Bento XVI Homilias 15807


Domingo, 2 de Setembro de 2007: VISITA PASTORAL A LORETO POR OCASIÃO DO ÁGORA DOS JOVENS ITALIANOS

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NA CONCELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA NA ESPLANADA DE MONTORSO




Queridos irmãos e irmãs
Amados jovens amigos

Depois da vigília desta noite, o nosso encontro lauretano conclui-se agora em redor do altar, com a solene Concelebração Eucarística. Uma vez mais, dirijo a todos vós os meus mais cordiais cumprimentos. Saúdo de modo especial os Bispos e agradeço ao Arcebispo D. Angelo Bagnasco, que se fez intérprete dos vossos sentimentos comuns. Saúdo o Arcebispo de Loreto, que nos recebeu com carinho e atenção. Saúdo depois os sacerdotes, os religiosos, as religiosas e quantos prepararam com cuidado esta importante manifestação de fé. Dirijo enfim uma deferente saudação às Autoridades civis e militares aqui presentes, com uma lembrança especial ao Vice-Presidente do Conselho dos Ministros, Dep. Francesco Rutelli.

Este é verdadeiramente um dia de graça! As Leituras que acabamos de ouvir ajudam-nos a compreender como é maravilhosa a obra realizada pelo Senhor, que nos trouxe aqui a Loreto, em tão grande número e num jubiloso clima de oração e de festa. Neste nosso encontro no Santuário da Virgem cumprem-se, num certo sentido, as palavras da carta aos Hebreus: "Vós aproximastes-vos do monte Sião e da cidade do Deus vivo". Celebrando a Eucaristia à sombra da Santa Casa, também nós nos aproximamos da "reunião festiva e da assembleia dos primogénitos inscritos nos céus". Assim, podemos experimentar a alegria de nos encontrarmos diante "do Deus Juiz de todos e dos espíritos dos justos, que atingiram a perfeição". Juntamente com Maria, Mãe do Redentor e nossa Mãe, vamos sobretudo ao encontro do "Mediador da Nova Aliança", nosso Senhor Jesus Cristo (cf.
He 12,22-24). O Pai celestial, que falou aos homens muitas vezes e de diversos modos (cf. He 1,1), oferecendo a sua Aliança e encontrando muitas vezes resistências e rejeições, na plenitude dos tempos desejou estabelecer com os homens um pacto novo, definitivo e irrevogável, selando-o com o sangue do seu Filho unigénito, morto e ressuscitado para a salvação de toda a humanidade. Jesus Cristo, Deus que se fez homem, assumiu em Maria a nossa própria carne, tomou parte na nossa vida e quis compartilhar a nossa história. Para levar a cabo a sua Aliança, Deus procurou um coração jovem e encontrou-o em Maria, "jovem mulher".

Ainda hoje Deus está à procura de corações jovens, busca jovens com um coração generoso, capazes de reservar espaço para Ele na sua vida, a fim de serem protagonistas da Nova Aliança. Para acolher uma proposta fascinante como a que o próprio Jesus nos apresenta, para estabelecer com Ele uma Aliança, é necessário ser jovem interiormente, capaz de se deixar interpelar pela sua novidade, para empreender novos caminhos juntamente com Ele. Jesus tem uma predilecção pelos jovens, como é oportunamente evidenciado pelo diálogo com o jovem rico (cf. Mt 19,16-22 Mc 10,17-22); respeita a sua liberdade, mas nunca se cansa de lhes propor metas mais excelsas para a própria vida: a novidade do Evangelho e a beleza de um procedimento santo. Seguindo o exemplo do seu Senhor, a Igreja continua a ter a mesma atenção. Eis por que motivo, queridos jovens, ela olha para vós com imenso carinho, está próxima de vós nos momentos de alegria e de festa, de prova e de confusão; ela sustém-vos com os dons da graça sacramental e acompanha-vos no discernimento da vossa vocação. Caros jovens, deixai-vos empenhar na vida nova que brota do encontro com Cristo e sereis capazes de vos tornar apóstolos da sua paz nas vossas famílias, no meio dos vossos amigos, no interior das vossas comunidades eclesiais e nos vários ambientes em que viveis e trabalhais.

Mas o que faz tornar-se verdadeiramente "jovem" em sentido evangélico? Este nosso encontro, que se realiza à sombra de um Santuário mariano, convida-nos a olhar para Nossa Senhora. Portanto, perguntemo-nos: como foi que Maria viveu na sua juventude? Como foi que nela o impossível se tornou possível? É Ela mesma que no-lo revela no cântico do Magnificat: Deus "viu a humildade da sua serva" (Lc 1,48a). A humildade de Maria é aquilo que Deus aprecia mais do que qualquer outra coisa nela. E é exactamente sobre a humildade que nos falam as outras duas Cartas da hodierna Liturgia. Não é porventura uma feliz coincidência que esta mensagem nos seja transmitida precisamente aqui em Loreto? Aqui, o nosso pensamento dirige-se, naturalmente, para a Santa Casa de Nazaré, que é o Santuário da humildade: a humildade de Deus que se fez carne, que se fez pequenino, e a humildade de Maria que O recebeu no seu seio; a humildade do Criador e a humildade da criatura. Foi deste encontro de humildade que nasceu Jesus, Filho de Deus e Filho do homem. "Quanto maior fores, tanto mais te deves humilhar, e assim encontrarás benevolência diante de Deus", diz-nos o trecho de Ben Sira (Si 3,18); e Jesus no Evangelho, depois da parábola daqueles que foram convidados para as bodas, conclui: "Aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado" (Lc 14,11). Hoje esta perspectiva, indicada pelas Escrituras, parece mais provocatória do que nunca para a cultura e a sensibilidade do homem contemporâneo. O homem humilde é visto como um renunciatário, um derrotado, alguém que nada tem a dizer ao mundo. E no entanto, esta é a via-mestra, e não apenas porque a humildade é uma grande virtude humana, mas porque, em primeiro lugar, representa o modo de agir do próprio Deus. É o caminho escolhido por Cristo, o Mediador da Nova Aliança que, "identificado como homem, se humilhou a si mesmo, tornando-se obediente até à morte, e morte de cruz" (Ph 2,7-8).

Estimados jovens, tenho a impressão de vislumbrar nesta palavra de Deus sobre a humildade uma mensagem importante e mais actual do que nunca para vós, que desejais seguir Cristo e fazer parte da sua Igreja. A mensagem é a seguinte: não sigais o caminho do orgulho, mas sim o itinerário da humildade. Ide contra a corrente: não escuteis as vozes interessadas e sedutoras que hoje, de muitas partes, difundem modelos de vida caracterizados pela arrogância e pela violência, pela prepotência e pelo sucesso custe o que custar, pelo aparecer e pelo ter, em detrimento do ser. De quantas mensagens, que chegam até vós sobretudo através dos mass media, vós sois destinatários!

Sede vigilantes! Sede críticos! Não sigais a onda produzida por esta poderosa acção de persuasão. Prezados amigos, não tenhais medo de preferir os caminhos "alternativos", indicados pelo amor autêntico; um estilo de vida sóbrio e solidário; relacionamentos afectivos sinceros e puros; um compromisso honesto no estudo e no trabalho; e o profundo interesse pelo bem comum. Não tenhais medo de ser diferentes e criticados por aquilo que pode parecer uma derrota ou estar fora de moda: os vossos coetâneos, mas inclusive os adultos, e especialmente aqueles que parecem mais distantes da mentalidade e dos valores do Evangelho, têm uma profunda necessidade de ver alguém que ousa viver em conformidade com a plenitude de humanidade, manifestada por Jesus Cristo.

Queridos amigos, o caminho da humildade não é portanto a vereda da renúncia, mas sim da coragem. Não é o êxito de uma derrota, mas o resultado de uma vitória do amor sobre o egoísmo e da graça sobre o pecado. Seguindo Cristo e imitando Maria, devemos ter a coragem da humildade; temos de confiar-nos humildemente ao Senhor, porque só deste modo poderemos tornar-nos instrumentos dóceis nas suas mãos, permitindo-lhe fazer em nós grandes coisas. O Senhor realizou maravilhas em Maria e nos Santos! Penso, por exemplo, em Francisco de Assis e em Catarina de Sena, Padroeiros da Itália. Penso também em jovens esplêndidos, como Santa Gema Galgani, São Gabriel dell'Addolorata, São Luís Gonzaga, São Domingos Sávio, Santa Maria Goretti, que nasceu não distante daqui, e nos Beatos Piergiorgio Frassati e Alberto Marvelli. E penso inclusive nos numerosos rapazes e moças que pertencem à plêiade dos Santos "anónimos", mas que para Deus não são anónimos. Para Ele, cada pessoa individualmente é única, com o seu nome e o seu rosto. Todos nós, e vós bem o sabeis, somos chamados a ser santos!

Estimados jovens, como vedes, a humildade que o Senhor nos ensinou e que os Santos puderam testemunhar, cada qual segundo a originalidade da sua própria vocação, constitui um estilo de vida de modo algum renunciatário. Olhemos sobretudo para Maria: na sua escola, também nós como Ela podemos fazer a experiência daquele sim de Deus à humanidade da qual derivam todos os sins da nossa vida. É verdade, os desafios que deveis enfrentar são numerosos e grandes! Porém, o primeiro deles permanece sempre o do seguimento de Cristo até ao fim, sem reservas nem compromissos. E seguir Cristo significa sentir-se como uma parte viva do seu corpo, que é a Igreja.

Não podemos definir-nos discípulos de Jesus, se não amamos e não seguimos a sua Igreja. A Igreja é a nossa família, na qual o amor ao Senhor e aos irmãos, sobretudo na participação eucarística, nos faz experimentar a alegria de poder antegozar já agora a vida futura que será totalmente iluminada pelo Amor. O nosso compromisso quotidiano consista em vivermos aqui na terra como se estivéssemos lá no alto. Portanto, sentir-se Igreja é uma vocação à santidade para todos; é o compromisso diário a construir a comunhão e a unidade, vencendo toda a resistência e superando toda a incompreensão. Na Igreja nós aprendemos a amar, educando-nos para a recepção gratuita do próximo, a atenção solícita às pessoas que se encontram em dificuldade, os pobres e os últimos. A motivação fundamental que une os crentes em Cristo não é o sucesso, mas o bem, um bem que é tanto mais autêntico, quanto mais é compartilhado, e que não consiste antes de tudo no haver ou no poder, mas sim no ser. É assim que se edifica a cidade de Deus com os homens, uma cidade que contemporaneamente cresce a partir da terra e desce do Céu, uma vez que se desenvolve no encontro e na colaboração entre os homens e Deus (cf. Ap 21,2-3).

Caros jovens, seguir Cristo comporta além disso o esforço constante em vista de dar a própria contribuição para a edificação de uma sociedade mais justa a solidária, onde todos possam gozar dos bens da terra. Bem sei que muitos de vós já se dedicam com generosidade ao testemunho da própria fé nos vários âmbitos sociais, actuando no sector do voluntariado, trabalhando para a promoção do bem comum, da paz e da justiça em todas as comunidades. Um dos campos em que parece urgente actuar é, sem dúvida, o da salvaguarda da criação. Às novas gerações é confiado o porvir do planeta, em que são evidentes os sinais de um desenvolvimento que nem sempre soube tutelar os delicados equilíbrios da natureza. Antes que seja demasiado tarde, é preciso tomar decisões corajosas, que saibam criar de novo uma forte aliança entre o homem e a terra. São necessários um sim decisivo à tutela da criação e um compromisso vigoroso em vista de inverter as tendências que correm o risco de levar a situações de degradação irreversível. Por isso, apreciei a iniciativa da Igreja italiana, de promover a sensibilidade sobre as problemáticas da salvaguarda da criação, proclamando um Dia nacional que se celebra precisamente no dia 1 de Setembro. No corrente ano, presta-se atenção sobretudo à água, um bem extremamente precioso que, se não for compartilhado de maneira equitativa e pacífica, infelizmente vai tornar-se um motivo de tensões duras e conflitos ásperos.

Dilectos jovens amigos, depois de ter ouvido as vossas reflexões da tarde de ontem e desta noite, deixando-me orientar pela Palavra de Deus, agora desejei confiar-vos estas minhas considerações, que tencionam ser um encorajamento paternal a seguirdes Cristo para assim serdes testemunhas da sua esperança e do seu amor. Quanto a mim, continuarei a permanecer ao vosso lado mediante a oração e com o afecto, a fim de poderdes continuar com entusiasmo o caminho do Ágora, este singular percurso trienal, feito de escuta, de diálogo e de missão.

Concluindo hoje o primeiro ano com este maravilhoso encontro, não posso deixar de vos convidar a ter em vista o grandioso encontro do Dia Mundial da Juventude, que terá lugar em Julho do ano próximo em Sydney. Convido-vos a preparar-vos para aquela grande manifestação de fé juvenil, meditando sobre a Mensagem que aprofunda o tema do Espírito Santo para viver em conjunto uma nova Primavera do Espírito. Portanto, espero-vos em grande número também na Austrália, na conclusão do vosso segundo ano do Ágora. Enfim, voltemos mais uma vez os nossos olhos para Maria, modelo de humildade e de coragem. Ajuda-nos, Virgem de Nazaré, a sermos dóceis ao Espírito Santo, como Tu mesma foste; ajuda-nos a tornar-nos cada vez mais santos, discípulos apaixonados do teu Filho Jesus; sustenta e acompanha estes jovens, a fim de que sejam jubilosos e incansáveis missionários do Evangelho no meio dos seus coetâneos, em todos os recantos da Itália. Amém!






VIAGEM APOSTÓLICA À ÁUSTRIA POR OCASIÃO DO 850º ANIVERSÁRIO DA FUNDAÇÃO DO SANTUÁRIO DE MARIAZELL


Sábado, 8 de Setembro de 2007: CONCELEBRAÇÃO POR OCASIÃO DO 850º ANIVERSÁRIO DA FUNDAÇÃO DO SANTUÁRIO

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Queridos irmãos e irmãs

Com a nossa grande peregrinação a Mariazell celebramos a festa patronal deste Santuário, a festa da Natividade de Maria. Há 850 anos vêm aqui pessoas de vários povos e nações, pessoas que rezam trazendo consigo os desejos dos seus corações e dos seus Países, as preocupações e as esperanças do seu íntimo. Assim Mariazell tornou-se para a Áustria, e muito para além das suas fronteiras, um lugar de paz e de unidade reconciliada. Aqui experimentamos Jesus Cristo, no qual Deus está connosco, como afirma hoje o trecho evangélico Ele será a paz (cf.
Lc 5,4). Inserimo-nos hoje na grande peregrinação de muitos séculos. Fazemos uma pausa junto da Mãe do Senhor e imploramo-la: Mostra-nos Jesus. Mostra a nós, peregrinos, Aquele que é ao mesmo tempo o caminho e a meta: a verdade e a vida.

O trecho evangélico que acabamos de escutar, alarga ulteriormente o nosso olhar. Ele apresenta a história de Israel a partir de Abraão como uma peregrinação que, com subidas e descidas, por caminhos breves e longos, conduz por fim a Cristo. A genealogia com as suas figuras luminosas e obscuras, com os seus sucessos e as suas falências, demonstra-nos que Deus pode escrever direito também pelas linhas tortas da nossa história. Deus dá-nos a liberdade e, contudo, sabe encontrar na nossa falência caminhos novos para o seu amor. Deus não falha. Assim esta genealogia é uma garantia da fidelidade de Deus; uma garantia que Deus não nos deixa cair, e um convite a orientar a nossa vida sempre de novo para Ele, a caminhar sempre de novo para Cristo.

Ir em peregrinação significa estar orientados para uma certa direcção, caminhar rumo à meta. Isto confere também ao caminho e à fadiga que ele comporta uma sua beleza. Entre os peregrinos da genealogia de Jesus haviam alguns que tinham esquecido a meta e queriam designar-se a si mesmos como meta. Mas sempre de novo o Senhor tinha suscitado também pessoas que se deixaram levar pela nostalgia da meta, orientando para ela a própria vida. O impulso rumo à fé cristã, o início da Igreja de Jesus Cristo foi possível, porque existiam em Israel pessoas com um coração em busca pessoas que não se contentaram com o costume, mas perscrutaram longe na busca de algo maior: Zacarias, Isabel, Simeão, Ana, Maria e José, os Doze e muitos outros. Dado que o seu coração estava em expectativa, eles podiam reconhecer em Jesus Aquele que Deus tinha enviado e assim tornar-se o início da sua família universal. A Igreja das nações tornou-se possível, porque quer na área do Mediterrâneo quer na Ásia próxima e média, onde os mensageiros de Jesus chegaram, haviam pessoas em expectativa que não se contentavam com o que todos faziam e pensavam, mas procuravam a estrela que podia indicar-lhes o caminho rumo à própria Verdade, rumo ao Deus vivente.

Temos necessidade deste coração inquieto e aberto. É o âmago da peregrinação. Também hoje não é suficiente ser e pensar de qualquer forma como todos os demais. O projecto da nossa vida vai mais além. Precisamos de Deus, daquele Deus que nos mostrou o seu rosto e abriu o seu coração: Jesus Cristo. João, justamente, afirma que Ele é o Deus Unigénito que está no seio do Pai (cf. Jn 1,18); assim só Ele, do íntimo do próprio Deus, nos podia revelar Deus revelar-nos também quem somos nós, de onde vimos e para onde vamos. Sem dúvida, existem muitas personalidades grandiosas na história que fizeram belas e comovedoras experiências de Deus. Só Ele é Deus e por isso só Ele é a ponte, que verdadeiramente põe em contacto imediato Deus e o homem. Portanto, se nós cristãos o chamamos o único Mediador da salvação válido para todos, que a todos interessa e do qual, em definitiva, todos têm necessidade, isto não significa minimamente desprezo das outras religiões nem absolutização soberba do nosso pensamento, mas apenas ser conquistados por Aquele que nos comoveu interiormente e nos encheu de dons, para que pudéssemos por nossa vez fazer dons também aos outros.

De facto, a nossa fé opõe-se decididamente à resignação que considera o homem incapaz da verdade como se ela fosse demasiado grande para ele. Esta resignação perante a verdade é, segundo a minha convicção, o âmago da crise do Ocidente, da Europa. Se não existe para o homem uma verdade, ele, no fundo, não pode sequer distinguir entre o bem e o mal. E então os grandiosos e maravilhosos conhecimentos da ciência tornam-se ambíguos: podem abrir perspectivas importantes para o bem, para a salvação do homem, mas também e vemo-lo tornar-se uma terrível ameaça, a destruição do homem e do mundo.

Nós temos necessidade da verdade. Mas sem dúvida, devido à nossa história temos medo de que a fé na verdade inclua intolerância. Se este receio, que tem as suas boas razões históricas, nos invade, chegou o momento de olhar para Jesus como o vemos aqui no santuário de Mariazell. Vemo-lo em duas imagens: como menino nos braços da Mãe e, no altar principal da basílica, como crucifixo. Estas duas imagens da basílica dizem-nos: a verdade não se afirma mediante um poder externo, mas é humilde e doa-se ao homem unicamente mediante o poder do seu ser verdadeira. A verdade demonstra-se a si mesma no amor. Nunca é propriedade nossa, um nosso produto, como também o amor nunca se pode produzir, mas só receber e transmitir como dom. Precisamos desta força interior da verdade. Nós, como cristãos, confiamos nesta força da verdade. Dela somos testemunhas. Devemos transmiti-la como dom do mesmo modo como a recebemos, do modo como ela nos foi doada.

"Contemplar Cristo", é o mote deste dia. Este convite, para o homem em busca, transforma-se sempre de novo num pedido espontâneo, um pedido que se dirige em particular a Maria, que nos deu Cristo como seu Filho: "Mostra-nos Jesus!". Assim rezamos hoje com todo o coração; rezamos assim também fora deste momento, interiormente em busca do Rosto do Redentor. "Mostra-nos Jesus!". Maria responde, apresentando-O a nós antes de tudo como menino. Deus fez-se pequenino para nós. Deus não vem com a força exterior, mas vem na impotência do seu amor, que constitui a sua força. Ele entrega-se nas nossas mãos. Pede o nosso amor.

Convida-nos também a nós a fazermo-nos pequeninos, a descer dos altos tronos e aprender a sermos crianças diante de Deus. Ele propõe-nos o Tu. Pede que confiemos n'Ele e que assim aprendamos a estar na verdade e no amor. O menino Jesus recorda-nos naturalmente também todas as crianças do mundo, nas quais deseja vir ao nosso encontro. As crianças que vivem na pobreza; que são exploradas como soldados; que nunca conheceram o amor dos pais; as crianças doentes e que sofrem, mas também as alegres e sadias. A Europa tornou-se pobre de crianças: nós queremos tudo para nós mesmos, e talvez não tenhamos muita confiança no futuro. Mas a terra só não terá futuro quando se extinguirem as forças do coração e da razão iluminada pelo coração quando o rosto de Deus já não resplandecer sobre a terra. Onde estiver Deus, há futuro.

"Contemplar Cristo": lancemos ainda brevemente um olhar para o Crucifixo em cima do altar-mor. Deus remiu o mundo não com a espada, mas com a Cruz. Moribundo, Jesus alarga os braços. Este é antes de tudo o gesto da Paixão, no qual Ele se deixa pregar na cruz por nós, para nos dar a sua vida. Mas os braços alargados são ao mesmo tempo a atitude do orante, uma posição que o sacerdote assume quando na oração alarga os braços: Jesus transformou a paixão o seu sofrimento e a sua morte em oração, e assim transformou-a num acto de amor a Deus e aos homens. Por isso os braços alargados do Crucificado são, no final, também um gesto de abraço, com o qual Ele nos atrai para si, deseja conter-nos nas mãos do seu amor. Assim Ele é uma imagem do Deus vivo, é o próprio Deus, a Ele podemos confiar-nos.

"Contemplar Cristo!". Se nós o fizermos, damo-nos conta de que o cristianismo é algo mais e diferente de um sistema moral, de uma série de pedidos e de leis. É o dom de uma amizade que perdura na vida e na morte: "Já não vos chamo servos, mas amigos" (cf. Jn 15,15), diz o Senhor aos seus. Nós confiamo-nos a esta amizade. Mas porque o cristianismo é mais que moral, é o dom de uma amizade, precisamente por isto tem em si também uma grande força moral da qual nós, perante os desafios do nosso tempo, temos tanta necessidade. Se com Jesus Cristo e com a sua Igreja relemos de maneira sempre nova o Decálogo do Sinai, descendo às suas profundezas, então revela-se-nos como um grande, válido e permanente ensinamento. O Decálogo é antes de tudo um "sim" a Deus, a um Deus que nos ama e nos guia, que nos leva e, contudo, nos deixa a nossa liberdade, aliás, a torna verdadeira liberdade (os primeiros três mandamentos). É um "sim" à família (quarto mandamento), um "sim" à vida (quinto mandamento), um "sim" a um amor responsável (sexto mandamento), um "sim" à solidariedade, à responsabilidade social e à justiça (sétimo mandamento), um "sim" à verdade (oitavo mandamento) e um "sim" ao respeito das outras pessoas e do que lhes pertence (nono e décimo mandamentos). Em virtude do poder da nossa amizade com o Deus vivo, vivemos estes múltiplos "sins" e ao mesmo tempo temo-los como indicadores do percurso neste nosso momento do mundo.

"Mostra-nos Jesus!". Com este pedido à Mãe do Senhor pusemo-nos a caminho em direcção a este lugar. Este mesmo pedido acompanhar-nos-á quando voltarmos à nossa vida quotidiana. E sabemos que Maria satisfaz a nossa oração: sim, em qualquer momento, quando olhamos para Maria, ela mostra-nos Jesus. Assim podemos encontrar o caminho justo, segui-la passo a passo, cheios de confiança jubilosa de que o caminho leva à luz na alegria do Amor eterno. Amém.

* * *


A oração do Papa pelos dois peregrinos falecidos e por quem sofreu graves danos pelas enchentes

Queridos irmãos e irmãs!

Antes do encontro com os Conselhos paroquiais e antes de vos entregar o Evangelho e os Actos dos Apóstolos, gostaria de retomar quanto já foi dito nas intenções de oração. São muitas as pessoas que aqui, na Áustria, estão a sofrer, nestes dias, por causa das inchentes e sofreram danos.

Gostaria de tranquilizar todas estas pessoas com a minha oração, a minha compaixão e com o meu sofrimento e tenho a certeza de que quantos tiverem a possibilidade, mostrarão solidariedade e os ajudarão.

Depois, também gostaria de recordar os dois peregrinos que morreram aqui, hoje incluí-os na minha oração durante a Santa Missa. Podemos esperar que a Mãe de Deus os tenha conduzido directamente diante de Deus, porque tinham vindo em peregrinação para encontrar Jesus juntamente com ela.




Viena, 9 de Setembro de 2007, NA CATEDRAL DE SANTO ESTÊVÃO

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Queridos irmãos e irmãs!

"Sine dominico non possumus!". Sem o dom do Senhor, sem o Dia do Senhor não podemos viver: responderam alguns cristãos em Abitínia, actual Tunísia, no ano de 304 quando, surpreendidos durante a Celebração eucarística dominical, que era proibida, foram levados diante do juiz e interrogados porque tinham realizado de domingo a função religiosa cristã, mesmo sabendo que o facto era punido com a morte. "Sine dominico non possumus". Na palavra dominicum/dominico estão entrelaçados indissoluvelmente dois significados, cuja unidade devemos aprender a perceber. Há, antes de tudo, o dom do Senhor este dom é Ele mesmo: o Ressuscitado, de cujo contacto e proximidade os cristãos têm necessidade para ser eles mesmos.

Contudo, não é somente um contacto espiritual, interno, subjectivo: o encontro com o Senhor se inscreve no tempo através de um dia estabelecido. E deste modo se inscreve na nossa existência concreta, corpórea e comunitária, que é temporalidade. Dá ao nosso tempo, e portanto à nossa vida no seu conjunto, um centro, uma ordem interior. Para aqueles cristãos a Celebração eucarística dominical não era um preceito mas uma necessidade interior. Sem Ele que sustenta a nossa vida, a própria vida é vazia. Deixar ou trair este centro tiraria à vida o seu fundamento, a sua dignidade interior e a sua beleza.

Esta atitude dos cristãos de então tem relevância também para nós, cristãos de hoje? Sim, vale também para nós, que precisamos de uma relação que nos apoie e dê orientação e conteúdo à nossa vida. Também nós necessitamos do contacto com o Ressuscitado, que nos sustenta até depois da morte. Precisamos deste encontro que nos reúne, que nos doa um espaço de liberdade, que nos faz olhar para além do activismo da vida quotidiana em direcção do amor criador de Deus, do qual provimos e para o qual estamos a caminho.

Todavia, se prestarmos atenção agora à hodierna passagem evangélica, ao Senhor que nos fala através dela, nos assustaremos. "Quem não renuncia às suas propriedades e não deixa também os vínculos familiares, não pode ser meu discípulo". Quereríamos objectar: mas o que estais a dizer, Senhor? Porventura o mundo não tem necessidade da família? Não tem por acaso necessidade do amor paterno e materno, do amor entre pais e filhos, entre homem e mulher? Não precisamos do amor da vida, da alegria de viver? E não são necessárias também pessoas que investem nos bens deste mundo e edifiquem a terra que nos foi dada de maneira que todos possam ter parte nos seus dons? Não nos foi confiada também a tarefa de prover ao desenvolvimento da terra e dos seus bens? Se escutarmos melhor o Senhor e, sobretudo, escutá-lo no conjunto de tudo o que Ele nos diz, então compreenderemos que Jesus não exige de todos a mesma coisa. Cada um tem a sua tarefa pessoal e o tipo de seguimento projectado por Ele.

No Evangelho de hoje Jesus fala directamente do que não é tarefa de muitos que o seguiam na peregrinação para Jerusalém, mas que é chamada específica dos Doze. Eles devem, antes de mais, superar o escândalo da Cruz e depois estar prontos a deixar deveras tudo e aceitar a missão aparentemente absurda de ir até aos confins da terra e, com a sua escassa cultura, anunciar a um mundo repleto de suposta erudição e de formação fictícia ou verdadeira como também em particular aos pobres e aos simples o Evangelho de Jesus Cristo. Devem estar prontos, no seu caminho na vastidão do mundo, para sofrer em primeira pessoa o martírio, para testemunhar o Evangelho do Senhor crucificado e ressuscitado. Se a palavra de Jesus nesta peregrinação a Jerusalém, na qual uma grande multidão o acompanha, é dirigida antes de tudo aos Doze, a sua chamada naturalmente, além do momento histórico, alcança todos os séculos. Em todos os tempos Ele chama algumas pessoas para contar exclusivamente com Ele, para deixar todo o resto e estar totalmente à sua disposição e, desse modo, à disposição dos outros: para criar um oásis de amor abnegado num mundo no qual muito frequentemente parecem valer só o poder e o dinheiro. Damos graças ao Senhor, porque em todos os séculos nos doou homens e mulheres que por amor a Ele deixaram tudo, tornando-se sinais luminosos do seu amor! Basta pensar em pessoas como Bento e Escolástica, Francisco e Clara de Assis, Isabel da Turíngia e Edvige da Silésia, Inácio de Loyola, Teresa d'Ávila, Madre Teresa de Calcutá e Padre Pio! Estas pessoas, com a sua vida inteira, foram uma interpretação da palavra de Jesus, que neles se torna próxima e compreensiva para nós. E rezemos ao Senhor para que também no nosso tempo conceda a muitas pessoas a coragem de deixar tudo, para estar à disposição de todos.

Contudo, se nos dedicarmos agora novamente ao Evangelho, podemos perceber que o Senhor não fala somente de alguns poucos e da sua tarefa particular; o fulcro do que Ele quer vale para todos. Do que se trata em última análise, exprime-o outra vez assim: "Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, mas quem perder a própria vida por minha causa, salvá-la-á. Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, perdendo-se ou condenando-se a si mesmo?" (
Lc 9,24s.). Quem quiser somente possuir a própria vida, tomá-la só para si mesmo, perdê-la-á. Somente quem se doa recebe a sua vida. Por outras palavras: somente aquele que ama encontra a vida. E o amor requer sempre o sair de si mesmo, requer sempre deixar-se a si mesmo. Quem volta atrás para procurar a si mesmo e quer ter o outro somente para si, perde assim a si mesmo e ao outro. Sem este mais profundo perder-se a si mesmo não há vida. O irrequieto desejo de vida que actuamente não dá paz aos homens acaba no vazio da vida perdida: "Quem perder a própria vida por minha causa...", diz o Senhor: um deixar-se a si mesmo do modo mais radical é possível somente se com isto no final não caímos no vazio, mas nas mãos do Amor eterno. Apenas o amor de Deus, que se perdeu a si mesmo por nós, entregando-se por nós, torna possível que também nós nos tornarmos livres, não nos preocuparmos e, dessa maneira, encontrarmos deveras a vida. Este é o centro do que o Senhor nos quer comunicar no trecho evangélico aparentemente tão severo deste Domingo. Com a sua palavra Ele dá-nos a certeza de que podemos contar com o seu amor, o amor de Deus feito homem. Reconhecer isto é a sabedoria da qual nos falou a primeira leitura. De facto, vale também aqui que todo o saber do mundo não serve se não aprendermos a viver, se não compreendermos o que conta verdeiramente na vida.

"Sine dominico non possumus!". Sem o Senhor e o dia que lhe pertence não se realiza uma vida completa. O Domingo, nas nossas sociedades ocidentais, transformou-se num fim-de-semana, em tempo livre. Especialmente na pressa do mundo moderno, o tempo livre é algo bom e necessário; cada um de nós o sabe. Mas se o tempo livre não tem um centro interior, do qual provém uma orientação para o todo, acaba por ser um tempo vazio que não nos reforça nem recria. O tempo livre necessita de um centro o encontro com Aquele que é a nossa origem e a nossa meta. O meu grande predecessor na sede episcopal de München und Freising, o Cardeal Faulhaber, expressou-se assim certa vez: "Dá r alma o seu Domingo, dá ao Domingo a sua alma".

Exactamente porque no Domingo se trata em profundidade do encontro, na Palavra e no Sacramento, com Cristo ressuscitado, a luz desse dia abraça a inteira realidade. Os primeiros cristãos celebraram o primeiro dia da semana como Dia do Senhor, pois era o dia da ressurreição. Mas muito cedo a Igreja tomou consciência também do facto de que o primeiro dia da semana é o da manha da criação, o dia no qual Deus disse: "Faça-se a luz!" (Gn 1,3). Por isso o Domingo na Igreja é também a festa semanal da criação festa da gratidão e da alegria pela criação de Deus. Numa época em que por causa das nossas intervenções humanas, a criação parece estar exposta a múltiplos perigos, deveríamos acolher conscientemente também esta dimensão do Domingo. Para a Igreja primitiva, o primeiro dia depois assimilou progressivamente a herança do sétimo dia, do sabbat. Participamos no repouso de Deus, um repouso que abraça todos os homens. Assim percebemos neste dia algo da liberdade e da igualdade de todas as criaturas de Deus.

Na oração deste Domingo recordemos sobretudo que Deus, mediante o seu Filho, nos redimiu e adoptou como filhos amados. Depois, peçamos que olhe com benevolência para os crentes em Cristo e nos conceda a verdadeira liberdade e a vida eterna. Peçamos pelo olhar de bondade de Deus.

Nós mesmos temos necessidade deste olhar de bondade, para além do Domingo, até r vida de todos os dias. Ao pedir sabemos que este olhar já nos foi doado, aliás, sabemos que Deus nos adoptou como filhos, nos escutou verdadeiramente na comunhão consigo mesmo. Ser filho significa sabia-o muito bem a Igreja primitiva ser uma pessoa livre, não um servo, mas uma pessoa pertencente pessoalmente r família. E significa ser herdeiro. Se nós pertencemos àquele Deus que é o poder sobre todos os poderes, então não temos medo e somos livres, e somos herdeiros. A herança que Ele nos deixou é Ele mesmo, o seu Amor. Sim, Senhor, faz com que esta consciência nos penetre profundamente na alma e que possamos sentir assim a alegria dos redimidos. Amém.





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