Bento XVI Homilias 31127


Terça-feira, 1° de Janeiro de 2008: SANTA MISSA NA SOLENIDADE DA MÃE DE DEUS - XLI DIA MUNDIAL DA PAZ

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Praça de São Pedro



Queridos irmãos e irmãs!

Começamos hoje um novo ano e guia-nos pela mão a esperança cristã; iniciámo-lo invocando a bênção divina e implorando, por intercessão de Maria, Mãe de Deus, o dom da paz: para as nossas famílias, para as nossas cidades, para o mundo inteiro. Com estes votos saúdo todos vós aqui presentes começando pelos ilustres Embaixadores do Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé, reunidos nesta celebração por ocasião do Dia Mundial da Paz. Saúdo o Cardeal Tarcisio Bertone, meu Secretário de Estado, o Cardeal Renato Raffaele Martino e todos os componentes do Pontifício Conselho "Justiça e Paz". A eles estou particularmente grato pelo compromisso na difusão da Mensagem para o Dia Mundial da Paz, que este ano tem como tema: "Família humana, comunidade de paz".

A Paz. Na primeira Leitura, tirada do Livro dos Números, ouvimos a invocação: "Que o Senhor... te conceda a paz!" (
Nb 6,26); o Senhor conceda a paz a cada um de vós, às vossas famílias, ao mundo inteiro. Todos desejamos viver em paz, mas a paz verdadeira, a que é anunciada pelos anjos na noite de Natal, não é simples conquista do homem ou fruto de acordos políticos; é antes de tudo dom divino que se deve implorar constantemente e, ao mesmo tempo, compromisso que se deve levar em frente com paciência permanecendo sempre dóceis aos mandamentos do Senhor. Este ano, na Mensagem para este Dia Mundial da Paz, eu quis realçar a estreita relação que existe entre a família e a construção da paz no mundo. A família natural, fundada no matrimónio entre um homem e uma mulher, é "berço da vida e do amor" e "a primeira e insubstituível educadora para a paz". Precisamente por isso a família é "a principal "agência" de paz" e "a negação ou também a restrição dos direitos da família, obscurecendo a verdade do homem, ameaça os próprios fundamentos da paz" (cf. nn. 1-5). Dado que a humanidade é uma "grande família", se quiser viver em paz não pode deixar de se inspirar naqueles valores sobre os quais se funda e se rege a comunidade familiar. A providencial coincidência de várias celebrações estimula-nos este ano a fazer um esforço ainda mais sentido para realizar a paz no mundo. Há sessenta anos, em 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas publicou a "Declaração universal dos direitos do homem"; há quarenta anos o meu venerado Predecessor Paulo VI celebrou o primeiro Dia Mundial da Paz; além disso, este ano recordaremos o 25º aniversário da adopção por parte da Santa Sé da "Carta dos direitos da família". "À luz destas significativas celebrações retomo aqui quanto escrevi precisamente na conclusão da Mensagem convido cada homem e mulher a consciencializar-se mais lucidamente da comum pertença à única família humana e a comprometer-se para que a convivência sobre a terra reflicta cada vez mais esta convicção da qual depende a instauração de uma paz verdadeira e duradoura".

O nosso pensamento dirige-se agora naturalmente para Nossa Senhora, que hoje invocamos como Mãe de Deus. Foi o Papa Paulo VI que transferiu para o dia 1 de Janeiro a festa da Divina Maternidade de Maria, que outrora se celebrava a 11 de Outubro. De facto, antes da reforma litúrgica feita depois do Concílio Vaticano II, no primeiro dia do ano celebrava-se a memória da circuncisão de Jesus no oitavo dia do seu nascimento como sinal da submissão à lei, à sua inserção oficial no povo eleito e no domingo seguinte celebrava-se a festa do nome de Jesus. Entrevêem-se alguns vestígios destas celebrações na página evangélica que há pouco foi proclamada, na qual São Lucas narra que oito dias depois do nascimento o Menino foi circuncidado e foi-lhe dado o nome de Jesus, "indicado pelo anjo antes de ter sido concebido no seio materno" (Lc 2,21). Por conseguinte, a de hoje, além de ser uma festa mariana muito significativa, conserva também um conteúdo fortemente cristológico, porque, poderíamos afirmar, antes de dizer respeito à Mãe, refere-se precisamente ao Filho, Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.

O apóstolo Paulo, na Carta aos Gálatas, faz referência ao mistério da maternidade divina, a Theotokos. "Mas, ao chegar a plenitude dos tempos escreve Deus enviou o Seu Filho, nascido de mulher, sujeito à Lei" (Ga 4,4). Em poucas palavras encontramos sintetizados o mistério da encarnação do Verbo eterno e a divina maternidade de Maria: o grande privilégio da Virgem consiste precisamente em ser Mãe do Filho que é Deus. Oito dias após o Natal esta festa mariana encontra portanto a sua mais lógica e justa colocação. De facto, na noite de Belém, quando "deu à luz o seu filho primogénito" (Lc 2,7), cumpriram-se as profecias relativas ao Messias. "A jovem concebeu e dará à luz um filho", tinha prenunciado Isaías (Is 7,14); "Hás-de conceber no teu seio e dar à luz um filho", disse o Anjo Gabriel a Maria (Lc 1,31); e ainda um anjo do Senhor narra o Evangelista Mateus aparecendo em sonhos a José, tranquilizou-o dizendo-lhe: "não temas receber Maria, tua esposa, pois o que ela concebeu é obra do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho" (Mt 1,20-21).

O título de Mãe de Deus, juntamente com o de Santa Virgem, é o mais antigo, é também fundamento de todos os outros títulos com que Nossa Senhora foi venerada e continua a ser invocada de geração em geração, no Oriente e no Ocidente. Referem-se ao mistério da sua maternidade divina muitos hinos e orações da tradição cristã, como por exemplo uma antífona mariana da época de Natal, a Alma Redemptoris mater com a qual assim rezamos; "Tu quae genuisti, natura mirante, tuum sanctum Genitorem, Virgo prius ac posterius Tu, na maravilha de toda a criação, geraste o teu Criador, Mãe sempre virgem". Amados irmãos e irmãs, contemplamos hoje Maria, mãe sempre virgem do Filho unigénito do Pai; aprendemos dela a receber o Menino que nasceu para nós em Belém. Se no menino que ela deu à luz reconhecemos o Filho eterno de Deus e o acolhemos como o nosso único Salvador, podemos ser chamados e somo-lo realmente filhos de Deus: filhos no Filho. Escreve o Apóstolo: "Deus enviou o Seu Filho, nascido de mulher, nascido sujeito à Lei, para resgatar os que se encontravam sob o jugo da Lei e para que recebêssemos a adopção de filhos" (Ga 4,4).

O evangelista Lucas repete várias vezes que Nossa Senhora meditava silenciosa sobre estes acontecimentos extraordinários nos quais Deus a tinha envolvido. Ouvimo-lo também no breve trecho evangélico que hoje a liturgia nos propõe. "Maria, conservava todas estas coisas, ponderando-as no seu coração" (Lc 2,19). O verbo grego usado "sumbállousa" literalmente significa "colocar junto" e faz pensar num grande mistério que deve ser descoberto pouco a pouco. O Menino que geme na manjedoura, mesmo se aparentemente é semelhante a todos os meninos do mundo, é ao mesmo tempo totalmente diferente: é o Filho de Deus, é Deus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Este mistério a encarnação do Verbo e a maternidade divina de Maria é grande e certamente não é de fácil compreensão unicamente com a inteligência humana.

Mas na escola de Maria podemos captar com o coração aquilo que os olhos e a mente não conseguem compreender sozinhos, nem podem conter. De facto, trata-se de um dom tão grande que só na fé nos é dado acolher mesmo sem compreender tudo. E, precisamente neste caminho de fé, Maria vem ao nosso encontro, é para nós amparo e guia. Ela é Mãe porque gerou na carne Jesus; é-o porque aderiu totalmente à vontade do Pai. Escreve Santo Agostinho: "De valor algum teria sido para ela a própria maternidade divina, se ela não tivesse levado Cristo no coração, com um destino mais afortunado de quando o concebeu na carne" (De sancta Virginitate, 3, 3). E no seu coração Maria continuou a conservar, "a ponderar" os acontecimentos seguintes dos quais será testemunha e protagonista, até à morte na cruz e à ressurreição do seu Filho Jesus.

Queridos irmãos e irmãs, só preservando no coração, isto é, ponderando e encontrando a unidade de tudo o que vivemos, podemos aprofundar, seguindo Maria, o mistério de um Deus que por amor se fez homem e nos chama a segui-lo pelo caminho do amor; amor que se deve concretizar todos os dias num serviço generoso aos irmãos. Que o novo ano, que hoje iniciamos confiantes, seja um tempo no qual progridamos naquele conhecimento do coração, que é a sabedoria dos santos. Rezemos para que, como ouvimos na primeira Leitura, o Senhor "faça resplandecer o seu rosto" sobre nós, nos "seja propício" (cf. Nb 6,24-27) e nos abençoe. Podemos ter a certeza: se não nos cansarmos de procurar o seu rosto, se não cedermos à tentação do desencorajamento e da dúvida, se mesmo entre as muitas dificuldades que encontramos permanecermos sempre ancorados a Ele, experimentaremos o poder do seu amor e da sua misericórdia. O frágil Menino que a Virgem mostra hoje ao mundo, nos torne artífices de paz, testemunhas d'Ele, Príncipe da paz. Amém!





Domingo 6 de Janeiro de 2008: MISSA NA SOLENIDADE DA EPIFANIA DO SENHOR

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Basílica de São Pedro



Queridos irmãos e irmãs!

Celebramos hoje Cristo, Luz do mundo, e a sua manifestação às nações. No dia de Natal a mensagem da liturgia ressoava assim: "Hodie descendit lux magna super terram Hoje uma grande luz desce sobre a terra" (Missal Romano). Em Belém, esta "grande luz" apareceu a um pequeno grupo de pessoas, um minúsculo "resto de Israel": a Virgem Maria, o seu esposo José e alguns pastores. Uma luz humilde, como faz parte do estilo do Deus verdadeiro; uma chama pequena acendida na noite: um frágil recém-nascido, que geme no silêncio do mundo... Mas aquele nascimento escondido e desconhecido era acompanhado pelo hino de louvor pelas multidões celestes, que cantavam glória e paz (cf.
Lc 2,13-14).

Assim aquela luz, mesmo se modesta ao aparecer sobre a terra, projectava-se com poder no céu: o nascimento do Rei dos Judeus tinha sido anunciado com o surgir de uma estrela, visível de muito longe. Foi este o testemunho de "alguns Magos", que do oriente foram a Jerusalém pouco depois do nascimento de Jesus, no tempo do rei Herodes (cf. Mt 2,1-2). Mais uma vez se reevocam e se respondem o céu e a terra, a criação e a história. As antigas profecias encontram confirmação na linguagem dos astros. "Uma estrela sai de Jacob, e um ceptro flamejante surge do seio de Israel" (Nb 24,17), tinha anunciado o vidente pagão Balaão, chamado a amaldiçoar o povo de Israel, e que ao contrário o abençoou porque revelou-lhe Deus "aquele povo é abençoado" (Nb 22,12). Cromácio de Aquileia, no seu Comentário ao Evangelho de Mateus, pondo em relação Balaão com os Magos, escreve: "Aquele profetizou que Cristo teria vindo; estes viram-no com os olhos da fé". E acrescenta uma observação importante: "A estrela era vista por todos, mas nem todos a receberam" (ibid., 4, 1-2). Sobressai aqui o significado na perspectiva histórica, do símbolo da luz aplicado ao nascimento de Cristo: ele expressa a bênção especial de Deus sobre a descendência de Abraão, destinada a alargar-se a todos os povos da terra.

O acontecimento evangélico que recordamos na Epifania a visita dos Magos ao Menino Jesus em Belém remete-nos assim para as origens da história do povo de Deus, isto é, para a chamada de Abraão. Estamos no capítulo 12 do Livro do Génesis. Os primeiros 11 capítulos são como grandes afrescos que respondem a algumas perguntas fundamentais da humanidade: qual é a origem do universo e do género humano? De onde vem o mal? Por que há diversas línguas e civilizações? Entre as narrações iniciais da Bíblia, encontra-se uma primeira "aliança", estabelecida por Deus com Noé, depois do dilúvio. Trata-se de uma aliança universal, que se refere a toda a humanidade: o novo pacto com a família de Noé é ao mesmo tempo pacto com "toda a carne". Depois, antes da chamada de Abraão encontra-se outro afresco muito importante para compreender o sentido da Epifania: o da torre de Babel. O texto sagrado afirma que na origem em "toda a terra havia somente uma língua e empregavam-se as mesmas palavras" (Gn 11,1). Depois os homens disseram: "Vamos construir uma cidade e uma torre cuja extremidade atinja os céus. Assim, tornar-nos-emos famosos para evitar que nos dispersemos por toda a face da terra" (Gn 11,4). A consequência desta culpa de orgulho, análoga à de Adão e Eva, foi a confusão das línguas e a dispersão da humanidade sobre toda a terra (cf. Gn 11,7-8). Isto significa "Babel", e foi uma espécie de maldição, semelhante à expulsão do paraíso terrestre.

A este ponto tem início a história da bênção, com a chamada de Abraão: começa o grande desígnio de Deus para fazer da humanidade uma família, mediante a aliança com um povo novo, por Ele escolhido para que seja uma bênção entre todas as nações (cf. Gn 12,1-3). Este plano divino ainda está a decorrer e teve o seu momento culminante no mistério de Cristo. A partir de então iniciaram os "últimos tempos", no sentido de que o desígnio foi plenamente revelado e realizado em Cristo, mas pede para ser acolhido pela história humana, que permanece sempre história de fidelidade da parte de Deus e infelizmente também de infidelidades da parte de nós, homens. A mesma Igreja, depositária da bênção, é santa e composta por pecadores, marcada pela tensão entre o "já" e o "ainda não". Na plenitude dos tempos Jesus Cristo veio para cumprir a aliança: Ele mesmo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, é o Sacramento da fidelidade de Deus ao seu desígnio de salvação para a inteira humanidade, para todos nós.

A chegada dos Magos do Oriente a Belém, para adorar o recém-nascido Messias, é o sinal de manifestação do Rei universal aos povos e a todos os homens que procuram a verdade. É o início de um movimento oposto ao de Babel: da confusão à compreensão, da dispersão à reconciliação. Percebemos assim um vínculo entre a Epifania e o Pentecostes: se o Natal de Cristo, que é a Cabeça, é também o Natal da Igreja, seu corpo, nós vemos nos Magos os povos que se agregam ao resto de Israel, prenunciando o grande sinal da "Igreja poliglota", realizado pelo Espírito Santo cinquenta dias depois da Páscoa. O amor fiel e tenaz de Deus, que nunca falta à sua aliança de geração em geração. É o "mistério" do qual fala São Paulo nas suas Cartas, também no trecho da Carta aos Efésios há pouco proclamado: o Apóstolo afirma que "por revelação me foi dado conhecer o mistério que acabo de vos expor" (Ep 3,3) e ele está encarregado de o dar a conhecer.

Este "mistério" da fidelidade de Deus constitui a esperança da história. Sem dúvida, ele é contrastado por impulsos de divisão e de subjugação, que dilaceram a humanidade por causa do pecado e do conflito de egoísmos. A Igreja está, na história, ao serviço deste "mistério" de bênção pela humanidade inteira. Neste mistério da fidelidade de Deus, a Igreja desempenha plenamente a sua missão unicamente quando reflecte em si mesma a luz de Cristo Senhor, e assim ajuda os povos do mundo no caminho da paz e do progresso autêntico. De facto, permanece sempre válida a palavra de Deus revelada por meio do profeta Isaías: "... a noite cobre a terra e a escuridão os povos; mas sobre ti levantar-se-á o Senhor, a sua glória te iluminará" (Is 60,2). Aquilo que o profeta anuncia a Jerusalém, realiza-se na Igreja de Cristo: "As nações caminharão à tua luz, os reis, ao resplandecer da tua aurora" (Is 60,3).

Com Jesus Cristo a bênção de Abraão alargou-se a todos os povos, à Igreja universal como novo Israel que acolhe no seu seio a humanidade inteira. Contudo, também hoje continua em muitos sentidos a ser verdade quanto dizia o profeta: "a noite cobre a terra" e a nossa história. De facto, não se pode dizer que a globalização seja sinónimo de ordem mundial, ao contrário. Os conflitos pela supremacia económica e pelo monopólio dos recursos energéticos, hídricos e das matérias-primas tornam difícil o trabalho de quantos, a todos os níveis, se esforçam por construir um mundo justo e solidário. Há necessidade de uma esperança maior, que permita preferir o bem comum de todos ao luxo de poucos e à miséria de muitos. "Esta grande esperança só pode ser Deus... não um deus qualquer, mas aquele Deus que possui um rosto humano" (Spe salvi, n. ): o Deus que se manifestou no Menino de Belém e no Crucificado-Ressuscitado. Se há uma grande esperança, pode-se preservar na sobriedade. Se falta a verdadeira esperança, procura-se a felicidade no êxtase, no supérfluo, nos excessos, e arruína-se a si mesmo e ao mundo. A moderação não é então só uma regra ascética, mas também um caminho de salvação para a humanidade. Já é evidente que só adoptando um estilo de vida sóbrio, acompanhado do compromisso sério por uma distribuição equitativa das riquezas, será possível instaurar uma ordem de desenvolvimento justo e sustentável. Por isso, há necessidade de homens que tenham grande esperança e possuam muita coragem. A coragem dos Magos, que empreenderam uma longa viagem seguindo uma estrela, e que souberam ajoelhar-se diante de um Menino e oferecer-lhe os seus dons preciosos. Todos temos necessidade desta coragem, ancorada numa esperança firme. No-la obtenha Maria, acompanhando-nos na nossa peregrinação terrena com a sua materna protecção. Amém!





Sexta-feira, 25 de Janeiro de 2008: CELEBRAÇÃO DAS VÉSPERAS NA FESTA DA CONVERSÃO DE SÃO PAULO NA CONCLUSÃO DA SEMANA DE ORAÇÃO PELA UNIDADE DOS CRISTÃOS

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Basílica de São Paulo fora dos Muros




Queridos irmãos e irmãs!

A festa da Conversão de São Paulo coloca-nos de novo na presença deste grande Apóstolo, escolhido por Deus para ser a sua "testemunha diante de todos os homens" (
Ac 22,15). Para Saulo de Tarso, o momento do encontro com Cristo ressuscitado no caminho de Damasco marcou a mudança decisiva da vida. Realizou-se então a sua completa transformação, uma verdadeira conversão espiritual. Num momento, por intervenção divina, o cruel perseguidor da Igreja de Deus ficou cego, oscilando na escuridão, mas levando já no coração uma grande luz que o teria guiado, dali a pouco, para ser um fervoroso apóstolo do Evangelho. A consciência de que só a graça divina tinha podido realizar uma tal conversão nunca abandonou Paulo. Quando já tinha dado o melhor de si, consagrando-se incansavelmente à pregação do Evangelho, escreveu com renovado fervor: "tenho trabalhado mais do que todos eles; não eu, mas a graça de Deus, que está comigo" (1Co 15,10). Incansável como se a obra da missão dependesse totalmente dos seus esforços, São Paulo foi contudo sempre animado pela profunda persuasão de que a sua força provinha da graça de Deus que agia nele.

Esta tarde, as palavras do Apóstolo sobre a relação entre esforço humano e graça divina ressoam cheias de significado totalmente particular. Na conclusão da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, estamos ainda mais conscientes de quanto a obra da recomposição da unidade, que exige todas as nossas energias e esforços, seja contudo infinitamente superior às nossas possibilidades. A unidade com Deus e com os nossos irmãos e irmãs é um dom que provém do Alto, que brota da comunhão do amor entre Pai, Filho e Espírito Santo e que nela se aumenta e se aperfeiçoa. Não está em nosso poder decidir quando ou como esta unidade se realizará plenamente. Só Deus o poderá fazer! Como São Paulo, também nós colocamos a nossa esperança e confiança "na graça de Deus que está connosco". Queridos irmãos e irmãs, é isto que a oração que juntos elevamos ao Senhor deseja implorar, para que seja Ele quem nos ilumina e nos ampara na nossa constante busca de unidade.

E eis então que a exortação de Paulo aos cristãos de Tessalonica assume o seu valor: "Rezai incessantemente" (1Th 5,17), que foi escolhida como tema da Semana de oração deste ano. O Apóstolo conhece bem aquela comunidade nascida da sua actividade missionária, e sente por ela grandes esperanças. Conhece quer os méritos quer as debilidades. De facto, entre os seus membros não faltam comportamentos, atitudes e debates susceptíveis de criar tensões e conflitos, e Paulo intervém para ajudar a comunidade a caminhar na unidade e na paz. Na conclusão da epístola, com uma bondade quase paterna, ele acrescenta uma série de exortações muito concretas, convidando os cristãos a favorecer a participação de todos, a amparar os débeis, a ser pacientes, a não retribuir o mal com o mal, a procurar sempre o bem, a estar sempre felizes e a dar graças em todas as circunstâncias (cf. 1Th 5,12-22). No centro destas exortações, coloca o imperativo, "rezai continuamente". As outras admoestações perderiam de facto vigor e coerência, se não fossem amparados pela oração. A unidade com Deus e com os outros constitui-se antes de tudo mediante uma vida de oração, na constante busca da "vontade de Deus em Cristo Jesus para connosco" (cf. 1Th 5,18).

O convite dirigido por São Paulo aos Tessalonicenses é sempre actual. Perante as debilidades e os pecados que ainda impedem a plena comunhão dos cristãos, cada uma destas exortações manteve a pertinência, mas isto é particularmente verdadeiro pelo imperativo "rezai continuamente". O que se tornaria o movimento ecuménico sem a oração pessoal ou comum, para que "todos sejam um. Como Tu, ó Pai, estás em mim e eu em Ti" (Jn 17,21)? Onde encontrar o "impulso suplementar" de fé, de caridade e de esperança de que tem hoje uma particular necessidade a nossa busca da unidade? O nosso desejo de unidade não se deveria limitar a ocasiões esporádicas, mas tornar-se parte integrante de toda a nossa vida de oração. Foram homens e mulheres formados na Palavra de Deus e na oração os artífices da reconciliação e da unidade em cada fase da história. Foi o caminho da oração que abriu a estrada ao movimento ecuménico, assim como o conhecemos hoje. A partir dos meados do século XVIII, surgiram de facto vários movimentos de renovação espiritual, desejosos de contribuir por meio da oração para a promoção da unidade dos cristãos. Desde o início, grupos de católicos, animados por personalidades religiosas de relevo, participaram activamente em semelhantes iniciativas. A oração pela unidade foi apoiada também pelos meus venerados Predecessores, como o Papa Leão XIII, o qual, já em 1895, recomendava a introdução de uma novena de oração pela unidade dos cristãos. Estes esforços realizados segundo as possibilidades da Igreja do tempo, pretendiam realizar a oração pronunciada pelo próprio Jesus no Cenáculo "para que todos sejam um" (Jn 17,21). Portanto, não existe um ecumenismo genuíno que não afunde as suas raízes na oração.

Celebramos este ano o centenário do "Oitavário pela unidade da Igreja", que em seguida se tornou "Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos". Há cem anos, o Padre Paul Wattson, na época ainda ministro episcopaliano, idealizou um oitavário de oração pela unidade, que foi celebrado pela primeira vez em Gaymoor (Nova Iorque) de 18 a 25 de Janeiro de 1908. Esta tarde, é com grande alegria que dirijo a minha saudação ao Ministro-Geral e à delegação internacional dos Irmãos e das Irmãs franciscanas do Atonement, Congregação fundada pelo Padre Paul Wattson e promotora da sua herança espiritual. Nos anos trinta do século passado, o oitavário de oração conheceu importantes adaptações com o estímulo sobretudo do Abbé Paul Couturier de Lião, também ele grande promotor do ecumenismo espiritual. O seu convite a "rezar pela unidade da Igreja assim como Cristo a quer e segundo os meios que Ele quer", permitiu que cristãos de todas as tradições se unissem numa só oração pela unidade. Damos graças a Deus pelo grande movimento de oração que, há cem anos, acompanha e ampara os crentes em Cristo na sua busca de unidade. A barca do ecumenismo nunca teria saído do porto se não tivesse sido movida por esta ampla corrente de oração e impelida pelo sopro do Espírito Santo.

Conjuntamente à Semana de oração, muitas comunidades religiosas e monásticas convidaram e ajudaram os seus membros a "rezar incessantemente" pela unidade dos cristãos. Nesta ocasião que nos vê reunidos, recordamos em particular a vida e o testemunho da Irmã Maria Gabriella da Unidade (1914-1936), irmã trapista do mosteiro de Grottaferrata (actualmente em Vitorchiano). Quando a sua superiora, encorajada pelo Abbé Paul Couturier, convidou as irmãs a rezar e a fazer dom de si pela unidade dos cristãos, a Irmã Maria Gabriella sentiu-se imediatamente envolvida e não hesitou em dedicar a sua jovem existência a esta grande causa. Precisamente hoje é o vigésimo quinto aniversário da sua beatificação feita pelo meu predecessor, o Papa João Paulo II. Aquele acontecimento teve lugar nesta Basílica precisamente a 25 de Janeiro de 1983, durante a celebração de encerramento da Semana de Oração pela Unidade. Na sua homilia, o Servo de Deus ressaltou os três elementos sobre os quais se constrói a busca da unidade: a conversão, a cruz e a oração. Sobre estes três elementos fundaram-se também a vida e o testemunho da Irmã Maria Gabriella. O ecumenismo tem grande necessidade, hoje como ontem, do grande "mosteiro invisível" do qual falava o Abbé Paul Couturier, daquela vasta comunidade de cristãos de todas as tradições que, sem clamor, rezam e oferecem a sua vida para que se realize a unidade.

Além disso, há precisamente 40 anos, as comunidades cristãs de todo o mundo recebem para a Semana meditações preparadas conjuntamente pela Comissão "Fé e Constituição" do Conselho Ecuménico das Igrejas e pelo Pontíficio Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos. Esta feliz colaboração permitiu ampliar o vasto círculo de oração e preparar os seus conteúdos de modo mais adequado. Esta tarde, saúdo cordialmente o Rev.do Dr. Samuel Kobia, Secretário-Geral do Conselho Ecuménico das Igrejas, que veio a Roma para se unir a nós no centenário da Semana de oração. Sinto-me feliz pela presença dos membros do "Grupo Misto de Trabalho", que saúdo com afecto. O Grupo Misto é o instrumento de cooperação entre a Igreja católica e o Conselho Ecuménico das Igrejas na nossa busca comum de unidade. E, como todos os anos, dirijo a minha saudação fraterna também aos bispos, aos sacerdotes, aos pastores das diversas Igrejas e Comunidades eclesiais que têm aqui em Roma os seus representantes. A vossa participação nesta oração é expressão evidente dos vínculos que nos unem em Jesus Cristo: "Pois onde estiverem reunidos em Meu nome, dois ou três, Eu estou no meio deles" (Mt 18,20).

Nesta histórica Basílica, a 28 de Junho próximo, abrir-se-á o ano consagrado ao testemunho e ao ensinamento do apóstolo Paulo. Que o seu incansável fervor em construir o Corpo de Cristo na unidade nos ajude a rezar incessantemente pela plena unidade de todos os cristãos! Amém!






Sexta-feira, 1° de Fevereiro de 2008: VISITA AO PONTIFÍCIO SEMINÁRIO MAIOR ROMANO - FESTA DE NOSSA SENHORA DA CONFIANÇA

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A CELEBRAÇÃO DAS VÉSPERAS


Pontifício Seminário Maior Romano




Senhor Cardeal
Venerados Irmãos
no Episcopado e no Sacerdócio
Queridos seminaristas e pais
Amados irmãos e irmãs!

É sempre uma grande alegria para o Bispo encontrar-se no seu Seminário, e esta tarde agradeço ao Senhor que renova para mim esta alegria, na vigília da festa de Nossa Senhora da Confiança, vossa celeste Padroeira. Saúdo todos cordialmente: o Cardeal Vigário, os Bispos Auxiliares, o Reitor e os outros Superiores, e com especial afecto vós, queridos seminaristas. Sinto-me feliz por saudar também os pais presentes e os amigos da comunidade do Seminário Romano. Reunimo-nos juntos para as primeiras Vésperas solenes desta festa mariana que vos é querida. Ouvimos alguns versículos da Carta de São Paulo aos Gálatas, onde está presente esta expressão: "plenitude do tempo" (
Ga 4,4). Só Deus pode "encher o tempo" e fazer-nos experimentar o sentido completo da nossa existência. Deus encheu o tempo de si enviando o seu Filho Unigénito e n'Ele tornou-nos seus filhos adoptivos: "filhos no Filho". Em Jesus e com Jesus, "Caminho, Verdade e Vida" (Jn 14,6), somos agora capazes de encontrar as respostas que satisfazem as expectativas mais profundas do coração. Tendo desaparecido o receio, cresce em nós a confiança em Deus que ousamos chamar até "Abbà-Pai!" (cf. Ga 4,6).

Queridos seminaristas, precisamente porque o dom de ser filhos adoptivos de Deus iluminou a vossa vida, sentistes o desejo de tornar partícipes também os outros. Estais aqui por isso, para desenvolver a vossa vocação filial e para vos preparardes para a missão futura de apóstolos de Cristo. Trata-se de um crescimento único que, permitindo que conheçais a alegria da vida com Deus-Pai, vos faz sentir ainda muito mais a urgência de vos tornardes mensageiros do Evangelho do seu Filho Jesus. É o Espírito Santo que vos torna atentos a esta realidade profunda e vo-la faz amar. Tudo isto não pode deixar de suscitar uma grande confiança, porque o dom recebido é surpreendente, enche de admiração e de alegria interior. Podeis então compreender o papel que também Maria, invocada no vosso Seminário com o lindo título de Nossa Senhora da Confiança, desempenha na vossa vida. Assim como o "Filho nasceu da mulher" (cf. Ga 4,4), de Maria, Mãe de Deus, assim também o vosso ser filhos de Deus tem a Ela como Mãe, como Mãe verdadeira.

Queridos pais, provavelmente sois vós que vos sentis mais surpreendidos face ao que aconteceu e está a acontecer aos vossos filhos. Imaginastes porventura para eles uma missão diferente daquela para a qual se estão a preparar. Quem sabe quantas vezes reflectis sobre eles: pensais em quando eram crianças e depois jovens; nas vezes em que mostraram os primeiros sinais da vocação; ou então, em alguns casos, ao contrário, nos anos em que a vida do vosso filho parecia afastada da Igreja. O que aconteceu? Quais os encontros que influenciaram as suas escolhas? Quais luzes interiores orientaram o seu caminho? Como puderam abandonar perspectivas de vida até prometedoras, para escolher entrar no Seminário? Olhemos para Maria! O Evangelho faz-nos compreender que também Ela se surpreendeu a fazer tantas perguntas sobre o seu Filho Jesus e a meditar longamente sobre Ele (cf. Lc 2,19 Lc 2,51).

É inevitável que a vocação dos filhos de certa forma se torne vocação também dos pais. Procurando compreendê-los e seguindo-os no seu percurso, também vós, queridos pais e estimadas mães, muitas vezes vos encontrastes envolvidos num caminho no qual a vossa fé se foi fortalecendo e renovando. Encontrastes-vos a participar na aventura maravilhosa dos vossos filhos. De facto, mesmo se pode parecer que a vida do sacerdote não atraia o interesse da maioria do povo, na realidade trata-se da aventura mais interessante e mais necessária para o mundo, a aventura de mostrar e fazer presente a plenitude de vida à qual todos aspiram. É uma aventura muito exigente; e não poderia ser diversamente, porque o sacerdote está chamado a imitar Jesus, "não veio para ser servido, mas para servir e dar a Sua vida pelo resgate de muitos" (Mt 20,28).Queridos seminaristas, estes anos de formação constituem um tempo importante para vos preparardes para a exaltante missão para a qual o Senhor vos chama. Permiti que eu ressalte dois aspectos que caracterizam a vossa actual experiência. Antes de tudo, os anos do Seminário obrigam a um certo afastamento da vida comum, um certo "deserto", para que o Senhor possa falar ao vosso coração (cf. Os 2,16). De facto, a sua voz não é rumorosa, mas suave, é voz do silêncio (cf. 1R 19,12). Portanto, para ser ouvida exige um clima de silêncio. Por isso o Seminário oferece espaços e tempos de oração quotidiana; cuida muito a liturgia, a meditação da Palavra de Deus e a adoração eucarística. Ao mesmo tempo, pede-vos que dediqueis longas horas ao estudo; rezando e estudando, podeis construir em vós o homem de Deus que deveis ser e que o povo espera que o sacerdote seja.

Há depois um segundo aspecto da vossa vida; durante os anos de Seminário, vós viveis juntos; a vossa formação para o sacerdócio exige também este aspecto comunitário, que é de grande importância. Os Apóstolos formaram-se juntos, seguindo Jesus. A vossa comunhão não se limita ao presente, mas diz respeito também ao futuro: a acção pastoral que vos espera deverá ver-vos agir unidos como um corpo, num ordo, o dos presbíteros, que com o Bispo se ocupam da comunidade cristã. Amai esta "vida de família", que para vós é antecipação daquela "fraternidade sacramental" (Presbyterorum Ordinis PO 8) que deve caracterizar cada presbítero diocesano.

Tudo isto recorda que Deus vos chama a ser santos, que a santidade é o segredo do verdadeiro sucesso do vosso ministério sacerdotal. Desde agora a santidade deve constituir o objectivo de cada uma das vossas opções e decisões. Confiai este desejo e este empenho quotidiano a Maria, Mãe da Confiança! Este título tão pacificador corresponde ao repetido convite evangélico: "Não temas", dirigido pelo Anjo à Virgem (cf. Lc 1,29) e depois dirigido muitas vezes por Jesus aos discípulos. "Não temas, porque eu estou contigo", diz o Senhor. No ícone de Nossa Senhora da Confiança, onde o Menino indica a Mãe, parece que Jesus acrescenta: "Olha para a tua Mãe, e não temas". Queridos seminaristas, percorrei o caminho do Seminário com o coração aberto à verdade, à transparência, ao diálogo com quem vos guia e isto permitir-vos-á responder de maneira simples e humilde Àquele que vos chama, libertando-vos do risco de realizar um vosso projecto só pessoal. Vós, queridos pais e amigos, acompanhai os seminaristas com a oração e com o vosso constante apoio material e espiritual. Também eu vos garanto a todos vós uma recordação na minha oração, enquanto vos concedo com alegria a Bênção Apostólica.




Bento XVI Homilias 31127