Bento XVI Homilias 10109


Terça-feira, 6 de Janeiro de 2009: SANTA MISSA NA SOLENIDADE DA EPIFANIA DO SENHOR

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Basílica Vaticana



Queridos irmãos e irmãs!

A Epifania, a "manifestação" de nosso Senhor Jesus Cristo, é um mistério multiforme. A tradição latina identifica-o com a visita dos Magos ao Menino Jesus em Belém, e portanto interpreta-o sobretudo como revelação do Messias de Israel aos povos pagãos. A tradição oriental, ao contrário, privilegia o momento do baptismo de Jesus no rio Jordão, quando Ele se manifestou como Filho Unigénito do Pai celeste, consagrado pelo Espírito Santo. Mas o Evangelho de João convida a considerar "epifania" também as núpcias de Caná, nas quais Jesus, transformando a água em vinho, "manifestou a sua glória e os seus discípulos creram nele" (
Jn 2,11). E que deveríamos dizer nós, queridos irmãos, sobretudo nós sacerdotes da nova Aliança, que todos os dias somos testemunhas e ministros da "epifania" de Jesus Cristo na santa Eucaristia? A Igreja celebra todos os mistérios do Senhor neste santíssimo e humilde Sacramento, no qual Ele ao mesmo tempo revela e esconde a sua glória. "Adoro te devote, latens Deitas" adorando, rezamos assim com São Tomás de Aquino.

Neste ano de 2009 que, no 4º centenário das primeiras observações de Galileu Galilei ao telescópio, foi dedicado de modo especial à astronomia, não podemos deixar de prestar uma atenção particular ao símbolo da estrela, tão importante na narração evangélica dos Magos (cf. Mt 2,1-12). Eles eram provavelmente astrónomos. Do seu lugar de observação, colocado no Oriente em relação à Palestina, talvez na Mesopotâmia, tinham observado o surgir de um novo astro, e tinham interpretado este fenómeno celeste como anúncio do nascimento de um rei, precisamente, segundo as Sagradas Escrituras, do rei dos Judeus (cf. Nb 24,17). Os Padres da Igreja viram neste singular episódio narrado por São Mateus também uma espécie de "revolução" cosmológica, causada pela entrada do Filho de Deus no mundo. Por exemplo, São João Crisóstomo escreve: "Quando a estrela chegou ao ponto onde estava o menino, parou, o que podia fazer apenas um poder que os astros não possuem: isto é, primeiro esconder-se, depois aparecer de novo, e por fim parar" (Homilias sobre o Evangelho de MT 7,3). São Gregório de Nazianzo afirma que o nascimento de Cristo conferiu orbitas novas aos astros (cf. Poemas dogmáticos, v, 53-64; pg 37, 428-429). Isto deve ser totalmente compreendido em sentido simbólico e teológico. De facto, enquanto a teologia pagã divinizava os elementos e as forças do cosmos, a fé cristã, levando a cumprimento a revelação bíblica, contempla um único Deus, Criador e Senhor de todo o universo.

É o amor divino, encarnado em Cristo, a lei fundamental e universal da criação. Isto deve ser visto ao contrário em sentido não poético, mas real. Assim o via o próprio Dante, quando, no verso sublime que conclui o Paraíso e toda a Divina Comédia, define Deus "o amor que move o sol e as altas estrelas" (Paraíso, XXXIII, 145). Isto significa que as estrelas, os planetas, todo o universo não são governados por uma força cega, não obedecem às dinâmicas unicamente da matéria. Não devem ser portanto divinizados os elementos cósmicos, mas, ao contrário, em tudo e acima de tudo existe uma vontade pessoal, o Espírito de Deus, que em Cristo se revelou como Amor (cf. Enc. Spe salvi, ). Se assim é, então os homens como escreve São Paulo aos Colossenses não são escravos dos "elementos da criação" (cf. Col 2,8), mas são livres, isto é, capazes de se relacionarem com a liberdade criadora de Deus. Ele está na origem de tudo e tudo governa não como um motor frio e anónimo, mas como Pai, Esposo, Amigo, Irmão, como Logos, "Palavra-Razão" que se uniu à nossa carne mortal de uma vez para sempre e compartilhou plenamente a nossa condição, manifestando o poder superabundante da sua graça. Existe portanto no cristianismo uma peculiar concepção cosmológica, que encontrou na filosofia e na teologia medievais altíssimas expressões. Ela, também na nossa época, dá sinais interessantes de um novo florescimento, graças à paixão e à fé de não poucos cientistas, os quais nas pegadas de Galileu não renunciam nem à razão nem à fé, aliás, valorizam-nas a ambas profundamente, na sua recíproca fecundidade.

O pensamento cristão compara a criação com um "livro" assim dizia o próprio Galileu considerando-a como a obra de um Autor que se expressa mediante a "sinfonia" da criação. No interior desta sinfonia encontra-se, a um certo ponto, aquilo a que na linguagem musical se classifica "solo", um tema confiado a um só instrumento ou a uma só voz; e é tão importante que dele depende o significado de toda a obra. Este "solo" é Jesus, ao qual corresponde, precisamente, um sinal real: o surgir de uma nova estrela no firmamento. Jesus é comparado pelos antigos escritores cristãos a um novo sol. Segundo os actuais conhecimentos astrofísicos, nós deveríamos compará-lo com uma estrela ainda mais central, não só para o sistema solar, mas para todo o universo conhecido. Neste misterioso desígnio, ao mesmo tempo físico e metafísico, que levou ao surgimento do ser humano como coroamento dos elementos da criação, veio ao mundo Jesus: "nascido de mulher" (Ga 4,4), como escreve São Paulo. O Filho do homem resume em si a terra e o céu, a criação e o Criador, a carne e o Espírito. É o centro da criação e da história, porque n'Ele se unem sem se confundirem o Autor e a sua obra.

No Jesus terreno encontra-se o ápice da criação e da história, mas em Cristo ressuscitado vai-se além: a passagem, através da morte, para a vida eterna antecipa o ponto da "recapitulação" de tudo em Cristo (cf. Ep 1,10). De facto, todas as coisas escreve o Apóstolo "tudo foi criado por Ele e para Ele" (Col 1,16). E precisamente com a ressurreição dos mortos Ele obteve "a primazia sobre todas as coisas" (Col 1,18). Afirma-o o próprio Jesus aparecendo aos discípulos depois da ressurreição: "Foi-Me dado todo o poder no céu e na terra" (Mt 28,18). Esta consciência apoia o caminho da Igreja, Corpo de Cristo, ao longo das veredas da história. Não há sombras, por muito tenebrosas que possam ser, que obscureçam a luz de Cristo. Por isso nunca falta aos crentes em Cristo a esperança, também hoje, perante a grande crise social e económica que atormenta a humanidade, perante o ódio e a violência destruidoras que não cessam de ensanguentar muitas regiões da terra, perante o egoísmo e a pretensão do homem de se considerar o deus de si mesmo, que conduz por vezes a perigosas alterações do desígnio de Deus sobre a vida e a dignidade do ser humano, sobre a família e a harmonia da criação. O nosso esforço de libertar a vida humana e o mundo dos envenenamentos e das poluições que poderiam destruir o presente e o futuro, conserva o seu valor e sentido escrevi na já citada Encíclica Spe salvi mesmo se aparentemente não tenham sucesso ou pareçam não ter poder face ao predomínio de forças hostis, porque "é a grande esperança apoiada nas promessas de Deus que, tanto nos momentos bons como nos maus, nos dá coragem e orienta o nosso agir" (n. ).

O senhorio universal de Cristo exerce-se de modo especial sobre a Igreja. "Sob os seus pés lê-se na Carta aos Efésios [Deus] sujeitou todas as coisas e constituiu-O cabeça de toda a Igreja, que é o Seu corpo e o complemento d'Aquele que preenche tudo em todos" (Ep 1,22-23). A Epifania é a manifestação do Senhor, e de reflexo é a manifestação da Igreja, porque o Corpo não é separável da Cabeça. A primeira leitura de hoje, tirada do chamado Terceiro Isaías, oferece-nos a perspectiva clara para compreender a realidade da Igreja, como mistério de luz reflectida: "Levanta-te e resplandece, chegou a tua luz; / a glória do Senhor levanta-se sobre ti!" (Is 60,1). A Igreja é humanidade iluminada, "baptizada" na glória de Deus, isto é, no seu amor, na sua beleza, no seu senhorio. A Igreja sabe que a própria humanidade, com os seus limites e as suas misérias, ressalta mais a obra do Espírito Santo. Ela não se pode orgulhar de nada a não ser no seu Senhor: não é dela que provém a luz, não é sua a glória. Mas é precisamente esta a sua alegria, da qual ninguém a poderá privar: ser "sinal e instrumento" d'Aquele que é "lumen gentium", luz dos povos (cf. Conc. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium LG 1).

Queridos amigos, neste ano paulino, a festa da Epifania convida a Igreja e, nela, todas as comunidades e cada um dos fiéis, a imitar, como fez o Apóstolo das nações, o serviço que a estrela prestou aos Magos do Oriente guiando-os até Jesus (cf. São Leão Magno, Disc. 3 para a Epifania, 5, pl 54, 244). O que foi a vida de Paulo, depois da sua conversão, se não uma "corrida" para levar aos povos a luz de Cristo e, vice-versa, conduzir os povos a Cristo? A graça de Deus fez de Paulo uma "estrela" para as nações. O seu ministério é exemplo e estímulo para a Igreja, a fim de se redescobrir essencialmente missionária e renovar o compromisso pelo anúncio do Evangelho, sobretudo a quantos ainda não o conhecem. Mas, olhando para São Paulo, não podemos esquecer que a sua pregação era totalmente alimentada pelas Sagradas Escrituras. Por isso, na perspectiva da recente Assembleia do Sínodo dos Bispos, deve ser reafirmado com vigor que a Igreja e cada um dos cristãos podem ser luz, que guia para Cristo, unicamente se forem alimentados assídua e intimamente pela Palavra de Deus. É a Palavra que ilumina, purifica, converte, não somos certamente nós. Da Palavra de vida nós somos apenas servos. Assim Paulo se concebia a si mesmo e ao seu ministério: um serviço ao Evangelho. "Tudo eu faço por causa do Evangelho" (1Co 9,23). Assim deveria poder dizer também a Igreja, todas as comunidades eclesiais, cada Bispo e presbítero: faço tudo por causa do Evangelho. Amados irmãos e irmãs, rezai por nós, Pastores da Igreja, a fim de que, assimilando quotidianamente a Palavra de Deus, a possamos transmitir fielmente aos irmãos. Mas também nós rezamos por vós, fiéis, porque cada cristão está chamado pelo Baptismo e pela Confirmação a anunciar Cristo luz do mundo, com a palavra e com o testemunho da vida. Ajude-nos a Virgem Maria, Estrela da evangelização, a realizar juntos esta missão, e, do céu, interceda por nós São Paulo, Apóstolo das nações. Amém.





Domingo, 11 de Janeiro de 2009: CELEBRAÇÃO DO BAPTISMO DO SENHOR - SANTA MISSA E BAPTISMO DAS CRIANÇAS

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Capela Sistina




Caros irmãos e irmãs

As palavras que o evangelista Marcos cita no início do seu Evangelho: "Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus toda a minha complacência" (
Mc 1,11), introduzem-nos no coração da hodierna festa do Baptismo do Senhor, com que se conclui o tempo de Natal. O ciclo das solenidades natalícias faz-nos meditar sobre o nascimento de Jesus, anunciado pelos anjos circunfusos pelo esplendor luminoso de Deus; o tempo natalício fala-nos da estrela que guia os Magos do Oriente até à casa de Belém, e convida-nos a olhar para o céu que se abre sobre o Jordão, enquanto ressoa a voz de Deus. São todos sinais através dos quais o Senhor não se cansa de nos repetir: "Sim, estou aqui. Conheço-vos. Amo-vos. Há um caminho que de mim leva até vós. E há um caminho de vós sobe a mim". O Criador assumiu em Jesus as dimensões de uma criança, de um ser humano como nós, para poder fazer-se ver e tocar. Ao mesmo tempo, com este seu tornar-se pequenino, Deus fez resplandecer a luz da sua grandeza. Pois, precisamente humilhando-se até à impotência inerme do amor, Ele demonstra o que é a verdadeira grandeza, aliás, o que quer dizer ser Deus.

O significado do Natal, e mais em geral o sentido do ano litúrgico, é precisamente o de nos aproximar destes sinais divinos, para os reconhecer impressos nos acontecimentos de todos os dias, a fim de que o nosso coração se abra ao amor de Deus. E se o Natal e a Epifania servem sobretudo para nos tornar capazes de ver, para abrir os nossos olhos e o nosso coração ao mistério de um Deus que vem para permanecer connosco, a festa do Baptismo introduz-nos, poderíamos dizer, na quotidianidade de uma relação pessoal com Ele. Com efeito, mediante a imersão nas águas do Jordão, Jesus uniu-se a nós. O Baptismo é, por assim dizer, a ponte que Ele construiu entre si e nós, o caminho pelo qual se nos torna acessível; é o arco-íris divino sobre a nossa vida, a promessa do grande sim de Deus, a porta da esperança e, ao mesmo tempo, o sinal que nos indica o caminho a percorrer de modo activo e alegre, para o encontrar e para nos sentirmos por Ele amados.

Queridos amigos, estou verdadeiramente feliz porque também este ano, neste dia de festa, me foi concedida a oportunidade de baptizar algumas crianças. Sobre elas é posta hoje a "complacência" de Deus. Quando o Filho unigénito do Pai se fez baptizar, o céu abriu-se realmente e continua a abrir-se, e podemos confiar toda a nova vida que desabrocha nas mãos daquele que é mais poderoso do que os poderes obscuros do mal. Com efeito, é isto que o Baptismo comporta: restituímos a Deus aquilo que veio dele. A criança não é propriedade dos pais, mas é confiada pelo Criador à sua responsabilidade, livremente e de modo sempre novo, a fim de que eles o ajudem a ser um filho de Deus livre. Somente se os pais amadurecerem tal consciência, conseguirão encontrar o justo equilíbrio entre a pretensão de poder dispor dos próprios filhos como se fossem uma posse particular, plasmando-os com base nas suas próprias ideias e desejos, e a atitude libertária que se expressa deixando-os crescer em plena autonomia, satisfazendo todos os seus desejos e aspirações, considerando isto um modo justo de cultivar a sua personalidade. Se, com este sacramento, o recém-baptizado se torna filho adoptivo de Deus, objecto do seu amor infinito que o tutela e defende das forças obscuras do maligno, é necessário ensiná-lo a reconhecer Deus como seu Pai e a saber relacionar-se com Ele com atitude de filho. E por conseguinte, quando, segundo a tradição cristã como hoje fazemos, se baptizam as crianças introduzindo-as na luz de Deus e dos seus ensinamentos, não lhes fazemos violência, mas concede-mos-lhe a riqueza da vida divina em que se arraiga a verdadeira liberdade própria dos filhos de Deus; uma liberdade que deverá ser educada e formada com o amadurecimento dos anos, para que se torne capaz de opções pessoais responsáveis.

Amados pais, prezados padrinhos e madrinhas, saúdo todos vós com afecto e uno-me à vossa alegria por estes pequeninos que hoje renascem para a vida eterna. Sede conscientes do dom recebido e não cesseis de dar graças ao Senhor que, com o sacramento hodierno, introduz os vossos filhos numa nova família, maior e mais estável, mais aberta e numerosa que a vossa: refiro-me à família dos fiéis, à Igreja, uma família que tem Deus como Pai e na qual todos se reconhecem irmãos em Jesus Cristo. Portanto, vós hoje confiais os vossos filhos à bondade de Deus, que é poder de luz e de amor; e eles, apesar das dificuldades da vida, nunca mais se sentirão abandonados, se permanecerem unidos a Ele. Portanto, preocupai-vos por os educar na fé, os ensinar a rezar e a crescer, como fazia Jesus e com a sua ajuda, "em sabedoria, idade e graça diante de Deus e dos homens" (cf. Lc 2,52).

Voltando agora ao trecho evangélico, procuremos compreender ainda mais aquilo que está a acontecer hoje aqui. São Marcos narra que, enquanto João Baptista prega na margem do rio Jordão, proclamando a urgência da conversão em vista da vinda já próxima do Messias, eis que Jesus, confundindo-se no meio das pessoas, se apresenta para ser baptizado. O baptismo de João é certamente de penitência, muito diferente do sacramento que será instituído por Jesus. Todavia, naquele momento entrevê-se já a missão do Redentor porque, quando sai da água, do céu ressoa uma voz e sobre Ele desce o Espírito Santo (cf. Mc 1,10): o Pai celeste proclama-o seu filho predilecto e testemunha publicamente a missão salvífica universal, que se realizará de forma completa com a sua morte na cruz e a sua ressurreição. Só então, com o sacrifício pascal, a remissão dos pecados será universal e total. Então, com o Baptismo não nos imergimos simplesmente nas águas do Jordão para proclamar o nosso compromisso de conversão, mas é derramado sobre nós o sangue redentor de Cristo, que nos purifica e nos salva. É o amado Filho do Pai, em quem Ele pôs a sua complacência, que nos resgata a dignidade e a alegria de nos chamar a ser realmente "filhos" de Deus.

Daqui a pouco reviveremos este mistério evocado pela hodierna solenidade; os sinais e os símbolos do sacramento do Baptismo ajudar-nos-ão a compreender aquilo que o Senhor realiza no coração destes nossos pequeninos, tornando-os "seus" para sempre, morada escolhida do seu Espírito e "pedras vivas" para a construção do edifício espiritual, que é a Igreja. A Virgem Maria, Mãe de Jesus, o Filho amado de Deus, vele sobre eles e sobre as suas famílias, acompanhando-os sempre, para que possam realizar até ao fundo o projecto de salvação que, com o Baptismo, se concretiza nas suas vidas. E nós, estimados irmãos e irmãs, acompanhemo-los com a nossa oração; oremos pelos pais, pelos padrinhos e madrinhas, e pelos seus parentes, para que os ajudem a crescer na fé; rezemos por todos nós aqui presentes a fim de que, participando devotamente nesta celebração, renovemos as promessas do nosso Baptismo e demos graças ao Senhor pela sua assistência constante. Amém!





Terça-feira, 13 de Janeiro de 2009: CAPELA PAPAL PARA AS EXÉQUIAS DO CARDEAL PIO LAGHI

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Altar da Cátedra, Basílica Vaticana



Senhores Cardeais
Venerados Irmãos
no Episcopado e no Sacerdócio
Caros irmãos e irmãs

Reunidos em oração ao redor do altar do Senhor para a celebração eucarística, prestamos na luz da fé a derradeira saudação terrena ao amado Cardeal Pio Laghi, que o Senhor chamou a si no final de dias caracterizados por uma grave enfermidade. No seu testamento espiritual, escrevera: "Ofereço a Deus novamente a minha vida pela Igreja, pelo Santo Padre e pela santificação dos meus irmãos no sacerdócio. Aceito desde já a morte que a Providência Divina me reservou: peço somente que, se for possível, os dias do meu sofrimento sejam abreviados também para não dar demasiado trabalho àqueles que tiverem que me assistir". E o Senhor, a cujo serviço se dedicou inteiramente, agora abriu-lhe os seus braços de Pai bom e misericordioso. Na luz desta esperança, dirijo as minhas sentidas condolências a quantos choram a sua dolorosa morte: aos parentes, aos amigos e àqueles que estimaram os seus dotes humanos e sacerdotais. Uno-me de maneira particular à vossa oração, prezados irmãos e irmãs que participastes no rito das exéquias, presidido pelo Senhor Cardeal Angelo Sodano, Decano do Colégio Cardinalício.

No Evangelho proclamado nesta celebração ressoou mais uma vez a mensagem das Bem-Aventuranças. Como um dia naquele monte da Galileia, também hoje o Senhor Jesus continua a ensinar os seus discípulos com estes preceitos sempre válidos, que constituem como que a "Magna Charta" de uma vida cristã autêntica. Quantas vezes o amado Cardeal Pio Laghi certamente parou para reflectir sobre estas palavras evangélicas, e quantas vezes as explicou aos fiéis! Com a sua forte carga escatológica, elas sustêm a nossa esperança no Reino dos céus, prometido a quantos se esforçam por seguir fielmente o caminho do Mestre, aderindo aos seus ensinamentos. Deus criou-nos para Ele, e nele encontramos a felicidade. Conformando-nos na sua Palavra, é-nos possível transformar em fonte de paz e em nascente de alegria também as provações e os sofrimentos que, inevitavelmente, fazem parte da nossa peregrinação terrena. Peçamos ao Senhor que torne este nosso Irmão partícipe da bem-aventurança eterna, cujas primícias ele pôde antegozar já aqui na terra, na comunhão eclesial, e na construção de vínculos de paz e de concórdia entre os povos e as nações, para junto dos quais fora enviado como Representante Pontifício.

Podemos dizer que toda a missão sacerdotal do Cardeal Pio Laghi foi desempenhada ao serviço directo à Santa Sé. Ele inspirou-se sempre nas palavras dirigidas por Pedro a Jesus, por ocasião da pesca milagrosa: "Mestre, trabalhámos a noite inteira e nada apanhámos, mas porque Tu o dizes, voltarei a lançar as redes In verbo tuo laxabo rete" (
Lc 5,5). Ele escolheu estas palavras como mote do seu ministério episcopal como explicava sucessivamente porque quando em 22 de Junho de 1969 recebeu a ordenação episcopal, a liturgia daquele domingo previa precisamente a narração evangélica da pesca milagrosa. O seu brasão representava, entre outras coisas, um lago sobre o qual se estende o céu e vê-se um braço com uma rede. Era o brasão da sua família, no interior da qual recebeu uma sólida formação humana e cristã, e que no seu testamento espiritual ele define "cristã, católica, diligente e honesta". No contexto da mesma, cultivou o germe da vocação sacerdotal. Depois dos estudos primários e secundários em Faenza, no instituto salesiano da cidade, entrou no seminário episcopal para seguir os estudos filosóficos, que depois continuou, para os cursos teológicos, em Roma como aluno do Pontifício Seminário Maior, até ser ordenado sacerdote no dia 20 de Abril de 1946.

Sucessivamente, foi chamado ao serviço da Santa Sé e, em Março de 1952, depois de ter obtido a licença em Teologia e em Direito Canónico na Pontifícia Universidade Lateranense, começou o seu longo itinerário diplomático e pastoral nas Nunciaturas de diversas nações: da Nicarágua a Washington, nos Estados Unidos da América, em Deli na Índia, voltando em seguida por cinco anos à Secretaria de Estado. Depois de o ter eleito Arcebispo Titular de Mauriana em Maio de 1969, o Papa designou-o seu Delegado em Jerusalém e na Palestina, também com o encargo de pró-Núncio em Chipre e de Visitador Apostólico para a Grécia. Em Abril de 1974 tornou-se Núncio Apostólico na Argentina, onde permaneceu até Dezembro de 1980, quando foi chamado a assumir a missão de Delegado Apostólico nos Estados Unidos. Foi precisamente durante estes anos que se estabeleceram as relações oficiais entre a Santa Sé e o Governo de Washington.

A longa experiência e conhecimento da Igreja impeliram o meu amado Predecessor João Paulo II a nomeá-lo Prefeito da Congregação para a Educação Católica e a criá-lo Cardeal no Consistório de 28 de Junho de 1991 designando-lhe também, a partir de Maio de 1993, o alto cargo de Patrono da Soberana Ordem de Malta. É igualmente necessário recordar com gratidão as missões especiais que foram confiadas ao saudoso Purpurado: em Maio de 2001, junto de Israel e da Autoridade Palestina, para entregar uma mensagem pontifícia autógrafa, com a finalidade de encorajar as partes a um imediato cessar-fogo e à retomada do diálogo; dois anos mais tarde, no dia 1 de Março de 2003 foi, como Enviado Especial, a Washington para transmitir ao Presidente dos Estados Unidos uma mensagem pontifícia e para explicar a posição e as iniciativas empreendidas pela Santa Sé em vista de contribuir para o desarmamento e a paz no Médio Oriente. Missões delicadas que ele procurou cumprir, como sempre, com fiel dedicação a Cristo e à sua Igreja. "Desejei amar Cristo escreve no seu testamento espiritual e servi-lo durante a minha vida inteira, embora muitas vezes a minha fragilidade humana me tenha impedido manifestar-lhe de modo sempre edificante, como teria desejado, o meu amor, a minha fidelidade e a plena dedicação da sua vontade".

Demos graças a Deus pelo dom deste nosso Irmão e amigo, e por todo o bem que ele, com a ajuda da graça divina, pôde cumprir nos vários âmbitos em que foi chamado a desempenhar a sua preciosa actividade pastoral e diplomática. Uma menção especial merece o zelo com que se dedicou à promoção das vocações e à formação dos presbíteros. Agora fazemos votos por que possa contemplar face a face aquele Jesus, que ele tanto procurou amar e servir nos irmãos (cf. 1Jn 3,2). No momento em que nos despedimos dele, o nosso coração anima-se com a sólida esperança de que, como nos recordou a liturgia hodierna, "permanece plena de imortalidade" (cf. Sg 3,4), a esperança que iluminou a vida sacerdotal e apostólica do Cardeal Pio Laghi e que agora encontra a completa e definitiva realização na chamada divina a participar no banquete do Céu. Na conclusão do seu testamento espiritual, ele formula estes bons votos: "Tendo nos lábios o doce nome de Maria e o adorável nome do seu divino Filho Jesus, desejo exalar o meu último respiro". Acompanhemo-lo com afecto fraterno na passagem do tempo para a eternidade, unindo-nos a ele numa oração que ele gostava de repetir de modo particular: "Jesu, Filii Dei et Mariae, miserere mei: Mater mea, Fiducia mea, ora pro me in hora mortis meae. Amen".






Domingo, 25 de Janeiro de 2009: CELEBRAÇÃO DAS SEGUNDAS VÉSPERAS DA SOLENIDADE DA CONVERSÃO DE SÃO PAULO

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NO ENCERRAMENTO DA SEMANA DE ORAÇÃO PELA UNIDADE DOS CRISTÃOS
Basílica de São Paulo fora dos Muros



Amados irmãos e irmãs

É sempre grande a alegria de nos encontrarmos, junto do sepulcro do Apóstolo Paulo, na memória litúrgica da sua Conversão, para concluir a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos. Saúdo todos vós com afecto. De modo particular, saúdo o Cardeal Cordero Lanza di Montezemolo, o Abade e a Comunidade dos monges que nos hospedam. Cumprimento também o Cardeal Kasper, Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos. Juntamente com ele, saúdo os Senhores Cardeais presentes, os Bispos e os Pastores das várias Igrejas e Comunidades eclesiais, aqui reunidos esta tarde. Dirijo uma palavra de reconhecimento especial a quantos colaboraram na preparação do material para a oração, vivendo pessoalmente o exercício da reflexão e do confronto na escuta uns dos outros e, todos juntos, da Palavra de Deus.

A conversão de São Paulo oferece-nos o modelo e indica-nos a vereda para caminhar rumo à plena unidade. Com efeito, a unidade exige uma conversão: da divisão à comunhão, da unidade ferida à recuperada e plena. Esta conversão é dom de Cristo ressuscitado, como aconteceu com São Paulo. Ouvimo-lo das próprias palavras do Apóstolo, na leitura há pouco proclamada: "Por graça de Deus sou aquele que sou" (
1Co 15,10). O próprio Senhor, que chamou Saulo no caminho de Damasco, dirige-se aos membros da sua Igreja que é una e santa e, chamando cada qual pelo nome, pergunta: por que me dividiste? Por que feriste a unidade do meu corpo? A conversão implica duas dimensões. Na primeira fase conhecem-se e reconhecem-se na luz de Cristo as culpas, e este reconhecimento torna-se dor e arrependimento, desejo de um novo início. Na segunda, reconhece-se que este novo caminho não poder advir de nós mesmos. Consiste em deixar-se conquistar por Cristo. Como diz São Paulo: "...esforço-me por correr para O conquistar, porque também eu fui conquistado por Jesus Cristo" (Ph 3,12). A conversão exige o nosso sim, o meu "correr"; em última análise, não é uma actividade minha, mas dom, um deixar-se formar por Cristo; é morte e ressurreição. Por isso São Paulo não diz: "Converti-me", mas afirma "estou morto" (Ga 2,19), sou uma nova criatura. Na realidade, a conversão de São Paulo não foi uma passagem da imoralidade à moralidade a sua moralidade era alta de uma fé errada a uma fé recta a sua fé era verdadeira, embora fosse incompleta mas foi o ser conquistado pelo amor de Cristo: a renúncia à própria perfeição foi a humildade de quem se coloca sem reservas ao serviço de Cristo pelos irmãos. E só nesta renúncia a nós mesmos, nesta conformidade com Cristo, podemos estar unidos também entre nós, podemos tornar-nos "um só" em Cristo. É a comunhão com Cristo ressuscitado que nos confere a unidade.

Podemos observar uma interessante analogia com a dinâmica da conversão de São Paulo também meditando sobre o texto bíblico do profeta Ezequiel (cf. Ez 37,15-28), escolhido previamente este ano como base da nossa oração. Efectivamente, nele é apresentado o gesto simbólico das duas varas unidas numa só, na mão do profeta que, com este gesto, representa a acção futura de Deus. É a segunda parte do capítulo 37, que na primeira parte contém a célebre visão dos ossos áridos e da ressurreição de Israel, realizada pelo Espírito de Deus. Como deixar de observar que o sinal profético da reunificação do povo de Israel é inserido depois do grande símbolo dos ossos áridos vivificados pelo Espírito? Daqui deriva um esquema teológico análogo ao da conversão de São Paulo: em primeiro lugar está o poder de Deus que, com o seu Espírito, realiza a ressurreição como uma nova criação. Este Deus, que é o Criador e tem o poder de ressuscitar os mortos, também é capaz de reconduzir para a unidade o povo dividido em dois. Paulo como e mais do que Ezequiel torna-se instrumento eleito da pregação da unidade conquistada por Jesus mediante a Cruz e a ressurreição: a unidade entre judeus e pagãos, para formar um único povo novo. Portanto, a ressurreição de Cristo estende o perímetro da unidade: não só unidade das tribos de Israel, mas unidade de judeus e pagãos (cf. Ep 2 Jn 10,16); unificação da humanidade dispersa pelo pecado e ainda mais unidade de todos os crentes em Cristo.

A opção deste trecho do profeta Ezequiel, devemo-la aos irmãos da Coreia, que se sentiram fortemente interpelados por esta página bíblica, quer como coreanos, quer como cristãos. Na divisão do povo judaico em dois reinos, eles reflectiram-se como filhos de uma única terra, que as vicissitudes políticas separaram, uma parte ao norte e a outra ao sul. E esta sua experiência humana ajudou-os a compreender melhor o drama da divisão entre os cristãos. Agora, à luz desta Palavra de Deus que os nossos irmãos coreanos escolheram e propuseram a todos, sobressai uma verdade cheia de esperança: Deus promete ao seu povo uma nova unidade, que deve ser sinal e instrumento de reconciliação e de paz também no plano histórico, para todas as nações. A unidade que Deus concede à sua Igreja, e pela qual nós oramos, é naturalmente a comunhão em sentido espiritual, na fé e na caridade; mas nós sabemos que esta unidade em Cristo é fermento de fraternidade também no plano social, nas relações entre as nações e para toda a família humana. É o fermento do Reino de Deus que faz crescer toda a massa (cf. Mt 13,33). Neste sentido, a oração que elevamos nestes dias, referindo-nos à profecia de Ezequiel, tornou-se também intercessão pelas diversas situações de conflito que no presente afligem a humanidade. Onde as palavras humanas se tornam impotentes, porque prevalece o trágico clamor da violência e das armas, a força profética da Palavra de Deus não desfalece e repete-nos que a paz é possível, e que temos o dever de ser, nós mesmos, instrumentos de reconciliação e de paz. Por isso, exige-se sempre que a nossa oração pela unidade e pela paz seja comprovada por gestos corajosos de reconciliação entre nós, cristãos. Penso ainda na Terra Santa: como é importante que os fiéis que ali vivem, assim como os peregrinos que a visitam, ofereçam a todos o testemunho de que a diversidade dos ritos e das tradições não deveria constituir um obstáculo ao respeito mútuo e à caridade fraterna. Nas legítimas diversidades das diferentes tradições, temos que procurar a unidade na fé, no nosso "sim" fundamental a Cristo e à sua única Igreja. E assim as diversidades não serão mais obstáculo que nos separa, mas riqueza na multiplicidade das expressões da fé comum.

Gostaria de concluir esta minha reflexão, fazendo referência a um acontecimento que os mais idosos entre nós certamente não esquecem. No dia 25 de Janeiro de 1959, precisamente há cinquenta anos, o Beato Papa João XXIII manifestou pela primeira vez neste lugar a sua vontade de convocar "um Concílio ecuménico para a Igreja universal" (AAS LI [1959], pág. 68). Ele dirigiu este anúncio aos Padres Cardeais, na Sala capitular do Mosteiro de São Paulo, depois de ter celebrado a Missa solene na Basílica. Dessa decisão próvida sugerida pelo Espírito Santo ao meu venerado Predecessor, segundo a sua sólida convicção, derivou também uma contribuição fundamental para o ecumenismo, resumida no Decreto Unitatis redintegratio. Nele, entre outras coisas, lê-se: "Não pode existir verdadeiro ecumenismo sem conversão interior; pois o desejo de unidade nasce e amadurece na renovação do espírito (cf. Ep 4,23), da abnegação própria e do pleno exercício da caridade" (UR 7). A atitude de conversão interior em Cristo, de renovação espiritual, de maior caridade para com os outros cristãos deu lugar a uma nova situação nas relações ecuménicas. Os frutos dos diálogos teológicos, com as suas convergências e com a identificação mais específica das divergências que ainda subsitem, impelem a continuar intrepidamente em duas direcções: na recepção daquilo que foi alcançado positivamente e num renovado compromisso rumo ao futuro. Oportunamente, o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, ao qual agradeço o serviço que presta à causa da unidade de todos os discípulos do Senhor, recentemente reflectiu sobre a recepção e o futuro do diálogo ecuménico. Se por um lado esta reflexão quer, justamente, valorizar aquilo que já foi alcançado, por outro, tenciona encontrar novos caminhos para a continuação das relações entre as Igrejas e Comunidades eclesiais no contexto actual. O horizonte da plena unidade permanece aberto diante de nós. Trata-se de uma tarefa árdua, mas entusiasmante para os cristãos que desejam viver em sintonia com a oração do Senhor: "Para que todos sejam um só, a fim de que o mundo creia" (Jn 17,21). O Concílio Vaticano II delineou-nos que "este santo propósito de reconciliar todos os cristãos na unidade da Igreja de Cristo, una e única, excede as forças e os dotes humanos" (UR 24). Confiando na oração do Senhor Jesus Cristo, e animados pelos significativos passos dados pelo movimento ecuménico, invoquemos com fé o Espírito Santo, a fim de que continue a iluminar e orientar o nosso caminho. Estimule-nos e assista-nos do céu o Apóstolo Paulo, que tanto trabalhou e sofreu pela unidade do Corpo místico de Cristo; acompanhe-nos e ajude-nos a Bem-Aventurada Virgem Maria, Mãe da unidade da Igreja.




Bento XVI Homilias 10109