Bento XVI Homilias 13507

VI Domingo de Páscoa, 13 de Maio de 2007: SANTA MISSA DE INAUGURAÇÃO DA V CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO DA AMÉRICA LATINA E DO CARIBE

13507

Esplanada do Santuário de Aparecida


Veneráveis Irmãos no Episcopado,

queridos sacerdotes e vós todos, irmãs e irmãos no Senhor!

Não existem palavras para exprimir a alegria de encontrar-Me convosco para celebrar esta solene Eucaristia, por ocasião da abertura da Quinta Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. A todos saúdo com muita cordialidade, de modo particular ao Arcebispo de Aparecida, Dom Raymundo Damasceno Assis, agradecendo as palavras que Me foram dirigidas em nome de toda a assembléia, e os Cardeais Presidentes desta Conferência Geral. Saúdo com deferência as Autoridades civis e militares que nos honram com a sua presença. Deste Santuário estendo o meu pensamento, com muito afeto e oração, a todos aqueles que se nos unem espiritualmente neste dia, de modo especial às comunidades de vida consagrada, aos jovens engajados em movimentos e associações, às famílias, bem como aos enfermos e aos anciãos. A todos quero dizer: «Graça e paz da parte de Deus, nosso Pai, e da parte do Senhor Jesus Cristo» (
1Co 1,13).

Considero um dom especial da Providência que esta Santa Missa seja celebrada neste tempo e neste lugar. O tempo é o litúrgico do sexto Domingo de Páscoa: está próxima a festa de Pentecostes, e a Igreja é convidada a intensificar a invocação ao Espírito Santo. O lugar é o Santuário nacional de Nossa Senhora Aparecida, coração mariano do Brasil: Maria nos acolhe neste Cenáculo e, como Mãe e Mestra, nos ajuda a elevar a Deus uma prece unânime e confiante. Esta celebração litúrgica constitui o fundamento mais sólido da V (Quinta) Conferência, porque põe na sua base a oração e a Eucaristia, Sacramentum caritatis. Com efeito, só a caridade de Cristo, emanada pelo Espírito Santo, pode fazer desta reunião um autentico acontecimento eclesial, um momento de graça para este Continente e para o mundo inteiro. Esta tarde terei a possibilidade de entrar no mérito dos conteúdos sugeridos pelo tema da vossa Conferência. Demos agora espaço à Palavra de Deus, que com alegria acolhemos, com o coração aberto e dócil, a exemplo de Maria, Nossa Senhora da Conceição, a fim de que, pelo poder do Espírito Santo, Cristo possa novamente “fazer-se carne” no hoje da nossa história.

A primeira Leitura, tirada dos Atos dos Apóstolos, refere-se ao assim chamado “Concílio de Jerusalém”, que considerou a questão se aos pagãos convertidos ao cristianismo dever-se-ia impor a observância da lei mosaica. O texto, deixando de lado a discussão sobre “os Apóstolos e os anciãos” (Ac 15,4-21), transcreve a decisão final, que vem posta por escrito numa carta e confiada a dois delegados, a fim de que seja entregue à comunidade de Antioquia (Ac 15,22-29). Esta página dos Atos nos é muito apropriada, por termos vindo aqui para uma reunião eclesial. Fala-nos do sentido do discernimento comunitário em torno dos grandes problemas que a Igreja encontra ao longo do seu caminho e que vem a ser esclarecidos pelos “Apóstolos” e pelos “anciãos” com a luz do Espírito Santo, o qual, como nos narra o Evangelho de hoje, lembra o ensinamento de Jesus Cristo (cf. Jn 14,26) ajudando assim a comunidade cristã a caminhar na caridade em busca da verdade plena (cf. Jn 16,13). Os chefes da Igreja discutem e se defrontam, sempre porém em atitude de religiosa escuta da Palavra de Cristo no Espírito Santo. Por isso, no final podem afirmar: «Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós ...» (Ac 15,28).

Este é o “método” com o qual nós agimos na Igreja, tanto nas pequenas como nas grandes assembléias. Não é uma simples questão de procedimento; é o resultado da mesma natureza da Igreja, mistério de comunhão com Cristo no Espírito Santo. No caso das Conferências Gerais do Episcopado Latino-americano e Caribenho, a primeira, realizada no Rio de Janeiro em 1955 (mil novecentos e cinqüenta e cinco), recorreu a uma Carta especial enviada pelo Papa Pio XII (doze), de venerada memória; nas outras, até a atual, foi o Bispo de Roma que se dirigiu à sede da reunião continental para presidir as fases iniciais. Com devoto reconhecimento dirigimos o nosso pensamento aos Servos de Deus Paulo VI (sexto) e João Paulo II (segundo) que, nas Conferências de Medellín, Puebla e Santo Domingo, testemunharam a proximidade da Igreja universal nas Igrejas que estão na América Latina e que constituem, em proporção, a maior parte da Comunidade católica.

«Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós ...». Esta é a Igreja: nós, a comunidade de fiéis, o Povo de Deus, com os seus Pastores chamados a fazer de guia do caminho; juntos com o Espírito Santo, Espírito do Pai mandado em nome do Filho Jesus, Espírito d’Aquele que é “maior” de todos e que nos foi dado mediante Cristo, que se fez “menor” por nossa causa. Espírito Paráclito, Ad-vocatus, Defensor e Consolador. Ele nos faz viver na presença de Deus, na escuta da sua Palavra, livres de inquietação e de temor, tendo no coração a paz que Jesus nos deixou e que o mundo não pode dar (cf. Jn 14,26-27). O Espírito acompanha a Igreja no longo caminho que se estende entre a primeira e a segunda vinda de Cristo: «Vou, e volto a vós» (Jn 14,28), disse Jesus aos Apóstolos. Entre a “ida” e a “volta” de Cristo está o tempo da Igreja, que é o seu Corpo, estão esses dois mil anos transcorridos até agora; estão também estes pouco mais de cinco séculos em que a Igreja fez-se peregrina nas Américas, difundindo nos fiéis a vida de Cristo através dos Sacramentos e lançando nestas terras a boa semente do Evangelho, que rendeu trinta, sessenta e até mesmo o cento por um. Tempo da Igreja, tempo do Espírito Santo: Ele é o Mestre que forma os discípulos: fá-los enamorar-se de Jesus; educa-os para que escutem a sua Palavra, a fim de que contemplem a sua Face; conforma-os à sua Humanidade bem-aventurada, pobre em espírito, aflita, mansa, sedenta de justiça, misericordiosa, pura de coração, pacífica, perseguida por causa da justiça (cf. Mt 5,3-10). Deste modo, graças à ação do Espírito Santo, Jesus torna-se a “Via” na qual caminha o discípulo. «Se alguém me ama, observará a minha palavra», diz Jesus no início do trecho evangélico de hoje. «A palavra que tendes ouvido não é minha, mas sim do Pai que me enviou» (Jn 14,23-24). Como Jesus transmite as palavras do Pai, assim o Espírito recorda à Igreja as palavras de Cristo (cf. Jn 14,26). E como o amor pelo Pai levava Jesus a alimentar-se da sua vontade, assim o nosso amor por Jesus se demonstra na obediência pelas suas palavras. A fidelidade de Jesus à vontade do Pai pode transmitir-se aos discípulos graças ao Espírito Santo, que derrama o amor de Deus nos seus corações (cf. Rm 5,5).

O Novo Testamento apresenta-nos a Cristo como missionário do Pai.Especialmente no Evangelho de São João, Jesus fala de si tantas vezes a propósito do Pai que O enviou ao mundo. Da mesma forma, também no texto de hoje. Jesus diz: « A palavra que tendes ouvido não é minha, mas sim do Pai que me enviou» (Jn 14,24). Neste momento, queridos amigos, somos convidados a fixar nosso olhar n’Ele, porque a missão da Igreja subsiste somente em quanto prolongação daquela de Cristo: «Como o Pai me enviou, assim também eu vos envio a vós» (Jn 20,21). O evangelista põe em relevo, inclusive de forma plástica, que esta consignação acontece no Espírito Santo: «Soprou sobre eles dizendo: ‘Recebei o Espírito Santo...’ » (Jn 20,22). A missão de Cristo realizou-se no amor. Ele acendeu no mundo o fogo da caridade de Deus (cf. Lc 12,49). É o amor que dá a vida: por isso a Igreja é convidada a difundir no mundo a caridade de Cristo, porque os homens e os povos «tenham a vida e a tenham em abundância» (Jn 10,10). A vós também, que representais a Igreja na América Latina, tenho a alegria entregar de novo idealmente a minha Encíclica Deus caritas est, com a qual quis indicar a todos o que é essencial na mensagem cristã. A Igreja se sente discípula e missionária desse Amor : missionária somente enquanto discípula, isto é capaz de deixar-se sempre atrair, com renovado enlevo, por Deus que nos amou e nos ama por primeiro (1Jn 4,10). A Igreja não faz proselitismo. Ela cresce muito mais por “atração”: como Cristo “atrai todos a si” com a força do seu amor, que culminou no sacrifício da Cruz, assim a Igreja cumpre a sua missão na medida em que, associada a Cristo, cumpre a sua obra conformando-se em espírito e concretamente com a caridade do seu Senhor.

Queridos hermanos y hermanas. Éste es el rico tesoro del continente Latinoamericano; éste es su patrimonio más valioso: la fe en Dios Amor, que reveló su rostro en Jesucristo. Vosotros creéis en el Dios Amor: ésta es vuestra fuerza que vence al mundo, la alegría que nada ni nadie os podrá arrebatar, ¡la paz que Cristo conquistó para vosotros con su Cruz! Ésta es la fe que hizo de Latinoamérica el “Continente de la Esperanza”. No es una ideología política, ni un movimiento social, como tampoco un sistema económico; es la fe en Dios Amor, encarnado, muerto y resucitado en Jesucristo, el auténtico fundamento de esta esperanza que produjo frutos tan magníficos desde la primera evangelización hasta hoy. Así lo atestigua la serie de Santos y Beatos que el Espíritu suscitó a lo largo y ancho de este Continente. El Papa Juan Pablo II os convocó para una nueva evangelización, y vosotros respondisteis a su llamado con la generosidad y el compromiso que os caracterizan. Yo os lo confirmo y, con palabras de esta Quinta Conferencia, os digo: sed discípulos fieles, para ser misioneros valientes y eficaces.

La segunda Lectura nos ha presentado la grandiosa visión de la Jerusalén celeste. Es una imagen de espléndida belleza, en la que nada es simplemente decorativo, sino que todo contribuye a la perfecta armonía de la Ciudad santa. Escribe el vidente Juan que ésta “bajaba del cielo, enviada por Dios trayendo la gloria de Dios” (Ap 21,10). Pero la gloria de Dios es el Amor; por tanto la Jerusalén celeste es icono de la Iglesia entera, santa y gloriosa, sin mancha ni arruga (cf. Ep 5,27), iluminada en el centro y en todas partes por la presencia de Dios-Caridad. Es llamada “novia”, “la esposa del Cordero” (Ap 20,9), porque en ella se realiza la figura nupcial que encontramos desde el principio hasta el fin en la revelación bíblica. La Ciudad-Esposa es patria de la plena comunión de Dios con los hombres; ella no necesita templo alguno ni ninguna fuente externa de luz, porque la presencia de Dios y del Cordero es inmanente y la ilumina desde dentro.

Este icono estupendo tiene un valor escatológico: expresa el misterio de belleza que ya constituye la forma de la Iglesia, aunque aún no haya alcanzado su plenitud. Es la meta de nuestra peregrinación, la patria que nos espera y por la cual suspiramos. Verla con los ojos de la fe, contemplarla y desearla, no debe ser motivo de evasión de la realidad histórica en que vive la Iglesia compartiendo las alegrías y las esperanzas, los dolores y las angustias de la humanidad contemporánea, especialmente de los más pobres y de los que sufren (cf. Gaudium et spes GS 1). Si la belleza de la Jerusalén celeste es la gloria de Dios, o sea, su amor, es precisamente y solamente en la caridad cómo podemos acercarnos a ella y, en cierto modo, habitar en ella. Quien ama al Señor Jesús y observa su palabra experimenta ya en este mundo la misteriosa presencia de Dios Uno y Trino, como hemos escuchado en el Evangelio: “Vendremos a él y haremos morada en él” (Jn 14,23). Por eso, todo cristiano está llamado a ser piedra viva de esta maravillosa “morada de Dios con los hombres”.¡Qué magnífica vocación!

Uma Igreja inteiramente animada e mobilizada pela caridade de Cristo, Cordeiro imolado por amor, é a imagem histórica da Jerusalém celeste, antecipação da Cidade santa, resplandecente da glória de Deus. Ela emana uma força missionária irresistível, que é a força da santidade. A Virgem Maria alcance para a América Latina e no Caribe ser abundantemente revestida da força do alto (cf. Lc 24,49) para irradiar no Continente e em todo o mundo a santidade de Cristo. A Ele seja dada glória, com o Pai e o Espírito Santo, nos séculos dos séculos. Amém.



Domingo, 3 de Junho de 2007: CANONIZAÇÃO DE TRÊS PRESBÍTEROS E UMA RELIGIOSA

30607


Solenidade da Santíssima Trindade


Queridos irmãos e Irmãs!

Celebramos hoje a Solenidade da Santíssima Trindade. Após o tempo pascal, depois de ter revivido o acontecimento de Pentecostes, que renova o baptismo da Igreja no Espírito Santo, dirigimos por assim dizer o olhar para "o céu aberto" para entrar com os olhos da fé nas profundezas do mistério de Deus, Uno na substância e Trino nas pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo. Enquanto nos deixamos envolver por este excelso mistério, admiramos a glória de Deus, que se reflecte na vida dos Santos; contemplamo-la sobretudo naqueles que há pouco propus à veneração da Igreja universal: Jorge Preca, Simão de Lipnica, Carlos de Santo André Houben e Maria Eugénia de Jesus Milleret. A todos os peregrinos, aqui reunidos para prestar homenagem a estas testemunhas exemplares do Evangelho, dirijo a minha cordial saudação. Saúdo, em particular, os Senhores Cardeais, os Senhores Presidentes das Filipinas, da Irlanda, de Malta e da Polónia, os venerados Irmãos no Episcopado, as Delegações governativas e as outras Autoridades civis, que participamnestacelebração.

Na primeira Leitura, tirada do Livro dos Provérbios, entra em cena a Sabedoria, que está ao lado de Deus como assistente, como "arquitecta" (
Sg 8,30). É maravilhosa a "panorâmica" sobre a criação observada com os seus olhos. A própria Sabedoria confessa: "brincando sobre o globo de sua terra e achando as minhas delícias junto dos filhos do homem" (Sg 8,31). É no meio dos seres humanos que lhe apraz habitar, porque reconhece neles a imagem e a semelhança do Criador. Esta relação preferencial da Sabedoria com os homens faz pensar num célebre trecho de outro livro sapiencial, o Livro da Sabedoria: "Ela é um sopro do poder de Deus... Embora sendo única tudo pode, é imutável em si mesma, renova todas as coisas. Ela derrama-se, de geração em geração, pelas almas santas e forma os amigos de Deus e os profetas" (Sg 7,25-27). Esta última sugestiva expressão convida a considerar a multiforme e inexaurível manifestação da santidade no povo de Deus ao longo dos séculos. A Sabedoria de Deus manifesta-se na criação, na variedade e beleza dos seus elementos, mas as suas obras-primas, onde realmente se manifesta a sua beleza e a sua grandeza, são os santos.

No trecho da Carta do apóstolo Paulo aos Romanos encontramos uma imagem semelhante: a do amor de Deus "derramado nos corações" dos santos, isto é, dos baptizados, "por meio do Espírito Santo" que lhes foi doado (cf. Rm 5,5). É através de Cristo que o dom do Espírito passa, "Pessoa-amor, Pessoa-dom", como o definiu o Servo de Deus João Paulo II (Enc. Dominum et vivificantem DEV 10). Por meio de Cristo, o Espírito de Deus chega até nós como princípio de vida nova, "santa". O Espírito coloca o amor de Deus no coração dos crentes na forma concreta que Jesus de Nazaré tinha no homem. Realiza-se assim quanto diz São Paulo na Carta aos Colossenses: "Cristo em vós, esperança da glória" (Col 1,27). As "tribulações" não estão em contraste com esta esperança, aliás, concorrem para a realizar, através da "paciência" e da "virtude provada" (Rm 5,3-4): é o caminho de Jesus, o caminho da Cruz.

Na mesma perspectiva, da Sabedoria de Deus encarnada em Cristo e comunicada pelo Espírito Santo, o Evangelho sugeriu-nos que Deus Pai continua a manifestar o seu desígnio de amor mediante os santos. Também aqui, acontece o que já observámos em relação à Sabedoria: o Espírito de verdade revela o desígnio de Deus na multiplicidade dos elementos da criação somos gratos por esta visibilidade da beleza e da bondade de Deus nos elementos da criação e fá-lo sobretudo mediante as pessoas humanas, de modo especial mediante os santos e as santas, nos quais transparece com grande vigor a sua luz, a sua verdade, o seu amor. De facto, "a imagem do Deus invisível" (Col 1,15) é propriamente só Jesus Cristo, "o Santo e o Justo" (Ac 3,14). Ele é a Sabedoria encarnada, o Logos criador que encontra a sua alegria em habitar entre os filhos dos homens, no meio dos quais armou a sua tenda (cf. Jn 1,14). N'Ele aprouve a Deus pôr "toda a plenitude" (cf. Col 1,19); ou, como diz Ele mesmo no trecho evangélico de hoje: "Tudo quanto o Pai tem é Meu" (Jn 16,15).Cada um dos Santos participa da riqueza de Cristo retomada pelo Pai e comunicada no tempo oportuno. É sempre a mesma santidade de Jesus, é sempre Ele, o "Santo", que o Espírito plasma nas "almas santas", formando amigos de Jesus e testemunhas da sua santidade. E Jesus quer fazer também de nós amigos seus. Precisamente neste dia abrimos o nosso coração para que também na nossa vida cresça a amizade por Jesus, de forma que possamos testemunhar a sua santidade, bondade e verdade.

Um amigo de Jesus e testemunha da santidade que vem d'Ele foi Jorge Preca, nascido em La Valletta na ilha de Malta. Foi um sacerdote totalmente dedicado à evangelização: com a pregação, com os escritos, com a guia espiritual e a administração dos Sacramentos e, antes de tudo, com o exemplo da sua vida. A expressão do Evangelho de João "Verbum caro factum est" orientou sempre a sua alma e a sua acção, e assim o Senhor pôde servir-se dele para dar vida a uma obra benemérita, a "Sociedade da Doutrina Cristã", obrigado pelo vosso compromisso! que tem por objectivo garantir às paróquias o serviço qualificado de catequistas bem preparados e generosos. Alma profundamente sacerdotal e mística, ele efundia-se em impulsos de amor a Deus, a Jesus, à Virgem Maria e aos Santos. Gostava de repetir: "Senhor Deus, quanto te sou devedor! Obrigado, Senhor Deus, e perdoa-me Senhor Deus!". Uma oração que poderíamos repetir também nós, da qual nos poderíamos apropriar. São Jorge Preca ajuda a Igreja a ser sempre, em Malta e no mundo, o eco fiel da voz de Cristo, Verbo encarnado.

O novo santo, Simão de Lipnica, grande filho da terra polaca, testemunha de Cristo e seguidor da espiritualidade de São Francisco de Assis, viveu numa época distante, mas precisamente hoje é proposto à Igreja como modelo actual de um cristão que animado pelo espírito do Evangelho está pronto a dedicar a vida pelos irmãos. Assim, cheio da misericórdia que hauria da Eucaristia, não hesitou em levar ajuda aos doentes atingidos pela peste, contraindo essa doença que o levou também à morte. Hoje de modo particular confiamos à sua protecção todos os que sofrem por causa da pobreza, da doença, da solidão e da injustiça social. Através da sua intercessão pedimos para nós a graça do amor perseverante e activo, a Cristo e aos irmãos.

"O amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado". Na verdade, no caso do sacerdote passionista, Carlos de Santo André Houben, observamos como este amor foi prodigalizado numa vida totalmente dedicada ao cuidado das almas. Ao longo dos numerosos anos de ministério sacerdotal na Inglaterra e na Irlanda, o povo o procurava para obter conselhos sábios, a sua solicitude compassiva e o seu toque taumatúrgico. Na doença e no sofrimento reconheceu o rosto de Cristo crucificado, a cuja devoção tinha dedicado toda a sua vida. Hauriu em abundância das torrentes de água viva que brotava do lado trespassado, e com a força do Espírito deu testemunho perante o mundo do amor do Pai. Durante as exéquias deste sacerdote muito amado, afectuosamente chamado Padre Carlos de Mount Argus, o seu Superior observou: "O povo já o declarou santo".

Maria Eugénia Milleret recorda-nos antes de tudo a importância da Eucaristia na vida cristã e no crescimento espiritual. De facto, como ela mesma ressaltou, a sua primeira comunhão foi um tempo forte, mesmo se não se apercebeu disso completamente naquele momento. Cristo, presente no mais profundo do seu coração, trabalhava nela, deixando-lhe o tempo de caminhar ao seu ritmo, de prosseguir a sua busca interior que a levaria a doar-se totalmente ao Senhor na vida religiosa, em resposta aos apelos do seu tempo. Ela compreendia sobretudo a importância de transmitir às jovens gerações, em particular às jovens, uma formação intelectual, moral e espiritual, que fizesse delas adultas capazes de se ocupar da vida da sua família, sabendo dar a sua contribuição à Igreja e à sociedade. Durante toda a sua existência encontrou a força para a sua missão na vida de oração, associando incessantemente contemplação e acção. Que o exemplo de Santa Maria Eugénia convide os homens e as mulheres de hoje a transmitir aos jovens os valores que os ajudem a tornar-se adultos fortes e testemunhas jubilosas do Ressuscitado. Que os jovens não receiem acolher estes valores morais e espirituais, vivê-los com paciência e fidelidade. Desta forma construirão a sua personalidade e prepararão o seu porvir.

Queridos irmãos e irmãs, damos graças a Deus pelas maravilhas que realizou nos Santos, nos quais resplandece a sua glória. Deixemo-nos atrair pelos seus exemplos, deixemo-nos guiar pelos seus ensinamentos, para que toda a nossa existência se torne, como a deles, um cântico de louvor para glória da Santíssima Trindade. Obtenha-nos esta graça Maria, a Rainha dos Santos, e a intercessão destes quatro novos "Irmãos maiores" que hoje veneramos com alegria. Amém.





7 de Junho de 2007: NA SOLENIDADE DO SANTÍSSIMO CORPO E SANGUE DE CRISTO

7607

Basílica de São João de Latrão



Queridos irmãos e irmãs!

Cantámos há pouco na sequência: "Dogma datur christianis, / quod in carnem transit panis, / et vinum in sanguinem É certeza para nós cristãos: / transforma-se o pão em carne, / o vinho torna-se sangue". Reafirmamos hoje com grande entusiasmo a nossa fé na Eucaristia, o Mistério que constitui o coração da Igreja. Na recente Exortação pós-sinodal Sacramentum caritatis recordei que o Mistério eucarístico "é o dom que Jesus Cristo faz de si mesmo, revelando-nos o amor infinito de Deus por todo o homem" (). Portanto a do Corpus Christi é uma festa singular e constitui um encontro importante de fé e de louvor para cada comunidade cristã. É uma festa que teve origem num determinado contexto histórico e cultural: nasceu com a finalidade de reafirmar abertamente a fé do Povo de Deus em Jesus Cristo vivo e realmente presente no santíssimo Sacramento da Eucaristia. É uma festa instituída para adorar, louvar e agradecer publicamente ao Senhor, que "no Sacramento eucarístico continua a amar-nos "até ao fim", até à doação do seu corpo e do seu sangue" (Sacramentum caritatis, 1).

A Celebração eucarística desta tarde reconduz-nos ao clima espiritual da Quinta-Feira Santa, o dia em que Cristo, na vigília da sua Paixão, instituiu no Cenáculo a santíssima Eucaristia. O Corpus Christi constitui assim uma retomada do mistério da Quinta-Feira Santa, quase em obediência ao convite de Jesus para "proclamar sobre os telhados" o que Ele nos transmitiu no segredo (cf.
Mt 10,27). Os Apóstolos receberam do Senhor o dom da Eucaristia na intimidade da Última Ceia, mas destinava-se a todos, ao mundo inteiro. Eis por que deve ser proclamado e exposto abertamente, para que todos possam encontrar "Jesus que passa" como acontecia pelas estradas da Galileia, da Samaria e da Judeia; para que todos, recebendo-o possam ser curados e renovados pela força do seu amor. É esta, queridos amigos, a herança perpétua e viva que Jesus nos deixou no Sacramento do seu Corpo e do seu Sangue. Herança que pede para ser constantemente considerada, vivida, para que, como disse o venerado Papa Paulo VI, possa "imprimir a sua eficiência inexaurível em todos os dias da nossa vida mortal" (Insegnamenti, V [1967], p. 779).

Sempre na Exortação pós-sinodal, comentando a exclamação do sacerdote depois da consagração: "Mistério da Fé!", escrevi: com estas palavras ele "proclama o mistério celebrado e manifesta o seu enlevo perante a conversão substancial do pão e do vinho no corpo e sangue do Senhor Jesus, uma realidade que supera qualquer compreensão humana" (n. 6). Precisamente porque se trata de uma realidade misteriosa que ultrapassa a nossa compreensão, não devemos surpreender-nos se também hoje muitos têm dificuldade em aceitar a presença real de Cristo na Eucaristia. Não pode ser de outra forma. Foi assim desde o dia em que, na sinagoga de Cafarnaum, Jesus declarou abertamente ter vindo para nos dar em alimento a sua carne e o seu sangue (cf. Jn 6,26-58). A linguagem pareceu "dura" e muitos se retiraram. Então como agora, a Eucaristia permanece "sinal de contradição" e não pode deixar de sê-lo, porque um Deus que se faz carne e se sacrifica a si mesmo pela vida do mundo põe em dificuldade a sabedoria dos homens. Mas com humilde confiança, a Igreja faz sua a fé de Pedro e dos outros Apóstolos, e com eles proclama, e nós proclamamos: "A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna" (Jn 6,68). Renovemos também nós esta tarde a profissão de fé em Cristo vivo e presente na Eucaristia. Sim, "é certeza para nós cristãos: / o pão transforma-se em carne, / o sangue faz-se vinho".

A Sequência do seu ponto culminante, fez-nos cantar: "Ecce panis angelorum, / factus cibus viatorum: / vere panis filiorum Eis o pão dos anjos, / pão dos peregrinos, / verdadeiro pão dos filhos". E por graça do Senhor, nós somos filhos. A Eucaristia é o alimento destinado àqueles que no Baptismo foram libertados da escravidão e se tornaram filhos; é o alimento que ampara no longo caminho do êxodo através do deserto da existência humana. Como o maná para o povo de Israel, assim para cada geração cristã a Eucaristia é alimento indispensável que ampara enquanto atravessa o deserto deste mundo, ressequido por sistemas ideológicos e económicos que não promovem a vida, mas ao contrário a mortificam; um mundo no qual domina a lógica do poder e do ter em vez da do serviço e do amor; um mundo no qual com frequência triunfa a cultura da violência e da morte. Mas Jesus vem ao nosso encontro e infunde-nos segurança: Ele mesmo é "o pão da vida" (Jn 6,35 Jn 6,48). Repetiuno-lo nas palavras do Cântico ao Evangelho: "Eu sou o pão vivo descido do céu; quem come deste pão viverá eternamente" (cf. Jn 6,51).

No trecho evangélico há pouco proclamado São Lucas, narrando o milagre da multiplicação dos dois peixes e dos cinco pães com que Jesus deu de comer à multidão "numa zona deserta" conclui dizendo: "Todos comeram e ficaram saciados" (cf. Lc 9,11-17). Em primeiro lugar gostaria de ressaltar este "todos". De facto é desejo do Senhor que cada ser humano se alimente da Eucaristia, porque a Eucaristia é para todos. Se na Quinta-Feira Santa é ressaltado o vínculo estreito que existe entre a Última Ceia e o mistério da morte de Jesus na cruz, hoje, festa do Corpus Christi, com a procissão e a adoração coral da Eucaristia chamamos a atenção sobre o facto de que Cristo se imolou pela humanidade inteira. A sua passagem entre as casas e pelas estradas da nossa Cidade será para quantos nela habitam uma oferenda de alegria, de vida imortal, de paz e de amor.

No trecho evangélico, sobressai um segundo elemento: o milagre realizado pelo Senhor contém um convite explícito a oferecer cada qual a própria contribuição. Os dois peixes e os cinco pães indicam a nossa contribuição, pobre mas necessária, que Ele transforma em doação de amor por todos. "Ainda hoje Cristo escrevi na citada Exortação pós-sinodal continua a exortar os seus discípulos a comprometerem-se em primeira pessoa" (n. 88). Portanto, a Eucaristia é uma chamada à santidade e à doação de si aos irmãos, porque "a vocação de cada um de nós é ser, juntamente com Jesus, pão partido para a vida do mundo" (ibid.).

O nosso Redentor dirige este convite de modo particular a nós, queridos irmãos e irmãs de Roma, reunidos nesta histórica Praça em redor da Eucaristia: saúdo-vos a todos com afecto. A minha saudação dirige-se antes de tudo ao Cardeal Vigário e aos Bispos Auxiliares, aos demais venerados Irmãos Cardeais e Bispos, assim como aos numerosos presbíteros e diáconos, aos religiosos e às religiosas, e aos numerosos fiéis leigos. No final da Celebração eucarística unir-nos-emos em procissão, como que para levar idealmente o Senhor Jesus por todas as estradas e bairros de Roma. Imergi-lo-emos, por assim dizer, na quotidianidade da nossa vida, para que Ele caminhe onde nós caminhamos, para que Ele viva onde nós vivemos. De facto, sabemos como nos recordou o apóstolo Paulo na Carta aos Coríntios, que em cada Eucaristia, também na desta tarde, nós "anunciamos a morte do Senhor até que ele venha" (1Co 11,26). Nós caminhamos pelas estradas do mundo sabendo que O temos ao nosso lado, amparados pela esperança de o poder ver um dia face a face revelado no encontro definitivo.

Entretanto, já agora ouvimos a sua voz que repete, como lemos no Livro do Apocalipse: "Olha que Eu estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, Eu estarei na minha casa e cearei com ele e ele comigo" (Ap 3,20). A festa do Corpus Christi quer tornar perceptível, não obstante a surdez do nosso ouvido interior, este bater do Senhor. Jesus bate à porta do nosso coração e pede-nos para entrar não só pelo espaço de um dia, mas para sempre. Acolhamo-lo com alegria elevando-lhe a coral invocação da Liturgia: "Bom Pastor, verdadeiro pão, / ó Jesus, piedade de nós (...) Tu que tudo sabes e podes, / que nos alimentas na terra, / conduz os teus irmãos / à mesa do céu / na alegria dos teus santos". Amém!



Domingo, 17 de Junho de 2007: VISITA PASTORAL A ASSIS

17607
DURANTE A CONCELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA PRESIDIDA NA PRAÇA INFERIOR DA BASÍLICA DE SÃO FRANCISCO



Queridos irmãos e irmãs!

Que nos diz hoje o Senhor, enquanto celebramos a Eucaristia no sugestivo cenário desta praça, na qual se reúnem oito séculos de santidade, de devoção, de arte e de cultura, ligados ao nome de Francisco de Assis? Hoje aqui tudo fala de conversão, como nos recordou D. Domenico Sorrentino, ao qual agradeço de coração, as gentis palavras que me dirigiu. Com ele saúdo toda a Igreja de Assis-Nocera Umbra-Gualdo Tadino, assim como os Pastores das Igrejas da Úmbria. Dirijo um pensamento grato ao Cardeal Attilio Nicora, meu Legado para as duas Basílicas papais desta Cidade. Dirijo uma saudação afectuosa aos filhos de Francisco, aqui presentes com os seus Ministros-Gerais das várias Ordens. Expresso o meu cordial obséquio ao Presidente do Conselho dos Ministros e a todas as Autoridades civis que me quiseram honrar com a sua presença.

Falar de conversão significa ir ao centro da mensagem cristã e ao mesmo tempo às raízes da existência humana. A Palavra de Deus há pouco proclamada ilumina-nos, pondo-nos diante dos olhos três figuras de convertidos. A primeira é a de David. O trecho que lhe diz respeito, tirado do segundo livro de Samuel, apresenta-nos um dos diálogos mais dramáticos do Antigo Testamento. No centro deste diálogo há uma sentença arrasadora, com que a Parábola de Deus, proferida pelo profeta Natan, põe a cru um rei no ápice do seu apogeu político, mas que caiu no nível mais baixo da sua vida moral. Para compreender a tensão dramática deste diálogo, é preciso ter presente o horizonte histórico e teológico no qual ele se situa. É um horizonte designado pela vicissitude de amor com que Deus escolhe Israel como seu povo, estabelecendo com ele uma aliança e preocupando-se por lhe garantir terra e liberdade. David é uma cadeia desta história da contínua solicitude de Deus pelo seu povo. É escolhido num momento difícil e colocado ao lado do rei Saul, para se tornar depois seu sucessor. O desígnio de Deus refere-se também à sua descendência, ligada ao projecto messiânico, que encontrará em Cristo, "filho de David", a sua plena realização.

A figura de David é assim, ao mesmo tempo, imagem de grandeza histórica e religiosa. Contrasta muito mais com a baixeza em que ele cai, quando, obcecado pela paixão por Betsabeia, a arranca ao seu esposo, um dos seus guerreiros mais fiéis, ordenando depois friamente o assassínio dele. Isto faz arrepiar: como pode, um eleito de Deus, cair tão em baixo? O homem é verdadeiramente grandeza e miséria: é grandeza porque tem em si a imagem de Deus e é objecto do seu amor; é miséria porque pode fazer mau uso da liberdade que é o seu grande privilégio, acabando por se pôr contra o seu Criador. O verdadeiro Deus, pronunciado por Natan sobre David, esclarece as fibras íntimas da consciência, onde não contam os exércitos, o poder, a opinião pública, mas onde se está a sós com Deus. "Tu és aquele homem": esta palavra obriga David às suas responsabilidades. Profundamente atingido por esta palavra, o rei desenvolve um arrependimento sincero e abre-se à oferta da misericórdia. Eis o caminho da conversão.

Hoje, Francisco, coloca-se ao lado de David para nos convidar para este caminho. De quanto os biógrafos narram dos seus anos juvenis, nada faz pensar em quedas tão graves como a atribuída ao antigo rei de Israel. Mas o próprio Francisco, no Testamento redigido nos últimos meses da sua existência, olha para os seus primeiros vinte e cinco anos como para um tempo em que "estava nos pecados" (cf. 2 Test 1: FF 110). Além das manifestações individuais, era pecado conceber e organizar uma vida toda centrada sobre si, seguindo sonhos vãos de glória terrena. Não lhe faltava, quando era o "rei das festas" entre os jovens de Assis (cf. 2 Cel I, 3, 7: FF 588), uma natural generosidade de alma. Mas ainda estava muito longe do amor cristão que se doa sem limites ao outro. Como ele mesmo recorda, parecia-lhe amargo ver os leprosos. O pecado impedia-lhe dominar a repugnância física para reconhecer neles irmãos a serem amados. A conversão levou-o a exercer misericórdia e obteve-lhe também misericórdia. Servir os leprosos, chegando a beijá-los, não foi só um gesto de filantropia, uma conversão, por assim dizer, "social", mas uma verdadeira experiência religiosa, comandada pela iniciativa da graça e pelo amor de Deus: "O Senhor diz ele conduziu-me ao meio deles" (2 Test 2: FF 110). Foi então que a amargura se transformou em "doçura de alma e corpo" (2 Test 3: FF 110). Sim, meus queridos irmãos e irmãs, converter-nos ao amor é passar da amargura à "doçura", da tristeza à alegria verdadeira. O homem é verdadeiramente ele mesmo, e realiza-se plenamente, na medida em que vive com Deus e de Deus, reconhecendo e amando-o nos irmãos.

No trecho da Carta aos Gálatas, sobressai outro aspecto do caminho de conversão. Quem no-lo explica é outro grande convertido, o apóstolo Paulo. O contexto das suas palavras é o debate no qual a comunidade primitiva se encontrou envolvida: nela muitos cristãos provenientes do judaísmo tendiam a ligar a salvação com o cumprimento das obras da antiga Lei, vanificando assim a novidade de Cristo e a universalidade da sua mensagem. Paulo ergue-se como testemunha e divulgador da graça. No caminho de Damasco, o rosto radioso e a voz forte de Cristo tinham-no arrancado ao seu zelo violento de perseguidor e tinham acendido nele o novo zelo do Crucificado, que reconcilia os próximos e os distantes na sua cruz (cf.
Ep 2,11-22). Paulo tinha compreendido que em Cristo toda a lei se cumpre e quem adere a Cristo une-se a Ele, cumpre a lei. Levar Cristo, e com Cristo o único Deus, a todas as nações tinha-se tornado a sua missão. Cristo "é a nossa paz, Ele que de dois povos fez um só, destruindo o muro de inimizade..." (Ep 2,14). A sua confissão muito pessoal de amor expressa ao mesmo tempo também a comum essência da vida cristã: "a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, que me amou e Se entregou a Si mesmo por mim" (Ga 2,20b). E como se pode responder a este amor, a não ser abraçando Cristo crucificado, até viver da sua mesma vida? "Estou crucificado com Cristo! Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim" (Ga 2,20a).

Falando do seu estar crucificado com Cristo, São Paulo não só menciona o seu novo nascimento no baptismo, mas toda a sua vida ao serviço de Cristo. Este vínculo com a sua vida apostólica aparece com clareza nas palavras conclusivas da sua defesa da liberdade cristã no final da Carta aos Gálatas: "Daqui em diante, ninguém me moleste, pois trago no meu corpo as marcas do Senhor Jesus" (Ga 6,17). É a primeira vez, na história do cristianismo, que aparece a palavra "estigmas de Jesus". Na contenda sobre o modo correcto de ver e de viver o Evangelho, no fim, não decidem os argumentos do nosso pensamento; decide a realidade da vida, a comunhão vivida e suportada com Jesus, não só nas ideias ou nas palavras, mas desde o profundo da existência, envolvendo também o corpo, a carne. As marcas recebidas numa longa história de paixão são testemunho da presença da cruz de Jesus no corpo de São Paulo, são os seus estigmas. E assim pode dizer que não é a circuncisão que o salva: os estigmas são a consequência do seu baptismo, a expressão do seu morrer com Jesus dia após dia, o sinal seguro do seu ser nova criatura (cf. Ga 6,15). Paulo menciona, de resto, com a aplicação da palavra "estigmas", o costume antigo de imprimir na carne do escravo a marca do seu proprietário. O servo era assim "estigmatizado" como propriedade do seu dono e estava sob a sua protecção. O sinal da cruz, inscrito em longas paixões na carne de Paulo, é o seu orgulho: legitima-o como verdadeiro servo de Jesus, protegido pelo amor do Senhor.

Queridos amigos, Francisco de Assis entrega-nos hoje de novo todas estas palavras de Paulo, com a força do seu testemunho. Desde quando o rosto dos leprosos, amados por amor a Deus, lhe fez intuir, de certa forma, o mistério da "kenose" (cf. Ph 2,7), o abaixar-se de Deus na carne do Filho do homem, desde quando depois a voz do Crucifixo de São Damião lhe colocou no coração o programa da sua vida: "Vai, Francisco, repara a minha casa" (2 Cel I, 6, 10: FF 593), o seu caminho não foi mais que o esforço quotidiano de se identificar com Cristo. Ele apaixonou-se por Cristo. As chagas do Crucificado feriram o seu coração, antes de marcar o seu corpo em La Verna. Ele podia verdadeiramente dizer com Paulo: "Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim".

Falemos agora do centro evangélico da hodierna Palavra de Deus. O próprio Jesus, no trecho acabado de ler do Evangelho de Lucas, explica-nos o dinamismo da conversão autêntica, indicando-nos como modelo a mulher pecadora resgatada pelo amor. Deve reconhecer-se que esta mulher tinha ousado muito. O seu modo de se colocar diante de Jesus, lavando com as lágrimas os seus pés e secando-os com os cabelos, beijando-os e perfumando-os com ólio perfumado, era feito para escandalizar aqueles que viam as pessoas da sua condição com o olhar impiedoso de juiz. Ao contrário, impressiona a ternura com que Jesus trata esta mulher, por muitos explorada e por todos julgada. Finalmente encontrou em Jesus um olhar puro, um coração capaz de amar sem explorar. No olhar e no coração de Jesus ela recebe a revelação de Deus-Amor!

Evitando equívocos, deve-se observar que a misericórdia de Jesus não se expressa pondo entre parêntesis a lei moral. Para Jesus, o bem é bem, o mal é mal. A misericórdia não muda os aspectos do pecado, mas queima-os num fogo de amor. Este afecto purificante e restabelecedor realiza-se se há no homem uma correspondência de amor, que implica o reconhecimento da lei de Deus, o arrependimento sincero, o propósito de uma vida nova. À pecadora do Evangelho muito é perdoado, porque muito amou. Em Jesus Deus vem dar-nos o amor e pedir-nos o amor.

O que foi, meus queridos irmãos e irmãs, a vida de Francisco convertido a não ser um grande acto de amor? Revelam-no as suas orações fervorosas, ricas de contemplação e de louvor, o seu terno abraço de Menino divino em Greccio, a sua contemplação da paixão em La Verna, o seu "viver segundo a forma do santo Evangelho" (2 Test 14: FF 116), a sua opção pela pobreza e o seu procurar Cristo no rosto dos pobres.

É esta sua conversão a Cristo, até ao desejo de "se transformar" n'Ele, tornando-se uma imagem completa que explica aquela sua vivência típica, em virtude da qual ele se nos mostra tão actual também em relação aos grandes temas do nosso tempo, como a busca da paz, a salvaguarda da natureza, a promoção do diálogo entre todos os homens. Francisco é um verdadeiro mestre nestas coisas. Mas também o é a partir de Cristo. De facto, é Cristo "a nossa paz" (cf. Ep 2,14). É Cristo o próprio princípio da criação, dado que n'Ele tudo foi feito (cf. Jn 1,3). É Cristo a verdade divina, o eterno "Logos", no qual qualquer "dia-logos" no tempo encontra o seu fundamento último. Francisco encarna profundamente esta verdade "cristológica" que está nas raízes da existência humana, da criação, da história.

Não posso esquecer, neste contexto, a iniciativa do meu Predecessor de santa memória, João Paulo II, que quis reunir aqui, em 1996, os representantes das confissões cristãs e das diversas religiões do mundo, para um encontro de oração pela paz. Foi uma intuição profética e um momento de graça, como recordei há alguns meses na minha carta ao Bispo desta Cidade por ocasião do vigésimo aniversário daquele acontecimento. A escolha de celebrar aquele encontro em Assis era sugerida precisamente pelo testemunho de Francisco como homem de paz, para o qual muitos olham com simpatia também de outras posições culturais e religiosas. Ao mesmo tempo, a luz do Pobrezinho sobre esta iniciativa era uma grande garantia de autenticidade cristã, dado que a sua vida e a sua mensagem se baseavam tão visivelmente sobre a escolha de Cristo, que rejeitavam a priori qualquer tentação de indiferentismo religioso, que em nada se relacionaria com o autêntico diálogo inter-religioso. O "espírito de Assis", que a partir daquele evento se continua a difundir no mundo, opõe-se ao espírito de violência, ao abuso da religião como pretexto para a violência.

Assis diz-nos que a fidelidade à própria convicção religiosa, a fidelidade sobretudo a Cristo crucificado e ressuscitado não se expressa em violência e intolerância, mas no sincero respeito do outro, no diálogo, num anúncio que faz apelo à liberdade e à razão, no compromisso pela paz e pela reconciliação. Não poderia ser atitude evangélica, nem franciscana, não conseguir conjugar o acolhimento, o diálogo e o respeito por todos com a certeza de fé que cada cristão, do modo como o Santo de Assis, é obrigado a cultivar, anunciando Cristo como caminho, verdade e vida do homem (cf. Jn 14,6), único Salvador do mundo.

Que Francisco de Assis obtenha para esta Igreja particular, para as Igrejas que estão na Úmbria, para toda a Igreja que está na Itália, da qual ele, juntamente com Santa Catarina de Sena, é Padroeiro, para as numerosas pessoas que no mundo o invocam, a graça de uma autêntica e plena conversão ao amor de Cristo





Bento XVI Homilias 13507