreende que os Mandamentos de Deus não são obstáculos para a liberdade e para uma vida bela, mas são os indicadores da vereda pela qual caminhar para encontrar a vida. Entende que também o trabalho, a disciplina, o comprometer-se não por si mesmo mas pelos outros amplia a vida. E precisamente este esforço de se comprometer no trabalho dá profundidade à vida, porque se experimenta a satisfação de ter, no final, contribuído para fazer crescer este mundo, que se torna mais livre e mais bonito.

Agora não gostaria de falar do outro filho, que ficou em casa, mas na sua reacção de inveja vemos que interiormente também ele sonhava que seria, talvez, muito melhor tomar todas as liberdades. Também ele, no seu íntimo deveria "voltar para casa" e compreender de novo o que é a vida, entender que só se vive verdadeiramente com Deus, com a sua Palavra, na comunhão da própria família, do trabalho; na comunhão da grande Família de Deus. Agora, não gostaria de discorrer sobre estes pormenores: deixemos que cada um de nós tenha o seu modo de aplicar este Evangelho a si mesmo. As nossas situações são diferentes e cada um tem o seu mundo. Isto não impede que todos nós sejamos tocados e todos possamos entrar com o nosso caminho interior na profundidade do Evangelho.

Só mais algumas breves observações. O Evangelho ajuda-nos a compreender quem é verdadeiramente Deus: Ele é o Pai misericordioso que, em Jesus, nos ama sem medidas. Os erros que cometemos, mesmo se grandes, não prejudicam a fidelidade do seu amor. No sacramento da confissão podemos sempre recomeçar de novo a vida: Ele acolhe-nos, restitui-nos a dignidade de seus filhos. Portanto, redescubramos este sacramento do perdão, que faz brotar a alegria num coração renascido para a vida verdadeira.

Além disso, esta parábola ajuda-nos a compreender quem é o homem: não é uma "mónada", uma entidade isolada que vive somente para si mesma e deve ter a vida unicamente para si própria. Pelo contrário, nós vivemos com os outros, fomos criados com os outros e somente permanecendo com os outros, entregando-nos aos outros, encontramos a vida. O homem é uma criatura na qual Deus imprimiu a sua imagem, uma criatura que é atraída no horizonte da sua Graça, mas é também uma criatura frágil, exposta ao mal; porém, capaz de bem. E finalmente o homem é uma pessoa livre.

Devemos compreender o que é a liberdade e o que é a aparência da liberdade. A liberdade, poderíamos dizer, é um trampolim de lançamento para mergulhar no mar infinito da bondade divina, mas pode tornar-se inclusive um plano inclinado sobre o qual escorregar rumo ao abismo do pecado e do mal e, assim, perder também a liberdade e a nossa dignidade.

Prezados amigos, estamos no tempo da Quaresma, dos quarenta dias antes da Páscoa. Neste tempo de Quaresma a Igreja ajuda-nos a percorrer este caminho interior e convida-nos à conversão que, antes de ser um esforço sempre importante para mudar os nossos comportamentos, é uma oportunidade para decidir levantar-nos e recomeçar, ou seja, abandonando o pecado e escolhendo voltar para Deus. Percorramos este é o imperativo da Quaresma juntos este caminho de libertação interior. Cada vez que, como hoje, participamos na Eucaristia, fonte e escola do amor, tornamo-nos capazes de viver este amor, de anunciá-lo e de testemunhá-lo com a nossa vida. Porém, é preciso que decidamos caminhar rumo a Jesus, como fez o filho pródigo, voltando interior e exteriormente ao pai. Ao mesmo tempo, devemos abandonar a atitude egoísta do filho mais velho, seguro de si, que condena facilmente os outros, fecha o coração à compreensão, ao acolhimento e ao perdão dos irmãos, e esquece que também ele tem necessidade do perdão. Obtenham-nos este dom Maria Virgem e São José, meu padroeiro, cuja festa será amanhã, e que agora invoco de modo particular sobre cada um de vós e sobre as pessoas que vos são queridas.





Domingo, 25 de Março de 2007: CELEBRAÇÃO NA PARÓQUIA ROMANA DE SANTA FELICIDADE E FILHOS MÁRTIRES

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Queridos irmãos e irmãs
da Paróquia de Santa Felicidade
e filhos mártires

Vim de bom grado visitar-vos neste V Domingo de Quaresma, chamado também Domingo da Paixão. Dirijo a todos vós a minha cordial saudação. Em primeiro lugar, dirijo o meu pensamento ao Cardeal Vigário e ao Bispo Auxiliar, D. Enzo Dieci. Além disso, saúdo com afecto os Padres Vocacionistas, aos quais a paróquia está confiada desde o seu nascimento, em 1958, e de modo especial o vosso pároco, Pe. Eusébio Mosca, a quem agradeço as amáveis palavras com que me apresentou brevemente a realidade da vossa comunidade. Saúdo os demais sacerdotes, os religiosos, as religiosas, os catequistas, os leigos comprometidos e quantos oferecem de diversas maneiras a própria contribuição às múltiplas actividades da Paróquia pastorais, educativas e de promoção humana destinadas com atenção prioritária às crianças, aos jovens e às famílias. Saúdo a comunidade filipina, bastante numerosa no vosso território, que aqui se reúne todos os domingos para a Santa Missa celebrada na língua que lhe é própria. Estendo a minha saudação a todos os habitantes do bairro Fidene são numerosos composto cada vez mais por pessoas que provêm de outras regiões da Itália e de vários países do mundo.

Aqui, como noutras partes, certamente não faltam situações de dificuldade, tanto material como moral, situações que exigem de vós, prezados amigos, um compromisso constante em vista de dar testemunho do facto que o amor de Deus, manifestando-se plenamente em Cristo crucificado e ressuscitado, abarca todos de modo concreto, sem qualquer distinção de raça nem de cultura. No fundo, esta é a missão de cada comunidade paroquial, chamada a anunciar o Evangelho e a ser lugar de acolhimento e de escuta, de formação e de partilha fraterna, de diálogo e de perdão.

Como pode uma comunidade cristã manter-se fiel a este seu mandato? Como pode tornar-se cada vez mais uma família de irmãos animados pelo Amor? A Palavra de Deus que acabamos de ouvir, e que ressoa com eloquência singular no nosso coração durante este tempo quaresmal, recorda-nos que a nossa peregrinação terrena está repleta de dificuldades e de provações, como o caminho do povo eleito no deserto, antes de chegar à terra prometida. Mas a intervenção divina, assegura Isaías na primeira Leitura, pode facilitá-lo, transformando as estepes numa terra confortável e rica de águas (cf.
Is 43,19-20). Ao profeta faz eco o Salmo responsorial: enquanto evoca a alegria do regresso do exílio babilónico, invoca o Senhor para que intervenha a favor dos "prisioneiros" que, quando partem vão a chorar, mas quando regressam ficam cheios de júbilo porque Deus está presente e, como no passado, realizará também no futuro "grandes coisas por nós".

Esta mesma consciência, esta esperança que depois de tempos difíceis o Senhor mostre sempre a sua presença e o seu amor, deve animar toda a comunidade cristã dotada pelo seu Senhor de abundantes provisões espirituais para atravessar o deserto deste mundo e para o transformar num jardim fértil. Estes víveres são a escuta dócil da sua Palavra, os Sacramentos e todos os outros recursos espirituais da liturgia e da oração pessoal. Em última análise, a verdadeira provisão é o seu amor. O amor, que levou Jesus a imolar-se por nós, transforma-nos e torna-nos por nossa vez capazes de O seguir fielmente. No sulco daquilo que a liturgia nos propôs no domingo passado, a página evangélica deste dia ajuda-nos a compreender que somente o amor de Deus pode mudar a partir de dentro a existência do homem e, consequentemente, de toda a sociedade, porque só o seu amor infinito o liberta do pecado, que é a raiz de todo o mal. Se é verdade que Deus é justiça, não podemos esquecer que Ele é sobretudo amor: se odeia o pecado, é porque ama infinitamente cada pessoa humana. Ama cada um de nós, e a sua fidelidade é tão profunda que não se deixa desanimar nem sequer pela nossa rejeição. Em particular, hoje Jesus exorta-nos à conversão interior: explica-nos o motivo pelo qual nos perdoa e ensina-nos a fazer do perdão recebido e oferecido aos irmãos o "pão quotidiano" da nossa existência.

O trecho evangélico narra o episódio da mulher adúltera, em duas cenas sugestivas: na primeira, assistimos a uma disputa entre Jesus, os escribas e os fariseus, a propósito de uma mulher surpreendida em adultério flagrante e, segundo a prescrição contida no Livro do Levítico (cf. Lv 20,10), condenada à lapidação. Na segunda cena, descreve-se um breve e comovedor diálogo entre Jesus e a pecadora. Citando a lei de Moisés, os impiedosos acusadores da mulher provocam Jesus chamando-lhe "mestre" (Didáskale) e perguntam-lhe se é justo lapidá-la. Eles conhecem a sua misericórdia e o seu amor pelos pecadores, e estão curiosos de ver como reagirá num caso como este, que segundo a lei mosaica não deixava espaço a dúvidas. Todavia, Jesus coloca-se imediatamente a favor da mulher; em primeiro lugar, escrevendo no chão palavras misteriosas, que o evangelista não revela, mas fica impressionado, e depois pronunciando aquela frase que se tornou famosa: "Quem de vós estiver sem pecado (usa o termo anamártetos, que no Novo Testamento só é utilizado aqui), seja o primeiro a lançar-lhe uma pedra" (Jn 8,7) e dê início à lapidação. Ao comentar o Evangelho de João, Santo Agostinho observa que, "respondendo, o Senhor respeita a lei e não abandona a sua mansidão". Depois, acrescenta que com estas suas palavras obriga os acusadores a entrarem em si mesmos e, reflectindo sobre si próprios, a descobrirem-se também eles pecadores. Por isso, "atingidos por estas palavras como por uma flecha tão grande como uma trave, um por um foram-se embora" (In Io. Ev. tract. 33, 5).

Portanto, um após outro, os acusadores que queriam provocar Jesus vão-se embora "a começar pelos mais velhos, até aos últimos". Quando todos se foram, o Mestre divino permanece a sós com a mulher. O comentário de Santo Agostinho é conciso e eficaz: "Relicti sunt duo: misera et misericordia, só permanecem as duas: a miserável e a misericórdia" (Ibidem). Dilectos irmãos e irmãs, detenhamo-nos a contemplar esta cena, em que se encontram confrontadas a miséria do homem e a misericórdia divina, uma mulher acusada de um grande pecado e Aquele que, embora fosse sem pecado, assumiu os nossos pecados, os pecados do mundo inteiro. Ele, que permaneceu inclinado a escrever no pó, agora eleva o seu olhar e encontra o da mulher. E não é irónico, quando lhe pergunta: "Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?" (Jn 8,10). E responde-lhe de modo surpreendente: "Nem Eu te condeno. Vai, e doravante não tornes a pecar" (Jn 8,11). No seu comentário, Santo Agostinho comenta ainda: "O Senhor condena o pecado, não o pecador. Com efeito, se tivesse tolerado o pecado, teria dito: Nem Eu te condeno. Vai, e vive como quiseres... por maiores que sejam os teus pecados, Eu libertar-te-ei de toda a pena e de todo o sofrimento. Todavia, Ele não disse isto" (In Io. Ev. tract. 33, 6). Mas disse: "Vai, e doravante não tornes a pecar".

Caros amigos, da palavra de Deus que ouvimos sobressaem indicações concretas para a nossa vida. Jesus não começa com os seus interlocutores um debate teórico sobre o trecho da lei de Moisés: não lhe interessa vencer uma disputa académica a propósito de uma interpretação da lei mosaica, mas a sua finalidade consiste em salvar uma alma e revelar que a salvação só se encontra no amor de Deus. Foi por isso que veio à terra, por isso há-de morrer na cruz e o Pai ressuscitá-lo-á no terceiro dia. Jesus veio para nos dizer que nos quer a todos no Paraíso, e que o inferno, do qual se fala pouco nesta nossa época, existe e é eterno para quantos fecham o coração ao seu amor. Portanto, também neste episódio compreendemos que o nosso verdadeiro inimigo é o apego ao pecado, que pode levar-nos ao fracasso da nossa existência. Jesus despede-se da mulher adúltera com esta exortação: Vai, e doravante não tornes a pecar". Concede-lhe o perdão, a fim de que "doravante" não volte a pecar. Num episódio análogo, o da pecadora arrependida, que encontramos no Evangelho de Lucas (cf. Lc 7,36-50), Ele recebe e manda em paz uma mulher que se arrependeu. Aqui, ao contrário, a mulher adúltera simplesmente recebe o perdão de maneira incondicionada. Em ambos os casos para a pecadora arrependida e para a mulher adúltera a mensagem é uma só. Num caso, sublinha-se o facto de que não há perdão sem arrependimento, sem desejo do perdão, sem abertura do coração ao perdão; aqui, põe-se em evidência o facto de que o perdão divino e o seu amor recebido com coração aberto e sincero nos incutem a força de resistir ao mal e de "não tornarmos a pecar", de nos deixarmos arrebatar pelo amor de Deus, que se torna a nossa força. A atitude de Jesus torna-se, deste modo, um modelo a seguir para cada comunidade, chamada a fazer do amor e do perdão o coração palpitante da sua vida.

Estimados irmãos e irmãs, no caminho quaresmal que estamos a percorrer e que se aproxima rapidamente da sua conclusão, sejamos acompanhados pela certeza de que Deus nunca nos abandona, e que o seu amor é nascente de alegria e de paz; é força que nos impele poderosamente ao longo do caminho da santidade, se necessário inclusive até ao martírio. Assim aconteceu com os filhos e, sucessivamente, com a intrépida mãe Felicidade, padroeiros da vossa Paróquia. Que por sua intercessão o Senhor vos conceda encontrar-vos cada vez mais profundamente com Cristo e segui-lo com dócil fidelidade para que, como aconteceu com o Apóstolo Paulo, também vós possais exclamar com sinceridade: "Na verdade, em tudo isso só vejo dano, comparado com o supremo conhecimento de Jesus Cristo, meu Senhor. Por Ele, tudo desprezei e tenho em conta de esterco, a fim de ganhar Cristo" (Ph 3,8).

O exemplo e a intercessão destes vossos Santos sejam para vós um encorajamento constante a seguir o caminho do Evangelho sem hesitações e sem compromissos. Que vos alcance esta generosa fidelidade a Virgem Maria, que amanhã havemos de contemplar no mistério da Anunciação e a quem confio cada um de vós e toda a população deste bairro de Fidene.

Amém.







Bento XVI Homilias 25107