Bento XVI Homilias 17607


Terça-feira, 19 de Junho de 2007: EXÉQUIAS DO CARDEAL ANGELO FELICI

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Há pouco, no Evangelho, ouvimos estas palavras de Cristo: "Quem come a Minha carne e bebe o Meu sangue tem a vida eterna e Eu ressuscitá-lo-ei no último dia" (
Jn 6,54). Elas iluminam a nossa fé e sustentam a nossa esperança no momento triste e solene que estamos a viver, enquanto reunidos à volta do Altar, nos preparamos para dar a última saudação, com sentimentos de afecto e de fervoroso reconhecimento, ao nosso venerado Irmão, o Cardeal Angelo Felici. Com ele e para ele desejamos confessar, com particular intensidade, a consciência de que na Eucaristia somos misteriosamente tornados partícipes da morte e da ressurreição do Senhor, crendo firmemente que Deus prepara para os seus servos bons e fiéis o prémio da vida que não terá fim. Foi esta a fé que guiou a longa e fecunda existência sacerdotal do Cardeal Felici. Com esta fé ele celebrou o Sacrifício divino, procurando na Eucaristia a referência constante do seu itinerário espiritual; com esta fé hauriu da Eucaristia a força para desempenhar o seu zeloso trabalho na vinha do Senhor! Confiamos que agora o Pai o tenha acolhido na sua casa para participar no convívio do céu.

Reunidos à volta do Altar, rezamos para que este nosso irmão no sacerdócio possa ver face a face Jesus Cristo, o seu Senhor (cf. 1Co 13,12), que na terra se esforçou por servir com amor.

Neste momento ressoa no nosso coração com eco singular a exortação do apóstolo João: "Nisto conhecemos a caridade: Ele (Jesus) deu a Sua vida por nós, e nós devemos dar a vida pelos nossos irmãos" (1Jn 3,16). Poderíamos dizer que estas palavras sintetizam de modo eficaz a intenção profunda que orientou a vida e o ministério eclesial do saudoso Cardeal. Originário da antiga e nobre cidade de Segni, o adolescente Angelo Felici respondeu imediatamente à chamada do Senhor e foi acolhido no Pontifício Colégio Leoniano de Anagni, onde realizou os estudos de filosofia e teologia. Tendo recebido o Subdiaconado, foi imediatamente orientado para a Pontifícia Academia Eclesiástica e a 4 de Abril de 1942, com quase vinte e três anos, recebeu a Ordenação sacerdotal. A sua formação intelectual prosseguiu então no campo jurídico: frequentou os cursos Utriusque Iuris do Ateneu Lateranense e em seguida passou para a Universidade Gregoriana, onde obteve o Doutoramento em Direito Canónico.

O seu sacerdócio foi em prática totalmente dedicado a servir a Sé Apostólica, colaborando estreitamente com o Sucessor de Pedro. De facto, tendo entrado a 1 de Julho de 1945 na Secretaria de Estado, adquiriu uma notável experiência nas relações da Santa Sé com os Estados, trabalhando primeiro com o Cardeal Tardini e depois com o Cardeal Cicognani. Por esta sua competência e pela provada fidelidade, o Servo de Deus Paulo VI nomeou-o Subsecretário da que na época se chamava Congregação para os Assuntos Eclesiásticos Extraordinários. Naquele mesmo período uniu ao serviço à Santa Sé o ensino do estilo diplomático aos alunos da Pontifícia Academia Eclesiástica até quando, em Julho de 1967, foi eleito Arcebispo e enviado como pró-Núncio Apostólico nos Países Baixos onde permaneceu por nove anos. Em 1976 tornou-se Representante Pontifício em Portugal, depois de três anos foi para Paris onde teve a ventura de acolher por três vezes o amado João Paulo II, por ocasião das suas peregrinações apostólicas na França. Chamado em 1988 para Roma, foi criado Cardeal com o Título dos Santos Brás e Carlos "in Catinari", sendo nomeado Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos. Serviço que o amado e venerado Cardeal Felici desempenhou até 1995, ocupando em seguida o cargo de Presidente da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei até ao ano 2000.

Apraz-me recordar aqui o que o Servo de Deus João Paulo II lhe escreveu por ocasião do seu 50º aniversário de Sacerdócio e 25º de Episcopado, pondo em realce o escrupuloso sentido do dever que o distinguia e a sua solícita execução das directrizes ao enfrentar os problemas e os assuntos públicos da Igreja universal. O seu ministério episcopal afirmava o Papa foi totalmente dedicado ao bem dos fiéis, à missão benéfica dos Pontífices Romanos e da Sé Apostólica. Desejamos agora dar graças ao Senhor pela abundante messe de frutos apostólicos que ele, com a ajuda da graça divina, pôde recolher nos vários campos da sua iluminada e preciosa actividade pastoral e diplomática.

Pedimos ao Bom Pastor que, reconhecendo a caridade com que o saudoso Cardeal trabalhou durante a sua longa vida terrena, o queira admitir para contemplar a luz radiosa do seu Rosto glorioso.

Portanto, enquanto nos preparamos para dar a extrema saudação a este nosso venerado Irmão, as palavras do Livro da Sabedoria, que foram proclamadas há pouco, reavivem no nosso coração a luz da confiança no Deus da vida: "As almas dos justos estão nas mãos de Deus" (Sg 3,1). Sim, as almas dos amigos de Deus repousam na paz do seu coração. Esta certeza, que devemos alimentar sempre, nos seja constante admoestação a permanecer vigilantes na oração e a perseverar humilde e fielmente no trabalho ao serviço da Igreja. A alma do justo encontra repouso em Deus; só quem n'Ele confia não estará confundido eternamente. "In Te, Domine, speravi, non confundar in aeternum".

Certamente o saudoso Cardeal Angelo Felici aguardou a morte e preparou-se para ela com este espírito e com esta consciência. Entre os seus documentos encontrou-se um comovedor testemunho. Uma pequena imagem, que representa a Mater Salvatoris, venerada na Capela do Pontifício Colégio Leoniano lugar dos seus estudos juvenis que tem no dorso esta invocação: "Em Ti, ó Senhor esperei, e na tua Santíssima Mãe; que eu não esteja confundido eternamente".

Quantas vezes ele terá repetido as palavras desta oração, escrita por seu punho em previsão da última partida! Podemos considerá-las como o testamento espiritual que ele nos deixa: palavras que, melhor que qualquer outra consideração, hoje nos ajudam a reflectir e a rezar. O Cardeal Angelo Felici confiou a sua vida e a sua morte à Mãe do Salvador e precisamente a Ela desejamos entregar a sua alma. Maria, que este nosso irmão amou e invocou como Mãe terna e solícita, o receba agora entre os seus braços como filho caríssimo e o acompanhe ao encontro com Cristo, com Aquele que "com a sua vitória nos redime da morte e nos chama consigo à vida nova" (cf. Prefácio dos Defuntos, V). Amém!



Quinta-feira, 28 de Junho de 2007: NAS PRIMEIRAS VÉSPERAS DA SOLENIDADE DOS SANTOS APÓSTOLOS PEDRO E PAULO

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Basílica de São Paulo fora dos Muros



Senhores Cardeais
Venerados Irmãos no Episcopado
e no Sacerdócio
Queridos irmãos e irmãs!

Nestas Primeiras Vésperas da Solenidade dos Santos Pedro e Paulo fazemos grata memória destes dois Apóstolos, cujo sangue, juntamente com o de muitas outras testemunhas do Evangelho, tornou fecunda a Igreja de Roma. Na sua recordação, estou feliz por saudar todos vós, queridos irmãos e irmãs, a começar pelo Senhor Cardeal Arcipreste e demais Cardeais e Bispos presentes, o Senhor Abade e a Comunidade beneditina a quem está confiada esta Basílica, os eclesiásticos, as religiosas, os religiosos e os fiéis leigos aqui reunidos. Dirijo uma saudação especial à Delegação do Patriarcado Ecuménico de Constantinopla, que retribui a presença da Delegação da Santa Sé em Istambul, por ocasião da festa de Santo André. Como tive a oportunidade de dizer há alguns dias, estes encontros e iniciativas não constituem simplesmente um intercâmbio de cortesias entre Igrejas, mas querem exprimir o compromisso comum a fazer todo o possível para apressar o tempo da plena comunhão entre o Oriente e o Ocidente cristãos. Com estes sentimentos, dirijo-me deferentemente aos Metropolitas Emanuel e Gennadios, enviados pelo querido Irmão Bartolomeu I, a quem transmito um pensamento agradecido e cordial. Esta Basílica, que viu eventos de profundo significado ecuménico, recorda-nos como é importante orar juntos para implorar o dom da unidade, aquela unidade pela qual São Pedro e São Paulo consumaram a sua existência até ao supremo sacrifício do sangue.

Uma tradição antiquíssima, que remonta aos tempos apostólicos, narra que exactamente a pouca distância deste lugar aconteceu o último encontro entre eles, antes do martírio: os dois ter-se-iam abraçado, abençoando-se reciprocamente. E sobre a porta principal desta Basílica eles estão representados em conjunto, com as cenas do martírio de ambos. Desde o início, portanto, a tradição cristã considerou Pedro e Paulo inseparáveis um do outro, embora cada um tenha tido uma missão diferente a cumprir: Pedro, em primeiro lugar, confessou a fé em Cristo, e Paulo obteve o dom de poder aprofundar a sua riqueza. Pedro fundou a primeira comunidade dos cristãos provenientes do povo eleito, e Paulo tornou-se o Apóstolo dos pagãos. Com carismas diversos trabalharam por uma única causa: a construção da Igreja de Cristo. No Ofício das Leituras, a liturgia oferece à nossa meditação este notável texto de Santo Agostinho: "Um só dia é consagrado à festa dos dois apóstolos. Mas também eles eram um só. Embora tenham sido martirizados em dias diferentes, eram um só. Pedro precedeu, Paulo seguiu... Celebremos pois este dia de festa, consagrado a nós pelo sangue dos apóstolos" (Discurso 295, 7.8). E São Leão Magno comenta: "Dos seus méritos e das suas virtudes, superiores a quanto se possa dizer, nada devemos pensar que os oponha, nada que os divida, porque a eleição os tornou semelhantes, a fadiga e o final, iguais" (In natali apostol., 69, 6-7).

Em Roma o vínculo que une Pedro a Paulo na missão assumiu desde os primeiros séculos um significado muito específico. Como os míticos irmãos Rómulo e Remo, aos quais se faz remontar o nascimento de Roma, assim Pedro e Paulo foram considerados os fundadores da Igreja de Roma. A este propósito, São Leão Magno disse, dirigindo-se à Cidade: "Estes são os teus santos padroeiros, os teus verdadeiros pastores, que para te fazer digna do reino dos céus, edificaram muito melhor e mais felizmente do que os que actuaram ao lançar os primeiros fundamentos dos teus muros" (Homilia 82, 7). Por mais diferentes que humanamente sejam um do outro e, embora a relação entre eles não fosse isenta de tensões, Pedro e Paulo aparecem contudo como os iniciadores de uma nova cidade, como concretização de um modo novo e autêntico de ser irmãos, tornado possível pelo Evangelho de Jesus Cristo. Por isso, poder-se-ia dizer que hoje a Igreja de Roma celebra o dia do seu nascimento, já que os dois Apóstolos lançaram os seus fundamentos. Além disso, hoje Roma compreende com mais consciência qual é a sua missão e a sua grandeza. São João Crisóstomo escreve que "o céu não é tão esplêndido, quando o sol difunde os seus raios, quanto a cidade de Roma, que irradia o esplendor daquelas chamas ardentes (Pedro e Paulo) pelo mundo inteiro... Este é o motivo pelo qual amamos esta cidade... por estas duas colunas da Igreja" (Comm. a RM 32).

Do Apóstolo Pedro faremos memória particularmente amanhã, ao celebrarmos o divino Sacrifício na Basílica Vaticana, edificada sobre o lugar onde ele sofreu o martírio. Nesta tarde o nosso olhar dirige-se para São Paulo, cujas relíquias são conservadas com grande veneração nesta Basílica. No início da Carta aos Romanos, como há pouco ouvimos, ele saúda a comunidade de Roma, apresentando-se como "servo de Cristo Jesus, apóstolo por vocação" (
Rm 1,1). Utiliza o termo servo, em grego doulos, que indica uma relação de total e incondicionada pertença a Jesus, o Senhor, e que traduz do hebraico 'ebed, aludindo assim aos grandes servos que Deus escolheu e chamou para uma missão importante e específica. Paulo está consciente de ser "apóstolo por vocação", isto é, não por autocandidatura, nem por encargo humano, mas somente por chamada e eleição divinas. No seu epistolário, muitas vezes o Apóstolo das Nações repete que tudo na sua vida é fruto da iniciativa gratuita e misericordiosa de Deus (cf. 1Co 15,9-10 2Co 4,1 Ga 1,15). Ele foi escolhido "para anunciar o Evangelho de Deus" (Rm 1,1), para propagar o anúncio da Graça divina que reconcilia em Cristo o homem com Deus, consigo mesmo e com os outros.

Das suas Cartas, sabemos que Paulo não era um orador hábil; aliás, partilhava com Moisés e com Jeremias a falta de talento oratório. "A sua presença corporal é débil, e a linguagem desprezível" (2Co 10,10), comentavam sobre ele os seus adversários. Por conseguinte, os extraordinários resultados apostólicos que conseguiu não podem ser atribuídos a uma brilhante retórica ou a requintadas estratégias apologéticas e missionárias. O sucesso do seu apostolado depende sobretudo de um envolvimento pessoal no anúncio do Evangelho com total dedicação a Cristo; dedicação esta que não temia riscos, dificuldades e perseguições: "Nem a morte, nem a vida escrevia aos Romanos nem os anjos, nem os principados, nem o presente, nem o futuro, nem as potestades, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor" (Rm 8,38-39). Disto podemos aprender uma lição muito importante para cada cristão. A acção da Igreja somente é crível e eficaz, na medida em que os que dela fazem parte estiverem dispostos a cumprir pessoalmente a sua fidelidade a Cristo, em todas as situações. Onde faltar esta disponibilidade, faltará o argumento decisivo da verdade, da qual a própria Igreja depende.

Queridos irmãos e irmãs, como nas origens, também hoje Cristo precisa de apóstolos prontos a sacrificar-se a si mesmos. Precisa de testemunhas e de mártires como São Paulo: outrora violento perseguidor dos cristãos, quando no caminho de Damasco caiu no chão fulgurado pela luz divina, passou sem hesitação para o lado do Crucificado e seguiu-O sem titubear. Viveu e trabalhou por Cristo; por Ele sofreu e morreu. Como é actual, hoje, o seu exemplo!

E exactamente por isso, estou feliz por anunciar oficialmente que ao Apóstolo Paulo dedicaremos um especial Ano jubilar, desde 28 de Junho de 2008 até 29 de Junho de 2009, por ocasião do bimilenário do seu nascimento, inserido pelos historiadores entre os anos 7 e 10 d.C. Este "Ano Paulino" poderá desenvolver-se de modo privilegiado em Roma, onde desde há vinte séculos se conserva sob o altar papal desta Basílica o sarcófago, que segundo o parecer unânime dos peritos e pela incontestada tradição, contém os restos mortais do Apóstolo Paulo. Na Basílica Papal e na adjacente e homónima Abadia Beneditina, portanto, poderá ter lugar uma série de eventos litúrgicos, culturais e ecuménicos, como também várias iniciativas pastorais e sociais, todas elas inspiradas na espiritualidade paulina. Além disso, uma especial atenção poderá ser prestada às peregrinações, que de várias partes virão de forma penitencial ao túmulo do Apóstolo para encontrar a renovação espiritual. Também serão promovidos Congressos de estudos e especiais publicações sobre os textos paulinos, a fim de fazer conhecer cada vez mais a imensa riqueza do ensinamento contido neles, verdadeiro património da humanidade redimida por Cristo. No mundo inteiro, iniciativas semelhantes poderão ser realizadas nas Dioceses, nos Santuários, nos lugares de culto por parte de Instituições religiosas, de estudo ou de assistência, que têm o nome de São Paulo ou que se inspiram na sua figura e no seu ensinamento. Enfim, há um aspecto especial que deverá ser cuidado com particular atenção, durante a celebração dos vários momentos do bimilenário paulino: refiro-me à dimensão ecuménica. O Apóstolo das Nações, particularmente comprometido em levar a Boa Nova a todos os povos, prodigalizou-se totalmente pela unidade e pela concórdia de todos os cristãos. Queira ele guiar-nos e proteger-nos nesta celebração bimilenária, ajudando-nos a progredir na busca humilde e sincera da unidade plena de todos os membros do Corpo místico de Cristo. Amém!



29 de Junho de 2007: BÊNÇÃO E IMPOSIÇÃO DOS PÁLIOS A 46 ARCEBISPOS METROPOLITANOS

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Basílica de São Pedro


Amados irmãos e irmãs

Ontem à tarde fui à Basílica de São Paulo fora dos Muros, onde celebrei as Primeiras Vésperas da hodierna Solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo. Ao lado do sepulcro do Apóstolo das Nações prestei homenagem à sua memória e anunciei o Ano Paulino que, por ocasião do bimilenário do seu nascimento, se realizará desde 28 de Junho de 2008 até 29 de Junho de 2009.

Hoje de manhã, contudo, segundo a tradição, encontramo-nos junto do sepulcro de São Pedro.

Estão presentes, para receber o Pálio, os Arcebispos Metropolitanos nomeados durante o último ano, aos quais dirijo a minha especial saudação. Está também presente, enviada pelo Patriarca Ecuménico de Constantinopla Bartolomeu I, uma eminente Delegação, que acolho com cordial reconhecimento, enquanto volto a pensar no dia 30 do passado mês de Novembro, quando me encontrava em Istambul Constantinopla, para a festa de Santo André. Saúdo o Metropolita greco-ortodoxo da França, Emanuel; o Metropolita de Sassima, Gennadios; e o Diácono André. Estimados irmãos, sede bem-vindos. Todos os anos, a visita que fazemos uns aos outros constitui um sinal de que a busca da plena comunhão está sempre presente na vontade do Patriarca Ecuménico e do Bispo de Roma.

A festa de hoje oferece-me a oportunidade de voltar a meditar mais uma vez sobre a confissão de Pedro, momento decisivo no caminho dos discípulos com Jesus. Os Evangelhos sinópticos inserem-no nos arredores de Cesareia de Filipe (cf.
Mt 16,13-20 Mc 8,27-30 Lc 9,18-22).

João, por sua vez, conserva-nos mais uma significativa confissão de Pedro, depois do milagre dos pães e do discurso de Jesus na sinagoga de Cafarnaum (cf. Jn 6,66-70). No texto que acaba de ser proclamado, Mateus recorda a atribuição a Simão, por parte de Jesus, do apelativo Cefas, "Pedra". Jesus afirma que "sobre esta pedra" deseja edificar a sua Igreja e, nesta perspectiva, confere a Pedro o poder das chaves (cf. Mt 16,17-19). Destas narrações sobressai claramente o facto de que Pedro é inseparável do encargo pastoral que lhe foi confiado em relação à grei de Cristo.

Em conformidade com todos os Evangelistas, a confissão de Simão tem lugar num momento decisivo da vida de Jesus quando, depois da pregação na Galileia, Ele se dirige resolutamente rumo a Jerusalém para completar, mediante a morte na cruz e a ressurreição, a sua missão salvífica. Os discípulos estão envolvidos nesta decisão: Jesus convida-os a fazer uma opção que os levará a distinguir-se da multidão, tornando-se a comunidade dos que acreditam nele, a sua "família", o início da Igreja. Efectivamente, existem dois modos de "ver" e de "conhecer" Jesus: o primeiro o da multidão é mais superficial, e o segundo o dos discípulos é mais intenso e autêntico. Com a dúplice interrogação: "Quem dizem as pessoas Quem dizeis vós que Eu sou?", Jesus convida os discípulos a tomarem consciência desta diferente perspectiva. As pessoas pensam que Jesus é um profeta.

Isto não é falso, mas não basta; é inadequado. Com efeito, trata-se de ir em profundidade, de reconhecer a singularidade da pessoa de Jesus de Nazaré, a sua novidade. Também hoje é assim: muitos se aproximam de Jesus, por assim dizer, a partir de fora. Grandes estudiosos reconhecem a sua estatura espiritual e moral, bem como a sua influência sobre a história da humanidade, comparando-o com Buda, Confúcio, Sócrates e outros sábios e grandes personagens da história.

Porém, não conseguem reconhecê-lo na sua unicidade. Vem à mente aquilo que Jesus disse a Filipe, durante a última Ceia: "Estou há tanto tempo convosco, e não me conheces, Filipe?" (Jn 14,9). Muitas vezes Jesus é considerado também como um dos grandes fundadores de religiões, de quem cada um pode haurir algo para formar a sua própria convicção. Portanto, como nessa época, também hoje as "pessoas" têm diferentes opiniões sobre Jesus. E como então, também a nós, discípulos de hoje, Jesus repete a sua pergunta: "E vós, quem dizeis que Eu sou?". Queremos fazer nossa a resposta de Pedro. Segundo o Evangelho de Marcos, Ele disse: "Tu és Cristo" (Mc 8,29); em Lucas, a afirmação é: "O Messias de Deus" (Lc 9,20); em Mateus, ressoa: "Tu és Cristo, o Filho de Deus vivo" (Mt 16,16); enfim, em João: "Tu és o Santo de Deus" (Jn 6,69). Todas elas são respostas correctas, válidas também para nós.

Reflictamos, de modo particular, sobre o texto de Mateus, citado pela liturgia desde dia. Segundo alguns estudiosos, a fórmula que ali aparece pressupõe o contexto pós-pascal, e estaria até mesmo ligada a uma aparição pessoal de Jesus ressuscitado a Pedro; uma aparição análoga à que Paulo teve no caminho de Damasco. Na realidade, o cargo conferido pelo Senhor a Pedro está radicado no relacionamento pessoal que o Jesus histórico teve com o pescador Simão, a partir do primeiro encontro com ele, quando lhe disse: "Tu és Simão... chamar-te-ás Cefas (que quer dizer Pedra)" (Jn 1,42). Ressalta-o o Evangelista João, também ele pescador e, juntamente com seu irmão Tiago, sócio dos dois irmãos Simão e André. O Jesus, que depois da ressurreição chamou Saulo, é o mesmo que ainda mergulhado na história depois do baptismo no Jordão, se aproximou dos quatro irmãos pescadores, então discípulos de João Baptista (cf. Jn 1,35-42). Ele foi procurá-los à margem do lago de Galileia, e chamou-os a segui-lo para serem "pescadores de homens" (cf. Mc 1,16-20). Sucessivamente, confiou a Pedro uma tarefa especial, desta forma reconhecendo nele uma especial dádiva de fé por parte do Pai celeste. Evidentemente, tudo isto foi em seguida iluminado pela experiência pascal, mas permanecendo firmemente alicerçado nas vicissitudes históricas precedentes à Pascoa. O paralelismo entre Pedro e Paulo não pode diminuir o alcance do caminho histórico de Simão com o seu Mestre e Senhor que, desde o início, lhe atribuiu a característica de "rocha", sobre qual depois construiria a sua nova comunidade,a Igreja.

Nos Evangelhos sinópticos, a confissão de Pedro é sempre seguida pelo anúncio, da parte de Jesus, da sua iminente paixão. Um anúncio diante do qual Pedro reage, porque ainda não consegue compreender. Contudo, trata-se de um elemento fundamental, motivo pelo qual Jesus insiste sobre ele vigorosamente. Com efeito, os títulos atribuídos a Ele por Pedro Tu és "Cristo", "Cristo de Deus", "o Filho de Deus vivo" compreendem-se de maneira autêntica, unicamente à luz do mistério da sua morte e ressurreição. E também o contrário é verdade: o acontecimento da Cruz somente revela o seu sentido integral, porque "este homem", que padeceu e morreu na cruz, "era verdadeiramente o Filho de Deus", para utilizar as palavras pronunciadas pelo centurião diante do Crucificado (cf. Mc 15,39). Estes textos dizem claramente que a integridade da fé cristã é dada pela confissão de Pedro, iluminada pelo ensinamento de Jesus sobre o seu "caminho" rumo à glória, ou seja, sobre o seu modo absolutamente singular de ser o Messias e o Filho de Deus. Um "caminho" estreito, um "modo" escandaloso para os discípulos de todos os tempos, que inevitavelmente são impelidos a pensar em conformidade com os homens, e não segundo Deus (cf. Mt 16,23). Também hoje, como na época de Jesus, não é suficiente possuir a justa confissão de fé: é necessário aprender sempre de novo do Senhor, o seu próprio modo de ser o Salvador e o caminho ao longo do qual segui-lo. Com efeito, temos que reconhecer que, também para o fiel, a Cruz é sempre dura de aceitar. O instinto impele a evitá-la, e o tentador induz-nos a pensar que é mais sábio preocupar-nos em salvar-nos a nós mesmos, do que perdermos a própria vida por fidelidade ao amor, por fidelidade ao Filho do Deus que se fez homem.

O que era difícil aceitar, para as pessoas às quais Jesus falava? O que continua a sê-lo também para muitas pessoas de hoje? Difícil de aceitar é o facto de que Ele pretende ser não somente um dos profetas, mas o Filho de Deus, e reivindica para si a mesma autoridade de Deus. Ouvindo-o pregar, vendo-o curar os doentes, evangelizar os pequeninos e os pobres e reconciliar os pecadores, gradualmente os discípulos conseguiram compreender que Ele era o Messias, no sentido mais elevado deste termo, ou seja, não apenas um homem enviado por Deus, mas o próprio Deus que se fez homem. Claramente, tudo isto era maior do que eles, ultrapassava a sua capacidade de compreender. Podiam expressar a sua fé com os títulos da tradição judaica: "Cristo", "Filho de Deus", "Senhor". Mas para aderir verdadeiramente à realidade, aqueles títulos deviam de alguma forma ser redescobertos na sua verdade mais profunda: o próprio Jesus, com a sua vida, revelou o seu significado integral, sempre surpreendente, até mesmo paradoxal em relação às concepções correntes. E a fé dos discípulos teve que se adaptar progressivamente. Ela apresenta-se-nos como uma peregrinação que tem o seu momento fontal na experiência do Jesus histórico, encontra o seu fundamento no mistério pascal, mas depois deve progredir ainda mais, graças à acção do Espírito Santo. Esta foi também a fé da Igreja ao longo da história; além disso, esta tem sido inclusive a nossa fé, de nós cristãos de hoje. Solidamente alicerçada na "rocha" de Pedro, é uma peregrinação rumo à plenitude daquela verdade que o Pescador da Galileia professou com uma convicção apaixonada: "Tu és Cristo, o Filho de Deus vivo" (Mt 16,16).

Caros irmãos e irmãs, na profissão de fé de Pedro, podemos sentir-nos e ser todos um só, não obstante as divisões que, ao longo dos séculos, dilaceraram a unidade da Igreja, com consequências que perduram até aos dias de hoje. Em nome dos Santos Pedro e Paulo, renovemos hoje, juntamente com os nossos Irmãos provenientes de Constantinopla aos quais volto a agradecer a presença nesta nossa celebração o compromisso a cumprir até ao fim o desejo de Cristo, que nos quer plenamente unidos. Com os Arcebispos concelebrantes, acolhamos o dom e a responsabilidade da comunhão entre a Sé de Pedro e as Igrejas Metropolitanas confiadas aos seus cuidados pastorais. Que nos oriente e nos acompanhe sempre com a sua intercessão a Santa Mãe de Deus: a sua fé indefectível, que sustentou a fé de Pedro e dos outros Apóstolos, continue a apoiar também a fé das gerações cristãs, a nossa própria fé: Rainha dos Apóstolos, rogai por nós!

Amém.





15 de Agosto de 2007: NA SOLENIDADE DA ASSUNÇÃO DA BEM-AVENTURADA VIRGEM MARIA

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Castel Gandolfo,


Caros irmãos e irmãs

Na sua grande obra "A Cidade de Deus", Santo Agostinho diz uma vez que toda a história humana, a história do mundo, é uma luta entre dois amores: o amor de Deus até à perda de si mesmo, até ao dom de si próprio, e o amor de si até ao desprezo de Deus, até ao ódio pelos outros. Esta mesma interpretação da história como luta entre dois amores, entre o amor e o egoísmo, aparece também na leitura tirada do Apocalipse, que agora ouvimos.

Aqui, estes dois amores aparecem em duas grandes figuras. Em primeiro lugar, há o dragão vermelho, fortíssimo, com uma manifestação impressionante e inquietadora do poder sem a graça, sem o amor, do egoísmo absoluto, do terror e da violência. No momento em que São João escreveu o Apocalipse, para ele este dragão realizava-se no poder dos imperadores romanos anticristãos, de Nero a Domiciano. Este poder parecia ilimitado; o poder militar, político, propagandístico do império romano era tal, que diante dele a fé, a Igreja, parecia-se com uma mulher inerme, sem possibilidade de sobreviver, e muito menos de vencer. Quem podia opor-se a este poder omnipresente, que parecia capaz de realizar tudo? E no entanto, sabemos que no final venceu a mulher inerme, não venceu o egoísmo, nem o ódio; venceu o amor de Deus, e o império romano abriu-se à fé cristã.

As palavras da Sagrada Escritura transcendem sempre o momento histórico. E assim, este dragão indica não apenas o poder anticristão dos perseguidores da Igreja daquela época, mas também as ditaduras materialistas anticristãs de todos os períodos. Vemos de novo realizado este poder, esta força do dragão nas grandes ditaduras do século passado: a ditadura do nazismo e a ditadura de Stalin tinham todo o poder, penetravam todos os ângulos, o último ângulo. Parecia impossível que, a longo prazo, a fé pudesse sobreviver diante deste dragão tão forte, que queria devorar o Deus que se fez Menino, e a mulher, a Igreja. Mas na realidade, também neste caso no final o amor foi mais forte do que o ódio.

Também hoje existe o dragão, de modos novos, diversos. Existe na forma das ideologias materialistas, que nos dizem: é absurdo pensar em Deus; é absurdo observar os mandamentos de Deus; é algo de um tempo passado. Somente é válido levar a vida em si mesma. Tomar neste breve momento da vida tudo aquilo que é possível. Só valem o consumo, o egoísmo e a diversão. Esta é a vida. Assim devemos viver. E de novo, parece absurdo, impossível, opor-se a esta mentalidade predominante, com toda a sua força mediática, propagandista. Hoje parece impossível que ainda se pense num Deus que criou o homem e que se fez Menino, e que seria o verdadeiro dominador do mundo.

Também agora este dragão parece invencível, mas inclusive agora é verdade que Deus é mais forte que o dragão, que vence o amor, e não o egoísmo. Tendo assim considerado as diversas configurações históricas do dragão, agora vemos outra imagem: a mulher revestida de sol, tendo a lua aos seus pés, circundada por doze estrelas. Também esta imagem é multidimensional. Um primeiro significado, sem dúvida, é que é Nossa Senhora, Maria totalmente revestida de sol, ou seja, de Deus; Maria que vive totalmente em Deus, circundada e penetrada pela luz de Deus. Circundada pelas doze estrelas, isto é, pelas doze tribos de Israel, por todo o Povo de Deus, por toda a comunhão dos santos, tendo aos pés a lua, imagem da morte e da mortalidade. Maria deixou atrás de si a morte; está totalmente revestida de vida, tendo sido elevada em corpo e alma à glória de Deus, e assim, posta na glória, tendo ultrapassado a morte, diz-nos: ânimo, no fim vence o amor! A minha vida consistia em dizer: sou a serva de Deus, a minha vida eram dom de mim mesma, por Deus e pelo próximo. E agora esta vida de serviço chega à verdadeira vida. Tende confiança, tende a coragem de viver assim também vós, contra todas as ameaças do dragão.

Este é o primeiro significado da mulher, que Maria chegou a ser. A "mulher revestida de sol" constitui o grande sinal da vitória do amor, da vitória do bem, da vitória de Deus. Um grande sinal de consolação. Mas depois esta mulher que sofre, que deve fugir, que dá à luz com um brado de dor, é também a Igreja, a Igreja peregrina de todos os tempos. Em todas as gerações, ela deve dar de novo à luz Cristo, levá-lo ao mundo com grande dor deste modo doloroso. Perseguida em todos os tempos, ela vive quase no deserto, vítima do dragão. Mas em todos os tempos a Igreja, o Povo de Deus, vive também da luz de Deus e, como diz o Evangelho, é alimentado em si mesmo com o pão da Sagrada Eucaristia. E assim em toda a tribulação, em todas as diversas situações da Igreja ao longo dos tempos, nas diversas regiões do mundo, sofrendo, vence. E é a presença, a garantia do amor de Deus contra todas as ideologias do ódio e do egoísmo.

Vemos certamente que também hoje o dragão quer devorar Deus, que se fez Menino. Não tenhais medo deste Deus aparentemente frágil. A luta já é algo ultrapassado. Ainda hoje este Deus frágil é forte: é a verdadeira força. E assim a festa da Assunção é o convite a ter confiança em Deus, e é também um convite a imitar Maria naquilo que Ela mesma disse: eu sou a serva do Senhor, e ponho-me à disposição do Senhor. Esta é a lição: percorrer o seu caminho; dar a nossa vida e não tomar a vida. E precisamente assim, percorremos o caminho do amor, que é um perder-nos, mas um perder-nos que na realidade é o único caminho para nos encontrarmos verdadeiramente a nós mesmos, para encontrarmos a verdadeira vida.

Contemplemos Maria, a Assunta. Deixemo-nos encorajar para a fé e para a festa da alegria: Deus vence. A fé aparentemente frágil é a verdadeira força do mundo. O amor é mais forte que o ódio. E digamos com Isabel: bendita sois Vós entre todas as mulheres. Pedimos-te juntamente com toda a Igreja: Santa Maria, orai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte!

Amém.




Bento XVI Homilias 17607